Acessibilidade / Reportar erro

Bloqueio paravertebral torácico guiado por ultrassom para correção de ileostomia em alça em DPOC grave: um relato de caso

Resumo

Justificativa e objetivos:

O bloqueio paravertebral torácico guiado por ultrassom é geralmente considerado uma boa alternativa à anestesia peridural torácica para o controle da dor em cirurgia torácica e mamária. Além disso, ultimamente o bloqueio paravertebral torácico tem sido usado durante cirurgias abdominais, especialmente hepática e renal. No entanto, seu papel está mal definido nesse contexto. O objetivo deste relato foi destacar o papel do bloqueio paravertebral torácico em fornecer anestesia e analgesia efetiva tanto na intervenção cirúrgica abdominal quanto no controle da dor pós-operatória, evitando as possíveis complicações que podem surgir da anestesia geral, bastante comuns em pacientes com doença pulmonar obstrutiva crônica e comorbidades similares.

Relato de caso:

Apresentamos um caso de cirurgia abdominal realizada com sucesso em uma mulher com doença pulmonar obstrutiva crônica grave que precisou de correção de ileostomia em alça, realizada com bloqueio paravertebral torácico guiado por ultrassom sem complicações.

Conclusões:

O bloqueio paravertebral torácico pode ser um método anestésico seguro para cirurgia abdominal em pacientes que poderiam apresentar complicações possivelmente graves com o uso de anestesia geral.

PALAVRAS-CHAVE
TPVB guiado por ultrassom; Cirurgia abdominal; DPOC; Analgesia de dor aguda

Abstract

Background and objectives:

Ultrasound-guided thoracic paravertebral block is usually considered a good alternative to epidural thoracic for anesthesia and pain control in thoracic and breast surgery. Furthermore it has also been used during abdominal surgery lately, especially hepatic and renal surgery. However, its role is poorly defined in this context. The purpose of this report was to highlight the role of thoracic paravertebral block in providing effective anesthesia and analgesia during both the abdominal surgical intervention and pain control in post-operative period, avoiding possible complications which general anesthesia may arise, which are fairly common in patients with chronic obstructive pulmonary disease and similar comorbidities.

Case report:

The authors present a case of abdominal surgery successfully performed on a woman affected by severe chronic obstructive pulmonary disease requiring closed loop ileostomy repair performed with ultrasound guided thoracic paravertebral block without any complications.

Conclusions:

Thoracic paravertebral block may be a safe anesthetic method for abdominal surgery in those patients who would undergo potential severe complications by using general anesthesia.

KEYWORDS
Ultrasound-guided TPVB; Abdominal surgery; COPD; Acute pain analgesia

Justificativa e objetivos

O bloqueio paravertebral torácico (Thoracic Paravertebral Block - TPVB) guiado por ultrassom é geralmente considerado uma boa alternativa à anestesia peridural torácica para anestesia e controle da dor em cirurgia torácica e mamária. Além disso, tem sido também utilizado em cirurgias abdominais nos últimos tempos, especialmente em procedimentos hepáticos e renais.11 Eid HEA. Paravertebral block: an overview. Curr Anaesth Crit Care. 2009;20:65-70. Contudo, seu papel é pouco definido nesse contexto.22 El-Boghdadly K, Madjdpour C, Chin KJ. Thoracic paravertebral blocks in abdominal surgery - a systematic review of randomized controlled trials. Br J Anaesth. 2016;117:297-308. O objetivo deste relato é destacar o papel do TPVB no fornecimento eficaz de anestesia e analgesia durante a intervenção cirúrgica abdominal e no controle da dor pós-operatória, evitando possíveis complicações que a anestesia geral possa causar, o que é bastante comum em pacientes com doença pulmonar obstrutiva crônica e comorbidades semelhantes.33 Lumb A, Frca M, Biercamp C, et al. Chronic obstructive pulmonary disease and anaesthesia. Contin Educ Anaesth Crit Care Pain. 2014;14:1-5.

Assinatura em termo de consentimento informado foi obtida do paciente para a publicação deste relato de caso.

Relato de caso

Paciente do sexo feminino, 72 anos, 58 kg, 1,59 m, foi encaminhada a nossos cuidados para fechamento de um estoma, devido a uma longa história de colite ulcerativa previamente tratada com proctocolectomia e reconstrução da bolsa ileoanal em forma de S. A paciente era fumante habitual, afetada por doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) e em tratamento noturno com oxigenoterapia, beta-2 agonistas e N-acetilcisteína, com história de exacerbações e hospitalizações prévias por distúrbio respiratório. Também foi diagnosticada com bronquiectasia nos lobos mediano e superior direito, um nódulo pulmonar no segmento apical do lobo inferior direito e um aneurisma da aorta abdominal infrarrenal.

Na admissão, a paciente foi submetida a testes perioperatórios de rotina e específicos para a doença. ECG e radiografia de tórax mostraram hiperinsuflação pulmonar com hemidiafragmas achatados e possíveis alterações bolhosas na área mediana e superior direita. A espirometria relatou VEF1 45% do previsto e razão VEF1/CVF < 0,60; especificamos que a paciente estava em terapia com broncodilatadores no momento do exame. Tomografia computadorizada abdominal com contraste endovenoso mostrou a presença do aneurisma aórtico e protrusão do conteúdo intra-abdominal através do estoma prévio. O hemograma estava normal, exceto leucócitos (10,52 × 109.L−1), fibrinogênio (481 mg.dL−1), TP (1,0), razão TTPA (1,22), contagem de plaquetas (36,7000), glicose (162 g.dL−1), ureia (49 mg.dL−1), GGT (52 UI.L−1), fosfatase alcalina (183 UI.L−1).

No segundo dia após a admissão, a paciente foi levada para a sala de cirurgia depois de usar meias de compressão e receber profilaxia intravenosa com antibióticos ampicilina/sulbactam (3 g). Monitoração padrão com ECG contínuo II-variações e oximetria de pulso foi iniciada. Os parâmetros basais foram pressão arterial de 120/80 mmHg, frequência cardíaca de 80 bpm e saturação de oxigênio de 92% em ar ambiente.

Devido às múltiplas comorbidades e às dificuldades previsíveis relacionadas ao desmame respiratório, optamos por realizar uma abordagem de anestesia locorregional com TPVB guiado por ultrassom e a colocação do cateter paravertebral contínuo, para fornecer analgesia complementar no pós-operatório.

Antes da inserção do cateter paravertebral, a paciente foi virada para a posição lateral esquerda e 0,05 mg.kg-1 de midazolam IV e anestesia local com lidocaína a 2% foram administrados.

O espaço paravertebral esquerdo (T10-T11) foi identificado usando uma abordagem no plano parassagital guiada por ultrassom. Para tal, o transdutor foi colocado a 2,5 cm lateralmente à linha média em uma orientação sagital, levando a uma visualização clara das principais referências anatômicas: os processos transversos T10 e T11, a pleura (que marca o limite anterior do espaço paravertebral e é facilmente reconhecível por sua alta ecogenicidade e movimento característico de deslizamento pulmonar) e o ligamento costotransversal superior (que pode ser visto como uma linha um pouco menos oblíqua e ecogênica posterior à pleura, formando o limite posterior do espaço paravertebral). Uma agulha Contiplex S. Ultra 0,85 × 1.000 mm (B-Braun) foi então inserida na borda caudal do transdutor e direcionada cranialmente em direção ao espaço paravertebral guiada por ultrassom em tempo real. Mesmo que uma leve perda de resistência possa ser detectada na passagem da ponta da agulha através do ligamento costotransverso superior, injetamos 1 mL de levobupivacaína a 0,5% (não misturada com Adrenalina) para confirmar a colocação correta da agulha no espaço paravertebral, sob visualização do deslocamento anterior pleural. Os restantes 14 mL de levobupivacaína a 0,5% (sem Adrenalina como anteriormente) foram então injetados para dilatar completamente o espaço paravertebral e o cateter para infusão contínua foi colocado sem complicações.

Após a realização do TPVB, o sucesso do bloqueio foi avaliado com um teste de bloqueio sensitivo para avaliar a área de distribuição por dermátomos homolateral.

Toda a intervenção cirúrgica ocorreu em cerca de 90 min sem complicações e estabilidade permanente dos valores de pressão arterial, frequência cardíaca e saturação de oxigênio no sangue.

Prescrevemos analgesia multimodal com paracetamol (1 g IV cada 8 horas [h]), uma bomba elastomérica contendo ropivacaína a 0,2% e Ketorolac (30 mg cada 8 h) para a necessidade de analgésicos de resgate. A capacidade da bomba era de 200 mL, com um fluxo de 6 mL.h-1, para infusão no espaço paravertebral.

O escore de Aldrete44 Aldrete JA, Kroulik D. A postanesthetic recovery score. Anesth Analg. 1970;49:924-34. no pós-operatório foi de 7 (0 ponto para atividade, 1 ponto para circulação, 2 pontos para os demais); então a paciente foi transferida para a Sala de Recuperação Pós-Anestesia (SRPA). Em seguida, o funcionamento do cateter paravertebral foi verificado e a distribuição por dermátomos foi verificada a cada 30 minutos (min). Não ocorreram complicações ou alterações nos parâmetros e o escore de Aldrete permaneceu inalterado quando a paciente foi transferida para a enfermaria cirúrgica 2 h mais tarde. Nenhum tratamento analgésico de resgate foi necessário e não houve incidência de náusea e vômito no pós-operatório (NVPO).

Durante a internação na enfermaria, a paciente foi rotineiramente avaliada pelos consultores do serviço de anestesiologia no contexto do Serviço de Dor Aguda, relatando bom controle analgésico pós-operatório e sem necessidade de terapia analgésica suplementar durante e após o término da infusão contínua de ropivacaína.

Após cinco dias, o cateter paravertebral foi removido: a ponta estava completa e não havia sinais de infecção.

A paciente recebeu alta após seis dias da intervenção, em condições médicas ideais.

Conclusão

Segundo nossas pesquisas, este é o primeiro caso em que o TPVB guiado por ultrassom foi realizado para correção de ileostomia em alça, sem anestesia geral.

O TPVB em cirurgia abdominal é geralmente aplicado em herniorrafia inguinal, colecistectomia, procedimentos urológicos (i.e., nefrolitotomia percutânea) e ginecológicos, mas há um número relativamente pequeno de estudos que examinam a eficácia analgésica do TPVB nesse contexto e apenas alguns deles contemplam o uso de ultrassom como guia com infusão contínua pós-operatória.11 Eid HEA. Paravertebral block: an overview. Curr Anaesth Crit Care. 2009;20:65-70.

A mais recente revisão sistemática de ensaios clínicos randômicos comparando TPVB versus outras técnicas anestesiológicas traz evidências de que em cirurgias abdominais menores, como herniorrafia ou correção de hérnia ventral, em que a analgesia especialmente somática é necessária, o TPVB em injeção única fornece anestesia satisfatória durante todo o procedimento cirúrgico.22 El-Boghdadly K, Madjdpour C, Chin KJ. Thoracic paravertebral blocks in abdominal surgery - a systematic review of randomized controlled trials. Br J Anaesth. 2016;117:297-308. Nosso relato de caso sugere que o TPVB pode ter um potencial papel como uma técnica de anestesia regional alternativa também em cirurgias abdominais maiores, onde a analgesia somática e visceral é desejada.

Além disso, com o uso de infusão contínua e o cateter previamente colocado no espaço paravertebral, obtivemos analgesia pós-operatória que durou aproximadamente 48 h após o procedimento cirúrgico com eficácia comprovada, reduzindo os escores de dor, o consumo de opioides e a NVPO, em comparação com a analgesia intravenosa convencional.

As potenciais complicações da execução do TPVB podem ser representadas pela disseminação peridural do anestésico local, punção vascular, pneumotórax e falha do bloqueio. No entanto, sua incidência pode ser drasticamente reduzida com o advento de técnicas guiadas por ultrassom que também tornaram o TPVB mais acessível à comunidade anestésica mais ampla.55 Pace MM, Sharma B, Anderson-Dam J, et al. Ultrasound-guided thoracic paravertebral blockade: a retrospective study of the incidence of complications. Anesth Analg. 2016;122:1186-91.

Em conclusão, o TPVB é uma técnica de anestesia locorregional usada principalmente para cirurgia torácica, mas deve ser uma alternativa válida para bloqueio torácico peridural para anestesia e controle da dor também em cirurgia abdominal, especialmente quando guiada por ultrassonografia e em modo contínuo. Nosso relato de caso enfatiza o papel potencial dessa técnica e, portanto, acreditamos na importância de desenvolver novos estudos nessa direção.

References

  • 1
    Eid HEA. Paravertebral block: an overview. Curr Anaesth Crit Care. 2009;20:65-70.
  • 2
    El-Boghdadly K, Madjdpour C, Chin KJ. Thoracic paravertebral blocks in abdominal surgery - a systematic review of randomized controlled trials. Br J Anaesth. 2016;117:297-308.
  • 3
    Lumb A, Frca M, Biercamp C, et al. Chronic obstructive pulmonary disease and anaesthesia. Contin Educ Anaesth Crit Care Pain. 2014;14:1-5.
  • 4
    Aldrete JA, Kroulik D. A postanesthetic recovery score. Anesth Analg. 1970;49:924-34.
  • 5
    Pace MM, Sharma B, Anderson-Dam J, et al. Ultrasound-guided thoracic paravertebral blockade: a retrospective study of the incidence of complications. Anesth Analg. 2016;122:1186-91.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    11 Jul 2017
  • Aceito
    10 Fev 2018
  • Publicado
    11 Mar 2018
Sociedade Brasileira de Anestesiologia R. Professor Alfredo Gomes, 36, 22251-080 Botafogo RJ Brasil, Tel: +55 21 2537-8100, Fax: +55 21 2537-8188 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: bjan@sbahq.org