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Editorial

A administração pública como uma prática milenar, cujos resquícios históricos se encontram em qualquer marca civilizatória da humanidade, organizada em busca de segurança, bem-estar e harmonia social, é substancialmente distinta da administração pública como um campo de conhecimento sistematizado. Esse campo foi responsável por responder intelectualmente aos desafios impostos pela consolidação da burocracia pública, em vários contextos nacionais caracterizados por um papel de Estado em expansão, desde o final do século XIX. É a partir desse período que a administração pública começa a se voltar para a separação entre política e administração e para a compreensão das tensões resultantes da sobreposição desta instituição com tendências autoritárias (a burocracia) à ideia, então revolucionária, da soberania popular e da democracia.

Ao longo de décadas, as "tensões" inerentes ao campo de administração pública têm inspirado uma fértil produção acadêmica que se distingue nos seus interesses de pesquisa de outras áreas de conhecimento, como ciência política, administração de empresas, sociologia, entre tantas outras, mas, ao mesmo tempo, também se aproxima dessas comunidades acadêmicas na tentativa de legitimar um campo de conhecimento em constante busca de autoridade científica. A proliferação de programas acadêmicos, de revistas científicas e de inúmeras tentativas de "autoavaliação" com o objetivo de validar o caráter "científico" dessa produção intelectual são apenas alguns indícios dessa busca de legitimidade.

A Revista de Administração Pública (RAP) da FGV/Ebape surge em 1967, poucas décadas depois de revistas paradigmáticas internacionais como a Public Administration ou Public Administration Review, direcionando para o contexto brasileiro os principais temas e debates de interesse da comunidade acadêmica e prática de administração pública. Desde então, a RAP vem desempenhando um papel histórico em termos de construção de conhecimento em administração pública no país. Sua contribuição acadêmica é amplamente reconhecida, o que é corroborado por sua classificação no extrato A2 não apenas no Qualis da área de administração, ciências contábeis e turismo, mas também de ciência política e relações internacionais e planejamento urbano e regional/demografia. O prestígio acadêmico da revista reflete-se também nos indexadores nacionais e internacionais - Cabell's, Clase, Diadorim, Doaj, Ebsco, Gale, LatAm-Studies, Latindex, Lilacs, Proquest, Redalyc, Redib, SciELO Brasil, Scopus, Sherpa/Romeo, SPELL - nos quais está registrada e nos expressivos acessos que recebe (mais de 15 mil ao mês). Esses são apenas alguns dos indicadores que apontam sua qualidade e seu posicionamento no campo.

O reconhecimento atual da RAP é resultado de vários fatores, entre os quais se destacam: a) o apoio institucional da Fundação Getulio Vargas (FGV) e da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape) em termos de recursos humanos, financeiros e materiais, identificando na revista um componente institucional agregador à missão da escola; b) o conjunto de editores que se dedicou, ao longo de décadas, à revista, contribuindo para o processo de construção de um veículo acadêmico comprometido com a qualidade de debates em administração pública; e c) a comunidade-referência da RAP - um conjunto de pesquisadores dedicados a temáticas de administração pública, de pareceristas que avaliam voluntariamente centenas de trabalhos submetidos e, principalmente, de leitores que consomem, transferem e retroalimentam um constante fluxo de ideias, temas e debates centrais para os diálogos que fundamentam o processo de construção de conhecimento em administração pública.

É nesse contexto institucional que recebo, com muita honra e responsabilidade, a função de editora da Revista de Administração Pública. Entre as boas práticas editoriais que "herdei" do professor Peter Spink, que atuou ao longo dos últimos cinco anos como editor da revista, assino o meu compromisso com a transparência dos processos editoriais. A RAP, talvez ainda de forma inédita entre seus pares nacionais, prima por um processo guiado pelos princípios de transparência, adotando a avaliação dupla-cega desde o processo de desk-review até sua aceitação final para publicação. Assim como o professor Peter Spink já destacou, espero transformar essa experiência de editoria em aprendizagem sobre os rumos e as tendências da área de administração pública no Brasil e no mundo.

Os editoriais que acompanham a publicação dos novos números da revista servirão como canal de comunicação com a comunidade-referência da RAP. Buscando aprimorar o processo de avaliação e estimular uma estratégia proativa de atração de trabalhos voltados para uma maior identidade com o campo de administração pública, convidei novos membros da comunidade acadêmica a se juntarem ao Corpo Editorial, ao lado dos dois atuais editores adjuntos (Fernando G. Tenório e Marco Antonio C. Teixeira): Ricardo Corrêa Gomes (UnB), Leonardo Secchi (Udesc) e Fernando Coelho (USP). Tenho confiança de que essa equipe de editores adjuntos, reconhecidos por sua atuação no campo de administração pública, ao lado da equipe permanente da revista, composta por Fabiana Braga Leal, coordenadora geral, e o assistente editorial Anderson do Nascimento Ricci, contribuirá para a melhoria contínua da qualidade de trabalhos publicados na revista.

Nestes primeiros meses de atuação na edição da RAP, trabalhei em um diagnóstico mais qualitativo dos trabalhos submetidos e veiculados para publicação na revista e tenho observado o desafio imposto pela busca de equilíbrio entre uma pressão quantitativa, reflexo do produtivismo acadêmico, e a qualidade de debates que focam a identidade da administração pública propriamente dita. A pressão quantitativa traduz-se no número expressivo de submissões que ainda carecem de problematizações adequadas de pesquisa, embora, por vezes, "simulem", em alguns aspectos formais, a retórica científica. Os problemas qualitativos podem ser observados na falta de um diálogo que resgate contribuições clássicas e contemporâneas do campo de administração pública, para identificar lacunas, sobreposições, falta de clareza ou ambiguidades que justifiquem novas propostas de pesquisa para o campo. Consequentemente, ainda se observam trabalhos que abordam a administração pública como um mero locus de pesquisa de campo.

O resultado dessa pressão traduz-se numa pauta diversificada de publicações na revista, que pode tornar-se um obstáculo ao estabelecimento de dialógicos temáticos, conceituais ou metodológicos - centrais para fundamentar uma pesquisa relevante e rigorosa em administração pública. Em busca dessa coerência, buscamos, neste primeiro número da RAP de 2016, integrar alguns artigos por um eixo comum - uma ênfase maior em fatores humanos e culturais em vários processos que permeiam a dinâmica do setor público.

O primeiro artigo, Motivação, satisfação profissional e evasão no serviço público: o caso da carreira de especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental, de Fabio Alvim Klein e André Ofenhejm Mascarenhas, apresenta uma visão alternativa teórica por meio da discussão dos fatores motivacionais extrínsecos e intrínsecos que afetam a evasão e satisfação nessa carreira modernizante para o setor público brasileiro. Os autores demonstram que a evasão é determinada, principalmente, por fatores extrínsecos relacionados à remuneração, enquanto a satisfação é determinada não apenas por fatores extrínsecos, mas, principalmente, por fatores intrínsecos ligados à natureza do trabalho. Os resultados da pesquisa indicam uma série de implicações práticas para a gestão de carreiras no setor público - um tema negligenciado na teoria e na prática deste setor.

Mudança organizacional e satisfação no trabalho: um estudo com servidores públicos do estado de Minas Gerais, de Antônio Luiz Marques, Renata Borges e Isabella do Couto Reis, tem como objetivo compreender as implicações da mudança organizacional nos níveis de satisfação no trabalho por meio da análise dos impactos de um dos instrumentos-chaves da reforma adotada pelo governo do estado de Minas Gerais: a avaliação do desempenho individual. Entre as conclusões, destacam-se a forma como a mudança é realizada e sua influência direta nos níveis de satisfação no trabalho.

Servicio civil en Chile, análisis de los directivos de primer nivel jerárquico (2003-13), de autoria de Bastián González-Bustamante, Alejandro Olivares L., Pedro Abarca e Esteban Molina, expõe os principais fatores que condicionam a seleção dos executivos públicos de alto escalão no Chile, tendo como foco uma experiência que tem sido discutida como benchmarking de seleção de gestores públicos de alto escalão na América Latina, o Sistema de Alta Dirección Pública.

(Im)Possibilidades da aplicação do Modelo de Excelência em Gestão Pública (MEPG), de Fernando Filardi, Angilberto Sabino de Freitas, Helio Arthur Irigaray e Ana Beatriz Ayres, apresenta uma análise dos resultados da aplicação do Modelo de Excelência em Gestão Pública na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), identificando uma série de barreiras culturais, burocráticas e de descontinuidade política que acarretam uma adoção parcial do modelo no âmbito de uma organização complexa e burocrática como a Fiocruz.

Pesquisa-ação e mediação dialógica como práticas metodológicas para emergência da ação comunicativa em Conselhos Gestores de Políticas Públicas, de Carla Beatriz Marques Rocha e Mucci e Rennan Lanna Martins Mafra, traz a análise de duas práticas metodológicas de suporte à participação nos espaços dos Conselhos Gestores de Políticas Públicas: a pesquisa-ação e a mediação dialógica. Os autores buscam compreender como essas práticas podem estimular a emergência da ação comunicativa em meio aos desenhos institucionais participativos desses conselhos. Embora o estudo indique que tais práticas constituem importantes mecanismos de qualificação dos espaços participativos formais, os autores também alertam para alguns riscos, como o da colonização dos espaços participativos por parte das instituições que as protagonizam.

Por fim, o artigo Capital social e políticas públicas: um estudo Comparado no Vale do Rio dos Sinos, de Everton Rodrigo Santos e Margarete Fagundes Nunes, demonstra, via pesquisa quantitativa e comparativa, que o capital social, próprio da cultura política local existente na região e na cidade, está associado à avaliação positiva das políticas públicas municipais. Em outras palavras, instituições políticas que encontram uma sociedade organizada e detentora de capital social, portanto fértil socialmente, possuem melhores condições de obter êxito em seus propósitos.

Este novo número da revista inaugura um novo fórum: Perspectivas Práticas, no qual serão apresentados trabalhos voltados à discussão de temas de relevância prática para o setor público e que estão na pauta atual dos debates no contexto brasileiro ou internacional. O objetivo desse fórum é atrair não apenas trabalhos de pesquisadores, mas também de lideranças e administradores públicos, buscando constituir uma ponte de diálogo entre essas duas comunidades. Neste número, será apresentado o artigo Transferências voluntárias da união para municípios brasileiros: mapeamento do cenário nacional, de autoria de José da Assunção Moutinho, que mapeia o cenário nacional das descentralizações, via transferências voluntárias, com vistas à identificação de possíveis concentrações. A indicação é de que há uma distribuição heterogênea de recursos entre os municípios do Brasil, com forte concentração na região Sul e uma taxa de liberação de propostas decorrentes de emendas parlamentares bem maior do que quando comparada àquela resultante dos editais da própria programática dos ministérios. Revela-se, aí, uma pauta de pesquisas futuras que deveriam explorar as razões dessa distribuição.

Termino o editorial com a divulgação de uma importante iniciativa promovida pela RAP no âmbito de uma estratégia mais proativa de promoção de pesquisas pautadas pelo rigor e pela relevância em administração pública: a realização, no dia 26 de fevereiro de 2016, da Oficina de Trabalho International Research in Public Administration: Building Bridges for Rigorous and Relevant Research, em cooperação com a equipe editorial do The Journal of Public Administration Research and Theory (JPART).

O JPART é a revista acadêmica mais reconhecida de administração pública, conforme os altos fatores divulgados em 2015 pela Journal Citation Reports. A oficina de trabalho buscará construir um espaço de diálogo da comunidade acadêmica brasileira, com a associação mantenedora da revista, a Public Management Research Association, buscando promover cooperação em pesquisas acadêmicas ao longo dos próximos anos. Os pesquisadores interessados podem entrar em contato via e-mail (rap@fgv.br) para maiores informações.

Boa leitura !

Alketa Peci

Editora - Chefe

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    Alketa Peci é doutora em administração e professora adjunta pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas. Editora chefe da Revista de Administração Pública - RAP. E-mail: alketa@fgv.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Feb 2016
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