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Ensaios clínicos de não-inferioridade e de equivalência não são éticos?

PANORAMA INTERNACIONAL

FARMACOLOGIA

Doutor - Scientist, FCH/IVB/QSS, World Health Organization, Brasília, DF

Um artigo bastante provocador foi publicado em dezembro de 2007 no Lancet por dois italianos, Garattini e Bertele1. Naquele artigo, os autores, que usam exemplos de ensaios clínicos com medicamentos inovadores, argumentam que ensaios clínicos de não-inferioridade não são éticos e não deveriam ser permitidos. Segundo eles, quaisquer questões de relevância prática para os pacientes têm que ser respondidas com ensaios de superioridade, ensaios clínicos de não-inferioridade não têm justificativa ética, já que não oferecem quaisquer possibilidades de vantagens para pacientes presentes e futuros, e os patrocinadores de tais ensaios desconsideram os interesses dos pacientes em favor dos comerciais. Ainda de acordo com eles as mesmas considerações éticas seriam aplicáveis aos estudos de equivalência. Num número subseqüente, o Lancet publicou quatro cartas ao editor discordando dos autores por diversos motivos, e uma carta de resposta de Garattini e Bertele. Os principais contra-argumentos às idéias dos italianos foram de que num mundo de recursos ilimitados estudos de não-inferioridade são éticos se o novo tratamento for mais barato2, que tal abordagem metodológica é a única possível para situações como a de tratamentos de curta duração para a tuberculose3, e de que os autores teriam confundido o delineamento "não-inferiordidade" com erros de investigadores na sua execução4.

Comentário

Ensaios clínicos são indispensáveis para fornecer evidências de que um medicamento funciona e é seguro. Todo medicamento a ser introduzido no mercado nos dias de hoje tem que obter um registro - o que no caso do Brasil é função da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) -, e este não é concedido sem que sejam antes analisados os ensaios clínicos realizados com ele. Isso vale para qualquer medicamento, seja ele um produto novo sintético, semi-sintético ou biológico, seja uma cópia (genérico ou similar). No Brasil isso também se aplica a alguns dos medicamentos fitoterápicos.

Num ensaio clínico de superioridad, a idéia é demonstrar que uma nova intervenção é superior a uma outra considerada como de referência, nesse caso o novo medicamento em relação a um medicamento comparador. Um ensaio clínico de não-inferioridade visa demonstrar que o novo medicamento não é inferior ao comparador para a indicação estudada, dado um limite de inferioridade aceitável preestabelecido. Já num ensaio clínico de equivalência, o novo medicamento não pode ser superior nem inferior ao comparador dentro de um limite de variação aceitável e pré-estabelecido.

O artigo de Garattini e Bertele é original e instigante, porque nos faz refletir sobre algo que é recomendado nas diretrizes de agências reguladoras como a norte-americana Food and Drug Administration e a European Medicines Agency, e da Organização Mundial da Saúde, e é ensinado, aprendido e realizado por toda parte sem provocar muitas dúvidas e discussões. Tem o grande mérito de passar ao leitor a mensagem de que no momento de se delinear um ensaio clínico que pelas diretrizes se enquadra em uma situação na qual pode ser proposta a abordagem de não-inferioridade investigadores e patrocinador devem se perguntar se esta é realmente a única e/ou melhor opção possível.

A proposta defendida pelos italianos, porém, peca por ser intransigente e extrema. Eles simplesmente ignoraram em seu artigo os medicamentos genéricos, embora para que um medicamento se enquadre nessa categoria tenha que ser demonstrada sua bioequivalência com um medicamento de referência, o que se consegue por um tipo de ensaio clínico de equivalência. O argumento ético por eles utilizado, porém, também se aplicaria a esses estudos. As considerações de alguns dos leitores do Lancet, apresentadas de forma resumida acima, demonstram que o remédio não pode ser tão drástico quanto proposto, sob o risco de fazer mal ao paciente.

A idéia de que estudos de não-inferioridade e de equivalência não são eticamente defensáveis, se adotada por membros da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs), pode ter um impacto não desprezível na realização de ensaios clínicos no Brasil, pois a autorização sob o ponto de vista ético é uma condição necessária para que os estudos possam ser iniciados. Dado o grande número de ensaios clínicos tanto com medicamentos inovadores como genéricos e similares que utilizam desenhos de não-inferioridade e equivalência, esse é um tópico importante a ser discutido pelas pessoas envolvidas e interessadas em pesquisa clínica, não apenas membros de comitês de ética, mas também reguladores, investigadores, patrocinadores de estudos clínicos, e contract research organizations.

  • 1. Garattini S, Bertele V. Non-inferiority trials are unethical because they disregard patients interests. Lancet. 2007;370(9602):1875-7.
  • 2. Gandjour A. The ethics of non-inferiority trials. Lancet. 2008;371(9616):895.
  • 3. Nunn AJ, Meredith SK, Spigelman MK, Ginsberg AM, Gillespie SH. The ethics of non-inferiority trials. Lancet. 2008;371(9616):895.
  • 4. Soliman EZ. The ethics of non-inferiority trials. Lancet. 2008;371(9616):895.
  • Ensaios clínicos de não-inferioridade e de equivalência não são éticos?

    Sérgio Nishioka
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Maio 2009
    • Data do Fascículo
      2009
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