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A equidade no sistema de saúde na visão de bioeticistas brasileiros

Resumos

OBJETIVO: Conhecer a atribuição de significado dada por bioeticistas brasileiros quanto à equidade no sistema de saúde. MÉTODOS: Pesquisa qualitativa, exploratória. Entre julho de 2007 e julho de 2008, foram entrevistados 20 bioeticistas, dirigentes e ex-dirigentes da Sociedade Brasileira de Bioética e de suas regionais (2005-2008). O tratamento dos dados foi realizado por análise de discurso. RESULTADOS: Os discursos levaram ao estabelecimento das seguintes ideias centrais: tratar desigualmente os desiguais conforme suas necessidades; equidade e desigualdades compensadas; equidade e maximização dos benefícios; equidade e mérito social; equidade e direitos. CONCLUSÃO: Os resultados da pesquisa evidenciam a existência entre os bioeticistas pesquisados de uma diversidade de interpretações sobre equidade no sistema de saúde, reforçando a noção de que é difícil, no mundo contemporâneo, decidir sobre o que seria um sistema justo e equânime.

Equidade; Bioética; Sistemas de Saúde


OBJECTIVE: To understand the meaning assigned to ethical thought that should guide Brazilian bioethicists regarding the equity of a Health System. METHODS: Between July 2007 and July 2008, 20 bioethicists, directors and former directors of the 'Sociedade Brasileira de Bioética' (Bioethics Brazilian Society) and their regional administrations were interviewed. RESULTS: Discourse analysis led to definition of these main points: To treat the unequals unequally according to their needs; Compensate equity and inequalities; Distributive justice and maximization of benefits; Justice and social merit and Justice and rights. CONCLUSION: Research results disclose a pluralism of values that jeopardizes determination of moral equity in the health system., Exhausting dialogues among all interested parties are necessary to reach a possible consensus.

Bioethics; Equity; Health Systems


ARTIGO ORIGINAL

A equidade no sistema de saúde na visão de bioeticistas brasileiros

Equity in the health system according to brazilian bioethicists

Paulo Antônio de Carvalho Fortes

Professor Associado - Livre-Docente pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP

RESUMO

OBJETIVO: Conhecer a atribuição de significado dada por bioeticistas brasileiros quanto à equidade no sistema de saúde.

MÉTODOS: Pesquisa qualitativa, exploratória. Entre julho de 2007 e julho de 2008, foram entrevistados 20 bioeticistas, dirigentes e ex-dirigentes da Sociedade Brasileira de Bioética e de suas regionais (2005-2008). O tratamento dos dados foi realizado por análise de discurso.

RESULTADOS: Os discursos levaram ao estabelecimento das seguintes ideias centrais: tratar desigualmente os desiguais conforme suas necessidades; equidade e desigualdades compensadas; equidade e maximização dos benefícios; equidade e mérito social; equidade e direitos.

CONCLUSÃO: Os resultados da pesquisa evidenciam a existência entre os bioeticistas pesquisados de uma diversidade de interpretações sobre equidade no sistema de saúde, reforçando a noção de que é difícil, no mundo contemporâneo, decidir sobre o que seria um sistema justo e equânime.

Unitermos: Equidade. Bioética. Sistemas de Saúde

SUMMARY

OBJECTIVE: To understand the meaning assigned to ethical thought that should guide Brazilian bioethicists regarding the equity of a Health System.

METHODS: Between July 2007 and July 2008, 20 bioethicists, directors and former directors of the 'Sociedade Brasileira de Bioética' (Bioethics Brazilian Society) and their regional administrations were interviewed.

RESULTS: Discourse analysis led to definition of these main points: To treat the unequals unequally according to their needs; Compensate equity and inequalities; Distributive justice and maximization of benefits; Justice and social merit and Justice and rights.

CONCLUSION: Research results disclose a pluralism of values that jeopardizes determination of moral equity in the health system., Exhausting dialogues among all interested parties are necessary to reach a possible consensus.

Key words: Bioethics.Equity.Health Systems.

INTRODUÇÃO

O filósofo norte americano John Rawls1 (1921-2002), marco histórico importante na reflexão dos princípios da justiça e da equidade, entende que a justiça é a virtude primária das instituições sociais, fruto da cooperação humana que deve pretender a realização de benefícios mútuos. Para ele "a justiça é a principal virtude das instituições sociais como a verdade é aquela dos sistemas de pensamento."

Segundo a filósofa espanhola Adela Cortina2, a justiça é a base da ética cívica, necessária para que as pessoas possam atingir seu projeto de felicidade em uma sociedade moralmente pluralista, ou seja, constitui o capital ético compartilhado pelos membros da sociedade humana.

A justiça pode ser dividida em justiça comutativa (corretiva ou retributiva) e justiça distributiva. Por justiça distributiva entende-se a distribuição de honrarias, encargos sociais e bens, relacionando os indivíduos com o coletivo e a autoridade política. Contudo, há diversos conceitos que remetem a condições de escassez e competição por recursos no campo da saúde. Como afirma Campos3 os conceitos não são inócuos, pois "refletem um compromisso de quem os inventa ou emprega com certo entendimento do mundo ou com um determinado conjunto de valores."

Pode-se assim dizer que somente a partir do século XVIII, e principalmente no século XX, se constrói o moderno conceito de justiça distributiva que demanda da sociedade organizada política e juridicamente, o Estado, intervir no campo social e no econômico para que se possa garantir a distribuição de bens, suprindo as pessoas de um determinado nível de interesses e recursos materiais4.

Há, entre as diversas teorias éticas de justiça distributiva, uma aparente concordância de que se deva fazer uma justa distribuição. Todavia, na efetivação do princípio se evidencia a diversidade de interpretações, envolvendo o princípio da equidade, além dos princípios da liberdade, da utilidade social e da eficiência, os quais, em situações concretas, podem vir a conformar alternativas contrapostas5.

Com relação ao conceito de equidade, alguns o consideram como sendo o mais importante para orientar as políticas de saúde, tendo sido aventado na Declaração de Alma Ata6.

Porém, cabe compreender que o conceito é polissêmico, e, como ressalta Almeida7, a definição de equidade escolhida para ser operacionalizada passa a refletir os valores e as escolhas da sociedade em determinados momentos históricos.

Assim, como parte de pesquisa sobre análise bioética sobre justiça distributiva no sistema de saúde, objetivou-se conhecer e analisar o significado de equidade no sistema de saúde para um grupo de bioeticistas brasileiros, pois a bioética brasileira, desde os anos 90, vem se debruçando sobre questões relacionadas à coletividade, às políticas sanitárias e aos sistemas de saúde 8, 9, 10.

OBJETIVO

Conhecer e analisar as atribuições de significado sobre equidade no sistema de saúde por bioeticistas brasileiros.

MÉTODOS

Trata-se de pesquisa qualitativa, de caráter exploratório, com orientação analítico-descritiva. A escolha da abordagem qualitativa deveu-se à potencialidade de entendimento de valores culturais. Foram realizadas 20 entrevistas semiestruturadas, no período de julho de 2007 a julho de 2008, com professores universitários de bioética, atuantes em escolas públicas ou privadas no campo das ciências da saúde. As entrevistas, efetuadas pelo próprio pesquisador, foram gravadas em meio magnético e, posteriormente, transcritas na íntegra. As respostas de três pesquisados foram obtidas por escrito após envio do formulário via internet, em virtude das dificuldades pessoais de marcação de entrevista.

A todos os pesquisados foi colocada a seguinte questão aberta: "O que seria um sistema de saúde fundado no princípio da equidade?"

Construiu-se uma amostra de conveniência constituída por diretores e ex-diretores da Sociedade Brasileira de Bioética e de algumas de suas diretorias regionais (período 2005-2008): Rio de Janeiro, Pernambuco e São Paulo, todos com produção científica em bioética cadastrada no Currículo Lattes do CNPq. Esta sociedade, criada em 1995, congrega atualmente a maior parcela dos bioeticistas brasileiros e tem por finalidade reunir pessoas de diferentes formações de nível universitário, interessadas em fomentar a discussão e difusão da Bioética. Houve diversificação de categorias profissionais envolvidas, ao se incorporar à amostra profissionais do campo da medicina, odontologia, enfermagem, antropologia e teologia.

Buscou-se, nos discursos dos entrevistados, chegar a idéias centrais que são descritoras dos sentidos presentes nos discursos11, apresentando significado semelhante ou complementar.

No texto serão apresentadas algumas expressões-chave para cada uma das ideias centrais encontradas, que consistem em "transcrições literais de parte dos depoimentos, que permitem o resgate do essencial do conteúdo discursivo dos segmentos em que se divide o depoimento" 12.

Segundo as diretrizes e normas da Resolução CNS/MS 196/96, que regulamenta a ética da pesquisa envolvendo seres humanos no Brasil, a cada um dos sujeitos da pesquisa foi demandado o consentimento livre e esclarecido para participar no estudo, com a assinatura de um termo de consentimento. Inicialmente, os entrevistados foram informados por e-mail sobre o caráter da pesquisa, seus objetivos, os procedimentos a serem observados e a possibilidade de recusa. O anonimato e a confidencialidade dos dados lhes foram garantidos, pois os resultados são apresentados sem possibilidade de identificação nominal. Os entrevistados foram numerados sequencialmente (E1, E2 ... E20).

O projeto de pesquisa, assim como o TCLE, foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.

Cabe ainda afirmar que os resultados apresentados neste artigo constituem parte dos obtidos no estudo: "O princípio ético da justiça distributiva e sua aplicação no sistema público de saúde na visão dos bioeticistas brasileiros", que teve financiamento do CNPq (PQ - CA 10/2005).

RESULTADOS

Foram identificadas, nos discursos dos entrevistados, cinco ideias centrais: "Tratar desigualmente os desiguais conforme suas necessidades"; "Equidade e desigualdades compensadas"; Equidade e maximização dos benefícios"; "Equidade e mérito social" e "Equidade e Direitos".

Tratar desigualmente os desiguais conforme suas necessidades

Número expressivo de entrevistados correlacionou a equidade enquanto princípio de atendimento desigual das necessidades individuais em situações consideradas como sendo também desiguais (E2, E4, E5, E6, E10, E12, E15, E 17, E18).

Tratar desigualmente os desiguais conforme suas necessidades é uma interpretação do princípio da justiça, provém de bases diversificadas - desde o pensamento cristão até os fundamentos de diversas correntes de tendência socialista -, e é marcada pelo princípio da igualdade entre todas as pessoas. Contudo, aceitando-se o tratamento diferenciado entre as pessoas quando este é baseado em necessidades individuais, para que se possa atingir o ideal da máxima igualdade possível. A orientação ética é "A cada pessoa conforme suas necessidades".

Como exemplos desta representação:

"O sistema de saúde, pautado no princípio de equidade, seria um sistema de saúde que estaria preocupado em atender as necessidades de cada indivíduo, independentemente de cor, raça, credo, enfim, de poder aquisitivo ou não" (E 15).

"Equidade seria dar coisas diferentes para pessoas diferentes, ou seja, nós podemos pensar no indivíduo, a necessidade do indivíduo e não generalizar toda a sociedade" (E2).

Equidade e desigualdades compensadas

Parcela também significativa dos discursos dos entrevistados manifestou-se favoravelmente à priorização de recursos voltada às pessoas mais desafortunadas, ou "às mais vulneráveis". (E7, E8, E9, E16, E17, E20)

Esta noção de equidade se aproxima da emitida por Rawls1, que defendeu ser justa a ação que tenha consequências desiguais para os diversos envolvidos apenas quando resultam em benefícios compensatórios para cada um, e particularmente para os membros "menos favorecidos", "menos afortunados" da sociedade.

Exemplos dessa representação de equidade:

"Equidade eu acho que significa, verdadeiramente, você fazer discriminação positiva, ou seja, não se pode numa sociedade muito heterogênea, muito desigual, você tratar de maneira igual, porque um tem necessidades elementares e outro tem uma necessidade diferente" (E7).

"Seria um sistema de saúde que estivesse muito próximo das camadas mais vulneráveis da população, colocando justamente o foco prioritário em termos de investimentos de recursos a essa parcela da população" (E9).

Equidade e maximização dos benefícios

Também foram encontrados discursos em defesa de orientações relacionadas ao pensamento ético de maximização dos benefícios, de base utilitarista (E1, E11, E16).

O utilitarismo tem, enquanto orientação ética, como expoentes, os pensadores anglo-saxãos Jeremy Bentham e John Stuart Mill. Trata-se de uma teoria cujo fundamento é o princípio da utilidade social e cujo paradigma é o "maior bem estar para o maior número possível de pessoas", ou seja, a maximização do bem-estar e/ou a minimização da dor, desprazer ou sofrimento da maioria13.

Citações que defenderam essa linha de pensamento:

"Eu considero um sistema de saúde justo aquele em condições de propiciar cuidados de saúde ao maior número possível de pessoas. Nós teremos que procurar doenças que acometessem maior número de pessoas (...)" (E11).

"Eu acho que os recursos deveriam ser priorizados, respeitando-se um direito de maioria, quer dizer que aquilo que atinge a maioria da população (...)" (E 16).

Equidade e mérito social

A noção de equidade enquanto ao mérito social, foi invocada por apenas um dos entrevistados (E3).

A relação entre equidade e merecimento provém do pensamento aristotélico, entendendo que bens e direitos deveriam ser distribuídos segundo o grau de mérito social da pessoa, avaliado no interesse da coletividade14.

"Para ser justo tem que haver equidade, respeito ao direito de cada um, se um fez melhor os seus deveres, faz uma função mais complexa, se esforça mais, tem que cumprir muito mais coisas para poder executar o que lhe foi colocado como dever o outro (...)" (E3).

Equidade e direitos

Os discursos de alguns bioeticistas aliam a discussão sobre a equidade à linguagem dos direitos (E3, E10).

A linguagem dos direitos é um dos elementos do nosso vocabulário. As declarações internacionais, como a da Organização Mundial da Saúde, proclamam direitos, mas mesmo não os vinculando à ordem jurídica dos países, têm efeito moral importante sobre a consciência individual e coletiva15.

"Equidade seria fé na justiça. Eu definiria justiça como respeito ao direito, respeito ao direito de cada um, respeito ao direito das pessoas" (E 3).

"Eu entendo que a equidade nos coloca dentro da sociedade com pessoas que têm iguais direitos e, portanto, igual respeitabilidade. Ou seja, de como nessa organização o sistema reflete esta respeitabilidade de todas as pessoas com iguais direitos, que significa superar toda discriminação (...)" (E 10).

DISCUSSÃO

Segundo Campos3, a partir dos anos 90, o termo equidade ganha visibilidade política em documentos relativos a políticas e sistemas de saúde, primeiramente devido à influência de organismos internacionais como o Banco Mundial, de cunho neoliberal, ensejando uma das interpretações do polissêmico princípio, favorável à priorização e/ou à focalização de recursos para as populações ou grupos mais desassistidos, e contrariamente às noções de universalidade e de atendimento integral das necessidades de saúde. Porém, posteriormente, o termo equidade passa à agenda de discussão dos interessados na concretização do sistema público brasileiro, aliado ao princípio da universalidade. Mas é somente na Norma Operacional de Assistência à Saúde, de 2002, que se encontra expresso o termo equidade, sem o especificá-lo.

Teorias igualitárias que se baseiam no atendimento das necessidades das pessoas entendem que a sociedade organizada e o Estado, mediante a implementação de políticas públicas, devam intervir para garantir a justiça distributiva e minimizar os efeitos das loterias - a biológica e a social16.

Para Durant17 utilizar a concepção das necessidades tem a vantagem de aceitar ao mesmo tempo a igualdade formal entre as pessoas e a desigualdade de suas necessidades. Todavia, apesar da importância da discussão do que seriam necessidades sanitárias e quais deveriam ser priorizadas no sistema de saúde, esta não foi objeto deste trabalho. Cookson e Dolan18 nos lembram que a distribuição de recursos pelas necessidades é especialmente popular na atividade médica - as necessidades clínicas, principalmente referidas ao risco de morte.

Certo que se coloca a dificuldade teórica e prática de se diferenciar necessidades de desejos, e na área de saúde a demanda de cuidados da demanda de conforto19.

O Brasil, na Constituição Federal de 1988, seguiu esta orientação ética, contemplando a saúde como direito social e um dever do Estado de atender as necessidades de saúde dos cidadãos, estruturando a área da saúde pública sob a égide do Sistema Único de Saúde (SUS), sob os princípios do acesso universal e da integralidade.

Parece haver uma concordância entre parte dos discursos de bioeticistas e o proposto por Rawls1,20, aceitando-se que seria justo que o Estado democrático orientasse a distribuição de recursos para resultar em consequências desiguais para os diversos envolvidos, mas beneficiando os "menos favorecidos" da sociedade, "os mais pobres", "os mais vulnerados", os sem condições de arcar com atendimento de suas necessidades de saúde por via dos modelos liberais de mercado, a justeza da ocorrência de uma "discriminação positiva".

A corrente bioética latino-americana da denominada "Bioética da Proteção", a nosso entender, é condizente com o direcionamento preferencial "nos indivíduos e populações de afetados, vulnerados e excluídos do processo de globalização em curso". Também a corrente bioética brasileira, denominada "Bioética da Intervenção", defende que a bioética em países periféricos tenha como orientação a diminuição das iniquidades existentes, protegendo os mais necessitados21, 22.

Já o pensamento maximizador utilitarista nos convoca a refletir se os recursos devem ser orientados à satisfação de necessidades coletivas ou de necessidades individuais, maximizando os resultados benéficos aos envolvidos direta ou indiretamente na ação. No campo da saúde é corrente o uso da noção da utilidade social, ainda que não expressa diretamente, mediante utilização de critérios de custo/benefício, custo-efetividade ou eficiência alocativa23.

Cabe lembrar que o utilitarismo tem forte influência em modelos de análise bioética. Por exemplo, a teoria dos quatro princípios, o denominado modelo principialista da bioética, proposto por Beauchamp e Childress24 é eminentemente utilitarista.

A Bioética da Intervenção, citada anteriormente, também adota uma linha de orientação utilitarista ao preconizar que "no campo público e coletivo: a priorização de políticas e tomadas de decisão que privilegiem o maior número de pessoas, pelo maior espaço de tempo e que resultem nas melhores consequências, mesmo que em prejuízo de certas situações individuais, com exceções pontuais a serem discutidas"22.

Quanto a aceitar-se a validade ética do critério de mérito social para a consideração da equidade, Macintyre25 nos alerta que seria necessário que houvesse uma única visão orientadora de avaliação das contribuições pessoais para o projeto da sociedade e para a classificação das recompensas, o que não é tarefa fácil em uma sociedade, como a nossa, caracterizada pelo pluralismo moral.

No campo da assistência à saúde pode ser lembrado que, em um país de orientação fundamentalmente liberal, como os Estados Unidos da América, se reconhece o critério do merecimento no caso dos veteranos de guerra, que possuem sistemas de assistência à saúde, organizados e financiados pelo poder público. Isto se deve à compreensão do mérito que tiveram ao lutar em tempo de guerra, por terem se oferecido voluntariamente para sacrificar-se pela coletividade, ou ainda, porque foram recrutados compulsoriamente pelo Estado para a defesa da coletividade.

A partir de 1988, com a norma constitucional brasileira "Saúde é um direito de todos e um dever do Estado", a linguagem dos "direitos" na área de saúde passa a ter uma presença constante e marcante.

Todavia, concordamos com Gracia26 ao afirmar que a justificação dos direitos é essencialmente ética, apesar do aparato legal que se amplia consideravelmente em nível internacional, desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, em 1945, até a recente Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, da UNESCO.

No caso da saúde enquanto direito, significa que a saúde é um valor que tem prioridade perante a concretização de outros valores. Todavia, a noção de direito à saúde pode ser observada de modos diversos. Sintetizando a discussão, Kottow27 diferencia "direito à saúde", "direito a cuidados de saúde" e "direito à atenção médica", cada um com especificações próprias.

Daniels28 ainda menciona a concepção de direito negativo, relativo a serem evitadas ações que possam afetar a saúde dos indivíduos. Os direitos negativos pressupõem que o Estado e a sociedade não devem interferir com as liberdades do indivíduo a consentir, a reclamar, ao livre pensar, ao adquirir e manter propriedades etc.

Porém, de maneira oposta, também pode ser aceito como no caso brasileiro, sendo um dever da sociedade e do Estado agir e proporcionar condições adequadas para que as pessoas possam promover, proteger, prevenir ou recuperar sua saúde.

CONCLUSÃO

Cabe ressaltar que se trata de uma pesquisa qualitativa, com amostra de conveniência, que não pretende ser representativa de toda a bioética brasileira, mas que, mediante seu caráter exploratório, pretendeu apresentar tendências que estão presentes entre bioeticistas ligados a instituições universitárias de renome. Consideramos significativos os resultados, pois a reflexão bioética intenta favorecer a consciência de valores éticos e não somente a construção de normas, podendo influenciar, direta ou indiretamente, mediante processos de formação acadêmica, pesquisa e assistência a instituições responsáveis pela formulação de políticas de saúde.

Contudo, os resultados da pesquisa evidenciam a existência entre os bioeticistas pesquisados de uma diversidade de interpretações sobre equidade, reforçando a noção de que é difícil, no mundo contemporâneo de pluralismo moral, decidir-se sobre o que seria um sistema de saúde justo e equânime, sendo necessário que se dê um exaustivo diálogo entre todas as partes interessadas para se chegar a consensos possíveis para a organização e o funcionamento do sistema de saúde, lembrando que no Brasil, o Pacto pela Saúde firmado entre as três esferas de governo (União, Estados e Municípios), redefine as responsabilidades de cada gestor em função das necessidades de saúde da população e na busca da equidade social.

Conflito de Interesse: não há

Artigo recebido: 27/04/09

Aceito para publicação: 19/09/09

Trabalho realizado pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, S.Paulo, SP

Correspondência: Av. Dr. Arnaldo, 715 - Cerqueira César. São Paulo - SP. CEP: 01246-904.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2010
  • Data do Fascículo
    2010

Histórico

  • Recebido
    27 Abr 2009
  • Aceito
    19 Set 2009
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