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Diretrizes: unidade e equilíbrio

EDITORIAL

IProfessor de Graduação, Pós-Graduação e Coordenador dos Núcleos de Medicina Baseada em Evidência nas Faculdades de Medicina da Universidade de São Paulo e UNILUS. Coordenador Técnico do Programa Diretrizes AMB/CFM, São Paulo, SP

IIMD, PhD, FACP - Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência, Faculdade de Medicina de Lisboa, Portugal

IIIProfessor Titular de Ginecologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - USP e Diretor Científico da Associação Médica Brasileira, São Paulo, SP

Há cerca de um ano, em editorial intitulado "Diretrizes clínicas no sistema de saúde do Brasil"1, comentávamos o artigo "Utilização de Diretrizes Clínicas em Cardiologia na Saúde Suplementar no Brasil"2, publicado na RAMB, que avaliava a implementação de Diretrizes Clínicas, sobretudo cardiológicas, no Sistema de Saúde nacional. As conclusões do referido artigo estavam relacionadas com o diagnóstico de que as diretrizes da área cardiovascular eram as mais utilizadas, em detrimento do até então uso insipiente de diretrizes na tomada de decisões.

Também na área de cardiologia, a avaliação das diretrizes da Associação Americana foi divulgada em publicação recente no JAMA3. Suas conclusões ressaltam que grande proporção das recomendações dos guidelines americanos baseava-se em evidências fracas ou na exclusiva opinião dos especialistas. Sugere, ainda, a necessidade de que a comunidade de pesquisa médica produza ensaios clínicos para suprir de informação às áreas da cardiologia com evidências deficientes, e que os médicos deveriam ter cautela ao considerar recomendações que não são suportadas por evidências sólidas. Por fim, o artigo do JAMA comenta que o processo de elaboração desses guidelines deveria considerar o impacto de evidências fracas na prática clínica.

Mesmo tendo por base a revisão sistemática da literatura, sabemos que realmente alguns aspectos metodológicos permitem que os interesses sejam expressos de maneira desequilibrada, favorecendo os conflitos, por exemplo: graduar e recomendar dissociado da força da evidência; não reconhecer explicitamente os limites da informação científica disponível; não individualizar a população beneficiada; desconsiderar as diversas formas de visão, como a do sistema de saúde, e utilizar deliberadamente uma forma ambígua de expressão da dúvida clínica, da evidência e da recomendação.

De forma simplista e tendenciosa, a literatura, os meios de comunicação e muitos formadores de opinião procuram estabelecer uma relação crítica direta entre os resultados da pesquisa, os diversos interesses e o sistema de saúde, unicamente por meio do conteúdo e do método utilizados no desenvolvimento de guidelines. Entretanto, aspectos e elementos envolvidos com igual ou maior impacto nos resultados ao cuidado dado aos pacientes pelo Sistema de Saúde são completamente ignorados nessa análise:

Relacionados à relação entre evidência científica e prática clínica: Inúmera quantidade de cenários clínicos tem características que impedem que sejam estudados por desenhos de estudo idealmente fortes, mas, em contrapartida, uma série de novas tecnologias poderia ser facilmente testada mediante desenhos adequados, porém procuram ser impostas pelo marketing acrítico e populista. Além disso, as avaliações locais de efetividade sequer são citadas como centro na validação da evidência forte na prática clínica;

Relacionados à prática clínica propriamente dita: Há grande variabilidade nas decisões tomadas pelos médicos, as quais também dependem de determinadas questões, como condições de trabalho, habilidades adquiridas, atualização permanente, expectativas pessoais, nível de experiência adquirida e capacidade reflexiva. A capacitação no conhecimento dos conceitos originais de Medicina Baseada em Evidências é fundamental na vacinação médica contra o marketing e os donos do conhecimento;

Relacionados às prioridades e visão do sistema de saúde: Os programas mundiais de assistência à saúde encontram-se inundados por milhares de opções novas tanto em diagnóstico quanto no tratamento, sem, no entanto possuírem condições estruturais e de tempo, para o desenvolvimento de estratégias e prioridades na incorporação dessas novas tecnologias. A tendência natural é, centrando no exclusivo dimensionamento de recursos, hipertrofiarem a crítica, ao ponto de torná-la acrítica, imobilizando as decisões, desprotegendo as minorias beneficiadas, reduzindo a equidade, estimulando a "judicialização", investindo pouco na pesquisa fase IV e procurando respostas em uma literatura desarticulada de qualquer processo assistencial;

Relacionados à visão dos pacientes alvos das recomendações: Conhecer como o fluxo do processo de decisão se dará no paciente real, atendendo a todas as variações locais, só se faz possível ouvindo e atendendo direta ou indiretamente (pela experiência médica) às visões e condições da população envolvida no cuidado, inclusive dos pacientes que incorporam situações especiais. Processos de educação e de relacionamento com a população também podem aumentar a aderência a decisões éticas e baseadas em evidência, e reduzir o engano pelo sensacionalismo não-ético e embasado em interesses externos.

Avaliar criticamente guidelines, cuja elaboração está dissociada desses aspectos, pouco contribui com a qualidade do atendimento ao paciente. E, ao contrário, críticas exclusivas ao método alimentam de argumentos aqueles que não desejam um instrumento que, de maneira mais ou menos apropriada, expõe as fraquezas da evidência científica disponível utilizada para sustentar muitas das práticas médicas atuais, ou que por desconhecimento sentem sua prática cerceada.

A elaboração de Diretrizes Clínicas Baseadas em Evidências deve estar inserida em um processo de qualidade de atenção à saúde, com a visão da implementação, garantindo as condições mínimas que permitirão a apropriada compreensão e utilização de seu conteúdo e recomendações. Isto só é possível com o envolvimento de todos, de forma ética e centrada no paciente, ao agregar os diversos interesses nas seguintes ações:

Elaboração de diretrizes que considerem o discernimento clínico, o conhecimento das melhores evidências e a atenção às necessidades dos pacientes;

Iniciativas de educação médica, fornecendo instrumentos que facilitem a tomada de decisão, bem como a compreensão da qualidade da evidência e do benefício e risco aos pacientes;

Iniciativas de educação da população, fornecendo informação credível que facilite a adesão às propostas de decisão e ao relacionamento do paciente com o médico e com o sistema de saúde;

Envolvimento do sistema de saúde no processo de elaboração incorporando a visão da aplicabilidade e também na utilização controlada das recomendações, permitindo identificar suas limitações e os benefícios a serem obtidos;

Alinhamento das ações reguladoras do sistema de saúde ao conteúdo das diretrizes, valorizando a eficácia, e principalmente a efetividade, como instrumento de tomada de decisão no reconhecimento de novos procedimentos e tratamentos.

Não há uma ação isolada que permita o impacto desejado por todos: reduzir os conflitos, racionalizar o custo, aumentar o benefício, reduzir o risco e, sobretudo, garantir a equidade.

  • 1. Bernardo WM. Clinical guidelines in brazilian health system. Rev Assoc Med Bras. 2008; 54: 377.
  • 2. Escosteguy CC, Portela MC, Lima SML, Ferreira VMB, Vasconcellos MTL, Brito C. Utilização de diretrizes clínicas em cardiologia na saúde suplementar no Brasil. Rev Assoc Med Bras. 2008; 54: 400-5.
  • 3. Tricoci P, Allen JM, Kramer JM, Califf RM, Smith SC Jr. Scientific evidence underlying the ACC/AHA clinical practice guidelines. JAMA 2009; 301: 831-41.
  • Diretrizes: unidade e equilíbrio

    Wanderley Marques BernardoI; António Vaz CarneiroII; Edmund Chada BaracatIII
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Nov 2009
    • Data do Fascículo
      2009
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