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Baixos níveis de radiação ionizante causam câncer?

CARTA AO EDITOR

Baixos níveis de radiação ionizante causam câncer?

José Ulisses Manzzini Calegaro

Médico Chefe do Núcleo de Medicina Nuclear do Hospital de Base do Distrito Federal, Brasília, DF, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Dr. José U.M. Calegaro AOS 6, Bloco D, ap. 604 Brasília, DF, Brasil, 70660-064 E-mail: jcalegaro@uol.com.br

Recente publicação sobre câncer causado por raios-X diagnósticos, especialmente aqueles oriundos dos procedimentos de tomografia computadorizada, tornou-se um dos artigos mais lidos por radiologistas dos Estados Unidos(1). Abaixo transcreve-se parte da tabela utilizada:

O autor adota a extrapolação que tem sido efetuada dos efeitos biológicos de elevados e médios níveis de radiação ionizante para baixos níveis. Esta relação é de natureza linear e não admite dose de segurança: qualquer nível de radiação poderá causar efeito danoso, isto é, câncer. Está baseada no principio ALARA (as low as reasonable achievable), desenvolvido na década de 1970, pela limitação das informações cientificas disponíveis, mas ratificada recentemente pelo BEIR VII(2). Assim sendo, estima 1 em 1.000 a chance de desenvolver tumor com a dose de 10 mSv.

Há, todavia, um volume significativo de publicações mostrando que a célula reage à ação de baixos níveis da radiação ionizante, acionando uma série de mecanismos de proteção oportunamente analisados por Feinendegen e Pollycove(3,4). Há dois efeitos biológicos principais: 1) formação de radicais livres oxidantes pela radiólise da água, que corresponde a cerca de 60% dos eventos, porque ela se constitui no maior componente intracelular – eles reagem com macromoléculas intracelulares, alterando o metabolismo protéico e lipídico, por exemplo; 2) ação direta no DNA nuclear, correspondendo a 40% dos eventos, causando quebras na seqüência gênica, podendo gerar rupturas duplas na sua estrutura (formação de anéis e dicêntricos). Posteriormente, Britton(5) resumiu a reação biológica: 1) neutralização dos radicais oxidantes; 2) ativação do reparo nas alterações estruturais que possam ter ocorrido no DNA; 3) indução da apoptose caso haja sinais de inviabilidade celular; 4) ativação das respostas imunes, reconhecendo a célula danificada como estranha, por alterações da membrana.

O Gráfico 1 sumariza as duas situações: a relação linear hipotética e a reação não-linear com resposta celular adaptativa. Há controvérsias na definição de baixos níveis de radiação ionizante. É admissível considerar como referência áreas de elevados níveis de radiação natural anual, como Guarapari (7,4 mSv) e Meaipe (11,6 mSv) no Brasil e Kerala (60 mSv) na Índia(6). Estimando uma vida-média de 60 anos, teremos uma irradiação cumulativa entre 444 mSv e 3.960 mSv; não há evidência secular de dano genético ou somático nos milhões de pessoas que vivem nessas áreas. Sabe-se que o efeito biológico da dose cumulativa é menor que o de mesma atividade em dose única, mas há proporção entre ambas.


A Medscape, revista eletrônica, tem registrado manifestações de mães preocupadas com a possibilidade de ocorrência de leucemia em filhos submetidos a exames por tomografia computadorizada e, até, o relato de uma assinalando o tumor no filho anos após quatro procedimentos do gênero(7). Há, por outro lado, manifestações contrárias às opiniões de Semelka(8).

Recentemente, a Comissão Nacional de Energia Nuclear, por recomendações internacionais, diminuiu a dose anual efetiva de 50 mSv para 20 mSv nos indivíduos expostos ocupacionalmente e de 5 mSv para 1 mSv para a população geral(9). Seria mais razoável derivar esses limites das áreas com sedimentos monazíticos de elevada radiação natural existente, como a costa do estado do Espírito Santo. Caso contrário, será interessante saber qual o discriminante (atitude) que o órgão aplicará na região. Vale ressalvar que a radiação ionizante faz parte da natureza.

Agora, em 2006, o grupo de trabalho sobre Fiscalização e Segurança Nuclear da Câmara dos Deputados ignorou as informações científicas prestadas em plenário e adotou o princípio: "não há dose de radiação tão pequena que não produza um efeito colateral no organismo humano"(10).

Se nossas estruturas administrativas transformarem em lei recomendações internacionais, ou nossa estrutura política utilizar posturas de conveniência, ou até mesmo a estrutura científica vigente adotar e divulgar conceitos teóricos sem fundamento científico, estaremos alimentando a paranóia histriônica que se estabeleceu erroneamente com o efeito biológico de baixos níveis de radiação ionizante. É fundamental que se estabeleça discussão baseada em evidências científicas para evitar distorções como as que se observam quando esse tema é abordado.

REFERÊNCIAS

1. Semelka RC. Imaging x-rays cause cancer: a call to action for caregivers and patients. www.medscape.com/viewarticle/523000_1

2. Executive summary. In: Board on radiation effects research, division on earth and life studies, ed. Health risks form exposure to low levels of ionizing radiation; BEIR VII – Phase 2. Washington, DC: The National Academy, 2005.

3. Feinendegen L, Pollycove M. Biologic responses to low doses of ionizing radiation: detriment versus hormesis. Part 1. Dose responses of cells and tissues. J Nucl Med 2001;42:17N–27N.

4. Pollycove M, Finendegen L. Biologic responses to low doses or ionizing radiation: detriment versus hormesis. Part 2. Dose responses of organisms. J Nucl Med 2007;42:26N–32N.

5. Britton KE. The J-shaped response to radiation. World JN Med 2004;3:115–118.

6. Freire-Maia N. Radiogenética humana. São Paulo, SP: Edusp, 1972; 55–92.

7. Chevrier R. From the editor – June 2006: Mothers against silence about CT radiation risks (MASACRR). Medscape Radiology 2006;7(1).

8. Parkes Jr E. Letter to the editor: Regarding Dr. Semelka, CT scanning, and radiation. Medscape Radiology 2006;7(2).

9. Comissão Nacional de Energia Nuclear. Diretrizes básicas de proteção radiológica. Resolução nº 27, jan. 2005. Diário Oficial da União, 6/1/2005.

10. Relatório do Grupo de Trabalho: Fiscalização e Segurança Nuclear. Câmara dos Deputados, Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentáveis. Brasília, março de 2006, p.30–31.

  • Endereço para correspondência:

    Dr. José U.M. Calegaro
    AOS 6, Bloco D, ap. 604
    Brasília, DF, Brasil, 70660-064
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Set 2007
    • Data do Fascículo
      Ago 2007
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