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Por que pensar a bioética?

EDITORIAL

Por que pensar a bioética?

Claudio Cohen

Professor Associado da FMUSP, responsável pelas disciplinas de Bioética e Bioética Clinica e Presidente da Comissão de Bioética do HC da FMUSP. ccohen@usp.br

Seguramente a ética, enquanto avaliação do comportamento individual e social, é anterior aos gregos. Porém, devemos a este povo o fato de tê-la nomeado e analisado como a filosofia do bem e do mal. Acredito que desde os nossos primeiros ancestrais já deveria existir uma ética para as relações humanas. Assim como já existiam Leis morais, transmitidas verbalmente, que regulamentavam o comportamento humano, antes que fossem criados os códigos escritos.

Gostaria de destacar algumas diferenças entre Ética e Moral1 . Por um lado, a Moral está condicionada a três pressupostos: valores absolutos (são acolhidos pela sociedade); são impostos (por uma determinada cultura) e sua transgressão implica em um castigo. A Ética, por sua vez, vincula-se a três pré-requisitos: percepção dos conflitos (consciência das contradições humanas); autonomia para escolher (competência para se posicionar entre os sentimentos e a razão) e a coerência na decisão (uma lógica entre pensamento e ação).

Entretanto, a Bioética é um dos tantos fenômenos criados pela cultura para lidar com a complexa combinação de uma revolução científica, e da crise de valores advinda das transforma ções sociais profundas. Portanto, a Bioética é um fenômeno instituído na cultura que se iniciou a partir da segunda metade do Século XX, tornando-se um evento cultural, pois se universalizou rapidamente fazendo com que filósofos, cientistas, religiosos, profissionais, enfim a sociedade como um todo, pudesse pensar ou repensar os valores humanos.

Esta revolução cultural pode ser notada através da análise bibliométrica, realizada entre 1974 e 2004, na qual se observa que foram publicados em revistas indexadas ao Medline 101.153 trabalhos a respeito de ética médica ou Bioética2 , sem contar os livros ou debates a respeito do assunto. Outra evidência da importância da Bioética pode ser notada na promulgação da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos pela UNESCO, em 20053 .

Porém, se fizermos uma pesquisa histórica do ser humano no tempo, perceberemos que a humanidade tende a repetir suas experiências4 . Esta visão catastrófica do futuro pode ser sintetizada no que Einstein alertou: "não há nada que seja maior evidência de insanidade do que fazer a mesma coisa dia após dia e esperar resultados diferentes". Desta "com-pulsão a repetição" o ser humano aprende muito pouco, por este motivo a Bioética propõe uma análise do comportamento humano frente às novas possibilidades que o conhecimento científico nos traz, podendo pensar nas possíveis diferenças que surgem entre a própria ética e a ética do outro. Destas diferentes éticas é que passa a existir o que denominamos a Bioética das Relações Humanas5 .

Esta Bioética emerge da percepção simbólica da existência do outro (sujeito ou objeto), do conflito que isto causa e da necessidade de nos relacionarmos com as diferenças, sabendo que podemos atuar com autonomia e que a sociedade irá responsabilizar os nossos atos.

O surgimento da Bioética, como conseqüência do progresso da ciência e do conceito de autonomia, conduziu a uma revolução social além dos limites da medicina. Por exemplo, a epidemia de SARS (Severe Acute Respiratory Syndrome) reflete, assim como outras doenças infecto-contagiosas como a AIDS (Acquired Immune Deficiency Syndrome), a fragilidade de todos os seres humanos diante de um mundo globalizado, mas vulnerável ao agente etiológico da doença. Isso traz à tona a necessidade de um trabalho educativo, deixando-se de lado questões políticas, sociais, culturais ou econômicas, uma vez que o risco é tanto individual quanto mundial.

Os bioeticistas mostraram até o momento a possibilidade de se refletir qualitativamente a respeito dos novos desafios e dos limites humanos, porém freqüentemente, as discussões de Bioética se dão em torno dos grandes casos de Bioética ou os "greats cases in bioethics", aqueles casos de grande repercussão científica ou jurídica, e que são divulgados pela imprensa. Por exemplo, pesquisa com células-tronco embrionárias, a aceitação da eutanásia ou da ortotanásia, a quebra de patentes de medicamentos, as questões éticas sobre o aquecimento global, etc.

Por outro lado, ao analisarmos o panorama evolutivo geral das publicações científicas de Bioética2 utilizando a base de dados da Medline, observarmos que houve um aumento significativo: de 4.000 artigos,, entre 1970 e 1974 para mais de 30.000 artigos entre 2000 e 2004. Outro ponto que nos chama a atenção é como as questões de Bioética variam no tempo. Por exemplo, houve um decréscimo muito grande de publicações a respeito do aborto induzido, mas nem por isso podemos dizer que as questões éticas estejam resolvidas. No entanto, houve um aumento enorme das publicações a respeito de Bioética e Conflito de Interesse dos anos 70 para 2004. Isto nos permite pensar que nos anos 70 o Conflito de Interesse era pouco valorizado ou existia dificuldade em observá-lo, por exemplo, a indústria farmacêutica ou na pesquisa clínica. Uma terceira observação surge quando verificamos que as publicações referentes ao ensino da Ética Médica ou Bioética têm se mantido constantes no tempo, mostrando quão importantes elas são, independente do momento político, econômico, jurídico ou religioso.

Outra forma de pensar a Bioética é por meio da Bioética Clínica, que na prática é a discussão realizada nas comissões institucionais de Bioética e tem a ver com a reflexão para encontrar a melhor solução possível para o exercício ético do profissional. Esta ponderação se dá pela identificação, avaliação e resolução das questões éticas e morais que podem surgir frente ao cuidado singular de um indivíduo que adoeceu.

Concluindo, a Bioética nasce dos conflitos trazidos pela transformação humana e seus valores, por exemplo, quando colocamos a questão de a quem pertence a nossa vida: ao próprio indivíduo, a sociedade ou a Deus. Podemos dizer que socialmente este conflito deverá ser entendido desde uma visão pluralista, sendo muito difícil afirmar o que deva ser aceito universalmente como certo ou errado, pois sabemos que isto dependerá da situação e do momento histórico. Por outro lado, individualmente cada um deverá resolver este conflito.

Nós, seres humanos, somos diferentes uns dos outros, o que nos dá a nossa própria identidade, porém podemos observar que quando inseridos em um determinado grupo ou família, estes têm os seus próprios valores que os irá identificar. Esta é a razão pela qual as pessoas poderão questionar um fato ou uma situação, tomando uma decisão que poderá ser ética, segundo o próprio indivíduo, ou moral, dependendo da tradição de valores vinculada ao grupo que julgar esse conflito.

A Bioética se apresenta nesta tentativa de apreender e compreender o verdadeiro significado do novo, capacitando-nos a uma possível adaptação. Ela nos permite expressar o nosso pensamento ético, o que nos possibilita encontrar consensos de qual será o comportamento moral mais adequado frente a uma determinada questão. Entendo que estes sejam os motivos de como deveríamos perceber, pensar e agir sob a égide da Bioética.

  • 1. Marcolino JAM, Cohen C. Sobre a correlação entre a bioética e a psicologia médica. Rev Assoc Med Bras. 2008;54:363-8.
  • 2. Cohen C, Vianna JAR, Battistella LR, Massad E. Time variation of some selected topics in bioethical publications. J Med Ethics. 2008;34:81-4.
  • 3
    UNESCO. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Aprovada pela UNESCO 19 outubro 2005. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ue000219.pdf
  • 4. Barbosa MNP, Santos MA. Considerações sobre a dimensão biológica do conceito de pulsão em Freud. Psicol Reflex Crít. 2005;18:162-70.
  • 5. Cohen C. Bioética e sexualidade nas relações profissionais. São Paulo: Ed. Associação Paulista de Medicina; 1998.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jan 2009
  • Data do Fascículo
    Dez 2008
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