Acessibilidade / Reportar erro

Triagem neonatal para hiperplasia adrenal congênita

Resumos

OBJETIVO: A eficácia da triagem neonatal para redução de morbimortalidade das crianças com hiperplasia adrenal congênita (HAC) é a principal justificativa para sua implantação. Um dos desafios para sua realização é a determinação do ponto de corte para a medida laboratorial da 17-hidroxiprogesterona (17OHP) que apresente adequado custo/benefício. Neste estudo foram identificados fatores intervenientes nos resultados do projeto-piloto de triagem neonatal para HAC, realizado em Minas Gerais. MÉTODOS: Rastreamento neonatal entre 09/2007 e 05/2008, com dosagens da 17OHP de amostras de sangue colhidas no calcanhar, no 5º dia de vida (papel-filtro), processadas pelo método UMELISA 17-OH Progesterona NEONATAL®. Os pontos de corte foram 80 e 160 nmol/L, para crianças saudáveis ou não, respectivamente. RESULTADOS: A incidência de HAC foi 1:19.939 em 159.415 crianças triadas. O percentil 99 (p99) da 17OHP, na primeira amostra, foi 108 nmol/L. Em 13.298 recém-nascidos com peso informado, os p99 da 17OHP foram, respectivamente, 344 nmol/L para <1500 g, 260 nmol/L para 1500 a 1999 g, 221 nmol/L para 2000 a 2499 g, e 109 nmol/L para > 2500 g. A taxa de reconvocação para consulta médica foi 0,31%. A sensibilidade do teste foi 100%, a especificidade, 99,6% e o valor preditivo positivo, 2,2%. Ajustando-se o ponto de corte da 17OHP para 110 nmol/L e 220 nmol/L, projetou-se redução em 76% dos encaminhamentos para consulta. CONCLUSÃO: Adoção dos pontos de corte para 17OHP, considerando peso de nascimento, apresentou-se como medida custo-efetiva para redução de falso-positivos. Os resultados desse estudo piloto sugerem que a triagem para HAC possa beneficiar a população infantil.

Hiperplasia suprarrenal congênita; triagem neonatal; diagnóstico precoce


OBJECTIVE: The effectiveness of neonatal screening for reducing morbimortality in children with congenital adrenal hyperplasia (CAH) is the main justification for its implementation. One of the challenges for its implementation is to determine the cutoff value for laboratory measurement of 17-hydroxyprogesterone (17OHP) with appropriate cost-effectiveness. This study identified factors affecting the results of the pilot project of newborn screening for CAH, performed in the state of Minas Gerais, Brazil. METHODS: Neonatal screening performed between September, 2007 and May, 2008, with 17OHP measurements performed in blood samples taken from the heel (filter paper), on the 5th day of life, processed by the UMELISA 17-OH Progesterona NEONATAL® method. The cutoff value was 80 and 160 nmol/L for healthy children or not, respectively. RESULTS: The incidence of CAH was 1:19,939 in 159,415 children screened. The 99th percentile (p99) of 17OHP in the first sample was 108 nmol/L. In 13,298 newborns whose weight had been reported, the p99 of 17OHP were, respectively: 344 nmol/L for weight < 1,500 g; 260 nmol/L for weight between 1,500 and 1,999 g; 221 nmol/L for weight between 2,000 and 2,499 g; 109 nmol/L for weight > 2,500g. The rate of recall for medical consultation was 0.31%. The test sensitivity was 100%, specificity was 99.6%, and the positive predictive value was 2.2%. By adjusting the cutoff values of 17OHP to 110 nmol/L and 220 nmol/L, a 76% decrease in consultation referrals was projected. CONCLUSION: The use of 17OHP cutoff values, considering birth weight, was a cost-effective measure to reduce false positives. The results of this pilot study suggest that screening for CAH might benefit the pediatric population.

Congenital adrenal hyperplasia; neonatal screening; early diagnosis


ARTIGO ORIGINAL

Triagem neonatal para hiperplasia adrenal congênita

Cristina Botelho BarraI; Ivani Novato SilvaII; Isabela Leite PezzutiI; José Nélio JanuárioIII

IEndocrinologistas Pediátricas; Alunas do Curso de Pós-graduação da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Minas Gerais (FM-UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil

IIDoutora em Medicina; Professora-associada do Departamento de Pediatria, FM-UFMG; Coordenadora da Divisão de Endocrinologia Pediátrica, Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil

IIIAluno do Curso de Doutorado, FM-UFMG; Professor-assistente, Departamento de Clínica Médica, FM-UFMG, Belo Horizonte, MG; Coordenador do Núcleo de Ações e Pesquisa em Apoio Diagnóstico (NUPAD), FM-UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil

Correspondência para Correspondência para: Ivani Novato Silva Divisão de Endocrinologia Infantil e do Adolescente Departamento de Pediatria Faculdade de Medicina Hospital das Clínicas Universidade Federal de Minas Gerais Av. Alfredo Balena, 190, s/267 Santa Efigênia Belo Horizonte - MG, Brasil CEP: 30130-100 Tel: +55 (31) 3409-9773 Fax: +55 (31) 3409-9770 ivanins@medicina.ufmg.br

RESUMO

OBJETIVO: A eficácia da triagem neonatal para redução de morbimortalidade das crianças com hiperplasia adrenal congênita (HAC) é a principal justificativa para sua implantação. Um dos desafios para sua realização é a determinação do ponto de corte para a medida laboratorial da 17-hidroxiprogesterona (17OHP) que apresente adequado custo/benefício. Neste estudo foram identificados fatores intervenientes nos resultados do projeto-piloto de triagem neonatal para HAC, realizado em Minas Gerais.

MÉTODOS: Rastreamento neonatal entre 09/2007 e 05/2008, com dosagens da 17OHP de amostras de sangue colhidas no calcanhar, no 5º dia de vida (papel-filtro), processadas pelo método UMELISA 17-OH Progesterona NEONATAL®. Os pontos de corte foram 80 e 160 nmol/L, para crianças saudáveis ou não, respectivamente.

RESULTADOS: A incidência de HAC foi 1:19.939 em 159.415 crianças triadas. O percentil 99 (p99) da 17OHP, na primeira amostra, foi 108 nmol/L. Em 13.298 recém-nascidos com peso informado, os p99 da 17OHP foram, respectivamente, 344 nmol/L para <1500 g, 260 nmol/L para 1500 a 1999 g, 221 nmol/L para 2000 a 2499 g, e 109 nmol/L para > 2500 g. A taxa de reconvocação para consulta médica foi 0,31%. A sensibilidade do teste foi 100%, a especificidade, 99,6% e o valor preditivo positivo, 2,2%. Ajustando-se o ponto de corte da 17OHP para 110 nmol/L e 220 nmol/L, projetou-se redução em 76% dos encaminhamentos para consulta.

CONCLUSÃO: Adoção dos pontos de corte para 17OHP, considerando peso de nascimento, apresentou-se como medida custo-efetiva para redução de falso-positivos. Os resultados desse estudo piloto sugerem que a triagem para HAC possa beneficiar a população infantil.

Unitermos: Hiperplasia suprarrenal congênita; triagem neonatal; diagnóstico precoce.

INTRODUÇÃO

A realização de testes de triagem neonatal modificou o curso de várias doenças, ao permitir que as crianças, tratadas antes mesmo de manifestações clínicas, evoluam com melhora significativa do seu prognóstico. Para a inclusão de uma doença em programa de triagem neonatal, alguns requisitos devem ser atendidos: as doenças consideradas apropriadas devem ser relativamente frequentes na população triada, apresentar morbidade e mortalidade significativas quando não tratadas precocemente e ter resposta benéfica ao tratamento1-3.

A hiperplasia adrenal congênita (HAC) por deficiência da enzima 21-hidroxilase (21-OH) está relacionada a alterações na biossíntese do cortisol e tem incidência mundial de 1:15.000 nascidos vivos4. Aproximadamente 65-75% dessas crianças apresentam a forma clássica perdedora de sal que se caracteriza por maior morbimortalidade, se não tratada precocemente; os recém-nascidos do sexo feminino apresentam genitália ambígua ao nascimento, o que pode levar ao registro civil incorreto, dependendo da gravidade do quadro. Em meninos, em contrapartida, a primeira manifestação observada pode ser a crise de perda de sal, com risco de morte, já nas primeiras semanas de vida. O diagnóstico precoce é, portanto, essencial para redução dessas ocorrências.

Os programas de triagem para HAC visam, primordialmente, o diagnóstico precoce da forma perdedora de sal, mais grave e lesiva. O acúmulo do metabólito 17-hidroxiprogesterona (17OHP), que ocorre pela deficiência da 21-OH, pode ser identificado pela dosagem em papel-filtro. O que se observa, contudo, é que elevações desse metabólito podem ocorrer em recém-nascidos sem HAC, em situações de estresse por fatores maternos ou neonatais. Os prematuros sem HAC também podem apresentar elevados níveis de 17OHP à triagem, decorrentes de maiores concentrações de esteroides conjugados e relativa imaturidade renal com função excretora insuficiente5,6.

Dessa forma, o principal desafio à triagem para HAC é a determinação de um ponto de corte para a 17OHP que resulte em adequado custo/benefício. A utilização de diferentes valores de referência, conforme a idade gestacional ou peso ao nascimento e idade à coleta são estratégias frequentemente adotadas para tornar viável o processo de triagem, promovendo redução da taxa de falso-positivos7-10.

Com o objetivo de contribuir para o avanço dos programas de triagem para HAC foram analisados os dados provenientes do projeto-piloto para hiperplasia adrenal congênita, realizado no Estado de Minas Gerais. Os resultados podem servir de subsídio para discussões de viabilidade de novos programas de triagem neonatal a serem implantados de rotina.

MÉTODOS

A triagem para HAC foi incluída no Programa de Triagem Neonatal de Minas Gerais (PETN-MG), como projeto- piloto, usufruindo da estrutura já consolidada para a triagem neonatal. O Núcleo de Ações e Pesquisa em Apoio Diagnóstico (NUPAD), órgão complementar da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) foi credenciado em 2001, pelo Ministério da Saúde, como serviço de referência em triagem neonatal de Minas Gerais. Desde 2003, o PETN-MG é responsável pela triagem das quatro doenças preconizadas - fenilcetonúria, hipotireoidismo congênito, fibrose cística e hemoglobinopatias - para 853 municípios11.

O estudo foi aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa da UFMG e da Secretaria de Saúde da Prefeitura de Belo Horizonte. As famílias deram o seu consentimento, por escrito, para a participação no projeto.

A coleta das amostras de sangue foi realizada no calcanhar dos recém-nascidos, nas Unidades Básicas da rede pública de saúde dos municípios, como parte do Teste do Pezinho, preferencialmente no 5o dia de vida.

Foram triadas 159.415 crianças, entre setembro de 2007 e maio de 2008, correspondente a quase totalidade de recém-nascidos no período, já que o programa cobre praticamente 100% dos municípios de Minas Gerais.

As dosagens da 17OHP, nas amostras em papel-filtro enviadas ao NUPAD pelos municípios, foram realizadas pelo método UMELISA 17OH Progesterona NEONATAL® (Centro de Imunoensaio, Havana, Cuba). O ponto de corte referido pelo fabricante do kit (55 nmol/L) foi modificado após análise dos resultados preliminares para avaliar a adequação desse valor na população estudada. Estabeleceu-se como referência para essa população o percentil 99 (p99) dos valores da 17OHP das 15.000 amostras iniciais. O valor de 80 nmol/L passou a ser adotado como limite de normalidade baseado nesses resultados (p99 = 82,21 nmol/L). As crianças com valores iniciais de 17OHP > 160 nmol/L foram imediatamente convocadas para consulta médica. Crianças com valores entre 80 e 160 nmol/L foram submetidas à nova dosagem confirmatória, também em papel-filtro. O achado de segunda amostra > 80 nmol/L automaticamente gerava emissão de comunicado para consulta médica (Figura 1).


A partir da avaliação dos resultados obtidos até 29/11/2007, com grande quantidade de testes positivos em crianças retidas nas maternidades, foi adotado um ponto de corte específico para os recém-nascidos não saudáveis, classificados como baixo-peso (peso menor que 2500 gramas) ou prematuros (idade gestacional menor que 37 semanas) de 160 nmol/L. Informações sobre o peso ao nascimento foram fornecidas no momento da coleta. Na ausência de peso informado o recém-nascido era avaliado pelo ponto de corte de 80 nmol/L. Todas as crianças com triagem positiva foram referenciadas para acompanhamento pediátrico no ambulatório de endocrinologia pediátrica do Hospital das Clínicas da UFMG em Belo Horizonte (HC-UFMG).

A confirmação da alteração da 17OHP em amostra de sangue periférico foi realizada pela dosagem em laboratório de referência conveniado, pelo método de radioimunoensaio (valor de referência para o primeiro mês: 17-204 ng/dL para o sexo feminino e 53-186 ng/dL para o masculino). As crianças com 17OHP sérica elevada, clínica sugestiva e alterações de outros exames complementares (ionograma e andrógenos: androstenediona e testosterona) tiveram a confirmação do diagnóstico de deficiência de 21-OH. Essas e os casos indeterminados foram acompanhados no ambulatório de endocrinologia pediátrica, acima referido. As crianças com triagem positiva e não portadoras de HAC, após normalização dos níveis hormonais, foram referenciadas para acompanhamento pediátrico nos municípios de origem.

As informações de peso e idade gestacional ao nascimento dos pacientes em acompanhamento foram obtidas por meio da consulta aos prontuários médicos.

Durante todo o projeto, foram fornecidas informações às equipes de atendimento das Unidades Básicas e orientação para os pais e familiares sobre a inclusão da triagem para HAC ao Teste do Pezinho habitual, como estudo piloto, inclusive por meio de realização de videoconferências. Os funcionários do NUPAD foram responsáveis pela comunicação de testes positivos, convocação para novas coletas de sangue e consultas médicas, organização do transporte para consultas em tempo hábil, encaminhamento de amostras de exames e fornecimento de medicações, quando necessário, além do acolhimento e acomodação de crianças e familiares em casa de apoio.

ANÁLISE ESTATÍSTICA

Para análise dos dados foi utilizada a ferramenta Microsoft SQL Management Studio Express do software Microsoft SQL Server 2000. A incidência da doença foi estimada pelo número de crianças com doença confirmada dividido pelo número total de recém-nascidos triados no período. Os valores da 17-OHP não mostraram distribuição normal e foram apresentados como medianas e analisados por testes não paramétricos: os testes de Mann-Whitney e Kruskal-Wallis foram empregados para comparar dois e quatro grupos independentes em relação à mediana, respectivamente. Para comparações múltiplas foi realizada correção do nível de significância. O nível de significância utilizado foi de 5% (p < 0,05). Foram calculados percentis dos valores da 17OHP da primeira amostra em papel-filtro de todas as crianças e, separadamente, de acordo com o peso de nascimento (< 1500 g, 1500 a 1999 g, 2000 a 2499 g e > 2500 g) utilizando-se o software Microsoft Excel 2007. O valor preditivo positivo (VPP) da avaliação, a taxa de reconvocação (TR) e a sensibilidade e especificidade do teste foram calculados.

RESULTADOS

Foram triados para HAC 159.415 recém-nascidos entre setembro de 2007 e maio de 2008 pelo PETN-MG. A idade à triagem foi de 8 ± 14 dias, com mediana de seis dias. Dezesseis crianças iniciaram tratamento para HAC, sendo 10 do sexo masculino. Com o seguimento clínico, em oito crianças não foi confirmado o diagnóstico de HAC e a terapia foi suspensa, o que resultou numa incidência de doença para essa população de 1:19.939. Entre os oito doentes, cinco são do sexo feminino e três do sexo masculino; 75% apresentam a forma perdedora de sal. A média de dias de vida das crianças doentes à realização da triagem foi de 7 ± 2 dias. A mediana de idade ao início do tratamento foi 39 dias (13-581).

No período entre 01/09/2007 e 26/02/2008 foram triados 106.476 recém-nascidos e sete crianças foram consideradas doentes pelo acompanhamento (incidência de 1:15.211). De acordo com os critérios estabelecidos, foram avaliados 103.269 recém-nascidos pelo ponto de corte de 80 nmol/L, sendo que 1% deles (n = 1036) teve a primeira amostra acima do valor de referência. Nesse mesmo período, foi registrado o peso de nascimento de 12,5% do total dos recém-nascidos. De 13.298 registros, 23% foram informados como baixo-peso. Dos 3.207 recém-nascidos com baixo peso, avaliados pelo ponto de corte de 160 nmol/L, 11% (n = 354) tiveram a primeira amostra acima do valor de referência.

Foram convocadas 380 crianças (TR = 0,36%) para consulta médica. Foram acompanhadas 315 crianças, das quais 63% foram prematuras e/ou baixo-peso, segundo estudo dos prontuários médicos.

A sensibilidade do teste, considerando a ausência de registros falso-negativos, foi de 100% e a especificidade, de 99,6%. O valor preditivo positivo da avaliação foi de 2,2%.

O percentil 99 (p99) da 17OHP de todos os recém nascidos triados, na primeira amostra em papel-filtro, foi 108 nmol/L.

A distribuição da 17OHP da primeira amostra em papel-filtro, em percentis, calculada para cada grupo de peso informado ao nascimento, a saber: < 1500g (n = 748), 1500 a 1999 g (n = 971), 2000 a 2499 g (n = 1357) e > 2500 g (n = 10.222), é apresentada na Figura 2. Observa-se que os percentis p50 e p99, foram respectivamente: 96 e 344 nmol/L, 58 e 260 nmol/L, 47 e 221 nmol/L, 35 e 109 nmol/L para cada grupo de peso. Houve diferença estatisticamente significativa das medianas (p50) da 17-OHP entre os quatro grupos de peso (p < 0,001) e quando os grupos foram comparados dois a dois (p < 0,001).


Ajustando-se o ponto de corte para 17OHP, de acordo com o p99 para recém-nascidos com peso adequado para 110 nmol/L e para recém-nascidos com baixo peso (< 2500 g) para 220 nmol/L, calculou-se que haveria uma diminuição em 76% nos encaminhamentos para consulta médica após a primeira amostra.

DISCUSSÃO

A triagem neonatal para HAC ainda não é aceita de maneira universal e integra o grupo que gera polêmica para inclusão em programas de rastreamento. As doenças triadas em cada país, ou mesmo nas diversas regiões de um mesmo país, dependem das decisões políticas de saúde baseadas em aspectos epidemiológicos, étnicos, sociais, econômicos e éticos5.

Embora a relação custo/eficácia da triagem para HAC ainda seja discutida, as vantagens devem ser consideradas, especialmente em países em desenvolvimento, com sistemas de saúde não totalmente consolidados e que não privilegiam a realização de diagnósticos corretos e rápidos como demanda esta entidade.

Tem sido relatado que a triagem para HAC é eficaz ao promover redução de 74-86% na mortalidade de pacientes com a doença12. Além disso, entre as famílias de crianças doentes, é descrita uma experiência notadamente mais estressante quando o diagnóstico é realizado a partir das manifestações clínicas e não pela triagem neonatal. Desconforto parental com a triagem ocorre quando o objetivo de detecção precoce de crianças potencialmente afetadas não é compreendido13.

A triagem para HAC é parte dos programas de rastreamento na França, Suécia, Suíça, Nova Zelândia, Israel, Holanda, Islândia, Áustria, Alemanha e em vários estados dos EUA, incluindo o Alasca, pioneiro nesta triagem4, e, mais recentemente, na Argentina14.

No Brasil, a triagem para HAC é rotina apenas em Goiás e Santa Catarina. A incidência da HAC encontrada em Goiás foi 1:10.325, inferior àquela encontrada anteriormente no sul do Brasil (1:7.533)15.

A realização do programa piloto para HAC em MG foi possível graças à estrutura já consolidada do PETN implementado em 1993 e coordenado pelo NUPAD16.

O PETN-MG é vinculado ao Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN) do MS17, implantado a partir de 2001 objetivando a cobertura de 100% dos recém-nascidos vivos para fenilcetonúria, hipotireoidismo congênito, anemia falciforme e fibrose cística.

No PNTN o processo de triagem neonatal é definido em cinco etapas, como preconizado pelo American College of Medical Genetics (ACMG)18, ou seja, teste laboratorial, busca ativa dos casos suspeitos, confirmação diagnóstica, tratamento e seguimento por equipe multidisciplinar. A implantação é feita em três fases, de acordo com o nível de organização e de cobertura de cada estado. Na fase I, as doenças triadas são a fenilcetonúria e o hipotireoidismo congênito. Na fase II, acrescenta-se anemia falciforme e, na fase III, a fibrose cística19. Atualmente, apenas quatro estados brasileiros estão na fase III (Minas Gerais, Santa Catarina, Paraná e Espírito Santo). Segundo dados de 2007, a cobertura populacional da triagem neonatal no Brasil é de 78,9% e alguns estados relatam cobertura acima de 95% para as quatro doenças. O PNTN ainda tem muito a crescer e considera a possibilidade de ampliar a gama de doenças a serem pesquisadas, se houver comprovado benefício para a população20.

O PETN-MG tem cobertura populacional de 94,6% (dados de 2007) e está na fase III desde 2003, apresentando condições de implementação de novos programas de triagem, como outros estados brasileiros.

Os testes disponíveis para realização da triagem neonatal para HAC incluem o radioimunoensaio (RIE), descrito inicialmente por Pang et al.21, fluorimetria e espectrofotometria de massa em tandem (EFMT). O RIE é pouco utilizado atualmente devido às grandes interferências com outros metabólitos, principalmente 17-hidroxipregnenolona22. Por outro lado, a EFMT não é amplamente utilizada, a despeito de sua superior especificidade, devido à necessidade de grande investimento financeiro. A técnica mais amplamente utilizada, inclusive nos programas brasileiros, é a fluorimetria.

No projeto-piloto de MG as dosagens foram realizadas com o ensaio UMELISA 17-OH Progesterona NEONATAL®, resultante da combinação da alta sensibilidade dos testes MicroElisa (Ultramicro-ELISA) com o uso de ultramicrovolumes para amostras e reagentes (Ultra Micro Analytic System-SUMA). Estudos em papel-filtro mostraram que a técnica apresenta resultados superiores ao RIE, com menos interferentes, boa precisão e acurácia, permitindo o estudo de um grande número de amostras com o menor custo possível23,24. Essas características, aliadas a um custo viável para triagem em larga escala e o uso da técnica, com bons resultados, para exames, por exemplo, do programa de hipotireoidismo congênito de MG foram responsáveis pela escolha desse método para o piloto. A utilização do ensaio imunoenzimático em programas piloto de triagem para HAC já foi descrita previamente na China25.

O grande desafio relacionado à triagem neonatal para HAC é a definição do ponto de corte adequado para a 17OHP na população. As interferências com outros esteroides, principalmente com sulfatos26 e elevações transitórias da 17OHP em recém-nascidos prematuros ou baixo-peso, podem gerar grande número de resultados falso-positivos causando elevação dos custos e estresse parental, afetando a real percepção dos pais sobre a saúde da criança27.

Durante a realização do projeto-piloto em MG observou-se que os valores de corte inicialmente utilizados resultaram em grande número de falso-positivos.

A categorização dos valores de referência da 17OHP conforme o peso ao nascimento e idade gestacional é estratégia utilizada para a redução da taxa de falso-positivos. No estado de Wisconsin, nos EUA (1997), a divisão em quatro categorias de peso aumentou em 10 vezes o valor preditivo positivo para a triagem, sem prejuízo na sensibilidade do teste, com diminuição de 50% da taxa de reconvocação8.

Olgemöller, na região alemã de Baviera, propôs também categorização da triagem, com base em cinco faixas de peso ao nascimento e conforme a idade à coleta para peso acima de 2500 g. Com isso, a especificidade foi de 99,3%, o valor preditivo positivo aumentou de 0,84% para 1,29% (1,5 vezes) e a taxa de falso-positivos reduziu de 1,12% para 0,73%7.

No Brasil, as taxas de prematuridade e baixo peso de recém-nascidos são bastante variáveis conforme a região avaliada. Segundo a Rede Interagencial de Saúde e Informação para a Saúde (RIPSA/DATASUS-2005) a taxa brasileira total de prematuridade foi de 6,6% e, desses prematuros, 37,4% tinham também baixo peso ao nascer. A tendência mundial é de estabilização da porcentagem de crianças com baixo peso ao nascimento e aumento da prematuridade devido à melhora da assistência perinatal e neonatal. Em 2007 foi registrada taxa geral de 9,1% para prematuridade no país (Instituto Nacional de Estatística)28, denotando a importância do ajuste dos valores de corte da 17OHP para essa população.

A realização do ajuste da referência para crianças doentes e a obtenção da informação sobre o peso de nascimento foram necessárias para a discussão de um ponto de corte próprio para cada grupo. Embora o programa de triagem de Minas Gerais esteja consolidado, a obtenção da informação sobre o peso de nascimento não era um dado obrigatório até a realização do projeto-piloto para HAC. No período estudado, a informação sobre o peso ocorreu para 12,5% das crianças, das quais 23% tinham baixo peso e apenas 0,5% eram prematuras, o que representa possível inadequação na qualidade dessa informação.

Apesar disso, foi possível observar que, enquanto apenas 1% das crianças saudáveis e com peso adequado ao nascimento apresentou uma primeira amostra positiva, 11% dos recém-nascidos prematuros e ou baixo-peso tiveram esse desfecho, sugerindo inadequação do valor de referência para 17OHP e a necessidade de mudança do ponto de corte para a viabilidade do projeto.

Foram observados, durante a realização do projeto-piloto, os princípios postulados por Wilson-Jungner que sugerem adequada relação custo/eficácia do programa2,29,30: alta incidência da doença (< 1:20000), teste com boa sensibilidade e especificidade (cerca de 100%), taxa de reconvocação viável para a organização do programa e perspectiva de redução da mortalidade da forma perdedora de sal de forma significativa31.

Esses achados ajudam a reforçar a possibilidade de inclusão da hiperplasia adrenal congênita no Programa Nacional de Triagem Neonatal anunciada em audiência realizada no dia 06 de junho de 2011 pelo Ministério da Saúde32.

Concluímos que os resultados obtidos justificam a realização da triagem neonatal para HAC e apontam para a possibilidade de extensão da triagem nos estados brasileiros. A adoção dos pontos de corte sugeridos para 17OHP, de acordo com o peso de nascimento, apresentou-se como medida custo-efetiva para a implementação do programa.

AGRADECIMENTOS

A Fernando Henrique Pereira e Rafael Ruiz Combat Furtado, pelo auxílio na análise estatística.

Artigo recebido: 06/08/2011

Aceito para publicação: 02/04/2012

Suporte financeiro: Núcleo de Ações e Pesquisa em Apoio Diagnóstico (NUPAD) da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais; Secretaria de Saúde do Estado de Minas Gerais

Conflito de interesse: Não há.

Trabalho realizado na Faculdade de Medicina, Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil

  • 1. Leão LL, Aguiar MJ. Newborn screening: what pediatricians should know. J Pediatr (Rio J.). 2008;84(Suppl 4):S80-90.
  • 2. Wilson JMG, Jungner G. Principles and practice of screening for disease. Geneva: WHO; 1968. Public Health Papers, 34. Disponível em: http://www.who.int/bulletin/volumes/86/4/07-050112BP.pdf
  • 3. White PC. Neonatal screening for congenital adrenal hyperplasia. Nat Rev Endocrinol. 2009;5:490-8.
  • 4. Honour JW, Torresani, T. Evaluation of Neonatal Screening for Congenital Adrenal Hyperplasia. Horm Res. 2001;55:206-11.
  • 5. van der Kamp HJ, Wit JM. Neonatal screening for congenital adrenal hyperplasia. Eur J Endocrinol. 2004;151(Suppl):U71-5.
  • 6. Ballerini MG, Chiesa A, Scaglia P, Gruñeiro-Papendieck L, Heinrich JJ, Ropelato MG. 17alpha-hydroxyprogesterone and cortisol serum in neonates and young children: influence of age, gender and methodological procedures. J Pediatr Endocrinol Metab. 2010;23:121-32.
  • 7. Olgemöller B, Roscher AA, Liebl B, Fingerhut R. Screening for congenital adrenal hyperplasia: adjustment of 17-hydroxyprogesterone cut-off values to both age and birth weight markedly improves the predictive value. J Clin Endocrinol Metab. 2003;88:5790-4.
  • 8. Allen DB, Hoffman GL, Fitzpatrick P, Laessig R, Maby S, Slyper A. Improved precision of newborn screening for congenital adrenal hyperplasia using weight-adjusted criteria for 17-hydroxyprogesterone levels. J Pediatr. 1997;130:128-33.
  • 9. National Newborn Screening Information System 2009. Disorder Report for Congenital Adrenal Hyperplasia (CAH). Available from: http://www2.uthscsa.edu/nnsis/
  • 10. Papendieck LG, Prieto L, Chiesa A, Bengolea S, Bergadá C. Congenital hyperplasia and early newborn screening: 17 alpha-hydroxyprogesterone (17 alpha- -OHP) during the first days of life. J Med Screen. 1998;5:24-6.
  • 11. Triagem neonatal. Disponível em: http://www.nupad.medicina.ufmg.br
  • 12. Yoo, BK, Grosse SD. The cost effectiveness of screening newborns for congenital adrenal hyperplasia. Public Health Genomics. 2009;12:67-72.
  • 13. Waisbren SE, Albers S, Amato S, Ampola M, Brewster TG, Demmer L et al. Effect of expanded newborn screening for biochemical genetic disorders on child outcomes and parental stress. JAMA. 2003;290:2564-72.
  • 14. Gruñieiro-Papendieck L, Chiesa A, Mendez V, Prieto L. Neonatal screening for congenital adrenal hyperplasia: experience and results in Argentina. J Pediatr Endocrinol Metab. 2008;21:73-8.
  • 15. Silveira EL, Santos EP, Bachega TA, van der Linden Nader I, Gross JL, Elnecave RH. The actual incidence of congenital adrenal hyperplasia in Brazil may not be as high as inferred - an estimate based on a public neonatal screening program in the state of Goiás. J Pediatr Endocrinol Metab. 2008;21:455-60.
  • 16. Souza CF, Schwartz IV, Giugliani R. Triagem neonatal de distúrbios metabólicos. Ciênc Saúde Coletiva. 2002;7:129-37.
  • 17. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Especializada. Manual de normas técnicas e rotinas operacionais do programa nacional de triagem neonatal/ Brasil. 2a ed. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2005.
  • 18. American College of Medical Genetics. Maternal and Child Health Bureau. Health Resources and Services Administration. US Department of Health and Human Services. Newborn screening: toward a uniform screening panel and system. 2005. Disponível em: http://www.acmg.net//AM/Template.cfm?Section=Home3
  • 19. Carvalho TM, Santos HP, Santos IC, Vargas PR, Pedrosa J. Newborn screening: a national public health programme in Brazil. J Inherit Metab Dis. 2007;30:615.
  • 20. Programa Nacional de Triagem Neonatal. Disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/saude/area.cfm?id_area=1061
  • 21. Pang S, Hotchkiss J, Drash AL, Levine LS, New MI. Microfilter paper method for 17 alpha-hydroxyprogesterone radioimmunoassay: its application for rapid screening for congenital adrenal hyperplasia. J Clin Endocrinol Metab. 1977;45:1003-8.
  • 22. Caulfield MP, Lynn T, Gottschalk ME, Jones KL, Taylor NF, Malunowicz EM et al. The diagnosis of congenital adrenal hyperplasia in the newborn by gas chromatography/mass spectrometry analysis of random urine speciemens. J Clin Endocrinol Metab. 2002;87:3682-90.
  • 23. Maeda M, Arakawa H, Tsuji A, Yamagami Y, Isozaki A, Takahashi T et al. Enzyme-linked immunosorbent assay for 17-hydroxyprogesterone in dried blood spotted on filter paper. Clin Chem. 1987;33:761-4.
  • 24. González EC, Marrero N, Pérez PL, Frómeta A, Zulueta O, Herrera D et al. An Enzyme immunoassay for determining 17 alpha-hydroxyprogesterone in dried blood spots on filter paper using an ultramicroanalytical system. Clin Chim Acta. 2008;394:63-6.
  • 25. Chu SY, Tsai WY, Chen LH, Wei ML, Chien YH, Hwu WL. Neonatal screening for congenital adrenal hyperplasia in Taiwan: a pilot study. J Formos Med Assoc. 2002;101:691-4.
  • 26. Fingerhut R. False positive rate in newborn screening for congenital adrenal hyperplasia (CAH)-ether extraction reveals two distinct reasons for elevated 17-alpha-hydroxyprogesterone (17-OHP) values. Steroids. 2009;74:662-5.
  • 27. Gurian EA, Kinnamon DD, Henry JJ, Waisbren SE. Expanded newborn screening for biochemical disorders: the effect of a false-positive result. Pediatrics. 2006;117:1915-21.
  • 28. Rugolo LM. Growth and developmental outcomes of the extremely preterm infant. J Pediatr (Rio J). 2005;81(Suppl 1):S101-10.
  • 29. Pollit RJ. International perspectives on newborn screening. J Inherit Metab Dis. 2006;29:390-6.
  • 30. Andermann A, Blancquaert I, Beauchamp S, Déry V. Revisiting Wilson and Jungner in the genomic age: a review of screening criteria over the past 40 years. Bull World Health Organ. 2008;86:317-9. Disponível em: http://www.who.int/bulletin/volumes/86/4/07-050112/en/index.html
  • 31. Gruñeiro-Papendieck L, Prieto L, Chiesa A, Bengolea S, Bossi G, Bergadá C. Neonatal screening program for congenital adrenal hyperplasia: adjustments to the recall protocol. Horm Res. 2001;55:271-7.
  • 32. Brasil. Ministério da Saúde. Audiência pública para discutir os avanços e possibilidades do Teste do Pezinho. Disponível em: http://www.senado.gov.br/noticias/tv/programaListaPadrao.asp?COD_VIDEO=86302
  • Correspondência para:

    Ivani Novato Silva
    Divisão de Endocrinologia Infantil e do Adolescente Departamento de Pediatria Faculdade de Medicina Hospital das Clínicas Universidade Federal de Minas Gerais
    Av. Alfredo Balena, 190, s/267 Santa Efigênia
    Belo Horizonte - MG, Brasil CEP: 30130-100
    Tel: +55 (31) 3409-9773 Fax: +55 (31) 3409-9770
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Ago 2012
    • Data do Fascículo
      Ago 2012

    Histórico

    • Recebido
      06 Ago 2011
    • Aceito
      02 Abr 2012
    Associação Médica Brasileira R. São Carlos do Pinhal, 324, 01333-903 São Paulo SP - Brazil, Tel: +55 11 3178-6800, Fax: +55 11 3178-6816 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: ramb@amb.org.br