PONTO DE VISTA
PSIQUIATRIA
Carta a um jovem médico
João Paulo Consentino Solano*
Mestrado pelo Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - FMUSP e Pesquisador do LIM-38 do Hospital das Clínicas -HC, São Paulo, SP
Unitermos: Médicos. Bioética. Estresse. Esgotamento profissional. Morte. Atitude frente à morte
Key words: Physician-patient Relations. Bioethics. Stress. Psychological Burnout, Professional. Death. Attitude to death.
Quase sem poder dormir, um homem de uns 30 anos é forçado por outro a retomar, ao raiar do dia, sua mesma repetitiva tarefa: limpar as câmaras de gás onde jazem corpos de pessoas que, horas antes, estavam vivas - homens, mulheres e crianças de sua mesma raça, de sua língua, de sua idade, alguns conhecidos de sua cidade natal, pais e avós de amigos de seus filhos. Ele terá de ajudar a empilhar cadáveres para depois empurrá-los com um trator para uma enorme vala; ele os despirá, reconhecerá a alguns, extrairá dentes de ouro sob o olhar de seu guarda (o mesmo que o acordou), chorará sobre os corpos que verá sendo cobertos pela terra de sua própria pá e mãos e, durante todo aquele dia, haja sol ou chuva, calor ou gelo, ele apenas pedirá ao seu Deus que não encontre, na fila dos vivos que ele conduzirá à câmara mortuária, um de seus filhos ou a sua própria esposa.
Este homem sem nome, por enquanto, sabe que um dia receberá a ordem de ajudar na execução de um parente seu. Sabe que não aguentará essa dor. Planeja, nesse dia, sair em fuga, deixando-se abater com um tiro pelas costas, vindo de seu vigia ou de um superior. Seus vigias são guardas da SS nazista, e ele é um prisioneiro do campo de concentração que foi alçado à posição de integrante do Sonderkommando, ou comando especial nazista. Sabe em troca de quê ele foi alçado a esta posição? De viver mais um pouco. Enquanto vive mais um pouco, ajuda a executar seus irmãos compatriotas. Mas sabe que seu dia de seguir o mesmo destino (a câmara de gás) está chegando. Ele não sabe quantos dias lhe restam, mas sabe que ele mesmo está já condenado ao mesmo destino terrível. O ano é 1945 e são reais o nosso homem, seus guardas, o campo e os corpos.
Prezado colega, outra situação: no hospital X, um médico formado há três anos trabalha em vários plantões. Num dia o vemos por detrás de um biombo coordenando uma miríade de ações pelas quais toda uma equipe de jovens tenta ressuscitar um paciente; por mais de hora, está ele ali sentindo-se o responsável por, quer com suas combinações de drogas, quer pelo uso de um cardioversor, quer por suas mãos que ora massageiam ora "ambusam" o paciente, alcançar um desfecho quase milagroso: debelar a morte. Como a morte não é, no entanto, debelável, muitas vezes ele percebe ter sido em vão seu suor e tem de haver-se - do outro lado do biombo e da porta sanfona - com a não menos árdua tarefa de comunicar o óbito aos familiares. Esta mesma situação, num outro dia, se repete na UTI; num outro dia, no Centro Cirúrgico; e num outro, na sala de trauma. E este nosso médico, trabalhando umas 80 horas por semana, dormindo pouco, começa a sentir-se numa linha de fogo - num front de uma guerra.
Caríssimo colega, entre as duas situações, você notou alguma semelhança? Eu notei. Deixe-me dividir com você como tenho feito para suportar meus 20 anos de medicina, sem nunca ter pensado em desistir da batalha. É assim: eu me faço, todos os dias, três perguntas.
Eu suporto a realidade da finitude?
Sim, porque é preciso, no momento de atender um paciente, que eu mantenha em mente que pode haver chegado a hora dele. Mais do que isto, é preciso ter em mente que tudo o que naquele dia sucede a meu paciente poderá, e deverá em breve, suceder a meus pais, avós, irmãos, a todos os meus amados - e deverá, finalmente, suceder a mim também. Esta pergunta é muito difícil, porque faz lembrar ainda de duas coisas em íntima conexão com ela. Uma é que nós todos temos um destino comum: independente de sermos os poderosos ou os destituídos, a morte é o destino de todos nós, incluso nossos pacientes (todos), nossos familiares (todos), nossos amigos (todos) e, obviamente, nós mesmos - não necessariamente nesta ordem. E antes da morte, é bom que saibamos, é altamente provável que experimentemos um período de doença e/ou debilidade - idêntico ao que agora vemos o paciente, à nossa frente, enfrentar. A segunda conexão, agora: muito além do que podemos imaginar, todos nós, seres humanos, sentimo-nos desamparados desde que nascemos, por haver neste mundo tantas coisas que não podemos controlar. A doença, a progressiva destituição da vitalidade e a morte são exemplos máximos dessas coisas. Um professor que tive, muito sábio, me ensinou as raízes da palavra "desamparo". Sabe como dizê-lo de forma mais significativa: insocorridade fundamental humana, diz ele, lembrando-se explicitamente daqueles prisioneiros dos campos de concentração a que aludimos no princípio. Nós todos, sadios ou doentes, ricos ou pobres, vivemos tentando escamotear (não-ver) o quanto estamos aterrorizados pelo fato de que somos impotentes diante da doença e da morte - e para isto não há socorro... Por isso, a insocorridade fundamental humana (que meu amigo professor ensinou-me chamar, em alemão, hilflosigkeit). Nossos doentes, pelos temores inerentes à doença e ao futuro, frequentemente são inundados por este tipo de terror. E nós, médicos, que lidamos diariamente com desfechos bons, médios e péssimos, também!
Eu suporto ser um ser-em-necessidade?
Isto também é importante. É preciso que, ao acercarmo-nos de nossos pacientes para tentar ajudá-los, não nos esqueçamos de que nós também estamos mergulhados em necessidade. Necessidade de saúde, de segurança, de amor, de proteção. É nossa parte frágil que melhor cuida de nossos pacientes - a que melhor se comunica com eles. Não pense que sua capacidade de ajudar seja inextinguível, como se você não tivesse também as suas fraquezas. Tampouco confie na onipotência de sua bondade. Você também, como o paciente, precisa receber coisas boas. Mas, em geral, não é dali, da relação médico-paciente que você retirará as gratificações de que precisa; estas você terá de buscar nas suas horas de folga, pois a relação médico-paciente deve ser mantida com sua inata assimetria para que uma das partes seja beneficiada - e esta parte, naturalmente, é o doente. Ou, como diz o ditado inglês, podem chorar o doente e o terapeuta, mas ninguém pode ter dúvida sobre qual é o ombro sobre o qual se chora no momento. Ao se aproximar de um doente ou desvalido para lhe fazer um bem qualquer, gaste também um tempinho avaliando se é o benefício dele o que você primordialmente procura - ou se é o estar em paz com a sua consciência, ou o sentir-se melhor que seus colegas, ou insuflar narcisicamente seu ego com a fantasia de que você é insubstituível, ou que é extraordinariamente admirado pelo paciente e seus familiares, ou de que é um super-herói (tais fantasias nos acompanharam durante toda a nossa infância, eu sei, mas agora não são mais apropriadas e põem em risco o benefício do paciente). Infelizmente, nós médicos caímos com muita frequência na vala dos excessos narcísicos - enquanto nossos pacientes estão no aguardo de médicos que sabem reconhecer suas próprias limitações sem (no entanto) se deixarem abater.
Eu suporto deixar de ser médico?
Sim, é muito importante saber distinguir entre a sua pessoa e a roupa que você está usando hoje. Você não pode aspirar ser médico o tempo todo - ou em todas as suas relações interpessoais. Sugeri na pergunta anterior ser desejável manter-se consciente das próprias necessidades, ao mesmo tempo em que cuida das necessidades do outro. Já aqui estou dizendo que você não pode estar perfeitamente identificado com o seu papel de médico na sociedade, pois você não é, não pode ser e não deve ser apenas um médico - digo isto para o benefício de sua própria saúde. Você não pode esquecer de cuidar-se, de entregar-se aos prazeres da vida, ao riso franco com seus amigos, e às suas necessidades de amor. Ponha um limite entre sua identidade pessoal e sua identidade profissional. E dedique um bom tempo para cuidar (ou permitir que cuidem) daquele que, dentro de você, não tem nada a ver com medicina.
Para finalizar e resumir, meu amigo, vou dizer apenas mais uma coisa: estar em contato com nossas fraquezas, olhar de frente nossas vulnerabilidades... é isto, justamente isto, que nos torna fortes o suficiente (só o suficiente!) para ajudar o próximo e, ao mesmo tempo, continuar com os nossos tonéis cheios, ou quase cheios (para então poder ajudar outros, e outros, sem nunca descuidarmos de nós mesmos). É desse tipo de médico que nossos pacientes precisam e é só agindo assim que conseguimos oferecer ajuda real: percebendo que somos iguais àquele a quem ajudamos, que com ele compartimos os mesmos medos, as mesmas necessidades e, ao apagar das luzes, o mesmo destino.
Agradecimentos
Ao Prof. Dr. Luis Roberto Millan pela leitura do primeiro manuscrito, pelas sugestões e pelo estímulo à submissão do material a uma revista científica. Ao Dr. Mario Carlos Costa Sposati, professor no início, depois também médico, e hoje também amigo. Ao Prof. Dr. José Luis Caon, o "professor" citado no texto.
Trabalho realizado no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, S. Paulo, SP
Referências bibliográficas
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
17 Nov 2009 -
Data do Fascículo
2009