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Medicina Baseada em Evidências: a arte de aplicar o conhecimento científico na prática clínica

Evidence-Based Medicine: the art of applying the scientific knowledge in the clinical practice

Resumos

Este artigo foi escrito com o objetivo de descrever o conceito de Medicina Baseada em Evidências (MBE) e as competências necessárias para a sua prática. MBE deve ser vista como a integração da experiência clínica com a capacidade de analisar e aplicar racionalmente a informação científica ao cuidar de pacientes. A aplicação de métodos e estratégias para fortalecer o alicerce científico do médico, sem desprezar os valores humanitários da profissão, deverá contribuir para a melhoria da qualidade da assistência médica que é oferecida no Brasil. As Escolas e Associações Médicas podem desempenhar importantes papéis na promoção da MBE.

Medicina Baseada em Evidências; Educação médica; Aprendizado baseado em problemas


This article was written with the objective of describing the concept of Evidence Based Medicine (EBM) and the competences required for its practice. EBM should be viewed as an integration of clinical experience with the ability to analyze and rationally apply the scientific information while taking care of patients. The application of methods and strategies to enhance the scientific background of the physician while taking into account the humanitarian values of the medical profession should contribute to improve the quality of the medical care that is offered in Brazil. The Medical Schools and Associations may play important roles in the promotion of EBM.

Evidence-based Medicine; Medical Education; Problem-based Learning


Artigo Especial

Medicina Baseada em Evidências: a arte de aplicar o conhecimento científico na prática clínica

A.A. Lopes

Área de Concentração em Epidemiologia Clínica do Curso de Pós-Graduação em Medicina da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA.

RESUMO ¾ Este artigo foi escrito com o objetivo de descrever o conceito de Medicina Baseada em Evidências (MBE) e as competências necessárias para a sua prática. MBE deve ser vista como a integração da experiência clínica com a capacidade de analisar e aplicar racionalmente a informação científica ao cuidar de pacientes. A aplicação de métodos e estratégias para fortalecer o alicerce científico do médico, sem desprezar os valores humanitários da profissão, deverá contribuir para a melhoria da qualidade da assistência médica que é oferecida no Brasil. As Escolas e Associações Médicas podem desempenhar importantes papéis na promoção da MBE.

UMITERMOS: Medicina Baseada em Evidências. Educação médica. Aprendizado baseado em problemas.

INTRODUÇÃO

Um movimento denominado Medicina Baseada em Evidências (Evidence-Based Medicine, EBM ou MBE)1 tem ajudado a ampliar a discussão sobre o ensino e a prática da medicina. Embora o termo Medicina Baseada em Evidências tenha sido introduzido recentemente, os métodos didáticos que lhe servem de alicerce não são totalmente novos2. Não se pode negar, no entanto, que a MBE, sendo um movimento voltado para a formação de médicos com espírito crítico aguçado e aptos a manter o processo de educação continuada, tem ajudado a definir novas estratégias e métodos didático-pedagógicos e a divulgar outros anteriormente desenvolvidos. Este artigo foi escrito com o objetivo de descrever o que se entende por Medicina Baseada em Evidências e as competências necessárias para os que desejam praticá-la.

O que significa Medicina Baseada em Evidências? MBE se traduz pela prática da medicina em um contexto em que a experiência clínica é integrada com a capacidade de analisar criticamente e aplicar de forma racional a informação científica de forma a melhorar a qualidade da assistência médica. Na MBE, as dúvidas que surgem ao resolver problemas de pacientes são os principais estímulos para que se procure atualizar os conhecimentos1,3. A filosofia da MBE guarda similaridades e pode ser integrada com a metodologia de ensino-aprendizagem denominada Aprendizado Baseado em Problemas4. A aquisição de conhecimentos de Epidemiologia Clínica, o desenvolvimento do raciocínio científico, atitudes de auto-aprendizagem e capacidade de integrar conhecimentos de diversas áreas são fundamentais para a prática da MBE3.

Alguém pode ser considerado possuidor das competências necessárias para a prática da MBE quando for capaz de:

1. identificar os problemas relevantes do paciente;

2. converter os problemas em questões que conduzam às respostas necessárias;

3. pesquisar eficientemente as fontes de informação;

4. avaliar a qualidade da informação e a força da evidência, favorecendo ou negando o valor de uma determinada conduta5-10;

5. chegar a uma conclusão correta quanto ao significado da informação;

6. aplicar as conclusões dessa avaliação na melhoria dos cuidados prestados aos pacientes.

Como descrever o problema no contexto da MBE?

No contexto da MBE, o problema deve enfocar o paciente. Ao definir o problema, deve ser feito um balanço entre precisão e prolixidade (Quadro). Dependendo de cada situação, existem determinadas características do paciente que devem ser levadas em consideração na descrição do problema, de forma a facilitar a localização das informações necessárias. Por exemplo, se a febre é uma das manifestações clínicas, o fato de o paciente ser uma criança de dois anos de idade, e não um adulto, modifica de forma importante o contexto do problema.


A construção da questão no contexto da MBE

A questão deve ser enunciada da forma mais clara possível para facilitar a pesquisa da informação necessária e a identificação da melhor alternativa para resolução do problema. A questão tem sido colocada em um contexto de quatro elementos: 1) problema, 2) fator de predição, 3) alternativa e 4) resultado ou evento3. É importante notar que, para determinar o valor preditivo de um determinado fator, torna-se necessária a comparação de duas ou mais alternativas. Desta forma, os elementos dois e três podem ser abordados em conjunto, passando a questão a ser identificada por três elementos, fáceis de serem lembrados através das iniciais PPR: o problema (P), o fator de predição ou preditor (P), e o resultado (R). O fator preditor de resultado pode ser uma intervenção médica, visando o diagnóstico (ex., teste diagnóstico positivo vs negativo) ou tratamento (ex., anti-hipertensivo A vs anti-hipertensivo B), uma exposição (ex. história positiva vs negativa para contato com portadores de tuberculose) a que o paciente foi ou encontra-se submetido, comportamento do paciente (ex. história positiva vs negativa para hábito de fumar cigarros), uma característica sócio-demográfica (ex., idade, procedência, tipo de ocupação), um sintoma ou um sinal do exame físico. O resultado costuma ser um evento tipo cura, ou melhora da qualidade de vida. O Quadro "Elementos da Questão Clínica" traz dois exemplos de questões construídas dentro do contexto da Medicina Baseada em Evidências. No primeiro exemplo, ao se unirem os três elementos, problema (P), preditor (P) e resultado (R), a questão poderia ser enunciada da seguinte forma: Em pacientes adultos com cardiomiopatia dilatada e em ritmo sinusal, o acréscimo de anticoagulante oral à terapêutica habitual da insuficiência cardíaca determina uma menor mortalidade e melhoria da qualidade de vida?

Pesquisa das fontes de evidência

É importante observar que, ao examinar um paciente e detectar problemas, muitas das informações adicionais que irão orientar o que deve ser feito são adquiridas através da observação atenta da evolução, da avaliação laboratorial, da conversa com os familiares e de consultas com outros profissionais da equipe de saúde. Outra fonte de informação é a literatura médica. Através de softwares disponíveis em CD-ROM e da Internet, resumos, artigos completos e capítulos de livros podem ser facilmente pesquisados por um custo relativamente baixo. A Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos (National Library of Medicine, NLM), por exemplo, oferece, via Internet, acesso grátis ao MEDLINE (o maior banco de dados de resumos de artigos publicados). A NLM pode ser acessada através do seguinte endereço: http://www.nlm.nih.gov.

A existência de bibliotecas locais, que façam assinaturas de bons periódicos, é importante para a prática da MBE. No entanto, mesmo aqueles que praticam medicina em locais afastados de boas bibliotecas podem utilizar diversos meios para conseguir cópias de artigos científicos publicados. O Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (BIREME), por exemplo, atende pedidos de fotocópias para usuários cadastrados através do endereço, http://www.bireme.br.

Avaliar a qualidade científica da informação médica

Para que se avalie a qualidade de informações publicadas, é importante o conhecimento de metodologia de pesquisa. Cursos, livros3,11,12 e artigos5-10,13-15 sobre Epidemiologia Clínica e Bioestatística são úteis para concretizar este objetivo.

Os seguintes pontos devem ser observados na análise de um artigo científico visando obter resposta para uma questão específica:

• O Objetivo do Estudo

• A Metodologia Empregada

• Os Resultados

• A Aplicabilidade dos Resultados na Prática

O objetivo do estudo permite concluir se o artigo tem relação com a questão clínica. A análise da metodologia do trabalho permite avaliar a credibilidade que merece os resultados encontrados. Como a metodologia de um trabalho está intimamente ligada com o objetivo, a análise metodológica não pode ser divorciada da questão clínica. Ao se avaliar trabalhos sobre o valor de testes diagnósticos, por exemplo, deve ser observado se o resultado do teste foi definido sem um conhecimento do diagnóstico definitivo (i.e., o diagnóstico de acordo com o padrão ouro) ou vice-versa, de forma a evitar viés de observação (e.g., erros ao se classificar um teste diagnóstico como positivo ou negativo ou a doença como presente ou ausente). Quando o artigo é sobre a eficácia de intervenções preventivas ou terapêuticas, é importante que a designação (ou alocação) para os grupos seja feita de forma randômica (ou aleatória) com o objetivo de garantir probabilidades iguais de que pessoas com diferentes características façam parte de qualquer um dos grupos de tratamento.

Os conhecimentos necessários para que se analisem os resultados também dependem da natureza da questão. Na análise de estudos sobre testes diagnósticos, por exemplo, é necessário que se entenda pelo menos o significado dos termos sensibilidade e especificidade. O entendimento do significado dos termos risco relativo (relative risk), redução do risco relativo (relative risk reduction ou RRR), redução do rico absoluto (absolute risk reduction), número necessário para tratar (number needed to treat, ou NNT), sobrevida cumulativa (cumulative survival) é importante para conclusões corretas sobre estudos de terapêutica e prognóstico.

Aplicação da informação científica

No processo de praticar MBE, que vai da identificação do problema à escolha da alternativa a ser adotada, não se pode esquecer que cada pessoa que procura cuidados médicos é um ser único, apesar de possuir características similares a diversos outros pacientes. Evidências que vêm de estudos realizados com grupos de pacientes ajudam a tomar as decisões mais acertadas, mas não podem ser desvinculadas da experiência clínica. Para estabelecer as limitações em se aplicar os resultados de um determinado estudo para solucionar o problema de um paciente, as seguintes perguntas podem ajudar:

1) Se o estudo fosse realizado no local onde exerço medicina, os resultados seriam semelhantes aos encontrados pelo investigador?

2) O estudo oferece informações que permitam avaliar se os resultados dependem de características demográficas e clínicas dos pacientes, como idade, sexo, nível educacional, gravidade da condição e doenças associadas?

3) Os benefícios foram avaliados juntamente com os custos e riscos?

4) As informações realmente ajudam a orientar os meus pacientes?

5) As informações ampliam a minha capacidade de colaborar com colegas da minha área e com outros profissionais de saúde?

Comentários finais

A filosofia da MBE é condizente com a idéia de que a boa prática médica requer integração da ciência e da arte. A introdução nas escolas médicas de métodos didáticos que estimulem o auto-aprendizado, bem como de cursos de Epidemiologia Aplicada aos Problemas Clínicos e de Análise Crítica de Trabalhos Científicos, deverá contribuir para a formação de profissionais capazes de selecionar adequadamente a fonte do conhecimento e de avaliar criteriosamente como se transferir a informação para a prática médica. Além do mais, é importante que as escolas utilizem métodos didáticos que capacitem o estudante a pesquisar e criticar a informação científica, contribuindo, desta forma, para o desenvolvimento de atitudes que resultem na melhoria da qualidade dos cuidados que o mesmo venha prestar aos seus pacientes ao se tornar médico. O fato de que a escola médica onde o profissional se formou não tenha atuado mais diretamente para criar a capacidade de integrar o conhecimento científico com a experiência clínica, não deve servir de justificativa para que se despreze a prática da MBE. As Associações e as Escolas Médicas podem desempenhar importantes papéis nesse sentido, através dos seus programas de educação continuada, cursos de extensão e de pós-graduação.

SUMMARY

Evidence-Based Medicine: the art of applying the scientific knowledge in the clinical practice

This article was written with the objective of describing the concept of Evidence Based Medicine (EBM) and the competences required for its practice. EBM should be viewed as an integration of clinical experience with the ability to analyze and rationally apply the scientific information while taking care of patients. The application of methods and strategies to enhance the scientific background of the physician while taking into account the humanitarian values of the medical profession should contribute to improve the quality of the medical care that is offered in Brazil. The Medical Schools and Associations may play important roles in the promotion of EBM.

KEY WORDS: Evidence-based Medicine, Medical Education. Problem-based Learning.

  • 1. Evidence-Based Medicine Working Group.Evidence-based medicine. A new approach to teaching the practice of medicine. JAMA 1992; 268:2420-2425.
  • 2. Lopes AA. Raciocínio Clínico e Tomada de Decisões em Medicina: um curso integrando medicina interna e epidemiologia. Rev Bras Ed Med 1991; 45: 222-224.
  • 3. Sackett DL, Richardson WS, Rosemberg WS, Rosenberg W, Haynes BR. Evidence-Based Medicine: how to practice and teach EBM Churchill Livingstone, 1997.
  • 4. Bligh J. Problem-based learning in medicine: an introduction. Postgrad Med J 1995; 7: 323-326.
  • 5. Guyatt GH, Sackett DL, Cook DJ. Users' guides to the medical literature. II. How to use an article about therapy or prevention. A. Are the results of the study valid?. JAMA 1993; 270:2598-2601.
  • 6. Guyatt GH, Sackett DL, Cook DJ. Users' guides to the medical literature. II. How to use an article about therapy or prevention. B. What were the results and will they help me in caring for my patients? JAMA 1994; 271:59-63.
  • 7. Jaeschke R, Guyatt G, Sackett DL. Users' guides to the medical literature. III. How to use an article about a diagnostic test. A. Are the results of the study valid? JAMA 1994; 271:389-391.
  • 8. Jaeschke R, Guyatt G, Sackett DL. III. How to use an article about a diagnostic test. B. What are the results and will they help me in caring for my patients? JAMA 1994; 271:703-707.
  • 9. Levine M, Walter S, Lee H, Haynes T, Holbrook A, Moyer V. IV. How to use an article about harm? JAMA 1994; 271:703-707.
  • 10. Laupacis A, Wells G, Richardson WS, Tugwell P. Users' guides to the medical literature. V. How to use an article about prognosis. JAMA 1994; 272:234-237.
  • 11. Fletcher HR, Fletcher SW, Wagner EH; trad. Duncan BB, Schmidt MI. Epidemiologia Clínica: Elementos Essenciais, 3 ed. Porto Alegre, RS, Artes Médicas, 1996.
  • 12. Friedland DJ. Evidence-Based Medicine: A Framework for Clinical Practice, Stanford, CT, Appleton & Lange, 1998.
  • 13. Lopes AA. Statistical Inference: Basic concepts. Bras J Infect Dis. 1998; 2: 62-9.
  • 14. Lopes AA. Statistical Inference: The normal and related distribution.Bras J Infect Dis. 1998; 2: 170-4.
  • 15. Lopes AA. Statistical Inference: Statistical Hypothesis Testing and Confidence Interval Estimation. Bras J Infect Dis. 1998; 2: 214-26.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Nov 2000
  • Data do Fascículo
    Set 2000
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