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Formação de gestores públicos escolares à luz da reflexividade prática

Formación de gestores de escuelas públicas a la luz de la reflexividad práctica

Resumo

O objetivo deste estudo é buscar a interpretação de experiências e dos significados atribuídos pelos gestores escolares durante seu processo de capacitação no contexto da formação continuada oferecida pelo Governo do Estado da Paraíba. Com base na participação num dos módulos de formação continuada de gestores escolares com 35 diretores e carga horária de 24 horas, utilizamos os elementos constituintes do diálogo reflexivo para compreender a formação de gestores escolares. Os resultados apontam para uma dissonância entre o conteúdo da formação em relação à realidade e demandas dos gestores escolares, criando um binômio teoria x prática. É possível também identificar os problemas políticos que envolvem a escolha dos diretores escolares e as consequências na prática de fazer gestão. A formação de gestores públicos, ancorada na reflexividade prática, pode ser considerada um mecanismo de contribuição para a gestão democrática.

Palavras-chave:
gestão pública escolar; formação de gestores; reflexividade; reflexividade prática

Resumen

El objetivo de este estudio es buscar una interpretación de las experiencias y significados atribuidos por los administradores escolares durante su formación en el contexto de educación permanente ofrecida por el Gobierno del Estado de Paraíba. Con base en la participación en uno de los módulos de formación continua para administradores escolares con 35 directores y una carga de trabajo de 24 horas, utilizamos los elementos constitutivos del diálogo reflexivo para comprender la formación de administradores escolares. Los resultados apuntan a una disonancia entre los contenidos formativos en relación con la realidad y demandas de los directivos, creando un binomio teoría-práctica. También es posible identificar los problemas políticos en torno a la elección de directores escolares y las consecuencias en la práctica del hacer. La formación de gestores públicos, anclada en la reflexividad práctica, puede ser considerada un mecanismo para contribuir a la gestión democrática.

Palabras clave:
gestión de la escuela pública; formación de directivos; reflexividad; reflexividad práctica

Abstract

This study seeks to interpret school managers’ experiences and meanings during their training in a continuing education program offered by the government of the Brazilian state of Paraíba. The study used the constituent elements of reflexive dialogue to understand school managers’ training, obtained through participant observation during a module of a continuing education program for school managers with 35 school principals and a workload of 24 hours. The results point to a dissonance between training content and the managers’ demands and reality, creating a binomial theory vs. practice. It is also possible to identify the political problems around hiring school principals and the consequences of such a process in school management. The research concludes that the training of public managers anchored in practical reflexivity can be a mechanism to contribute to democratic management.

Keywords:
public school management; training of managers; reflexivity; practical reflexivity.

1. INTRODUÇÃO

A formação de servidores públicos vem sendo debatida há certo tempo (Engelbert, 1964Engelbert, E. A. (1964). Major issues in professional training for public administration. International Review of Administrative Sciences, 30(3), 272-276.) e continua um tema relevante na gestão pública (Coelho, Costa, & Dias, 2019Costa, F. L., Coelho, F. S., & Dias, T. F. (2019). Três décadas de Enap e de escolas de governo. Revista do Serviço Público, 70(Esp.), 6-14.; Teles & Magalhães, 2016Teles, F. M. C., & Magalhães, A. G., Jr. (2016). O Programa de Formação de Gestores Públicos do Estado do Ceará. Conhecer - Debate entre o Público e o Privado, 6(17), 158-175.). No âmbito da gestão escolar, a formação de gestores públicos é um assunto sensível para a qualidade da educação e ainda carece de maior debate científico-acadêmico (Medeiros, 2019Medeiros, A. M. S. (2019). Formação de gestores na/para educação básica: gestão democrática e diversidade. Laplage em Revista, 5, 56-70.; Paro, 2011Paro, V. H. (2011). Escolha e formação do diretor escolar. Cadernos de Pesquisa - Pensamento Educacional, 6(14), 36-50.; V. G. Santos & Keller-Franco, 2020Santos, V. G., & Keller-Franco, E. (2020). A formação do gestor educacional e os desafios da atuação profissional. Revista Laplage, 6(2), 2446-6220.; Simielli, A. F. Santos, & Plank, 2021Simielli, L., Santos, A. F., & Plank, D. (2021). Desenvolvimento profissional de diretores escolares: análise das experiências da África do Sul e do Canadá (Ontário). Relatório de Política Pública Educacional. Rio de Janeiro, RJ: Instituto Unibanco. Recuperado de https://d3e.com.br/wp-content/uploads/2021/06/RPE_2106_FormacaoDiretores.pdf
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), sobretudo no fortalecimento da articulação entre as áreas da administração/gestão e educação.

A ênfase na formação de servidores públicos foi influenciada, a partir da década de 1980, pela New Public Management (Paz & Odelius, 2021Paz, L. M. C. Á., & Odelius, C. C. (2021). Escala de competências gerenciais em um contexto de gestão pública: desenvolvimento e evidências de validação. Organizações & Sociedade, 28(97), 370-397.). Esse movimento, que se iniciou nos Estados Unidos e na Europa, invadiu as reformas administrativas em todo o mundo com o discurso de tornar a gestão mais estratégica, eficiente e eficaz aos moldes de gestão da administração de empresas.

A Nova Gestão Pública tomou por empréstimo características do modelo capitalista e gerencialista, apregoando a “satisfação do cliente” e prometendo combater disfunções do setor público, como o patrimonialismo e a burocracia (F. B. Oliveira, Sant’Anna, & Vaz, 2010Oliveira, F. B., Sant’anna, A. S., & Vaz, S. L. (2010). Liderança no contexto da nova administração pública: uma análise sob a perspectiva de gestores públicos de Minas Gerais e Rio de Janeiro. Revista de Administração Pública, 44(6), 1453-1475.). Ela tem como mote uma ideia de eficiência que desafia os gestores públicos no cumprimento de metas objetivando atender às demandas da sociedade (Camões, 2016Camões, M. R. S., & Meneses, P. P. M. (2016). Gestão de pessoas no Governo Federal: análise a partir da implementação da Política Nacional de Desenvolvimento de Pessoas. Brasília, DF: Fundação Escola Nacional de Administração Pública. Recuperado de https://bit.ly/3cdFSXJ.
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; Paz & Odelius, 2021Paz, L. M. C. Á., & Odelius, C. C. (2021). Escala de competências gerenciais em um contexto de gestão pública: desenvolvimento e evidências de validação. Organizações & Sociedade, 28(97), 370-397.). Contudo, essas demandas exigidas/inerentes ao gestor público se tornam mais complexas, comparadas com o gestor privado, graças a um contexto público heterogêneo pautado por atores com interesses difusos e contraditórios, o que dificulta identificar de maneira singular o que são “demandas da sociedade”. K. P. Oliveira e Paula (2014Oliveira, K. P., & Paula, A. P. P. de (2014). Hebert Simon e os limites do critério de eficiência na Nova Administração Pública. Cadernos Gestão Pública e Cidadania, 19(64), 113-126.) criticam a ideia de eficiência da Nova Gestão Pública por estar fortemente ancorada na dimensão econômico-financeira, propondo uma eficiência relativa que seja submetida ao controle popular.

De modo mais específico, no contexto da educação, não foi diferente. Na verdade, a Administração Escolar surgiu sob a influência das concepções técnico-científicas. Essa influência tem se intensificado nos tempos atuais, pois os estudos mostram que a formação dos gestores escolares é tratada como protocolar no que tange ao cumprimento das metas do Plano Nacional de Educação, uma vez que desconsidera os verdadeiros anseios dos gestores no seu cotidiano. Para Abrucio (2018Abrucio, F. L. (2018). Uma breve história da educação como política pública no Brasil. In D. L. Dalmon, C. Siqueira, & F. M. Braga (Orgs.), Políticas educacionais no Brasil: o que podemos aprender com casos reais de implementação. São Paulo, SP: Edições SM., p. 19), “se o país quiser enfrentar os enormes e complexos desafios da educação, precisará refletir sobre gestão para melhorá-la e, sobretudo, formar gestores qualificados e em larga escala”. Mas que formação seria essa? Esse é o nosso debate neste trabalho.

Uma pesquisa realizada com 380 gestores para verificar quão aptos estão os candidatos a assumirem o cargo de gestor escolar em escolas públicas estaduais do Paraná detectou que “67% dos diretores, ao se elegerem, não possuíam capacitação para a função, o que reforça a necessidade dos sistemas de ensino em estabelecer políticas públicas de capacitação prévia para preparação dos gestores escolares” (Rocha, Carnieletto, & Peixe, 2007Rocha, E. C., Carnieletto, I., & Peixe, B. C. S. (2007). A distância entre a formação inicial de um candidato a gestor escolar e o que se exige dele no efetivo exercício da função-uma proposta de formação para gestores escolares na rede pública estadual no paraná (Monografia de Especialização). Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR., p. 67). Apesar de o estudo ter sido publicado em 2007, ainda reflete a realidade de boa parte dos gestores escolares no Brasil (A. C. P. Oliveira, Carvalho, & Brito, 2020Oliveira, D. A., & Clementino, A. M. (2020). As políticas de avaliação e responsabilização no Brasil: uma análise da educação básica nos estados da região Nordeste. Revista Iberoamericana de Educación, 83(1), 143-162.).

As consequências de uma política não estruturada de formação de gestores escolares podem ser identificadas por meio de gerenciamento ineficaz de recursos e seu impacto negativo nos índices educacionais (Abrucio, 2010Abrucio, F. L. (2010). Gestão escolar e qualidade da educação: um estudo sobre dez escolas paulistas. In Estudos & Pesquisas Educacionais(Vol. 1, pp. 241-274). São Paulo, SP: Fundação Victor Civita.; Vasconcelos, Leal, & Araújo, 2020Vasconcelos, C. R. D., Leal, I. O. J., & Araújo, J. A. Q. de C. (2020). Nexos entre gestão, avaliação e o índice de desenvolvimento da educação básica (Ideb) em escolas públicas. Revista On-line de Política e Gestão Educacional, 24(1), 55-70.); dos efeitos da má gestão e da corrupção (Rodrigues, Faroni, N. D. A. Santos, Ferreira, & Diniz, 2020Santos, V. G., & Keller-Franco, E. (2020). A formação do gestor educacional e os desafios da atuação profissional. Revista Laplage, 6(2), 2446-6220.); do predomínio da concepção técnico-científica de gestão; e da necessidade de formação inicial e continuada dos gestores (Luck, 2011Luck, H. (2011). Mapeamento de práticas de seleção e capacitação de diretores escolares. São Paulo, SP: Fundação Victor Civita .; Medeiros, 2019Medeiros, A. M. S. (2019). Formação de gestores na/para educação básica: gestão democrática e diversidade. Laplage em Revista, 5, 56-70.; V. G. Santos & Keller-Franco, 2020Santos, V. G., & Keller-Franco, E. (2020). A formação do gestor educacional e os desafios da atuação profissional. Revista Laplage, 6(2), 2446-6220.). Há ainda os problemas relacionados com questões político-partidárias que exercem influências negativas nas escolhas dos gestores escolares, na alocação dos recursos e na definição de políticas públicas (Sorensen & Robertson, 2020Sorensen, T., & Robertson, S. L. (2020). O Programa da OCDE Talis: enquadrando, medindo e vendendo professores de qualidade. Currículo sem Fronteiras, 20(1), 43-61.; Souza, 2006Souza, A. R. (2006). Os dirigentes escolares no Brasil. Educação - Teoria e Prática, 15(27), 51-82.).

O percurso formativo do gestor escolar no Brasil representa uma lacuna nas políticas de educação, que ficaram em segundo plano (A. C. P. Oliveira et al., 2020Oliveira, A. C. P., Carvalho, C. P., & Brito, M. M. A. (2020). Gestão escolar: um olhar sobre a formação inicial dos diretores das escolas públicas brasileiras. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, 36(2), 473-496.). As iniciativas têm sido fortalecidas e voltadas aos professores, enquanto os gestores escolares recebem formação curta e superficial, com foco em resultados, sob a lógica neoliberal (Medeiros, 2019Medeiros, A. M. S. (2019). Formação de gestores na/para educação básica: gestão democrática e diversidade. Laplage em Revista, 5, 56-70.; V. G. Santos & Keller-Franco, 2020Santos, V. G., & Keller-Franco, E. (2020). A formação do gestor educacional e os desafios da atuação profissional. Revista Laplage, 6(2), 2446-6220.). Logo, como acontecem as formações que preparam gestores escolares para atuar na esfera pública?

O objetivo deste estudo é interpretar experiências e significados atribuídos pelos gestores escolares durante seu processo de capacitação no contexto da formação continuada oferecida pelo Governo do Estado da Paraíba. Para atingir esse objetivo, utilizamos os elementos que constituem a reflexividade prática (Cunliffe, 2002Cunliffe, A. L. (2002). Reflexive dialogical practice in management learning. Management learning, 33(1), 35-61., 2006), uma forma de pesquisar e refletir sobre o fazer do pesquisador, assim como dos sujeitos de pesquisa no contexto da administração pública (Cunliffe & Jun, 2005).

A ideia é contribuir para ampliar o debate sobre as práticas de formação de gestores públicos escolares com base na experiência no estado da Paraíba, à luz da reflexividade prática como mecanismo de fomento à gestão democrática, possibilitando estudar as experiências de educação não formal com a articulação de planejamento de políticas públicas. A reflexividade prática está ancorada no questionamento pessoal e coletivo de normas que envolvem as práticas da gestão, demandando ir além do dito e do não dito, bem como do entendimento das questões políticas, sociais e econômicas inerentes ao contexto em que a gestão acontece (Cunliffe, 2016Cunliffe, A. L. (2016). On becoming a critically reflexive practitioner redux: what does it mean to be reflexive? Journal of Management Education, 40(6), 740-746.; Davel & C. A. D. Oliveira, 2018Davel, E. P. B., & Oliveira, C. A. D. (2018). A reflexividade intensiva na aprendizagem organizacional: uma autoetnografia de práticas em uma organização educacional. Organizações & Sociedade, 25(85), 211-228.).

2. VERTENTES DA FORMAÇÃO DO GESTOR PÚBLICO ESCOLAR

Para entender a formação do gestor público escolar no contexto brasileiro, é preciso situar o contexto no qual ela acontece, em especial após a Constituição de 1988, e a reforma estrutural pela qual o Estado brasileiro passou durante a década de 1990. Essa reforma, influenciada pelo movimento da Nova Gestão Pública (Camões, 2016Camões, M. R. S., & Meneses, P. P. M. (2016). Gestão de pessoas no Governo Federal: análise a partir da implementação da Política Nacional de Desenvolvimento de Pessoas. Brasília, DF: Fundação Escola Nacional de Administração Pública. Recuperado de https://bit.ly/3cdFSXJ.
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; F. B. Oliveira et al., 2010Oliveira, F. B., Sant’anna, A. S., & Vaz, S. L. (2010). Liderança no contexto da nova administração pública: uma análise sob a perspectiva de gestores públicos de Minas Gerais e Rio de Janeiro. Revista de Administração Pública, 44(6), 1453-1475.; Paz & Odelius, 2021Paz, L. M. C. Á., & Odelius, C. C. (2021). Escala de competências gerenciais em um contexto de gestão pública: desenvolvimento e evidências de validação. Organizações & Sociedade, 28(97), 370-397.), tem inspiração nas ideias e nas práticas do setor privado de orientação liberal, em que o foco está na redução de custos e na gestão eficaz (Emery & Giauque, 2005Emery, Y., & Giauque, D. (2005). Emploi dans les secteurs public et privé: vers un processus confus d’hybridation. Revue Internationale des Sciences Administratives, 71(4), 681-699.), sob o ponto de vista econômico-financeiro (K. P. Oliveira & Paula, 2014Oliveira, K. P., & Paula, A. P. P. de (2014). Hebert Simon e os limites do critério de eficiência na Nova Administração Pública. Cadernos Gestão Pública e Cidadania, 19(64), 113-126.).

Com novos métodos de controle do trabalho, os servidores públicos sentem que estão sendo prejudicados e passam a perder autonomia no desenvolvimento profissional para atender as exigências impostas, implementadas por meio de ferramentas destinadas a padronizar, otimizar e controlar o trabalho sob a lógica gerencialista (Kletz, Hénaut, & Sardas, 2014Kletz, F., Hénaut, L., & Sardas, J. C. (2014). New public management and the professions within cultural organizations: one hybridization may hide another. International Review of Administrative Sciences, 80(1), 89-109.).

O campo da gestão escolar pública também se constituiu, inicialmente, sob a influência das teorias clássicas da administração de empresas, as quais depois se desdobram em perspectivas críticas (Moura & Bispo, 2021Moura, E. O., & Bispo, M. de S. (2021). Compreendendo a prática da gestão escolar pela perspectiva da sociomaterialidade. Organizações & Sociedade, 28(96), 125-152.).

Na vertente clássica, sob a óptica dos principais expoentes da Administração Escolar, temos Carneiro Leão, Querino Ribeiro, Anísio Teixeira e Benno Sander, que apresentavam a concepção de diretor como “defensor da política educacional”. Esse dirigente escolar era considerado um representante oficial do Estado, antes mesmo de suas funções como educador, assumindo um papel de chefe de uma repartição oficial (a escola pública), que deve responder às demandas governamentais (Souza, 2017bSouza, A. R. (2017b, outubro). As teorias da gestão escolar e sua influência nas escolas públicas brasileiras. Revista de Estudios Teóricos y Epistemológicos en Política Educativa, 2, 1-19.).

Para Miguel Arroyo e Vitor Paro, críticos desse modelo de Administração Escolar, a aplicação da administração científica nas escolas contribui para a manutenção das condições econômicas, sociais e políticas da sociedade. Segundo eles, o entendimento do processo de gestão e os instrumentos de controle eram reconhecidos como uma tarefa para garantir a produtividade e o eficiente desempenho dos trabalhadores da educação, semelhantes aos de um gerente numa empresa orientado para os resultados econômico-financeiros (Souza, 2017bSouza, A. R. (2017b, outubro). As teorias da gestão escolar e sua influência nas escolas públicas brasileiras. Revista de Estudios Teóricos y Epistemológicos en Política Educativa, 2, 1-19.).

As teorias sob as vertentes clássicas não condizem totalmente com a realidade. Existe um hibridismo que só pôde ser percebido nos estudos empíricos. Souza (2006Souza, A. R. (2006). Os dirigentes escolares no Brasil. Educação - Teoria e Prática, 15(27), 51-82.) destaca que, apesar de várias perspectivas, o perfil e as práticas do diretor escolar não equivalem por completo ao prescrito no período clássico, pois o diretor escolar público não é um administrador no sentido aplicado a empresas nem conduz um processo apenas técnico-administrativo, como argumenta a versão crítica, haja vista que questões de ordem político-pedagógica fazem parte da gestão escolar e demandam uma gestão democrática.

“A gestão democrática não é só um princípio pedagógico; é também um preceito constitucional” (Gadotti, 2014Gadotti, M. (2014). Gestão democrática da educação com participação popular no planejamento e na organização da educação nacional. In Anais da Conferência Nacional de Educação, Brasília, DF., p. 14). O primeiro artigo da Constituição Federal de 1988Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. (1998). Brasília, DF. Recuperado dehttp://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm
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estabelece que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”, inaugurando uma nova ordem jurídica e política no país, que se desenvolveu sob dois pilares: a democracia representativa e a democracia participativa (direta), compreendendo a participação social como princípio inerente à democracia. Segundo Souza (2017aSouza, A. R. (2017a). As condições de democratização da gestão da escola pública brasileira. In Anais do 13º Congresso Nacional de Educação, Curitiba, PR.), as condições de gestão democrática nas escolas públicas no Brasil estão em processo de desenvolvimento, ou seja, a gestão democrática se caracteriza como um exercício constante de planejamento e implementação de práticas de incentivo à participação social.

Refletir o planejamento em educação, numa perspectiva de gestão democrática, implica redefinir sua função e sua forma de desenvolvimento e organização, na visão do planejamento participativo. Em contraposição aos modelos burocratizados de planejamento, baseados numa visão instrumental e técnica, o planejamento participativo incentiva processos e práticas participativas, coletivas, com vistas a transformar, e não a legitimar, o já dito, o já feito, o já pensado (Gadotti, 2014Gadotti, M. (2014). Gestão democrática da educação com participação popular no planejamento e na organização da educação nacional. In Anais da Conferência Nacional de Educação, Brasília, DF.).

A escola é um espaço de convívio social e formativo. As pessoas que a frequentam têm ideias e pensamentos diferentes, tornando-a, consequentemente, um ambiente diverso e complexo, o que desencadeia uma série de conflitos (Poubel & Junquilho, 2019Poubel, L., & Junquilho, G. S. (2019). Para além do management: o processo de managing em uma escola pública de ensino fundamental no Brasil. Cadernos EBAPE.BR, 17(3), 539-551.) dos quais o gestor atuará como mediador (Junquilho, Almeida, & Silva, 2012). Diante desse cenário, a formação de gestores passa a ser vista como essencial para a preparação de como lidar com os contextos complexos, adversos e dinâmicos da escola, rompendo com a lógica autoritária, individualista, e remetendo às decisões coletivamente responsáveis e partilhadas (Machado, 2008Machado, M. A. (2008). Desafios a serem enfrentados na capacitação de gestores escolares. Em Aberto, 17(72), 97-112.).

Esse cenário impõe também aos processos formativos de gestores novas maneiras e estratégias de promover o conhecimento, pois, além de adquiri-lo, é necessário saber aplicá-lo e adaptá-lo às novas informações dentro do contexto escolar. O aprendizado coletivo se torna mais importante à medida que valoriza os ganhos de autonomia institucional e o desenvolvimento profissional.

Diante do estudo de Souza (2017bSouza, A. R. (2017b, outubro). As teorias da gestão escolar e sua influência nas escolas públicas brasileiras. Revista de Estudios Teóricos y Epistemológicos en Política Educativa, 2, 1-19.), a visão sobre a formação dos gestores escolares está atrelada às vertentes clássicas e críticas. Há quem defenda uma formação técnica específica para o diretor, entendendo que suas funções divergem das exercidas pelos professores (Ribeiro, 1938Ribeiro, J. Q. (1938). Fayolismo na administração das escolas públicas. São Paulo, SP: Linotechnica., 1978Ribeiro, J. Q., & Meneses, J. G. C. (1978). Ensaio de uma teoria da administração escolar. São Paulo, SP: Saraiva.). Há também quem argumente em favor de uma formação essencialmente educativa (Paro, 2009Paro, V. H. (2009). Formação de gestores escolares: a atualidade de José Querino Ribeiro. Educação & Sociedade, 30(107), 453-467., 2011Paro, V. H. (2011). Escolha e formação do diretor escolar. Cadernos de Pesquisa - Pensamento Educacional, 6(14), 36-50.), baseada somente na formação do curso de pedagogia, desconsiderando a formação em gestão como necessária para gerir uma escola, uma vez que ela pode ser aprendida no cotidiano escolar.

Numa perspectiva híbrida entre as apresentadas, Wittmann e Gracindo (2001Wittmann, L. C., & Gracindo, R. V. (2001). Políticas e gestão da educação (1991-1997). Brasília, DF: MEC/Inep.) recomendam que a formação do diretor escolar seja constituída de uma formação básica sólida em educação, que compõe um dos cursos entre as diversas licenciaturas; de uma qualificação específica e técnica em gestão educacional; e de uma formação continuada, visando associar conhecimentos e experiências, assim como aprimorar o desempenho pessoal e institucional.

A formação do gestor escolar é um dos principais alvos de reflexão, por ser elemento crítico para o alcance da qualidade no ambiente escolar. Cabe ao gestor romper com a passividade de apenas responder às demandas dos órgãos centrais, como funcionário burocrático do sistema, e atuar como representante político-social da educação por uma gestão escolar aberta, participativa e engajada com os anseios da sociedade (Abrucio, 2018Abrucio, F. L. (2018). Uma breve história da educação como política pública no Brasil. In D. L. Dalmon, C. Siqueira, & F. M. Braga (Orgs.), Políticas educacionais no Brasil: o que podemos aprender com casos reais de implementação. São Paulo, SP: Edições SM.; Moura & Bispo, 2021Moura, E. O., & Bispo, M. de S. (2021). Compreendendo a prática da gestão escolar pela perspectiva da sociomaterialidade. Organizações & Sociedade, 28(96), 125-152.).

O Documento Final da Conferência Nacional de Educação (2010) traz uma menção de que a participação deve ser promovida por meio da formação cidadã. Levando em consideração os anseios e os processos de mobilização social nos últimos tempos, o Plano Nacional de Educação tem por objetivo articular a educação formal com experiências de educação não formal, alinhando as experiências de educação popular e cidadã, na busca da incorporação de políticas públicas em rede.

As redes fazem parte da vida humana em sociedade; elas podem ser percebidas como estruturas acessíveis em que novos “nós” se agregam, desde que se identifiquem e compartilhem os mesmos códigos, o que nos leva a refletir sobre os mesmos princípios, valores, ideais. A lógica colaborativa das redes requer diálogo, articulação de ações e gestão compartilhada (Gadotti, 2014Gadotti, M. (2014). Gestão democrática da educação com participação popular no planejamento e na organização da educação nacional. In Anais da Conferência Nacional de Educação, Brasília, DF.).

Ainda segundo Gadotti (2014Gadotti, M. (2014). Gestão democrática da educação com participação popular no planejamento e na organização da educação nacional. In Anais da Conferência Nacional de Educação, Brasília, DF.), hoje, a participação em rede se amplia com a disseminação dos meios de comunicação, principalmente pelas tecnologias digitais. No Brasil, a participação popular está mais vinculada às redes sociais, conduzidas por ampla horizontalidade, entretanto ainda pouco utilizadas pelas políticas educacionais. A construção de redes e fóruns representa uma alternativa estratégica para envolver cada vez mais pessoas, sobretudo na tão esperada reforma educacional.

Neste trabalho, propõe-se uma possibilidade de interlocução com o estado viabilizada pela rede de gestores escolares, uma forma de alimentar as necessidades da rede local de maneira integrada e contínua; não periódicas e de “consulta”, e sim dialogada e participativa, por meio da reflexividade prática.

3. REFLEXIVIDADE: UMA POSSIBILIDADE À BUROCRACIA PÚBLICA

Entender a polissemia dos significados possíveis sobre reflexividade é o primeiro passo para explorar suas possibilidades e poder lançar mão de uma base para a transformação organizacional na esfera pública por meio de ações mais críticas, responsáveis e éticas (Cunliffe & Jun, 2005Cunliffe, A. L., & Jun, J. S. (2005). The need for reflexivity in public administration. Administration & society, 37(2), 225-242.).

Os estudos sobre reflexividade perpassaram várias ciências, como a antropologia, a história, a sociologia e a psicologia (Ashmore, 1989Ashmore, M. (1989). The reflexive thesis: wrighting sociology of scientific knowledge. Chicago, IL: University of Chicago Press.; Clifford & Marcus, 1986Clifford, J., & Marcus, G. E. (ed.). (1986). Writing culture: the poetics and politics of ethnography-a School of American Research advanced seminar. Los Angeles, CA: University of California Press.; Foucault, 2002Foucault, M. (2002). The order of things: an archaeology of the human sciences. London, UK: Routledge.; Latour, 1988Latour, B. (1988). The politics of explanation: an alternative. In S. Woolgar (Ed.). Knowledge and reflexivity: new frontiers in the sociology of knowledge. London, UK: SagePublications.). Na administração pública, também é possível encontrar alguns trabalhos (Farmer, 1995Farmer, D. J. (1995). The language of public administration: bureaucracy, modernity, and postmodernity. Tuscaloosa, AL: University of Alabama Press.; Jun, 1994Jun, J. S. (1994). Philosophy of administration. Seoul, South Korea: Daeyoung Moonhwa International.). No entanto, nessa área, o reconhecimento do impacto da reflexividade ainda é incipiente, talvez por confusão sobre o tema ou por ser difícil implementar atos reflexivos em instituições burocráticas (Cunliffe & Jun, 2005Cunliffe, A. L., & Jun, J. S. (2005). The need for reflexivity in public administration. Administration & society, 37(2), 225-242.).

Os termos “reflexão” e “reflexividade” podem apresentar no senso comum significados semelhantes, mas têm pressupostos epistemológicos e ontológicos distintos (Cunliffe, Aguiar, Góes, & Carreira, 2020). A ideia objetiva da reflexão está baseada na lógica de uma realidade original em que pensamento e ação são separados. A reflexividade, sob a influência dos estudos de Schon (1984Schon, D. A. (1984). The reflective practitioner: how professionals think in action. New York, NY: Basic books.), trata o processo como refletindo em ação, incorporando o discurso à prática por meio do pensamento mais crítico que conduz à construção de novas realidades sociais.

“Reflexão” pode ser denominada como pensamento calculista, ao passo que “reflexividade” pode ser entendida como pensamento mediativo. A primeira está preocupada com o objetivismo, a neutralidade e a racionalidade; tem uma ontologia objetivista, em que a realidade social acontece independente de nós. Nessa perspectiva, nascemos numa sociedade em que devemos aprender as regras para nos tornarmos membros efetivos (Cunliffe & Jun, 2005Cunliffe, A. L., & Jun, J. S. (2005). The need for reflexivity in public administration. Administration & society, 37(2), 225-242.). Por outro lado, a reflexividade tem uma ontologia intersubjetivista e uma epistemologia da construção social em que não estamos separados da realidade social, podendo modificá-la à medida que nos afastamos, analisamos e criticamos, a fim de compreender sua complexidade (Cunliffe et al., 2020). Assim, a reflexividade vai além do problema, do calcular e mensurar soluções; ela questiona e explora a construção dos laços e das redes organizacionais de forma coletiva.

As abordagens críticas da reflexividade têm origem em perspectivas pós-estruturalistas e pós-modernas, com pressupostos para pensar mais criticamente sobre políticas e práticas acadêmicas, organizacionais e sociais. Cunliffe e Jun (2005Cunliffe, A. L., & Jun, J. S. (2005). The need for reflexivity in public administration. Administration & society, 37(2), 225-242.) apresentam duas abordagens da reflexividade para atender à gestão pública: autorreflexividade e reflexividade crítica.

A autorreflexividade tem por base a compreensão do próprio papel na construção da vida social e organizacional. Ela acontece de maneira mais profunda que o refletir sobre uma situação ou problema; é imergir em nossos pressupostos, valores e fundamentos de interação (Cunliffe et al., 2020). Por meio desse processo de se autocriticar, tornamo-nos mais receptivos aos outros, gerando novas possibilidades de atuação.

Lash (1993Lash, S. (1993). Pierre Bourdieu: cultural economy and social change. In C. Calhoun, E. LiPuma, & M. Postone (Eds.), Bourdieu: critical perspectives. Chicago, IL: University of Chicago Press .) define autorreflexividade como perspectiva humanística e acredita que o indivíduo é capaz de questionar os meios e os fins da ação, envolvendo-se conscientemente no ato. O indivíduo se abre a novas possibilidades de mudança quando reconhece as limitações de metas impostas. É o que Freire (2011Freire, P. (2011). Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra.) chama de consciência crítica. Dessa forma, constitui um movimento sócio-ontológico, à medida que reconhece o impacto das próprias práticas e de suas relações na construção da realidade.

Já a reflexividade crítica se baseia na premissa da responsabilidade ética nas ações nos níveis organizacionais e sociais. Essa premissa surge em detrimento de uma sociedade hegemônica, composta de conhecimento normatizado, regras definidas, poder e disciplina exercida pelas instituições que envolvem ideologias dominantes. Funcionários e gestores não questionam as práticas normativas que, por vezes, privilegiam alguns em prejuízo de outros (Cunliffe & Jun, 2005Cunliffe, A. L., & Jun, J. S. (2005). The need for reflexivity in public administration. Administration & society, 37(2), 225-242.). No entanto, quando há um praticante reflexivo, podem-se desenvolver novas formas de pensar sobre essas práticas de normatização, controle e disciplina, criando práticas mais equitativas, e implementar as condições necessárias para o fomento de uma gestão pública ética, mais democrática e socialmente relevante, transformando-se em reflexividade prática.

A reflexividade prática compreende o uso do questionamento dessas normas padronizadas, além do dito e do não dito, do entendimento das questões políticas, sociais e econômicas inerentes ao contexto, e de que forma isso afeta global e localmente a realidade (Cunliffe, 2016Cunliffe, A. L. (2016). On becoming a critically reflexive practitioner redux: what does it mean to be reflexive? Journal of Management Education, 40(6), 740-746.) - nesse caso, o contexto educacional.

Nessa perspectiva, a teoria se baseia na construção das realidades sociais e em nossas interações ligadas por um processo contínuo em torno de nós enquanto falamos e agimos. Significa dizer que a prática dialógica reflexiva retrabalha o conhecimento como knowing-from-within, isto é, “conhecendo por dentro”, “internamente”, compreendendo a situação no que fazemos e dizemos (Shotter, 1993Shotter, J. (1993). Conversational realities: constructing life through language. London, UK: Sage Publications., p. 18). Portanto, a aprendizagem pode ser entendida como incorporada, relacional-responsiva em que somos struck, ou seja, atingidos, e não apenas como uma aprendizagem cognitiva (Wittgenstein, 1980, p. 85).

Na Figura 1, Cunliffe (2002Cunliffe, A. L. (2002). Reflexive dialogical practice in management learning. Management learning, 33(1), 35-61.) explica como pode acontecer a aprendizagem incorporada e relacional entre conhecimento tácito (conversa diária e ações incorporadas) e conhecimento explícito (formas teóricas) numa área de possibilidades e compreensões abertas.

FIGURA 1 DIÁLOGO
REFLEXIVO

Podemos ser struck (vide Figura 1) de forma incorporada e tácita (a), recorrendo ao uso de conhecimento tácito ou explícito; de formas prática ou teórica, ao falar para construir nossa experiência, envolvendo a aprendizagem e dando sentido às nossas ações reflexivas, ligando a teoria e a prática no diálogo reflexivo consigo e com os outros. De igual modo, podemos ser atingidos por conhecimento explícito e (b) conectar as formas tácitas de agir. Central para esse ponto é o diálogo reflexivo que faz com que formas teóricas de conversação sejam usadas para o desenvolvimento de novas formas de falar e atuar no cotidiano, fazendo uso do explícito para o tácito.

Percebemos o sentido apenas de uma parte, mas não entendemos o todo (c). A experiência ocorre de dentro para fora, e pode-se até sentir as possibilidades, mas não é possível dar sentido à experiência, pois nesse ponto não temos linguagem, conhecimento ou habilidade para agir. Podemos agir inconscientemente (d) e de forma tão espontânea que não podemos questionar. Um exemplo nesse ponto é como algum aspecto emocional pode influenciar nossas reações. Podemos ter sido atingidos momentaneamente (e), mas não ficamos marcados por esse tipo de conhecimento, as conexões não foram suficientes para incorporar o conhecimento.

Nesse caso, Morgan (1986Morgan, G. (1986). Images of organization. Thousand Oaks, CA: Sage.) propõe o uso de metáforas para criticar e criar formas de conversação. O impacto dessa perspectiva na aprendizagem da gestão está na mudança de foco de uma conversa teórica sobre a prática para uma conversa dialógica, ágil na prática (Cunliffe, 2002Cunliffe, A. L. (2002). Reflexive dialogical practice in management learning. Management learning, 33(1), 35-61.).

Dessa maneira, nesta pesquisa, a reflexividade prática pode ser compreendida como estratégia de transformação na formação escolar que visa auxiliar o gestor no seu dia a dia, por meio dos diálogos reflexivos com os diversos atores da prática escolar. Ela possibilita aos gestores promover a democratização por meio do diálogo e da ressignificação do contexto em que a escola está inserida, proporcionando mais autonomia e dando voz às pessoas para que contribuam e atuem no seu espaço ativamente.

4. PERCURSO METODOLÓGICO

Esta pesquisa tem caráter qualitativo (Merriam & Tisdell, 2015Merriam, S. B., & Tisdell, E. J. (2015). Qualitative research: a guide to design and implementation. San Francisco, CA: John Wiley & Sons.) e o objetivo de interpretar experiências e significados atribuídos pelos gestores escolares durante seu processo de capacitação num módulo das formações continuadas da Secretaria de Educação Estadual da Paraíba, realizado em 2017. O módulo sobre a organização do trabalho pedagógico foi oferecido entre os dias 8 e 10 de março, com carga horária de 24 horas, contando com a participação de 35 gestores e da primeira autora deste artigo.

A construção dos dados da pesquisa ocorreu por meio de observação participante (Serva & Jaime, 1995Serva, M., & Jaime, P., Jr. (1995). Observação participante pesquisa em administração: uma postura antropológica. Revista de Administração de Empresas, 35(3), 64-79.), de fotos e vídeos do curso de formação, bem como de anotações reflexivas no diário de campo. Esse método apresentou como vantagem a proximidade com os sujeitos da pesquisa e a vivência deles como gestores escolares, proporcionando maior conhecimento da prática observada (Machado & Boruchovitch, 2015Machado, A. C. T. A., & Boruchovitch, E. (2015). As práticas autorreflexivas em cursos de formação inicial e continuada para professores. Psicologia Ensino & Formação, 6(2), 54-67.). Os três dias de curso foram gravados, e as, falas transcritas. Além disso, notas de campo foram construídas.

Não estabelecemos categorias, a priori (Merriam & Tisdell, 2015Merriam, S. B., & Tisdell, E. J. (2015). Qualitative research: a guide to design and implementation. San Francisco, CA: John Wiley & Sons.), e a interpretação dos dados como apresentada na Figura 2 se iniciou com a reunião de todos os dados construídos durante o curso, como anotações do diário de campo, material didático disponibilizado na recepção, vídeos, fotos, bem como atividades apresentadas pelos gestores. Acompanhamos também conversas informais no grupo de WhatsApp dos gestores criado pela turma de gestores em formação.

FIGURA 2
FRAMEWORK DO PROCESSO DE ANÁLISE DA REFLEXIVIDADE PRÁTICA

Durante o curso, atentamo-nos na identificação de momentos que evidenciavam os diálogos reflexivos (Cunliffe, 2002Cunliffe, A. L. (2002). Reflexive dialogical practice in management learning. Management learning, 33(1), 35-61.; Cunliffe et al., 2020) dos gestores escolares, em especial quando percebíamos os strucks de modo incorporado à prática, comparando o que estava sendo tratado no curso com a realidade de trabalho deles. Portanto, a interpretação dos resultados aconteceu por meio da análise da ressignificação das práticas pelos gestores realizadas no cotidiano da escola e na formação.

Por parte dos autores, o processo de interpretação e análise foi simultâneo às experiências, e não categorizado ou estático, à medida que foram strucks diante do olhar atento a tudo que acontecia; foram destacados e anotados os momentos e as conexões, que se fixaram como marcantes. Com base nas evidências dialógicas, fomos analisando em que medida a capacitação, em partes imbuída de conhecimento explícito-teórico, correspondia às necessidades práticas (conhecimento tácito) desses gestores.

A troca de experiências por meio dos diálogos fomenta a reflexividade. Num contexto de formação continuada com periodicidade anual, pode-se perceber aprendizagem relacional e reflexiva. Pode-se imaginar essa prática de forma contínua, a fim de subsidiar estratégias, conteúdo programático, práticas de gestão e políticas públicas. Essas interações emergiam nos relatos dos gestores se remetendo às experiências vivenciadas no cotidiano escolar e destacavam quanto o que estava sendo oferecido (curso) tinha relação com o que eles faziam na prática.

No que diz respeito aos aspectos éticos, solicitamos autorização por escrito da Secretaria de Educação para acompanhamento e participação nos processos formativos no Centro de Formação dos Profissionais de Educação (Cecapro), assim como todos os envolvidos na capacitação. A fim de preservar os participantes da pesquisa e garantir o anonimato, os diretores participantes da formação foram identificados por meio de códigos (D1, D2, D3, ...).

5. UM NOVO OLHAR PARA A FORMAÇÃO DA GESTÃO ESCOLAR À LUZ DA REFLEXIVIDADE

As formações continuadas de profissionais da educação acontecem anualmente na Paraíba. Nesta seção, apresentamos um recorte da formação continuada dos diretores que se mostra como um achado aplicado à reflexividade prática com base em experiência no módulo “Organização do trabalho pedagógico”, que tratou dos temas relativos às áreas de atuação da gestão escolar (projeto político-pedagógico, currículo, práticas de gestão, desenvolvimento profissional e avaliação institucional interna), além de regimento escolar, projeto de intervenção pedagógica e indicadores de qualidade da gestão (PIP).

Em 8 de março de 2017, o professor (ministrante) iniciou a aula junto aos gestores escolares com a técnica do brainstorming e solicitou que todos respondessem com uma palavra: “Qual é a função da escola na sociedade? Para que existe a escola e o que desenvolve na sociedade? [...] Todos devem estar lembrados de que, na primeira etapa, falamos sobre três grandes eixos que correspondem à função da escola”. D11 1 Plataforma para apoio e acompanhamento da situação das escolas da rede estadual paraibana. respondeu: “Preparar o sujeito para exercer sua cidadania” e D2 acrescentou: “A escola existe hoje para transformar e ampliar habilidades que fazem o sujeito não ser apenas repetidor de ideias, mas um transformador de ideias”.

Com essas falas, é possível perceber que a escola tem um papel incomensurável na vida dos sujeitos, e é preciso repensar seu papel sob a óptica da reflexividade, com “entendimentos subjetivos da realidade como base para pensar de forma mais crítica sobre o impacto de nossos pressupostos, valores e ações sobre os outros” (Cunliffe, 2004Cunliffe, A. L. (2004). On becoming a critically reflexive practitioner. Journal of Management Education, 28(4), 407-426., p. 407).

O professor prosseguiu a reflexão e a busca pelo entendimento dos diversos papéis que a escola assume e que, às vezes, são distorcidos. A escola existe como um espaço no qual temos acesso ao conhecimento e à informação de que fazemos uso para nossa vida. Muitas vezes, escutamos que a escola deve preparar para a vida. Quando se diz isso, somos levados a entender que a escola é algo fora da vida e que, portanto, saímos da vida para aprender a voltar para ela (Libâneo, 2013Libâneo, J. C. (2013). O sistema de organização e gestão da escola: organização e gestão da escola-teoria e prática (4a ed.). Goiânia, GO: Alternativa.).

“A escola é a própria vida”, disse o professor (Notas de Campo, 2017). Entretanto, ela constitui apenas uma parcela da educação. A educação envolve, em sua primeira instância, os pais e a família, os diversos espaços sociais e culturais que permeiam a vida e a construção de entendimento de um sujeito. Em meio a toda essa conjuntura, em determinado período, a escola perpassa a vida do sujeito. No entanto, muitas vezes, assume-se as instituições educacionais como redentoras da humanidade, papel que não pode ser exercido por ela, pois a educação é um fenômeno multidimensional do qual a escolarização é apenas um dos elementos.

Esse momento de pensar que a escola é a própria vida fez os participantes do curso refletirem sobre como entendemos a escola, o trabalho, a universidade como ambientes externos à nossa vida “pessoal”, quando na verdade eles são parte da própria vida. Nesses espaços, relacionamo-nos com outras pessoas e construímos nossa teia social. Então, por meio desse diálogo reflexivo (Cunliffe, 2016Cunliffe, A. L. (2016). On becoming a critically reflexive practitioner redux: what does it mean to be reflexive? Journal of Management Education, 40(6), 740-746.), podemos repensar nossa própria prática, imbricada no contexto, nos sentidos que são dados de forma relacional e situacional.

O professor continuou: “A escola hoje é reconhecida como o quê? Como um espaço de conflitos, como um espaço de tensões”. Luck (2011Luck, H. (2011). Mapeamento de práticas de seleção e capacitação de diretores escolares. São Paulo, SP: Fundação Victor Civita .) trata dessa mudança de paradigma em que antes o ambiente de trabalho e o comportamento humano eram previsíveis, e a incerteza, a ambiguidade, a tensão e o conflito, considerados disfunções. Hoje, o ambiente é dinâmico, imprevisível, com conflitos e incertezas (Poubel & Junquilho, 2019Poubel, L., & Junquilho, G. S. (2019). Para além do management: o processo de managing em uma escola pública de ensino fundamental no Brasil. Cadernos EBAPE.BR, 17(3), 539-551.). Esses mesmos conflitos permeiam a todo momento a organização escolar e fazem parte dos desafios da gestão democrática, que tem como princípio dar voz aos envolvidos (Souza, 2017aSouza, A. R. (2017a). As condições de democratização da gestão da escola pública brasileira. In Anais do 13º Congresso Nacional de Educação, Curitiba, PR.).

O professor apresentou ainda os três papéis fundamentais da escola: o compromisso com a formação da pessoa humana, o compromisso com a formação da cidadania e o compromisso com a preparação para inserção do mercado de trabalho. Paro (2011Paro, V. H. (2011). Escolha e formação do diretor escolar. Cadernos de Pesquisa - Pensamento Educacional, 6(14), 36-50.) questiona esse terceiro papel da educação como meio de manutenção de poder e dominação de poucos. Para o autor, essa esfera passa a ser preponderante no fazer da educação, já que aloca os concluintes em postos de trabalho com pequenas chances de mobilidade social, principalmente nos espaços públicos.

Diante desses três papéis fundamentais, de que maneira a escola os atinge? Para que cumpra esses papéis, ela precisa de alguns elementos, meios e instrumentos. O professor continuou argumentando que esses meios, esses instrumentos e essas condições que fazem a escola manter sua função legal são a organização do trabalho social. A maneira como esses meios, essas condições e esses instrumentos são articulados dependerá de como se conduz essa organização. Por conseguinte, a forma de conduzir a escola para que ela atinja sua função social é a gestão (Notas de Campo, 2017). Assim, a gestão da escola envolve o processo de organização dos meios, de condições necessárias para que a escola se encaminhe no cumprimento de sua função social (Luck, 2008Lück, H. (2008). Perspectivas da gestão escolar e implicações quanto à formação de seus gestores. Em Aberto, 17(72), 11-33., 2009).

Gadotti (2014Gadotti, M. (2014). Gestão democrática da educação com participação popular no planejamento e na organização da educação nacional. In Anais da Conferência Nacional de Educação, Brasília, DF.), em contraposição, argumenta que ainda se dá muita ênfase a meios, métodos e técnicas que caracterizam a educação tecnicista e utilitarista, entendendo a questão filosófica e política dos fins da educação como algo já resolvido. Para ele, “não se relacionam meios e fins”. Avançamos em metodologias, testes e processos de avaliação, entretanto sem refletir sobre o sentido do que se está avaliando.

Durante algumas conversas informais com os diretores, muitos relataram não ter tempo para se dedicar às questões pedagógicas, pois precisam atender a demandas urgentes das secretarias, a conflitos entre alunos e professores, de modo que pouco se fazia sobre a pedagogia em si. Segundo Gadotti, “parece que a pergunta sobre os fins da educação foi esquecida”.

Paro (2011Paro, V. H. (2011). Escolha e formação do diretor escolar. Cadernos de Pesquisa - Pensamento Educacional, 6(14), 36-50.) apresenta essa distinção de conceito entre administração e gestão apontando que se deve levar em consideração a função social que a escola exerce. Por isso, utilizamos e identificamos, durante a formação, a abordagem da reflexividade prática, que reconhece e amplia o papel dos praticantes, além das rotinas compartilhadas entre eles. Dessa forma, a gestão é analisada com base nas tensões como uma reflexão da complexidade social no processo organizativo (Souza, 2017aSouza, A. R. (2017a). As condições de democratização da gestão da escola pública brasileira. In Anais do 13º Congresso Nacional de Educação, Curitiba, PR.).

Quando falamos de gestão, tendemos a limitar o alcance dessa dimensão à tarefa meramente administrativa, que é a da competência do diretor escolar, do gestor. Mas gestão é bem mais amplo do que isso. Envolve toda a tomada de decisões com relação ao que fazer na escola, como fazer, com quem fazer; envolve professores, equipe pedagógica e diretiva, pais e comunidade escolar. Há uma dimensão da comunidade, uma dimensão pedagógica, uma dimensão institucional e, evidentemente, uma dimensão administrativo-financeira da gestão (Professor ministrante).

Compreendendo a complexidade que o conceito de gestão escolar carrega, o professor lançou mão de metáforas, como apontado por Morgan (1986Morgan, G. (1986). Images of organization. Thousand Oaks, CA: Sage.), para esclarecer o conceito de gestão e fazer repensar a harmonia de suas ações, como entendido por Cunliffe (2016Cunliffe, A. L. (2016). On becoming a critically reflexive practitioner redux: what does it mean to be reflexive? Journal of Management Education, 40(6), 740-746.):

Por exemplo, podemos comparar a figura do diretor de escola ou do gestor escolar à tarefa de uma espécie de maestro que procura articular todos esses processos. O maestro muitas vezes tem a maiêutica prática. Quando falo da maiêutica prática, falo das condições e dos meios para que a orquestra aconteça (Professor ministrante).

D3 interrompeu, argumentando:

Acredito que a ideia do curso seja legal, mas seria interessante, antes de você falar sobre isso, dizer algo sobre o que é ser diretor do estado, como é ser um gestor onde não se tem nada: não tem papel, não tem lápis [...] Você não tem nada, certo? Como é ser um gestor onde tem um funcionário burro, que foi jogado lá por um político, e é preciso ficar calado por causa desse funcionário? Acho interessante a abordagem que o senhor fez, mas primeiro é saber a realidade que a gente está vivendo. O que esses cursos vão avaliar? O que vão monitorar? Agora mesmo a gente tem que terminar o quadro [de funcionários]. Se não fechar o quadro e os professores não receberem o dinheiro, vai ser uma confusão grande (D3).

As dificuldades da gestão escolar são iminentes e, a todo o momento, sobressaem durante a formação por meio de questionamentos dos gestores sobre como as solucionar. Tais complexidades, apresentadas por Luck (2009Luck, H. (2009). Dimensões da gestão escolar e suas competências. Curitiba, PR: Positivo.), muitas vezes fazem parte do sistema de políticas públicas educacionais, desorientam o gestor e geram conflitos nas relações com os diversos agentes da rede. Porém, assim como qualquer outra organização, o processo de gestão requer gerir recursos e pessoas em prol de um propósito, cabendo à escola o desenvolvimento formal e social dos alunos (Poubel & Junquilho, 2019Poubel, L., & Junquilho, G. S. (2019). Para além do management: o processo de managing em uma escola pública de ensino fundamental no Brasil. Cadernos EBAPE.BR, 17(3), 539-551.). O desenvolvimento da gestão também é reconhecido pelos diretores escolares, conforme ressalta D4: “Precisamos ver a parte administrativa. É importante vermos a teoria para saber como estamos longe de como poderia ser”.

No que toca aos aspectos teóricos sobre gestão, com base nos diálogos reflexivos, Cunliffe (2002Cunliffe, A. L. (2002). Reflexive dialogical practice in management learning. Management learning, 33(1), 35-61., 2016) reconhece a importância da conversão do conhecimento explícito para o tácito, ou seja, da teoria à prática, quando ela explica que, de forma incorporada e tácita, podemos recorrer ao uso de conhecimento e de formas práticas ou teóricas de falar para construir nossa experiência, envolvendo a aprendizagem e dando sentido às nossas ações reflexivas no diálogo com o próprio agente e seu entorno. Assim, alguns diretores reconhecem a necessidade de conhecimentos sobre gestão, entretanto as questões urgentes com prazos curtos sobressaem às práticas planejadas, como já apontado por Moura e Bispo (2021Moura, E. O., & Bispo, M. de S. (2021). Compreendendo a prática da gestão escolar pela perspectiva da sociomaterialidade. Organizações & Sociedade, 28(96), 125-152.).

O professor acrescentou que a formação foi organizada às pressas e que, apesar da consulta feita aos ministrantes, o material foi elaborado e enviado apenas com uma semana de antecedência, para que ele pudesse preparar a formação. De toda forma, ele levou em consideração os questionamentos dos diretores e reprogramou a agenda para atender às demandas da turma. Reforçou ainda o impacto de questões políticas: “Da etapa [de formação anterior] para cá, 500 diretores foram substituídos.” Em 2017, havia 442 diretores e 324 vice-diretores escolares públicos na Paraíba.

A mudança mencionada se deveu à decisão política do estado de que o provimento de cargo de diretor voltaria a ser por indicação. Segundo Passador e Salvetti (2013Passador, C. S., & Salvetti, T. S. (2013). Gestão escolar democrática e estudos organizacionais críticos: convergências teóricas. Educação & Sociedade, 34(123), 477-492., p. 6), essa prática “é altamente criticável por abrir caminhos ao clientelismo e apadrinhamento político, além da volátil vinculação aos ciclos políticos”. Essa alteração foi realizada para o estado obter barganha política em razão de a prefeitura da capital, João Pessoa, também ter sido modificada para regime de indicação política. O governo do estado e o município da capital tinham governantes de bandeiras partidárias diferentes, de modo que havia uma disputa de poder entre eles (Notas de campo, 2017). Assim, ter aliados em cargos de confiança era prioritário para a manutenção do poder (Rodrigues et al., 2020Rodrigues, D. S., Faroni, W., Santos, N. D. A., Ferreira, M. A. M., & Diniz, J. A. (2020). Corruption and mismanagement in spending on education: socioeconomic and political factors. Revista de Administração Pública, 54(2), 301-320.). As consequências dessas mudanças no cargo de direção prejudicam a continuidade das práticas no contexto escolar, e esses diretores passam simplesmente a cumprir as exigências do governante que os colocou lá (Passador & Salvetti, 2013).

A fala de D4, ao alertar que “o ponto de hoje, e do qual todo mundo aqui precisa, se chama gerenciamento de conflito”, destaca um papel considerado um dos mais relevantes para os diretores (Junquilho et al., 2012Junquilho, G. S., Almeida, R. A. D., & Silva, A. R. L. D. (2012). As “artes do fazer” gestão na escola pública: uma proposta de estudo. Cadernos EBAPE.BR, 10(2), 329-356.; Luck, 2011Luck, H. (2011). Mapeamento de práticas de seleção e capacitação de diretores escolares. São Paulo, SP: Fundação Victor Civita .). A escola é um ambiente diverso e complexo, com sujeitos de pensamentos e ações diferentes que desencadeiam uma série de conflitos, sendo o gestor o mediador deles (Souza, 2017aSouza, A. R. (2017a). As condições de democratização da gestão da escola pública brasileira. In Anais do 13º Congresso Nacional de Educação, Curitiba, PR.).

O debate sobre a Reforma do Ensino Médio, já presente em 2017 - e que iniciou efetivamente em 2021 na Paraíba -, com o advento da nova Base Nacional Curricular Comum (BNCC), também deixou os diretores ansiosos. As mudanças muitas vezes acontecem de cima para baixo, ou seja, pelos órgãos superiores, sem a consulta aos gestores, assim como o conteúdo curricular da formação. Assim, o professor confirmou:

Vão ter que oferecer na escola os chamados percursos formativos promulgados na constituição de emenda aprovada para LDB. Imagino como vai ser esse processo com essas condições que vocês estão dizendo para mim e que a gente conhece, diante dessa condição marcada pela precariedade (Professor ministrante).

O discurso da precariedade está muito presente na fala dos gestores, mas ela não se manifesta apenas em infraestrutura. O Governo da Paraíba adotou política transnacional de “terceirização” da educação com sistema de responsabilização dos professores e dos gestores por meio do Índice de Desenvolvimento de Educação da Paraíba (Ideb-PB), teste aplicado com os alunos da educação básica, e do Programa Soma, pacto entre municípios e governo para o aumento dos índices educacionais, dirigidos pelo Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação (Caed/UFJF), que desenvolve e aplica ações de planejamento, organização e correção de ações, baseadas nos índices educacionais, além de realizar formação de profissionais e técnicos da educação (D. A. Oliveira & Clementino, 2020Oliveira, D. A., & Clementino, A. M. (2020). As políticas de avaliação e responsabilização no Brasil: uma análise da educação básica nos estados da região Nordeste. Revista Iberoamericana de Educación, 83(1), 143-162.). Dessa forma, o controle das políticas educacionais do estado fica centralizado no Caed.

Ademais, destacam-se programas de bonificação para atingimento dessas metas, como Prêmios Escola de Valor e Mestres da Educação, que beneficiam os alunos e os professores que atingem as melhores notas nos exames. Convém também uma observação quanto ao fato de apenas profissionais efetivos poderem ser contemplados com essas bonificações, embora 50% dos profissionais da educação do estado sejam contratados como temporários por tempo determinado (D. A. Oliveira & Clementino, 2020Oliveira, D. A., & Clementino, A. M. (2020). As políticas de avaliação e responsabilização no Brasil: uma análise da educação básica nos estados da região Nordeste. Revista Iberoamericana de Educación, 83(1), 143-162.).

No curso, alguns diretores trataram ainda da insatisfação e da desunião da categoria dos gestores escolares, que atuam de maneira individualizada. Existe uma explicação por trás dessa falta de união, justificada pela distorção de interpretação dos índices como Ideb e Ideb-PB (Vasconcelos et al., 2020Vasconcelos, C. R. D., Leal, I. O. J., & Araújo, J. A. Q. de C. (2020). Nexos entre gestão, avaliação e o índice de desenvolvimento da educação básica (Ideb) em escolas públicas. Revista On-line de Política e Gestão Educacional, 24(1), 55-70.), sendo utilizados como instrumento de competitividade entre as escolas. Esses índices estão sendo aplicados como parâmetro para definir se o aluno ingressa ou não na escola e, a partir dessa distorção, perdem sua finalidade (Notas de campo, 2017).

Tais questões, que estão nas entrelinhas da prática, só podem ser percebidas no tempo e no espaço em que seus atores a realizam (Lash, 1993Lash, S. (1993). Pierre Bourdieu: cultural economy and social change. In C. Calhoun, E. LiPuma, & M. Postone (Eds.), Bourdieu: critical perspectives. Chicago, IL: University of Chicago Press .). Na verdade, o Ideb, por exemplo, avalia apenas as notas de português e matemática pela Prova Brasil e não aborda os diversos critérios que podem definir de fato uma educação de qualidade (Ribeiro, 2015Ribeiro, P. (2015). Ideb: avanço ou retrocesso à educação brasileira? O que dizem os artigos publicados em periódicos entre 2007-2014? Polêmica, 14, 65-72.; Vieira, Vidal, & Nogueira, 2015Vieira, S. L., Vidal, E. M., & Nogueira, J. F. F. (2015). Gestão da aprendizagem em tempos de Ideb: percepções dos docentes. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, 31(1), 85-106.). “De que qualidade estamos falando e de que educação estamos falando?”, Gadotti (2014Gadotti, M. (2014). Gestão democrática da educação com participação popular no planejamento e na organização da educação nacional. In Anais da Conferência Nacional de Educação, Brasília, DF., p. 14) nos faz refletir quando questiona a definição de qualidade da educação. Para o autor, preocupamo-nos muito com a qualidade da educação - e precisamos, sim, nos preocupar - mas, primeiro, precisamos saber qual “qualidade” almejamos.

Essa qualidade perpassa infraestrutura, qualificação dos profissionais da educação, recursos disponíveis, gestão democrática e, consequentemente, nível de aprendizagem dos alunos. Contudo, esses aspectos não são situados e não levam em consideração o contexto social para a geração de índices de avaliação da educação (Luck, 2009Luck, H. (2009). Dimensões da gestão escolar e suas competências. Curitiba, PR: Positivo., 2011; Vasconcelos et al., 2020Vasconcelos, C. R. D., Leal, I. O. J., & Araújo, J. A. Q. de C. (2020). Nexos entre gestão, avaliação e o índice de desenvolvimento da educação básica (Ideb) em escolas públicas. Revista On-line de Política e Gestão Educacional, 24(1), 55-70.) sem a participação dos agentes (Gadotti, 2014Gadotti, M. (2014). Gestão democrática da educação com participação popular no planejamento e na organização da educação nacional. In Anais da Conferência Nacional de Educação, Brasília, DF.). O que se constata é a utilização do Ideb, um dos principais índices educacionais, como parâmetro para competição entre as escolas, e não para sua melhoria (Notas de campo, 2017).

A terceirização da educação na Paraíba ainda se deu por meio da contratação de Organizações Sociais (OSs) (Notas de campo, 2017). As OSs tinham por objetivo apoiar os gestores escolares na gestão educacional e na contratação de pessoal como assistente escolar, cuidador de alunos, eletricista, motorista, técnico de informática, entre outros. Entretanto, essas contratações foram alvo de investigação por indícios de corrupção por parte do Ministério Público, e em 2020, com o novo governo, os contratos com essas OSs foram encerrados. A terceirização e a descentralização da gestão são características da Nova Gestão Pública (Kletz et. al., 2014Kletz, F., Hénaut, L., & Sardas, J. C. (2014). New public management and the professions within cultural organizations: one hybridization may hide another. International Review of Administrative Sciences, 80(1), 89-109.), contudo já existe um estudo que mostra que esses mecanismos não reduzem o tamanho do Estado. Na verdade, seus “custos” são outros (não financeiros) e podem ser mais altos (Alonso, Clifton, & Díaz-Fuentes, 2015Alonso, J. M., Clifton, J., & Díaz-Fuentes, D. (2015). Did new public management matter? An empirical analysis of the outsourcing and decentralization effects on public sector size. Public Management Review, 17(5), 643-660.).

Por outro lado, investimentos em infraestrutura foram fortemente realizados durante o governo anterior (2011 a 2018), como mostra a fala da diretora da Suplan: “Só este ano [2017], na Paraíba, estamos entregando 55 escolas reformadas”. Durante a formação, o ex-governador frisou: “Estamos semeando mudanças na nossa estrutura social por meio da educação, já que só por meio dela poderemos dar um futuro melhor para os filhos do povo. Investir na rede pública é devolver a dignidade para o ambiente escolar” (Curso de Formação da Paraíba, 2017).

Essas questões refletem quanto é volátil a educação, com legislações sendo reformadas, decisões políticas sendo sobrepostas, alterações na base curricular, alteração no provimento de cargo de direção e de estrutura das escolas, sistemas sendo implementados, enfim, mudanças significativas que trazem na fala dos gestores certa resistência às mudanças, como registrado na fala de D5: “Vai ter a mudança para escolas integrais e não estão nos preparando nesse curso para essa escola modelo que vem no próximo ano”.

Como se percebe, não há nexos entre planejamento e alinhamento da formação com a realidade do contexto escolar, das peculiaridades de cada escola; não há comunicação efetiva e previsão de planejamento para as práticas de formação; não há construção em rede que interligue os meios aos fins (Gadotti, 2014Gadotti, M. (2014). Gestão democrática da educação com participação popular no planejamento e na organização da educação nacional. In Anais da Conferência Nacional de Educação, Brasília, DF.). Eles são decididos, e posteriormente se analisam como serão implementados (Notas de campo, 2017).

É da Secretaria Estadual de Educação que advêm as principais demandas dos gestores: alimentação do Sistema Saber1 com quantitativo de alunos, notas, frequência, assiduidade dos professores, prestação de contas, entre outras. Como relatado, esse canal escola-secretaria tem muitos ruídos e se torna uma via de mão única, como encontrado nos achados de Poubel e Junquilho (2019Poubel, L., & Junquilho, G. S. (2019). Para além do management: o processo de managing em uma escola pública de ensino fundamental no Brasil. Cadernos EBAPE.BR, 17(3), 539-551.). Diante de todas as colocações, o professor ministrante fez uma proposta à turma:

Tenho uma sugestão: a elaboração de uma carta para a secretaria de educação. Ao mesmo tempo que se reconhece a importância que se dá no processo de formação, entende-se que esses processos de formação devem considerar as demandas existentes e imediatas das escolas, mas também a capacitação para lidar com problemas reais e concretos do nosso dia a dia que precisam ser superados. Se a gente for capaz de produzir essa carta, será capaz de produzir muita coisa nesse curso. Vamos manifestar o reconhecimento da iniciativa, mas a insuficiência dela para lidar com questões que envolvem a vontade política da gestão, a destinação de recursos e encaminhamentos necessários (Professor ministrante).

Essa proposição do professor em escreverem de forma coletiva uma carta representa sair do plano imaginário da reflexão e partir para a ação, ou seja, é neste momento que se inicia o processo de reflexividade (Cunliffe, 2004Cunliffe, A. L. (2004). On becoming a critically reflexive practitioner. Journal of Management Education, 28(4), 407-426., 2016): quando questionamos o que nós e outros podemos dar por certo - o que está sendo dito e não dito - e examinamos o impacto que isso tem ou pode ter. Isso significa examinar nossos próprios pressupostos, decisões, ações, interações, bem como os pressupostos que sustentam políticas e práticas organizacionais e o impacto pretendido (Cunliffe et al., 2020Cunlife, A. L., Aguiar, A. C., Góes, V., & Carreira, F. (2020). Radical refexivity and transdisciplinarity as paths to developing responsible management education. In D. C. Moosmayer, O. Laasch, C. Parkes, & K. Brown (Eds.), The Sage handbook of responsible management learning and education. London, UK: Sage.).

Ao final do curso, os diretores dialogaram sobre a importância de unirem as escolas da comunidade, realizarem benchmarking2 2 Benchmarking é um instrumento de gestão que permite a uma organização se espelhar em melhores práticas de outras e tentar adaptá-las em seu contexto. e implementarem juntos práticas em comum, fortalecendo o laço entre eles e construindo uma rede da solidariedade, ou rede de gestores (Notas de Campo, 2017). Essa ideia de rede de caráter relacional e fluida corrobora o conceito de managing (Cunliffe, 2016Cunliffe, A. L. (2016). On becoming a critically reflexive practitioner redux: what does it mean to be reflexive? Journal of Management Education, 40(6), 740-746.) aplicado ao contexto da gestão escolar brasileira por Poubel e Junquilho (2019Poubel, L., & Junquilho, G. S. (2019). Para além do management: o processo de managing em uma escola pública de ensino fundamental no Brasil. Cadernos EBAPE.BR, 17(3), 539-551.) como um fenômeno reconstruído de “fazer gestão”. Entretanto, não existem relatos de que essas redes de colaboração estejam institucionalizadas (Gadotti, 2014Gadotti, M. (2014). Gestão democrática da educação com participação popular no planejamento e na organização da educação nacional. In Anais da Conferência Nacional de Educação, Brasília, DF.).

O que se propõe com este estudo é que essa “Rede de Gestores” seja uma prática (Moura & Bispo, 2021Moura, E. O., & Bispo, M. de S. (2021). Compreendendo a prática da gestão escolar pela perspectiva da sociomaterialidade. Organizações & Sociedade, 28(96), 125-152.) que propicie diálogos reflexivos (Cunliffe, 2006Cunliffe, A. L. (2016). On becoming a critically reflexive practitioner redux: what does it mean to be reflexive? Journal of Management Education, 40(6), 740-746.; Cunliffe et al., 2020Cunlife, A. L., Aguiar, A. C., Góes, V., & Carreira, F. (2020). Radical refexivity and transdisciplinarity as paths to developing responsible management education. In D. C. Moosmayer, O. Laasch, C. Parkes, & K. Brown (Eds.), The Sage handbook of responsible management learning and education. London, UK: Sage.) sobre desafios, perspectivas e tendências da gestão da escola, que leve os gestores a se questionarem como podem atuar num contexto plural e complexo com as ferramentas disponíveis, angariando parcerias com outras escolas e instituições, atuando em projetos em comum e partilhando das mesmas dificuldades e anseios.

Esse processo organizativo precisa se desenvolver em nexo com as políticas públicas educacionais (agentes políticos) e ter participação ativa (Gadotti, 2014Gadotti, M. (2014). Gestão democrática da educação com participação popular no planejamento e na organização da educação nacional. In Anais da Conferência Nacional de Educação, Brasília, DF.) nas tomadas de decisão no que diz respeito à educação local. Segundo Rodrigues et al. (2020Rodrigues, D. S., Faroni, W., Santos, N. D. A., Ferreira, M. A. M., & Diniz, J. A. (2020). Corruption and mismanagement in spending on education: socioeconomic and political factors. Revista de Administração Pública, 54(2), 301-320.), quanto maior o nível de escolaridade do gestor responsável pela pasta de educação, menor a incidência de corrupção e má gestão nos gastos com o ensino básico nos municípios, aspectos que comprometem a qualidade da educação e podem ser acompanhados por mecanismo democráticos e mais participação dos gestores nas tomadas de decisão e em definição de políticas educacionais.

Assim, quanto mais os agentes envolvidos no “fazer gestão” democrático - gestor escolar, gestor da secretaria da educação, agente político, pais, professores, profissionais da educação, conselho escolar e sociedade civil organizada - forem capacitados para a cidadania, instruídos para participação e, acima de tudo, atuarem em redes colaborativas (Gadotti, 2014Gadotti, M. (2014). Gestão democrática da educação com participação popular no planejamento e na organização da educação nacional. In Anais da Conferência Nacional de Educação, Brasília, DF.), mais se aproximarão do que é uma educação de qualidade. Com isso, haveria mais acompanhamento, fiscalização, e, portanto, práticas mais éticas, transparentes, coletivas e participativas (Cunliffe, 2016Cunliffe, A. L. (2016). On becoming a critically reflexive practitioner redux: what does it mean to be reflexive? Journal of Management Education, 40(6), 740-746.; Paro, 2011Paro, V. H. (2011). Escolha e formação do diretor escolar. Cadernos de Pesquisa - Pensamento Educacional, 6(14), 36-50.; Poubel & Junquilho, 2019Poubel, L., & Junquilho, G. S. (2019). Para além do management: o processo de managing em uma escola pública de ensino fundamental no Brasil. Cadernos EBAPE.BR, 17(3), 539-551.).

6. REFLEXÕES E PROPOSIÇÕES ACERCA DA FORMAÇÃO DE GESTORES ESCOLARES

Durante o acompanhamento das formações, esses achados nos permitiram refletir e propor ações que se aproximem de uma política de formação reflexiva. Pode-se perceber que, durante a formação, o professor atuou como mediador reflexivo e adaptou o tema proposto pela programação inicial. Durante os encontros, o professor abriu espaço para diálogos reflexivos sobre o contexto educacional e perspectivas futuras, e, ao final do último dia, durante a proposição da carta, os diretores elaboraram um quadro com os seguintes questionamentos, ilustrados no Quadro 1.

QUADRO 1
PROPOSIÇÃO DE FORMAÇÃO PELOS GESTORES

O estudo aponta que reflexões e pesquisas sobre a formação dos gestores escolares demandam mais atenção das políticas públicas educacionais e dos agentes políticos (Poubel & Junquilho, 2019Poubel, L., & Junquilho, G. S. (2019). Para além do management: o processo de managing em uma escola pública de ensino fundamental no Brasil. Cadernos EBAPE.BR, 17(3), 539-551.; V. G. Santos & Keller-Franco, 2020Santos, V. G., & Keller-Franco, E. (2020). A formação do gestor educacional e os desafios da atuação profissional. Revista Laplage, 6(2), 2446-6220.). Com relação ao processo de formação, elencamos alguns apontamentos para a preparação dos gestores quanto aos desafios do “fazer gestão” democrático.

Atuar por meio da reflexividade prática “deve considerar que o problema moral prático básico na vida não é o que fazer, mas [quem] ser [...]” (Shotter, 1993Shotter, J. (1993). Conversational realities: constructing life through language. London, UK: Sage Publications., p. 118). Assim, com a substituição de uma ontologia subjetiva por uma intersubjetiva, pode-se fomentar a reflexividade na formação dos gestores por meio de espaços que promovam diálogos autorreflexivos (Cunliffe & Jun, 2005Cunliffe, A. L., & Jun, J. S. (2005). The need for reflexivity in public administration. Administration & society, 37(2), 225-242.), com questões como: “O que é ser um gestor escolar?”; “O que tenho feito como gestor escolar?”; “Quais barreiras tenho enfrentado no dia a dia?”; “Como posso melhorar minha prática de gestão?”; “Com quem posso contar?”; “Quais ferramentas posso utilizar?”; “Tenho sido ético nas minhas práticas de gestão?”; “Assumo as responsabilidades que me são conferidas?”.

É necessário estabelecer também questões que levem à reflexão crítica do contexto educacional: “Qual é sua trajetória de formação?”; “Quais práticas de gestão você destacaria na sua escola?”; “Quais são as principais dificuldades como gestor?”; “Como avalia o contexto econômico, cultural e social da comunidade onde está inserida sua escola?”; “O que você, como gestor, tem feito para modificar e melhorar a realidade da sua comunidade escolar?”; “As políticas educacionais têm sido alinhadas com o seu contexto escolar?”.

Assim, programas de formação dos gestores escolares que se preocupem com o design da formação, ou seja, desde sua organização até modalidades e práticas desenvolvidas, podem apresentar um impacto positivo no desenvolvimento dos gestores e, por conseguinte, no contexto escolar local e situado. Como proposto aqui, autoquestionamento, autorreflexividade, planejamento participativo e reflexividade prática funcionam como chave para a regulação de futuras ações, promovendo, inclusive, a melhoria nas relações escolares entre gestores, secretarias, professores, funcionários e alunos.

7. CONCLUSÃO

Nosso objetivo neste artigo foi interpretar experiências e significados atribuídos pelos gestores escolares ao seu processo formativo. Podemos perceber que as formações não correspondem aos anseios e às dificuldades enfrentadas pelos gestores nas escolas. Os cursos de licenciatura dão pouca ou nenhuma atenção ao tema da gestão e a formação continuada não atende às expectativas dos gestores para atuar nas escolas. Dessa forma, buscamos compreender como os gestores enxergam esses processos formativos e o que eles propõem como possibilidades de mudanças e melhorias nesse processo.

Com a Nova Gestão Pública, os princípios de economicidade, eficiência e eficácia dos meios sobressaem aos fins. No campo educacional, a gestão democrática como princípio constitucional serve de guia para as ações políticas e de gestão, por isso a construção de uma gestão de qualidade deve passar pela formação cidadã e participativa direta dos envolvidos nas políticas públicas.

Ao analisar o processo de formação de gestores, esta pesquisa contribuiu empiricamente com questões que permitem refletir desde o planejamento até a implementação de políticas educacionais, analisando de que forma os diversos níveis educacionais podem contribuir para o processo de formação, criando uma rede integrada (Gadotti, 2014Gadotti, M. (2014). Gestão democrática da educação com participação popular no planejamento e na organização da educação nacional. In Anais da Conferência Nacional de Educação, Brasília, DF.) de formação inicial e continuada (Medeiros, 2019Medeiros, A. M. S. (2019). Formação de gestores na/para educação básica: gestão democrática e diversidade. Laplage em Revista, 5, 56-70.).

A contribuição teórica desta pesquisa está no entendimento da reflexividade no contexto das formações dos gestores públicos escolares, assim como estratégia de ensino (Relatório de Política Educacional do Instituto Unibanco, 2021Simielli, L., Santos, A. F., & Plank, D. (2021). Desenvolvimento profissional de diretores escolares: análise das experiências da África do Sul e do Canadá (Ontário). Relatório de Política Pública Educacional. Rio de Janeiro, RJ: Instituto Unibanco. Recuperado de https://d3e.com.br/wp-content/uploads/2021/06/RPE_2106_FormacaoDiretores.pdf
https://d3e.com.br/wp-content/uploads/20...
) para formar gestores públicos autorreflexivos críticos (Cunliffe, 2016Cunliffe, A. L. (2016). On becoming a critically reflexive practitioner redux: what does it mean to be reflexive? Journal of Management Education, 40(6), 740-746.; Cunliffe et al., 2020Cunlife, A. L., Aguiar, A. C., Góes, V., & Carreira, F. (2020). Radical refexivity and transdisciplinarity as paths to developing responsible management education. In D. C. Moosmayer, O. Laasch, C. Parkes, & K. Brown (Eds.), The Sage handbook of responsible management learning and education. London, UK: Sage.). Além disso, contribuiu para o entendimento da gestão como uma prática integrada ao contexto social, cultural e histórico, situada e desenvolvida à medida que as decisões são tomadas por seus praticantes (Gherardi, 2006Gherardi, S. (2006). Organizational knowledge: the texture of workplace learning. Oxford, UK: Blackwell Publishing.). Partimos do pressuposto de que essa prática é conflituosa e de que a participação das pessoas nos processos em que vivem permite nos aproximar do que seria uma gestão democrática em articulação com o Estado.

Buscou-se, com este estudo, compreender as experiências vivenciadas pelos agentes da educação pública escolar, em especial os gestores no seu processo formativo, processo este tão importante e caro para uma educação de qualidade. Como disse professor Ângelo numa conferência, “a gestão democrática não abre mão da técnica” e não deve ser confundida com gerencialismo, por isso precisamos encontrar caminhos para desenvolvê-la. Contudo, nosso estudo se manteve restrito às proposições das redes participativas dos gestores públicos escolares, em determinado espaço de tempo, o que nos abre um leque de outras possibilidades.

Desse modo, sugere-se como investigações futuras estabelecer uma agenda de pesquisa de análise da formação de gestores públicos sob a lente da reflexividade prática (Cunliffe et al., 2020Cunlife, A. L., Aguiar, A. C., Góes, V., & Carreira, F. (2020). Radical refexivity and transdisciplinarity as paths to developing responsible management education. In D. C. Moosmayer, O. Laasch, C. Parkes, & K. Brown (Eds.), The Sage handbook of responsible management learning and education. London, UK: Sage.), em outras esferas de nível federal e municipal e com outros agentes públicos, assim como em redes de ensino de referência no país. Sugerimos ainda estudos que permitam compreender, em sentido mais amplo, os diversos aspectos que envolvem o desenvolvimento da gestão escolar, questões como recrutamento, seleção, estrutura de carreira, políticas de avaliação e remuneração. Pode-se também estabelecer uma agenda de estudos para avaliar o processo de implementação e desenvolvimento da Matriz Nacional Comum de Competências do Diretor Escolar, instituído pelo Conselho Nacional de Educação, documento norteador do MEC para as próximas formações. Por fim, há possibilidades de estudos comparados internacionalmente, ou seja, analisar como outros países têm desenvolvido políticas de formação a fim de propor alternativas para o contexto brasileiro.

AGRADECIMENTOS

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001, CNPq (Edital Universal 2018), FAPESQ (Edital Demanda Universal 2021) e Universidade Federal da Paraíba (Edital Produtividade em Pesquisa 2021).

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  • 1
    Plataforma para apoio e acompanhamento da situação das escolas da rede estadual paraibana.
  • 2
    Benchmarking é um instrumento de gestão que permite a uma organização se espelhar em melhores práticas de outras e tentar adaptá-las em seu contexto.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Mar-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    26 Jun 2021
  • Aceito
    16 Mar 2022
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