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Comparação entre duas estratégias para a detecção precoce do hipotiroidismo congênito

Comparison between two strategies for the precocious detection of congenital hypothyroidism

Resumos

OBJETIVO: Comparar em recém-nascidos (RN) duas estratégias diferentes para o rastreamento do hipotiroidismo congênito (HC), a dosagem primária de TSH no sangue colhido do cordão umbilical (método 1) e a dosagem primária de T4 no sangue colhido por punção de calcanhar no 2º dia de internação (método 2). MÉTODOS: Os autores compararam as duas estratégias em 10.000 RN. Dosaram o TSH por método imunofluorimétrico sensível em papel de filtro e o T4 por radioimunoensaio em papel de filtro. A coleta de sangue do calcanhar foi realizada no 2º dia de vida RESULTADOS: Os dois programas diagnosticaram todos os casos de HC nos RN (4 casos, 1/2.500 RN). O índice de rechamada por coleta inadequada foi nulo no método 1 e de 8,5% (850 RN) no método 2. O índice de reconvocação para confirmação de resultados foi de 0,06% (6 RN) no método 1 e de 2,25% (225 RN) no método 2; quando este método incluía também a dosagem suplementar de TSH, o índice baixou para 1,63% (163 RN). CONCLUSÃO: Os dados dos autores evidenciam a superioridade técnica da coleta de sangue a partir do cordão umbilical em relação à punção de calcanhar, assim como da dosagem primária de TSH em relação à de T4, uma vez que apresentam índices muito menores de reconvocação.

Rastreamento; Hipotiroidismo; congênito; TSH; T4


OBJECTIVE: Compare two different strategies in newborn screening for congenital hypothyroidism, primary TSH in the umbilical cord blood (method 1) and primary T4 in blood collected from the heel in the 2nd day of life (method 2). METHODS: We compared both strategies in 10,000 newborns, measuring TSH by a sensitive immunofluorimetric assay and T4 by a radioimmunoassay. RESULTS: Both strategies detected all cases of hypothyroidism (4 cases, 1/2,500 newborns). The recalling index owing to insufficient amount of blood to perform the assays was zero in method 1 and 8.5% (850 newborns) in method 2. The recalling index for confirmation of the results was 0.06% (6 newborns) in method 1 and 2.25% (225 newborns) in method 2; when method 2 included supplementary TSH, the recalling index was reduced to 1.63% (163 newborns). CONCLUSION: Our data indicate the technical superiority of the umbilical cord blood compared to heel and primary TSH compared to primary T4 in the neonatal thyroid screening for congenital hypothyroidism.

Screening; Congenital hypothyroidism; TSH; T4


Artigo Original

Comparação entre duas estratégias para a detecção precoce do hipotiroidismo congênito

L.S. Ward, *R.M.B. Maciel, R.F. Magalhães, *I.S. Kunii, *G.K. Kurazawa, *L.K. Matsumura, *J.G.H. Vieira

Disciplina de Medicina Interna, Departamento de Clínica Médica e Centro de Assistência Integrada à Saúde da Mulher (CAISM), Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP. *Disciplina de Endocrinologia, Departamento de Medicina, Universidade Federal de São Paulo ¾ Escola Paulista de Medicina, São Paulo, SP.

RESUMO ¾ OBJETIVO: Comparar em recém-nascidos (RN) duas estratégias diferentes para o rastreamento do hipotiroidismo congênito (HC), a dosagem primária de TSH no sangue colhido do cordão umbilical (método 1) e a dosagem primária de T4 no sangue colhido por punção de calcanhar no 2o dia de internação (método 2).

MÉTODOS: Os autores compararam as duas estratégias em 10.000 RN. Dosaram o TSH por método imunofluorimétrico sensível em papel de filtro e o T4 por radioimunoensaio em papel de filtro. A coleta de sangue do calcanhar foi realizada no 2o dia de vida

RESULTADOS: Os dois programas diagnosticaram todos os casos de HC nos RN (4 casos, 1/2.500 RN). O índice de rechamada por coleta inadequada foi nulo no método 1 e de 8,5% (850 RN) no método 2. O índice de reconvocação para confirmação de resultados foi de 0,06% (6 RN) no método 1 e de 2,25% (225 RN) no método 2; quando este método incluía também a dosagem suplementar de TSH, o índice baixou para 1,63% (163 RN).

CONCLUSÃO: Os dados dos autores evidenciam a superioridade técnica da coleta de sangue a partir do cordão umbilical em relação à punção de calcanhar, assim como da dosagem primária de TSH em relação à de T4, uma vez que apresentam índices muito menores de reconvocação.

UNITERMOS: Rastreamento. Hipotiroidismo congênito. TSH. T4.

INTRODUÇÃO

O hipotiroidismo congênito (HC) é um distúrbio metabólico sistêmico caracterizado pela deficiência da produção dos hormônios tiroidianos1. Problemas na ontogênese do sistema hipotálamo-hipófise-tiróide podem gerar uma grande variedade de alterações anatômicas ou funcionais causadoras do HC2. A doença tem uma incidência relativamente alta, de cerca de 1/4.000 recém-nascidos (RN) vivos1-5. Em zonas iodoprivas, essa incidência chega a 1/2.000 RN6; isto é particularmente importante para o Brasil, que ainda possui extensas áreas com graus variáveis de deficiência de iodo.

Ao nascimento, os sinais sugestivos de HC são escassos na absoluta maioria dos casos, extremamente inespecíficos e vagos, raramente despertando a atenção do neonatologista1-3. Em países europeus, onde os RN ficam internados até os cinco dias de vida, estudo epidemiológico realizado antes da instalação dos programas de detecção precoce do HC demonstrou que menos do que 5% dos casos eram diagnosticados clinicamente por ocasião da internação no berçário; este trabalho também evidenciou que apenas 10% das crianças portadoras de HC tiveram suspeita clínica até o 1o mês, 35% até o 3o mês e 70% durante todo o 1o ano de vida7. De maneira semelhante, apenas 3% das crianças diagnosticadas no programa norte-americano de triagem do HC tinham tido suspeita clínica por ocasião do nascimento8. Em nosso meio, onde a alta é dada precocemente, muitas vezes antes de o RN completar 24 horas de vida, o diagnóstico no berçário é praticamente impossível9.

Os hormônios tiroidianos são essenciais para a maturação cerebral10. Esses efeitos metabólicos são críticos no desenvolvimento do tecido nervoso no período pré-natal e pós-natal. As crianças com HC são protegidas dos efeitos deletérios da falta dos hormônios tiroidianos durante o período gestacional pela passagem transplacentária de T4 da mãe para o feto11. A partir do nascimento, porém, essa proteção desaparece, e aqueles RN tratados após o 3o mês de vida apresentarão, geralmente, retardo físico e mental1-5. A análise de dados anteriores ao estabelecimento dos programas de rastreamento, provenientes de crianças portadoras de HC não tratadas antes dos três meses de idade, indica que 20% terão coeficiente de inteligência (QI) normal, 25% terão retardo mental leve, 35% serão moderadamente afetados e 20% terão retardo mental severo (QI<50); 60% terão ataxia cerebelar7,12. Esses dados indicam que os casos normais e levemente afetados poderiam se integrar à população normal, não necessitando alterar de forma mais significante seu modo de vida; entretanto, os 55% dos RN restantes exigiriam institucionalização ou internação. Esses pacientes representam um custo considerável para toda a sociedade13.

Desde que o diagnóstico clínico do HC é difícil e incomum antes do 3o mês de vida e que a introdução de terapêutica substitutiva precoce é vital para se evitar as manifestações da doença e suas seqüelas, a solução é um programa de detecção precoce do HC realizado durante a primeira semana de vida em todas as crianças nascidas vivas. A partir do desenvolvimento de métodos de radiomunoensaio para dosar a tiroxina total (T4) em eluatos de sangue total seco colhidos em papel de filtro, seguidos das determinações da tirotrofina (TSH, do inglês thyroid stimulating hormone), vários programas de rastreamento para a detecção precoce de HC foram implantados e existem com uma rotina bastante bem estruturada em vários lugares do mundo (EUA, Canadá, Europa, Austrália e Japão)3,5. Em estudos relativos ao custo-benefício dos programas de detecção precoce de hipotiroidismo, nós demonstramos no Brasil, à semelhança do que ocorre em outros países, que a criação desses programas é altamente benéfica13.

Existem, em nosso meio, duas estratégias principais utilizadas para o diagnóstico precoce do hipotiroidismo: o programa recomendado pela Comissão de Hipotiroidismo Congênito da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia, que utiliza a dosagem primária de TSH no cordão umbilical, tendo em vista a alta precoce da maioria dos RN, reservando a dosagem de T4 na mesma amostra para exame confirmatório14; e o programa recomendado pela Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de São Paulo (APAE), que emprega coleta por punção de calcanhar na alta do RN da maternidade com a dosagem primária de T4, seguida, atualmente, da dosagem de TSH na mesma amostra como segundo exame15. Ainda existem controvérsias quanto à melhor estratégia a ser utilizada em nosso país.

Implantamos o programa de rastreamento para a detecção precoce do HC na maternidade do Centro de Assistência Integrada à Saúde da Mulher (CAISM) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) em outubro de 1989 utilizando a dosagem primária de TSH realizado pela Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo (EPM), em sangue de cordão, segundo o programa recomendado pela Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (método 1). Em fevereiro de 1991, por determinação da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, esta maternidade passou a colher, simultaneamente, sangue de calcanhar, por ocasião da alta no 2o dia de internação, para a dosagem de T4 pela APAE (método 2). Assim, de fevereiro de 1991 até outubro de 1994, essa maternidade realizou os dois procedimentos simultaneamente, o que nos permitiu comparar, de maneira ímpar na literatura, as duas metodologias num grande número de casos.

MATERIAIS E MÉTODOS

Considerações metodológicas: T4 x TSH

Muitos programas de rastreamento para o diagnóstico precoce do HC, especialmente nos Estados Unidos, começaram utilizando a dosagem do T4 como teste inicial, seguida sempre da determinação de TSH confirmatória nos 20% de RN que apresentavam os menores valores de T48. No início dos programas, a vantagem do T4 era decorrente de sua execução mais fácil, uma vez que o ensaio era metodologicamente mais simples; hoje em dia, questiona-se essa vantagem, pois os ensaios de TSH são também simples e rápidos. A principal desvantagem do uso do T4 é o grande número de casos falsos-positivos, tendo em vista as diversas condições em que há diminuição transitória do T4 no RN, tais como prematuridade, baixo peso e uma série de outros distúrbios neonatais; além disso, também apresentam valores baixos de T4 os RN com diminuição da proteína ligadora da tiroxina (TBG, do inglês thyroxine binding globulin), presentes em 1 para cada 9.000 nascimentos16. Outra desvantagem importante do emprego do T4 em programas de rastreamento para o diagnóstico precoce do HC é a obtenção de casos falsos-negativos, quando se encontram RN com HC apresentando T4 normal, tendo em vista a passagem transplacentária de T4 da mãe para o feto11.

A dosagem primária de TSH, com dosagem suplementar do T4, nos casos em que os valores de TSH encontrados são superiores aos valores normais para a faixa etária, é mais específica, discriminando perfeitamente os RN normais dos portadores de HC primário. Mas também não é procedimento isento de falhas, pois deixa de diagnosticar os raros portadores de hipotiroidismo secundário e terciário, originando resultados falsos-negativos; a atenuante é que a dosagem primária de T4 também pode deixar de diagnosticar essa eventualidade17. Além disso, nesses casos, o quadro clínico é geralmente mais rico, devido à associação do hipotiroidismo com outras deficiências hipofisárias e/ou hipotalâmicas, facilitando o diagnóstico clínico. Com o advento dos programas de rastreamento para o diagnóstico precoce do HC, observou-se uma série de disfunções tiroidianas próprias do período neonatal que evoluem com TSH elevado e que causam resultados falsos-positivos de hipotiroidismo18. A dosagem suplementar de T4 evita que tais pacientes sejam considerados portadores de HC, pois o T4, nesses casos, situa-se dentro da faixa de normalidade.

Considerações metodológicas: cordão x calcanhar

A coleta de sangue de cordão apresenta a vantagem de não alterar a rotina de maternidade que dão alta precoce ao RN de parto normal, de não elevar os custos pela manutenção hospitalar da mãe e do RN, e de não expor os RN a risco de infecção hospitalar pela permanência prolongada no berçário. A desvantagem de seu emprego é a impossibilidade de obtenção concomitante do material de pesquisa da fenilcetonúria (PKU), cuja coleta deve ser realizada após um determinado número de alimentações protéicas, o que acontece habitualmente a partir do 3o dia de vida19,20.

A coleta obtida por punção de calcanhar entre o 3o e 5o dia de vida permite a pesquisa de PKU na mesma amostra. Apresenta como desvantagem, porém, a permanência do RN e das mães por tempo prolongado no hospital, o que geraria no Brasil uma dificuldade para a implantação do programa, tendo em vista a alta precoce generalizada que ocorre em todas as maternidades. Adicionalmente, os problemas técnicos da coleta são maiores devido à menor quantidade de sangue colhido e à necessidade de pessoal e material especializados1,21.

CASUÍSTICA

Analisamos 10.000 RN vivos na maternidade do CAISM/UNICAMP, no período de fevereiro de 1991 a fevereiro de 1994, o que representa a quase totalidade dos partos feitos nesse período. Essas crianças foram submetidas, concomitantemente, ao programa de rastreamento para o diagnóstico precoce do HC utilizando a dosagem de TSH em sangue de cordão e à dosagem de T4 em sangue do calcanhar no 2o dia. A seguir, confrontamos os índices de rechamada dos dois programas por meio dos registros do Serviço Social do CAISM, que relaciona todos os RN reconvocados; estes tiveram seus prontuários revistos para se estabelecer o motivo da reconvocação, os resultados dos novos exames laboratoriais e o seguimento pediátrico para definição do seu estado tiroidiano.

MÉTODOS

O procedimento para a dosagem do TSH em sangue de cordão (método 1) baseou-se na coleta, em sala de parto, de sangue de cordão umbilical. Na rotina do serviço de sala de parto da maternidade do CAISM já ocorria a coleta de material de sangue de cordão para a tipagem sanguínea e outros exames; desta maneira, não houve alteração da rotina, apenas pingando-se mais algumas gotas de sangue diretamente do cordão umbilical sobre o papel de filtro para a dosagem do TSH. Após a secagem do papel, este era guardado em saco plástico para ser enviado por via postal ao Laboratório do Centro de Detecção Precoce de Hipotiroidismo Congênito da Disciplina de Endocrinologia da Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo (EPM-UNIFESP), para a dosagem do TSH.

O procedimento para a dosagem de T4 em sangue do calcanhar (método 2) envolveu a punção com lanceta do calcanhar do RN no último dia de internação (habitualmente 2o dia de vida) por pessoal da equipe de enfermagem e coleta no papel de filtro. Após a secagem à temperatura ambiente, o papel era enviado ao Laboratório da APAE, em São Paulo, para a dosagem do T4.

O TSH e o T4 são dosados na EPM-UNIFESP por meio de métodos imunofluorimétricos; para a dosagem de TSH em papel de filtro, usa-se um anticorpo monoclonal de captura ligado em fase sólida e um anticorpo monoclonal de reconhecimento22. Esse método possui sensibilidade de 0,1mU/L e coeficientes de variação intra e interensaio de 5% e 10%, respectivamente. Consideramos como nível de corte 20mU/L, a partir do qual a amostra é considerada suspeita. O T4 apresenta sensibilidade de 1,6mg/dL e coeficiente de variação intra e interensaio de 5% e 10%, respectivamente.

O T4 é dosado na APAE por um radioimunoensaio com sensibilidade de 1mg/dL e coeficientes de variação intra e interensaio de 6%. O valor de corte considerado pela APAE é de 6mg/dL; desde junho de 1993, a APAE vem acrescentando, também, a medida do TSH por meio de um método comercial imunofluorimétrico, similar ao da EPM-UNIFESP, aqueles casos de RN que se apresentem no percentil 10 inferior do ensaio do T415.

RESULTADOS

O período de implantação do programa de rastreamento para o diagnóstico precoce de HC no CAISM-UNICAMP utilizando o método 1 durou cerca de dez dias, a partir do que nenhum RN deixou de ter o material colhido corretamente identificado e enviado; como já mencionado, o CAISM-UNICAMP já possuía uma rotina de coleta de sangue umbilical para tipagem sanguínea e reações sorológicas para lues. Por outro lado, o tempo de implantação do programa de rastreamento para o diagnóstico precoce do HC empregando o método 2 envolveu um período de treinamento mais longo, de cerca de três meses, já que a punção de calcanhar não era rotineiramente efetuada na neonatologia e obrigou o treinamento de pessoal.

Suspeitou-se do diagnóstico de HC em quatro RN em ambos os programas, o que representa um caso para cada 2.500 RN vivos. Confirmou-se o diagnóstico em todos mediante dosagem de TSH e de T4 livre em sangue venoso.

Comparando-se os resultados dos 10.000 RN vivos submetidos a ambos os métodos de rastreamento, observamos que o índice de rechamada devido à coleta inadequada de material para as dosagens hormonais foi nulo no método 1 (TSH no cordão), enquanto que foi de 8,5% (850 RN) pelo método 2 (T4 no calcanhar). O principal problema que originou a reconvocação pela APAE foi o material escasso obtido na colheita de sangue do calcanhar.

O índice de reconvocação para confirmação de resultados foi de 0,06% (6 RN) no método 1 e de 2,25% (225 RN) no método 2, e com o emprego da dosagem de TSH como segundo exame, esse índice passou a ser de 1,63% (163 RN) (ver tabela).

DISCUSSÃO

A prevenção de um caso de retardo mental decorrente de hipotiroidismo congênito representa benefício incalculável para o próprio indivíduo, sua família, assim como para a sociedade, que deixará de arcar com uma pessoa improdutiva, que necessitaria de cuidados especiais por toda vida. Embora social, e mesmo moralmente, pareça imperativo prevenir tal doença, cuja incidência é relativamente elevada e que potencialmente pode ser curada, a pouca disponibilidade de recursos econômicos alocados por área de saúde em nosso país tornou necessária a demonstração de que, também do ponto de vista econômico, é mais conveniente prevenir do que tratar um caso de cretinismo13. Programas de rastreamento para a detecção precoce de HC são essenciais para a identificação da doença, cuja freqüência e pouca sintomatologia no RN obrigam a atenção especial por parte de organismos de saúde pública21,23. No Brasil, a detecção de HC é obrigatória por lei desde 1985. No entanto, apenas o Estado do Rio de Janeiro possui normatização a respeito e ainda existem controvérsias quanto à melhor estratégia a ser utilizada em programas de Saúde Pública no Brasil.

Os dois programas mais utilizados no país foram simultaneamente executados na UNICAMP por período de três anos. Utilizamos esse fato para efetuar uma comparação entre os métodos. Nossos dados mostraram incidência de HC de 1/2.500 RN nesse período, o que representa um número superior ao descrito em áreas não carentes de iodo. Acreditamos que tal fato possa decorrer de nosso serviço atender a muitas pacientes provenientes de regiões sabidamente carentes em iodo, como Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso do Sul.

Os resultados obtidos mostram que a coleta de sangue de cordão umbilical, quando comparada à punção do calcanhar, não obriga a rechamada, uma vez que o material é abundante e de fácil manipulação; o número de rechamadas pelo método 2 é muito alto para um programa que pretende atingir todos os RN do Brasil. O método 1 também tem a vantagem de não interferir na rotina hospitalar, permitindo a alta precoce e prevenindo a possibilidade de infecção, pelo maior tempo de permanência que o RN teria no berçário, bem como reduz os custos de internações. Entretanto, não permite a pesquisa de PKU na mesma amostra; esta, entretanto, pode ser realizada por ocasião da primeira visita do RN ao Posto de Saúde ou ao pediatra14.

A punção de calcanhar, ao contrário, fornece material escasso, aliado à dificuldade de coleta inerente ao fato de tratar-se de criança recém-nascida e das dificuldades em treinar adequadamente pessoal para sua realização. Além disso, obriga a permanência da mãe e do RN por mais tempo na maternidade, pelo menos por dois dias, trazendo outras conseqüências, como o aumento do risco de infecção e a elevação dos custos hospitalares.

A comparação entre os dois programas em relação à estratégia utilizada mostrou que a dosagem primária de T4 condicionou um número muito maior de reconvocações, em comparação com a dosagem primária de TSH (225 x 6), decorrente da considerável quantidade de falsos-positivos que o T4 apresenta, pois é passível de reduções transitórias de diversas causas, entre as quais se destacam a prematuridade, o baixo peso e patologias neonatais relativamente freqüentes em nosso meio. O uso da dosagem complementar de TSH diminuiu o índice de rechamada para confirmação de diagnóstico pelo método 2 (163 RN), embora ainda tenha permanecido mais elevado do que no programa pelo método 1 (6 RN) que utilizou o TSH como exame primário.

Além do transtorno, do trauma, dos problemas psicossociais e econômicos que a convocação para confirmação do diagnóstico obviamente causa à família, mobilizada pela possibilidade de o RN poder vir a apresentar deficiência mental, a rechamada representa um ônus significativo ao sistema de saúde pública. Além disso, muitos RN desse enorme contingente de reconvocados não respondem à chamada, quer por dificuldade de localização, quer pela ignorância dos riscos por parte da mãe; tendo em vista o grande número de RN que não atendem à reconvocação, não existe um esforço concentrado por parte dos responsáveis dos programas para a localização de todos os suspeitos, com a conseqüente perda dos reais casos de HC que poderiam ter sido diagnosticados.

Nossos resultados evidenciam a superioridade da técnica de coleta por punção de cordão umbilical e do método de dosagem de TSH primário com T4 complementar (método 1) no rastreamento do hipotiroidismo primário. Concluímos que tal estratégia, além de evitar um grande número de convocações onerosas e desnecessárias para confirmação de resultado, tem melhor relação custo-benefício e evita os problemas de coleta inadequada de material por punção de calcanhar.

AGRADECIMENTOS

Este trabalho foi realizado com o apoio financeiro do Fundo de Incentivo à Pesquisa do Banco do Brasil (FIPEC), projeto 1037, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), projeto 405494/88.2, Agência Internacional de Energia Atômica, projeto 302-E1-BRA-5318.1, e Centro de Estudos de Endocrinologia da Escola Paulista de Medicina (CENEPAM). Os autores agradecem o empenho das enfermeiras, assistentes administrativas e sociais do CAISM, assim como à assistência administrativa de João L. Movio e Alzira M. Possedente, da EPM-UNIFESP.

SUMMARY

Comparison between two strategies for the precocious detection of congenital hypothyroidism

OBJECTIVE: Compare two different strategies in newborn screening for congenital hypothyroidism, primary TSH in the umbilical cord blood (method 1) and primary T4 in blood collected from the heel in the 2nd day of life (method 2).

METHODS: We compared both strategies in 10,000 newborns, measuring TSH by a sensitive immunofluorimetric assay and T4 by a radioimmunoassay.

RESULTS: Both strategies detected all cases of hypothyroidism (4 cases, 1/2,500 newborns). The recalling index owing to insufficient amount of blood to perform the assays was zero in method 1 and 8.5% (850 newborns) in method 2. The recalling index for confirmation of the results was 0.06% (6 newborns) in method 1 and 2.25% (225 newborns) in method 2; when method 2 included supplementary TSH, the recalling index was reduced to 1.63% (163 newborns).

CONCLUSION: Our data indicate the technical superiority of the umbilical cord blood compared to heel and primary TSH compared to primary T4 in the neonatal thyroid screening for congenital hypothyroidism. [Rev Ass Med Brasil 1998; 44 (2): 81-6.]

KEY WORDS: Screening. Congenital hypothyroidism. TSH. T4.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jul 2000
  • Data do Fascículo
    Jun 1998
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