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Check-up do check-up

EDITORIAL

Check-up do check-up

Recentemente foram publicadas diretrizes para rastreamento de doença coronária e a conclusão foi de que não é recomendado o rastreamento de rotina em adultos com baixo risco de doenças do coração, através de eletrocardiograma, teste de esforço ou tomografia computadorizada, porque seu dano (muitos pacientes com resultados falso-positivos) supera seus benefícios. Ao mesmo tempo em que esse trabalho, realizado pela U.S. Preventive Services Task Force, era divulgado, muitos hospitais, laboratórios e empresas brasileiros continuavam a oferecer e fazer propaganda de check-up com esses mesmos exames para adultos assintomáticos, de baixo risco. Muitos programas de check-up, no Brasil, necessitam de urgente revisão.

O exame médico periódico (check-up) e o rastreamento de doenças e problemas de saúde em adultos assintomáticos (screening) vem ganhando importância cada vez maior entre médicos e não médicos. Existe uma idéia muito difundida de que a tecnologia de ponta é capaz de fazer diagnóstico precoce da maioria das doenças existentes e de que esse diagnóstico resulta em um tratamento rápido que beneficia as pessoas. Entretanto, são poucos os exames utilizados para rastreamento que têm eficácia e efetividade comprovadas, até o momento.

Como em todas as áreas da medicina, também na definição de como deve ser uma avaliação médica periódica e de que exames devem ser solicitados para rastreamento devem ser utilizadas as melhores evidências científicas disponíveis. Existem instituições que se dedicam a avaliar essas evidências e elaborar recomendações nelas baseadas. As principais organizações que trabalham nessa área são a Canadian Task Force on Preventive Health Care (CTFPHC) e a U.S. Preventive Services Task Force (USPSTF). Ambas dispõem de sites na internet, disponíveis para consulta livre. É claro que a definição do que deve ser feito em uma avaliação médica periódica deve ser individualizada, levando-se em conta sexo, idade, ocupação, hábitos e antecedentes de cada paciente. O médico, também, não deve fazer uma separação entre sua atuação na avaliação de sintomas existentes e o rastreamento. Em uma avaliação médica periódica, sintomas existentes devem ser investigados e, ao contrário, o momento em que um paciente procura o médico com algum problema deve ser utilizado para verificar se há necessidade de algum exame para rastreamento. Há, também, características regionais que devem ser consideradas, como por exemplo a incidência e prevalência de determinada doença e os hábitos alimentares de determinado grupo social. Há necessidade, portanto, de estudos realizados no Brasil para que essas eventuais diferenças possam ser consideradas.

Um aspecto fundamental da avaliação médica periódica é que ela deve estar estreitamente ligada a práticas de promoção da saúde. Só existe sentido no check-up se o seu principal componente for uma investigação cuidadosa de hábitos, estilo de vida e fatores de risco e se essa avaliação resultar na discussão cuidadosa com cada paciente das alternativas existentes para uma vida mais saudável. Este é o impacto principal de uma avaliação médica periódica e ele é muito maior do que o efeito potencial de todos os exames que forem solicitados. O benefício que um tabagista terá se o médico conseguir que ele pare de fumar supera em muito os benefícios eventuais de todos os exames que forem solicitados.

O rastreamento deve ser considerado em uma perspetiva mais ampla, que não se reduz aos exames subsidiários. Existem doenças e problemas que devem ser investigados principalmente durante a anamnese (por exemplo hábitos alimentares, tabagismo, abuso de álcool, prática de sexo seguro, depressão), durante o exame clínico (por exemplo hipertensão arterial) e nos exames subsidiários.

Um problema que o médico que procura estudar as práticas de rastreamento encontra é que as recomendações das diversas sociedades de especialistas são muito diferentes. Por exemplo, em relação ao câncer, só há consenso entre as principais entidades médicas internacionais em relação à necessidade de rastreamento para três tipos: câncer de colo uterino, câncer de mama e câncer colorretal. O principal problema apontado é que as diferentes sociedades de especialistas valorizam as evidências científicas de forma diferenciada e algumas sociedades tendem a supervalorizar os exames e as doenças de sua área de atuação.

O problema da solicitação de grande número de exames para rastreamento, em muitos programas de check-up, não é apenas o gasto desnecessário de recursos. Check-up pode fazer mal e muito mal. Existem riscos associados ao rastreamento, e essa idéia é, às vezes, difícil de aceitar porque sempre há o exemplo daquela pessoa que descobriu que tinha uma doença rara e foi tratada imediatamente, quando fez vários exames solicitados durante uma avaliação médica periódica. Um dos principais problemas são os pacientes que têm o teste positivo, mas não apresentam a doença (resultado falso-positivo). Nestes pacientes, a presença da doença será, muitas vezes, investigada com exames mais caros e mais invasivos, implicando em riscos. Muitos pacientes que têm o resultado falso-positivo podem ser considerados doentes, recebendo tratamento desnecessário e tendo repercussões psicológicas importantes. Por outro lado, resultados de exames que afastam a presença das doenças rastreadas, se não forem acompanhados de uma abordagem de promoção de saúde, podem dar uma falsa segurança de que não há necessidade de qualquer cuidado com a saúde, sendo um passaporte até o próximo check up.

Para um determinado exame ser considerado adequado para rastreamento, algumas condições devem ser satisfeitas: a doença a ser investigada deve ser importante, seja no seu risco de complicações e mortalidade, seja no seu impacto sobre a qualidade de vida; o exame utilizado deve ser eficaz; o exame deve ser aceito pelas pessoas; e, o mais importante, deve estar demonstrado que o tratamento da doença diagnosticada na fase pré-sintomática faz diferença. Talvez só seja ético fazer rastreamento para uma determinada doença se o seu diagnóstico quando ainda assintomática faça uma real diferença para as pessoas.

Mílton de Arruda Martins

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jul 2005
  • Data do Fascículo
    Jun 2005
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