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A população cirúrgica muito idosa em cuidados intensivos: características clínicas e desfechos

Resumo

Introdução:

A população idosa envolve um grupo muito heterogêneo de doentes, com um crescente número de doentes muito idosos a serem propostos para cirurgia. O objetivo do presente estudo foi avaliar a relação entre diferentes grupos etários e estados funcionais com os resultados cirúrgicos do doente idoso.

Métodos:

Estudo retrospectivo de coorte realizado em uma Unidade de Cuidados Intensivos Cirúrgica (UCIC) que incluiu um total de 2331 doentes cirúrgicos com idade ≥ 65 anos, entre 2006 e 2013. Os doentes foram agrupados de acordo com a idade: doentes idosos (65-85 anos); doentes muito idosos (DMI > 85 anos). Dados demográficos e perioperatórios foram registrados. Índice de Risco Cardíaco Revisto, scores de APACHE e SAPS II foram calculados e complicações pós-operatórias, documentadas. As variáveis foram comparadas em análise univariada.

Resultados:

A incidência de DMI foi de 5,4%. Este grupo foi mais frequentemente submetido à cirurgia não eletiva (22,4%vs.11,2%; p< 0,001), apresentou scores maiores de APACHE II (12,0vs.10,0; p< 0,001) e SAPS II (26,6 vs. 22,2; p< 0,001), maior incidência de insuficiência do órgão (24,6%vs.17,6%; p= 0,048) e uma mortalidade superior na UCIC (14,0%vs.5,2%; p= 0,026) e no hospital (9,3% vs.5,0%; p= 0,012).

Discussão:

Os piores resultados nos DMI podem refletir uma maior vulnerabilidade a complicações pós-operatórias, possivelmente relacionadas com múltiplas comorbilidades e uma reserva fisiológica diminuídas.

Conclusão:

Os doentes muito idosos representaram uma porção importante dos doentes admitidos na UCIC, tinham scores de gravidade mais elevados e maior prevalência de falência orgânica e foram mais frequentemente submetidos a cirurgias não eletivas. Tinham piores resultados relativamente à mortalidade durante a permanência na UCIC e no hospital.

PALAVRAS-CHAVE
Idosos; Cirurgia; Cuidados críticos; Complicações pós-operatórias; Mortalidade

Abstract

Background:

The elderly population is an especially heterogeneous group of patients with a rising number of surgical interventions being performed in the very elderly patient. The aim of this study was to evaluate the correlation between different age strata and functional status with the surgical outcome of the elderly patient.

Methods:

Retrospective cohort study conducted in a Surgical Intensive Care Unit (SICU), between 2006 and 2013. A total of 2331 surgical patients’ ≥ 65 years old were included. Patients were grouped according to age: Older Elderly Group (OEG: 65‒85 years old); Very Elderly Group (VEG > 85 years old). Demographic and perioperative data were recorded. Revised Cardiac Risk Index, APACHE II and SAPS II scores were calculated and postoperative complications were documented. Variables were compared on univariate analysis.

Results:

The incidence of the VEG was 5.4%. This group had a higher proportion of non-elective surgery (22.4% vs. 11.2%, p < 0.001), higher APACHE II (12.0 vs. 10.0, p < 0.001) and SAPS II (26.6 vs. 22.2, p < 0.001) scores, higher incidence of organ failure (24.6% vs. 17.6%, p = 0.048) and a higher mortality rate during SICU (14.0% vs. 5.2%, p = 0.026) and hospital stay (9.3% vs. 5.0%, p = 0.012).

Conclusion:

We found that very elderly patients represented a significant proportion of patients admitted to the SICU. They had higher severity scores with a higher prevalence of organ failure and were more likely to undergo non-elective surgery. They had worse outcomes in regarding mortality during SICU and hospital stay.

KEYWORDS
Elderly; Surgery; Critical care; Postoperative complications; Mortality

Introdução

A população mundial está envelhecendo. Com melhor atenção à saúde e mais qualidade de vida, a proporção de idosos está aumentando gradativamente, sobretudo nos países desenvolvidos.11 Muessig JM, Masyuk M, Nia AM, et al. Are we ever too old? Characteristics and outcome of octogenarians admitted to a medical intensive care unit. Medicine (Baltimore). 2017;96:e7776.,22 Ihra GC, Lehberger J, Hochrieser H, et al. Development of demographics and outcome of very old critically ill patients admitted to intensive care units. Intensive Care Med. 2012;38:620-6.

Tradicionalmente define-se como “idoso” o indivíduo na faixa etária de 65 ou mais anos. Atualmente, com uma expectativa de vida de 80 anos, esta definição de idoso que apenas inclui todas as pessoas acima de 65 anos talvez não seja mais adequada, especialmente em relação à saúde.33 Lee B, Na S, Park M, et al. Home return after surgery in patients aged over 85 years is associated with preoperative albumin levels, the type of surgery and APACHE II Score. World J Surg. 2017;41:919-26.,44 Orimo H, Ito H, Suzuki T, et al. Reviewing the definition of “elderly”. Geriatr Gerontol Int. 2006;6:149-58.

Em alguns estudos em saúde, os pacientes idosos foram subdivididos em diferentes grupos: “idoso jovem” com idade entre 65-75 anos, “idoso mais velho”, entre 75 e 85 anos, e “muito idoso” para aqueles com mais de 85 anos.33 Lee B, Na S, Park M, et al. Home return after surgery in patients aged over 85 years is associated with preoperative albumin levels, the type of surgery and APACHE II Score. World J Surg. 2017;41:919-26.,55 Conti M, Merlani P, Ricou B. Prognosis and quality of life of elderly patients after intensive care. Swiss Med Wkly. 2012;142:w13671.,66 Chelluri L, Pinsky MR, Grenvik AN. Outcome of intensive care of the “oldest-old” critically ill patients. Crit Care Med. 1992;20:757-61. Estima-se que este último grupo cresça mais rapidamente do que os demais.66 Chelluri L, Pinsky MR, Grenvik AN. Outcome of intensive care of the “oldest-old” critically ill patients. Crit Care Med. 1992;20:757-61.

Entre 2006 e 2014, triplicou o número de cirurgias nos pacientes com mais de 85 anos.33 Lee B, Na S, Park M, et al. Home return after surgery in patients aged over 85 years is associated with preoperative albumin levels, the type of surgery and APACHE II Score. World J Surg. 2017;41:919-26.Como a expectativa de vida está crescendo continuamente, e o envelhecimento está associado a maior prevalência de doenças crônicas e declínio funcional, ocorreu um aumento na taxa de hospitalização e mais pacientes idosos são submetidos a cirurgias.77 Levett DZ, Edwards M, Grocott M, et al. Preparing the patient for surgery to improve outcomes. Best Pract Res Clin Anaesthesiol. 2016;30:145-57.,88 Bagshaw SM, Webb SA, Delaney A, et al. Very old patients admitted to intensive care in Australia and New Zealand: a multi-centre cohort analysis. Crit Care. 2009;13:R45.

As complicações pós-operatórias representam importante causa de óbito e motivo para admissão na Unidade de Terapia Intensiva (UTI).99 Ghaferi AA, Birkmeyer JD, Dimick JB. Variation in hospital mortality associated with inpatient surgery. N Engl J Med. 2009;361:1368-75.,1010 Pearse RM, Moreno RP, Bauer P, et al. Mortality after surgery in Europe: a 7 day cohort study. Lancet. 2012;380:1059-65. Como o envelhecimento está associado a maior prevalência de comorbidades, os pacientes mais idosos tendem a apresentar mais eventos mórbidos.22 Ihra GC, Lehberger J, Hochrieser H, et al. Development of demographics and outcome of very old critically ill patients admitted to intensive care units. Intensive Care Med. 2012;38:620-6. A idade média de pacientes admitidos na UTI está aumentando constantemente e, em 2010, os pacientes muito idosos representaram mais de 10% das internações em UTI nos países desenvolvidos.11 Muessig JM, Masyuk M, Nia AM, et al. Are we ever too old? Characteristics and outcome of octogenarians admitted to a medical intensive care unit. Medicine (Baltimore). 2017;96:e7776.

Apesar de idade ser considerada um fator de risco independente considerável para mortalidade intra-hospitalar e na UTI, há outros fatores que podem influenciar no prognóstico, como o estado funcional do paciente.88 Bagshaw SM, Webb SA, Delaney A, et al. Very old patients admitted to intensive care in Australia and New Zealand: a multi-centre cohort analysis. Crit Care. 2009;13:R45.,1111 Haq A, Patil S, Parcells AL, et al. The Simplified Acute Physiology Score III Is Superior to the Simplified Acute Physiology Score II and Acute Physiology and Chronic Health Evaluation II in Predicting Surgical and ICU Mortality in the “Oldest Old”. Curr Gerontol Geriatr Res. 2014;2014:934852.

Para pacientes admitidos na UTI, existem diversos modelos de risco utilizados para quantificar a gravidade da doença e prever o desfecho. O Acute Physiology and Chronic Health Evaluation (APACHE) II e Simplified Acute Physiology Score (SAPS) II são exemplos dos modelos mais usados. Estes escores ajudam a estratificar o risco do paciente e avaliar o prognóstico.1212 Naqvi IH, Mahmood K, Ziaullaha S, et al. Better prognostic marker in ICU - APACHE II, SOFA or SAP II!. Pak J Med Sci. 2016;32:1146-51.

13 Knaus WA, Draper EA, Wagner DP, et al. APACHE II: a severity of disease classification system. Crit Care Med. 1985;13:818-29.

14 Le Gall JR, Lemeshow S, Saulnier F. A new simplified acute physiology score (SAPS II) based on a European/North American multicenter study. JAMA. 1993;270:2957-63.
-1515 McNelis J, Marini C, Kalimi R, et al. A comparison of predictive outcomes of APACHE II and SAPS II in a surgical intensive care unit. Am J Med Qual. 2001;16:161-5.

A população idosa é um grupo especialmente heterogêneo. Como os indivíduos muito idosos formam um grupo crescente e importante de pacientes admitidos no centro cirúrgico e, consequentemente, na Unidade de Terapia Intensiva Cirúrgica (UTI-C), é essencial entender como podem diferir dos pacientes idosos “jovens”, para prever e evitar mais complicações.

Portanto, o objetivo deste estudo foi comparar os desfechos cirúrgicos entre os pacientes com mais de 85 anos e aqueles com 65-85 anos, admitidos na UTI-C após cirurgias não cardíacas e não neurológicas, e discutir a relevância da idade e do estado funcional dos pacientes nos desfechos.

Método

Após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Saúde da instituição, esta coorte retrospectiva foi formada na unidade de recuperação pós-anestésica de um hospital terciário. A unidade tem cinco leitos para UTI-C, onde os pacientes são monitorados atentamente e tratados. As admissões na UTI-C são determinadas conforme o risco cirúrgico, as condições prévias de saúde e a ocorrência de eventos adversos. Todos os pacientes incluídos foram submetidos à cirurgia não cardíaca e não neurológica, entre Janeiro de 2006 e Julho de 2013. Os critérios de exclusão foram pacientes com menos de 65 anos, pacientes não cirúrgicos, readmitidos pelo mesmo motivo clínico durante o período de estudo e pacientes com período de internação na UTI-C inferior a 12 horas.

Os pacientes foram divididos em dois grupos de acordo com a idade: grupo idoso (GI) com pacientes de 65 a 85 anos, e o Grupo Muito Idoso (GMI), com mais de 85 anos.

Os dados demográficos e perioperatórios foram registrados na admissão na UTI-C, incluindo idade, gênero, tipo de cirurgia (eletiva ou não eletiva). O risco cardíaco foi determinado para cada paciente através do Índice de Risco Cardíaco Revisado (RCRI, do inglês Revised Cardiac Risk Index), desenvolvido por Lee et al. Este índice inclui as seguintes variáveis: cirurgia de alto risco, história de insuficiência cardíaca congestiva, história de doença cardíaca isquêmica, história de doença cerebrovascular, diabetes com insulinoterapia e creatinina sérica no pré-operatório > 2,0 mg.dL-1.1616 Lee TH, Marcantonio ER, Mangione CM, et al. Derivation and prospective validation of a simple index for prediction of cardiac risk of major noncardiac surgery. Circulation. 1999;100:1043-9.

Os escores Acute Physiology and Chronic Health Evaluation (APACHE) II e Simplified Acute Physiology Score (SAPS) II foram calculados conforme descrição original. Além de idade e estado de saúde prévio, ambos se baseiam também em medidas fisiológicas, como fatores hemodinâmicos (pressão arterial sistólica, pressão arterial média, frequência cardíaca, frequência respiratória e temperatura corporal); hemograma completo e bioquímica do sangue (hematócrito, leucograma, sódio, potássio, bilirrubina, ureia e creatinina séricos); gasometria arterial (pH arterial, PaO2, PaCO2 e bicarbonato sérico) e Escala de Coma de Glasgow, medidos durante as primeiras 24 horas após admissão na UTI-C.1313 Knaus WA, Draper EA, Wagner DP, et al. APACHE II: a severity of disease classification system. Crit Care Med. 1985;13:818-29.,1414 Le Gall JR, Lemeshow S, Saulnier F. A new simplified acute physiology score (SAPS II) based on a European/North American multicenter study. JAMA. 1993;270:2957-63. APACHE II e SAPS II possibilitam a estratificação de pacientes críticos e, de forma semelhante, a previsão de desfechos de pacientes na UTI-C.1515 McNelis J, Marini C, Kalimi R, et al. A comparison of predictive outcomes of APACHE II and SAPS II in a surgical intensive care unit. Am J Med Qual. 2001;16:161-5. Falência de órgão foi determinada quando houve falência de pelo menos um órgão, definida conforme o escore APACHE II.1313 Knaus WA, Draper EA, Wagner DP, et al. APACHE II: a severity of disease classification system. Crit Care Med. 1985;13:818-29. Necessidade de ventilação mecânica no pós-operatório e a fração inspirada de oxigênio na admissão foram também documentadas.

As complicações pós-operatórias foram registradas, como Eventos Cardiovasculares Adversos Maiores (ECAM): infarto agudo do miocárdio, edema pulmonar agudo, fibrilação ventricular, bloqueio cardíaco completo e parada cardiorrespiratória; Insuficiência Renal Aguda (IRA): creatinina sérica > 2 mg.dL-1, associada a débito urinário menor que 500 mL/dia; e óbito na UTI-C ou intra-hospitalar. Foi também registrado o tempo de internação na UTI-C.

A análise estatística foi realizada através do programa SPSS versão 22.0 (SPSS Inc., Chicago, Illinois, EUA). Análise descritiva foi feita para resumir os dados coletados. As variáveis categóricas são apresentadas como número e porcentagem. Já para as variáveis contínuas, após confirmação pelo teste de Kolmogorov Smirnov, os dados que não apresentaram distribuição normal são apresentados como mediana e intervalo de percentil (P25-P75). As variáveis foram comparadas em análise univariada: o teste do Qui-quadrado ou o teste exato de Fischer para as variáveis categóricas; e o teste U de Mann-Whitney para as variáveis contínuas. Os valores dep< 0,05 foram considerados significativos.

Resultados

Um total de 2331 pacientes satisfizeram os critérios de inclusão, sendo que 126 (5,4%) foram incluídos no Grupo Muito Idoso (GMI, mais de 85 anos) e 2205 (94,6%) no Grupo Idoso (GI, de 65-85 anos).

Durante o período do estudo encontramos uma incidência total de falência de órgãos de 18,0% (420 pacientes). IRA ocorreu em 181 (7,8%) e ECAM em 75 (3,2%) pacientes. Ventilação mecânica foi usada em 683 pacientes (29,3%) durante a admissão na UTI-C. A taxa de mortalidade na UTI-C e intra-hospitalar foi 5,4% (126 pacientes).

Os dados demográficos e perioperatórios comparando os dois grupos são mostrados na tabela 1.

Tabela 1
Análise univariada dos dados demográficos e perioperatórios dos pacientes

Houve maior proporção de pacientes do sexo feminino no GMI do que no grupo mais jovem, GI (58,7%vs.36,5%; p< 0,001). A maioria foi admitida para cirurgia eletiva, mas uma proporção maior no GMI submeteu-se à cirurgia não eletiva (22,4%vs.11,2%; p< 0,001). Não houve diferenças no escore total de RCRI considerando o valor de corte dois, mas uma maior proporção de pacientes submetidos à cirurgia de alto risco foi encontrada no GI (56,5%vs.46,8%; p = 0,034); por outro lado, o GMI apresentou maior incidência de insuficiência cardíaca congestiva (35,7%vs.21,0%; p< 0,001). Não foram encontradas diferenças significativas entre os grupos para variáveis fisiológicas, hemodinâmicas ou laboratoriais, exceto a pressão arterial média, que foi menor no GMI (mediana 78vs.85; p = 0,015) e a ureia sérica, maior no GMI (mediana 36vs.32, p = 0,046). Porém, os escores dos sistemas de classificação das doenças mostraram diferenças entre os dois grupos. A tabela 2 apresenta os dados relacionados ao APACHE II e SAPS II, tempo de internação na UTI-C, e desfechos adversos, como falência de órgãos, ECAM, IRA e mortalidade. O GMI obteve maiores escores no APACHE II (mediana 12,0vs.10,0; p< 0,001) e SAPS II (mediana 26,6vs.22,2; p< 0,001). Não houve diferenças entre os grupos em termos de ventilação mecânica, incidência de ECAM, IRA e no tempo de internação na UTI-C. Contudo, os pacientes do GMI tiveram maior incidência de falência de órgãos (24,6%vs.17,6%; p = 0,048), maior taxa de mortalidade na UTI-C (14,0%vs.5,2%; p = 0,026) e durante a internação hospitalar (9,3%vs.5,0%; p = 0,012).

Tabela 2
Análise univariada para sistemas de pontuação de gravidade de doenças, período de internação na UTI-C, complicações pós-operatórias e mortalidade

Discussão

Neste estudo de coorte retrospectiva, avaliamos a correlação entre os diferentes grupos etários e desfechos cirúrgicos de paciente idosos. Os principais achados de nosso estudo foram: a) Pacientes do GMI representam proporção significativa de pacientes admitidos na UTI-C; b) Maior proporção de pacientes do GMI foi submetida à cirurgia não eletiva; c) Pacientes do GMI apresentaram incidência maior de insuficiência cardíaca congestiva; d) Pacientes do GMI tinham escores mais altos de gravidade na admissão na UTI-C e maior incidência de falência de órgãos; e) Pacientes do GMI tiveram maior taxa de mortalidade na UTI-C e intra-hospitalar.

O estudo tem algumas limitações que devem ser consideradas. Deve ser ressaltado que o desenho retrospectivo do estudo apresenta falhas inerentes. O número de pacientes no GMI foi pequeno em comparação ao GI, o que pode limitar os resultados. Como o estudo tem desenho unicêntrico, realizado em um hospital universitário, os resultados talvez não se apliquem a outros centros. Mesmo incluindo algumas variáveis, como tipo e risco de cirurgia, não consideramos quaisquer medidas da condição de fragilidade do paciente, nem quaisquer comorbidades, exceto aquelas presentes no escore RCRI. Porém, alguns elementos desta pesquisa acrescentam informações importantes a este estudo, e poderiam superar estas limitações, como a coleta de relevantes dados quantitativos obtidos na admissão dos pacientes na UTI.

Os pacientes idosos representam grande fração de todos os procedimentos cirúrgicos. Idade avançada é um fator de risco para mortalidade perioperatória, mas comorbidades pré-operatórias, fragilidade e a natureza invasiva do procedimento cirúrgico são outros importantes preditores de mortalidade.1717 Anesthesia for the older adult. UpToDate. Last updated: Jun 15, 2018.

Apesar de a idade avançada ter sido considerada fator de risco independente importante para desfechos adversos e mortalidade em pacientes muito graves, a população idosa é um grupo heterogêneo, e pode-se esperar diferenças dentro deste grupo amplo de pacientes.1111 Haq A, Patil S, Parcells AL, et al. The Simplified Acute Physiology Score III Is Superior to the Simplified Acute Physiology Score II and Acute Physiology and Chronic Health Evaluation II in Predicting Surgical and ICU Mortality in the “Oldest Old”. Curr Gerontol Geriatr Res. 2014;2014:934852.,1818 Hamel MB, Davis RB, Teno JM, et al. Older age, aggressiveness of care, and survival for seriously ill, hospitalized adults. SUPPORT Investigators. Study to Understand Prognoses and Preferences for Outcomes and Risks of Treatments. Ann Intern Med. 1999;131:721-8.

Relatamos incidência de 5,4% de admissão na unidade de terapia cirúrgica no grupo de pacientes muito idosos (GMI > 85 anos). A proporção de gênero foi diferente entre grupos, com mais mulheres na população do GMI. A expectativa de vida das mulheres pode explicar a diferença entre os grupos.22 Ihra GC, Lehberger J, Hochrieser H, et al. Development of demographics and outcome of very old critically ill patients admitted to intensive care units. Intensive Care Med. 2012;38:620-6. A preponderância do gênero feminino entre os muito idosos foi descrita em alguns estudos e em diversos países.22 Ihra GC, Lehberger J, Hochrieser H, et al. Development of demographics and outcome of very old critically ill patients admitted to intensive care units. Intensive Care Med. 2012;38:620-6.

No presente estudo, observou-se uma maior taxa de mortalidade no GMI, não apenas na UTI-C, mas também intra-hospitalar, como demonstrado em estudos prévios.11 Muessig JM, Masyuk M, Nia AM, et al. Are we ever too old? Characteristics and outcome of octogenarians admitted to a medical intensive care unit. Medicine (Baltimore). 2017;96:e7776.,88 Bagshaw SM, Webb SA, Delaney A, et al. Very old patients admitted to intensive care in Australia and New Zealand: a multi-centre cohort analysis. Crit Care. 2009;13:R45. Diversas iniciativas foram feitas para determinar se a idade é um preditor fundamental de desfecho na UTI para pacientes idosos. Hamel e colaboradores concluíram que a idade estava associada de forma independente à taxa de sobrevida menor em pacientes mais idosos admitidos na UTI, e não relacionada a uma estratégia menos invasiva na terapia intensiva.1818 Hamel MB, Davis RB, Teno JM, et al. Older age, aggressiveness of care, and survival for seriously ill, hospitalized adults. SUPPORT Investigators. Study to Understand Prognoses and Preferences for Outcomes and Risks of Treatments. Ann Intern Med. 1999;131:721-8. Enquanto muitos estudos sugerem que a idade seja um preditor muito importante e independente de mortalidade após admissão na UTI, com taxas de mortalidade aumentando com a idade, outros questionam a importância da idade como um determinante importante no desfecho de pacientes críticos, sendo o prognóstico predito de maneira mais sólida pela gravidade da doença, tempo de hospitalização, insuficiência respiratória e admissão prévia na UTI.1111 Haq A, Patil S, Parcells AL, et al. The Simplified Acute Physiology Score III Is Superior to the Simplified Acute Physiology Score II and Acute Physiology and Chronic Health Evaluation II in Predicting Surgical and ICU Mortality in the “Oldest Old”. Curr Gerontol Geriatr Res. 2014;2014:934852.

A idade é provavelmente um fator importante que deve ser associado à gravidade da doença, comorbidades, fragilidade e estado funcional antes da admissão na UTI.1919 Brandberg C, Blomqvist H, Jirwe M. What is the importance of age on treatment of the elderly in the intensive care unit?. Acta Anaesthesiol Scand. 2013;57:698-703. Assim, a idade é um componente de sistemas de pontuação de doenças como APACHE II e SAPS II.1313 Knaus WA, Draper EA, Wagner DP, et al. APACHE II: a severity of disease classification system. Crit Care Med. 1985;13:818-29.,1414 Le Gall JR, Lemeshow S, Saulnier F. A new simplified acute physiology score (SAPS II) based on a European/North American multicenter study. JAMA. 1993;270:2957-63. Tais sistemas são utilizados regularmente para estratificar o risco do paciente e indicar a gravidade da doença de base, que estão associados ao prognóstico e à mortalidade.2020 Salluh JI, Soares M. ICU severity of illness scores: APACHE, SAPS and MPM. Curr Opin Crit Care. 2014;20:557-65.,2121 Godinjak A, Iglica A, Rama A, et al. Predictive value of SAPS II and APACHE II scoring systems for patient outcome in a medical intensive care unit. Acta Med Acad. 2016;45:97-103. No presente estudo, os pacientes do GMI obtiveram escores maiores no APACHE II e SAPS II, o que pode representar maior gravidade da doença e um pior estado funcional neste grupo. Chelluri et al. concluíram que a pontuação no APACHE II foi o preditor mais importante de mortalidade nos indivíduos muito idosos.66 Chelluri L, Pinsky MR, Grenvik AN. Outcome of intensive care of the “oldest-old” critically ill patients. Crit Care Med. 1992;20:757-61. Da mesma forma, Lee et al. observaram que o escore APACHE II no período pós-operatório de pacientes com mais de 85 anos, internados na UTI, foi um importante preditor de prognóstico.33 Lee B, Na S, Park M, et al. Home return after surgery in patients aged over 85 years is associated with preoperative albumin levels, the type of surgery and APACHE II Score. World J Surg. 2017;41:919-26. Em uma grande coorte realizada na Austrália e Nova Zelândia, Bagshaw et al. relataram maior gravidade de doença na faixa etária > 80 anos, quando comparados a pacientes mais jovens.88 Bagshaw SM, Webb SA, Delaney A, et al. Very old patients admitted to intensive care in Australia and New Zealand: a multi-centre cohort analysis. Crit Care. 2009;13:R45. Em relação ao SAPS II, um estudo muito recente demonstrou a idade como fator prognóstico independente para mortalidade em octogenários.2222 Suarez-de-la-Rica A, Castro-Arias C, Latorre J, et al. Prognosis and predictors of mortality in critically ill elderly patients. Rev Esp Anestesiol Reanim. 2018;65:143-8.

O risco individual para eventos adversos também depende da carga das comorbidades e de outros fatores de risco, como risco cirúrgico.2323 Andersson C, Wissenberg M, Jorgensen ME, et al. Age-specific performance of the revised cardiac risk index for predicting cardiovascular risk in elective noncardiac surgery. Circ Cardiovasc Qual Outcomes. 2015;8:103-8. O Índice de Risco Cardíaco Revisado (RCRI) estima o risco de complicações cardíacas no perioperatório de cirurgias não cardíacas. Este escore é amplamente adotado, pois desempenha um papel importante na estratificação pré-operatória.2424 Hirano Y, Takeuchi H, Suda K, et al. Clinical utility of the Revised Cardiac Risk Index in non-cardiac surgery for elderly patients: a prospective cohort study. Surg Today. 2014;44:277-84. RCRI é aplicável a todas as idades; portanto, também é razoável utilizá-lo mesmo em pacientes muito idosos.2323 Andersson C, Wissenberg M, Jorgensen ME, et al. Age-specific performance of the revised cardiac risk index for predicting cardiovascular risk in elective noncardiac surgery. Circ Cardiovasc Qual Outcomes. 2015;8:103-8. Em uma coorte prospectiva conduzida por Hirano et al., a pontuação mais alta de pacientes idosos no RCRI estava relacionada a maior morbidade pós-operatória e tempo de hospitalização mais extenso.2424 Hirano Y, Takeuchi H, Suda K, et al. Clinical utility of the Revised Cardiac Risk Index in non-cardiac surgery for elderly patients: a prospective cohort study. Surg Today. 2014;44:277-84. No presente estudo, a pontuação no RCRI não diferiu entre os grupos, e apenas duas variáveis mostraram diferenças: cirurgia de alto risco, com uma maior proporção no GI, e antecedente de insuficiência cardíaca congestiva, mais frequente no GMI. Isso provavelmente reflete indicação mais infrequente de cirurgias de alto risco e maior prevalência de comorbidades no GMI. Um estudo recente em uma coorte geriátrica sugeriu que o RCRI tende a subestimar o risco cardíaco real nos idosos, e um novo Índice de Risco Cardíaco Sensível a Pacientes Geriátricos (GSCRI, do inglês Geriatric-Sensitive Cardiac Risk Index) seria melhor indicador de risco cardíaco nesses pacientes.2525 Alrezk R, Jackson N, Al Rezk M, et al. Derivation and validation of a geriatric-sensitive perioperative cardiac risk index. J Am Heart Assoc. 2017;6(11). Não encontramos diferenças na incidência de ECAM e IRA, mas a incidência de falência de órgãos foi maior no GMI. Isso poderia ser explicado pelo maior número de doenças crônicas e uma reserva fisiológica orgânica individual reduzida. Se a essas condições acrescentarmos o estresse cirúrgico e a labilidade hemodinâmica, este cenário levaria mais facilmente a falência de órgãos e desfechos piores.

O GMI foi submetido a mais cirurgias não eletivas que o GI. Cirurgias de urgência, junto com maior prevalência de comorbidades e um pior estado funcional podem ter contribuído para menor sobrevida neste grupo de pacientes.

Este estudo traz uma discussão sobre as diferenças entre idade cronológica e fisiológica, em uma era em que muito mais pacientes idosos são submetidos à cirurgia e admitidos na terapia intensiva. Como os escores APACHE II e SAPS II foram criados em 1985 e 1993, respectivamente, e com uma população mais idosa nas décadas recentes, é importante refletir sobre como a idade é incorporada nos sistemas de pontuação.

É necessário repensar a forma como olhamos os pacientes idosos, e estudar as diferenças fisiológicas e o declínio funcional que ocorrem neste grupo. Essas diferenças podem explicar as diversas consequências nos eventos e desfechos.

Conclusões

Observamos que pacientes muito idosos representaram uma proporção significativa de pacientes admitidos na UTI-C, apresentaram escores de gravidade mais altos, maior prevalência de falência de órgãos, e maior tendência a serem submetidos à cirurgia não eletiva. Os pacientes muito idosos apresentaram piores desfechos em relação à mortalidade durante a internação na UTI-C e tempo de permanência hospitalar.

References

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Feb 2020

Histórico

  • Recebido
    6 Dez 2018
  • Aceito
    26 Out 2019
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