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À BEIRA DO LEITO

CLÍNICA MÉDICA

Acadêmico da Faculdade de Ciências Médicas de Sorocaba - Centro de Ciências Médicas e Biológicas - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). - Acadêmico da Faculdade de Ciências Médicas de Sorocaba - Centro de Ciências Médicas e Biológicas - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). São Paulo, SP, Brasil gnmarta@uol.com.br

No decorrer do internato de graduação, durante o estágio de cirurgia, frequentei as atividades desenvolvidas pela disciplina de urologia. Além do acompanhamento ambulatorial e nas cirurgias, tinha a responsabilidade de evoluir e prescrever os pacientes da enfermaria com auxílio dos residentes.

Ademais, havia reuniões clínicas do departamento em que todos os professores, discentes e residentes se encontravam para discutir os principais casos da semana. Era dever dos acadêmicos preparar os casos a serem apresentados na reunião.

Na véspera de um desses encontros, apressado, examinei os dois pacientes acamados sobre os leitos de minha tutela, pensando no tempo que sobraria naquela manhã para estudar e me preparar para os concursos de residência médica que enfrentaria no final do ano.

Ao término, após me despedir dos enfermos, dirigi-me em direção à porta, quando escuto um chamado que me descontentou naquele instante de pressa, pois não queria perder mais tempo algum, gostaria de estudar antes do início da reunião clínica: "Doutor, o senhor pode vir aqui me ver também?", indagou o paciente que estava no último leito daquele quarto. Aproximei-me dele com certo ar de descaso, e disse que eu não era o médico responsável por aquele leito. Pedi para que tivesse paciência, pois certamente outro passaria para examiná-lo.

Nesse momento, o paciente atirou sobre mim um olhar de tristeza, abaixou a cabeça e disse em tom de desabafo: "Eu só quero saber se minha doença voltou, se vou viver!". Após uma pequena pausa, acrescentou: "Faz dez dias que estou internado aqui. Nenhum médico veio me falar o que realmente tenho. Disseram-me apenas que eu precisava fazer uma cirurgia para ver se minha doença tinha voltado. Não agüento mais esta angústia."

Sua reação me causou espanto, senti-me envergonhado por não lhe ter dado atenção no início. Pedi que aguardasse um instante que já voltaríamos a nos falar.

Consultei o prontuário do paciente para me interar do caso. Há quatro anos havia sido submetido a uma penectomia parcial por carcinoma verrugoso e, em segmento ambulatorial, foi constatada a presença de três linfonodos em região inguinal à direita. Levantou-se a hipótese de metástase e foi internado para realização de inguinotomia à direita e à esquerda com dissecação dos linfonodos das superfícies da região ínguino-femoral. Exames anatomopatológicos pré e pós-operatórios negativos para células malignas. Não havia recebido alta hospitalar por complicações na ferida operatória.

Encontrei novamente o paciente. Disse para que ficasse tranqüilo, expliquei que a doença não havia voltado e que ainda estava internado por conta de complicações na ferida operatória. Provavelmente, na próxima semana estaria em casa. Ele escutou todas as minhas palavras com muita atenção e, ao final, segurou minhas mãos e disse com os olhos cheios de lágrimas: "Esta é a notícia mais feliz que já recebi em toda minha vida. Muito obrigado. O senhor não imagina o sofrimento que passei durante esses dias".

Fui embora do hospital, agora, sem a mesma pressa do início da manhã, pensando sobre o ocorrido. Após horas de reflexão, realmente compreendi o que muitos de meus professores tentaram me ensinar, mas que até aquele momento não havia entendido completamente: na medicina, mais importante que a doença, é o cuidar do doente.

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    Gustavo Nader Marta
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Maio 2009
    • Data do Fascículo
      2009
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