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Paraparesia espástica tropical - abordagem anestésica

Resumo

Introdução

A infecção por HTLV- 1 é endêmica no Japão, nas Caraíbas, na África e na América do Sul. A transmissão ocorre de mãe para filho, por contatos sexuais, transfusões de sangue ou partilha de agulhas. A essa infeção está associada uma doença neurológica degenerativa crônica, a paraparesia espástica tropical (TSP). Essa resulta de uma degeneração simétrica da espinal medula em nível torácico. Caracteriza-se por diminuição progressiva da força nos membros inferiores, hiperreflexia, alterações de sensibilidade, incontinência urinária e disfunção vesical.

Caso clínico

Mulher de 53 anos, infecção por HTLV-1 e TSP. Apresentava diminuição da força nos membros inferiores e hiperreflexia, tinha uma marcha parética, espasticidade e sintomas de bexiga neurogênica com infecções urinárias de repetição. Foi proposta para cistectomia. Foi monitorada de acordo com o padrão da ASA. Devido à coagulopatia grave e à possibilidade de agravamento neurológico, não se colocou cateter epidural. A indução da anestesia geral foi feita com midazolam e fentanil seguidos de etomidato e cisatracúrio. Foi entubada com um tubo sete e mantida com desflurano e oxigênio. A anestesia decorreu sem intercorrências, a cirurgia terminou em uma hora e 50 minutos. Não houve quaisquer complicações no pós-operatório imediato, durante a internação, nem deterioração do exame neurológico. A doente teve alta 20 dias depois.

Discussão/Conclusão

Há relatos de diminuição da resposta eletromiográfica e deterioração neurológica associadas ao propofol nesses doentes, razão para uso de etomidato. A metabolização hepática do rocurônio representava um risco e se optou pelo cisatracúrio. Conclui-se que o plano anestésico escolhido não teve qualquer interferência no curso da doença.

Palavras-chave
Human T-lymphotropic virus; Virus da hepatite C; Infeciologia; Cistectomia; Paraparesia espástica tropical

Abstract

Introduction

HTLV-1 infection is endemic in Japan, Caribbean, Africa, and South America. It is transmitted from mother to child, sexual contact, blood transfusions, or sharing needles. Tropical spastic paraparesis (TSP) is a chronic degenerative neurological disease associated with this infection. It results from a spinal cord symmetrical degeneration at the thoracic level and is characterized by progressive motor weakness in the lower limbs, hyperreflexia, sensitivity changes, urinary incontinence, and bladder dysfunction.

Clinical case

Female, 53 years old, HTLV-1 infection and TSP. She had decreased strength in the lower limbs and hyperreflexia, paretic gait, spasticity, and neurogenic bladder symptoms, with recurrent urinary infections. She was scheduled for cystectomy. The patient was monitored according to standard ASA. Due to severe coagulopathy and the possibility of neurological worsening, epidural catheter was not placed. The induction of general anesthesia was performed with midazolam and fentanyl, followed by etomidate and cisatracurium. She was intubated with a tube size seven and maintained with desflurane and oxygen. Anesthesia was uneventful; the surgery lasted 1 hour and 50 min. There were no complications in the immediate postoperative period, during hospitalization, nor deterioration of the neurological examination. The patient was discharged 20 days later.

Discussion/Conclusion

There are reports of decreased electromyographic response and neurological deterioration associated with propofol in these patients, etomidate was used. The hepatic metabolism of rocuronium posed a risk, we chose to use cistracurium. It was concluded that the anesthesia chosen did not affect the course of the disease.

Keywords
Human T-lymphotropic virus; Hepatitis C virus; Infectious diseases; Cystectomy; Tropical spastic paraparesis

Introdução

A infecção por HTLV-1 (Human T-lymphotropic virus - 1) é endêmica em alguns países, notadamente no Japão, países das Caraíbas e regiões da África e da América do Sul. A prevalência aumenta com a idade e é superior no sexo feminino.11 Centers for Disease Control and Prevention. Recomendations for counseling persons infected with HTLV type I and II, Junho 1993. A transmissão ocorre de mãe para filho, por contatos sexuais, transfusões de sangue ou partilha de agulhas contaminadas. A essa infeção estão associadas duas doenças: a leucemia/linfoma de células T do adulto (ATL) e uma doença neurológica degenerativa crônica, a paraparesia espástica tropical (TSP). A TSP resulta de uma degeneração simétrica das colunas laterais da medula espinal em nível torácico.22 Kanmura Y, Komoto R, Kawasaki K, et al. Anesthetic considerations in myelopathy associated with human T-cell lymphotropic virus. Anesth Analg. 1996;83:1120-1. Caracteriza-se por diminuição progressiva da força nos membros inferiores e hiperreflexia, associadas a disfunção autônoma com incontinência urinária e disfunção vesical. As alterações na marcha por diminuição da força nos membros inferiores são o principal sintoma da doença. Os sintomas de disfunção autônoma podem anteceder, ser concomitantes ou manifestar-se tardiamente na evolução da doença. De salientar os sintomas de bexiga neurogênica que acarretam grande morbilidade, notadamente sensação de esvaziamento incompleto, polaquiúria, urgência miccional, infeções urinárias de repetição, litíase e até quadros graves de pielonefrite crônica ou insuficiência renal.33 Poveda-Jaramillo R, Pacheco A, Martínez A. Tropical spastic paraparesis and anesthesia, case report and topic review. Rev Colomb Anestesiol. 2012;40:162-6.

Ao contrário da esclerose múltipla (EM), os sintomas evoluem progressivamente, sem períodos de crise e remissão. Além disso, não se observa envolvimento dos nervos cranianos e da função cognitiva. Essa síndrome desenvolve-se em menos de 1% das pessoas infetadas pelo HTLV-1.11 Centers for Disease Control and Prevention. Recomendations for counseling persons infected with HTLV type I and II, Junho 1993.

O conhecimento atual sobre a abordagem anestésica desses doentes resulta de raros casos clínicos isolados. O objetivo deste artigo é apresentar um caso de TSP e expor a sua abordagem anestésica.

Caso clínico

Doente do sexo feminino, 53 anos, 60 Kg de peso e 158 cm, TSP com vários anos de evolução e diagnosticada havia sete anos. Refere queixas de diminuição da força nos membros inferiores há cerca de 15 anos e só mais tarde surgiram sintomas urinários. Inicialmente foi-lhe diagnosticada esclerose múltipla, mas, pelo curso clínico atípico e pela presença de anticorpos HTLV-1 no sangue e no LCR, confirmou-se a infeção por HTLV-1. A doente foi proposta para cistectomia. À data da cirurgia encontrava-se estável do ponto de vista neurológico. Apresentava diminuição bilateral da força nos membros inferiores, hiperreflexia, sem alterações da sensibilidade. Caminhava com apoio de terceiros, tinha uma marcha parética, com espasticidade. Sem quaisquer alterações dos pares cranianos ou nos membros superiores. Tinha ainda sintomas de bexiga neurogênica com infeções urinárias de repetição, indicação para que fizesse a cirurgia em causa. Apresentava outros antecedentes pessoais: coinfecção pelo vírus da hepatite C com trombocitopenia (37 × 109.L-1 plaquetas) e alterações graves da coagulação (aPTT 38.6, TP 13.8), diabetes mellitus tipo 2 e síndrome depressiva. Restante estudo pré-operatório (estudo analítico, ECG, Rx tórax e PFR) normal.

Anestesia

Monitoração: padrões da ASA, BIS e TOF.

Pré-medicação: midazolam.

Optou-se por não colocar cateter epidural devido à coagulopatia grave da doente e à possibilidade de agravamento neurológico.

Indução: Fentanil seguido de etomidato e cisatracúrio e foi entubada com um tubo 7.

Manutenção: A AG foi mantida com desflurano e oxigênio. Foram administrados dois bólus adicionais de cisatracúrio de acordo com o TOF.

A indução e a manutenção da anestesia decorreram sem intercorrências. Por dificuldades técnicas, a equipe cirúrgica optou por não fazer a cistectomia radical que estava programa inicialmente. Foi feita uma cistostomia e a cirurgia terminou em uma hora e 50 minutos.

Recobro: O bloqueio neuromuscular foi revertido com neostigmina e atropina, cinco minutos depois a doente tinha 400 mL de volume corrente, FR de 12 cpm e estava completamente acordada, pelo que foi extubada na sala operatória. Não houve quaisquer complicações no pós-operatório imediato, durante o internamento, nem deterioração do exame neurológico. A doente teve alta 20 dias depois.

Discussão e considerações anestésicas

Os pacientes com paraparesia espástica tropical têm inúmeras complicações decorrentes da evolução da doença, notadamente escaras de decúbito prolongado infectadas, retenção urinária por disfunção esfincteriana e fraturas decorrentes da neuropatia periférica que atinge predominantemente os membros inferiores. São, por esse motivo, candidatos cirúrgicos potenciais.

Nos últimos anos, e principalmente fruto de artigos de revisão temática ou casos clínicos em regiões endêmicas, tem-se procurado perceber as implicações e necessidades anestésicas nesses doentes, evitar agudizações/crises ou complicações pós-cirúrgicas. Assim, o manuseio anestésico, nesses doentes, deverá ter em atenção algumas particularidades especiais.

Muitos desses doentes estão sob corticoterapia diária,44 Ribas JG, Melo GC. Mielopatia associada ao vírus linfotrópico humano de células T do tipo 1 (HTLV-1). Rev Soc Bras Med Trop. 2002;35:377-84. necessitam de manter doses não inferiores à habitual durante o período peri-operatório (200 mg hidrocortisona em cirurgia major e 100 mg em cirurgia minor) devido ao risco de disfunção ventricular esquerda e hipotensão refratária.

Classicamente, a abordagem anestésica do neuroeixo está contraindicada em indivíduos com doença ou sintomatologia neurológica ativa. Contudo, há vários relatos da anestesia do neuroeixo em indivíduos com TSP, sem deterioração dos sintomas neurológicos ou aceleração da progressão da doença.33 Poveda-Jaramillo R, Pacheco A, Martínez A. Tropical spastic paraparesis and anesthesia, case report and topic review. Rev Colomb Anestesiol. 2012;40:162-6.

Alguns autores reportaram que o propofol em doses de indução (2-3 mg.kg-1) provoca diminuição da atividade electromiográfica (em cerca de 20%) em doentes com TSP, sem, contudo, diminuir a força muscular ou a velocidade de condução neuronal.55 Nitahara K, Matsuyama M, Sakuragi T, et al. Depression of evoked electromyographic (EEMG) responses by propofol in a patient with human t-cell lymphotropic virus type i - associated myelopathy (HAM). Anesth Analg. 2000;91:755-7.

A escolha do relaxante neuromuscular a se usar nesses doentes é também um tema de grande controvérsia. A presença de um elevado número de receptores musculares colinérgicos fora da placa neuromuscular nesses doentes acresce sobremaneira a sensibilidade à acetilcolina. Desse modo, o uso de relaxantes musculares despolarizantes, como a sucinilcolina, acarreta um grande risco de hipercaliemia grave (subida de cerca de 3 mmoL.L-1) que pode culminar em paragem cardíaca. Caso necessário deve dar-se preferência ao grupo dos relaxantes musculares não despolarizantes, ainda que esses doentes, com frequência, apresentem uma ação prolongada. Por isso é indispensável a monitoração do bloqueio neuromuscular.

A escolha da técnica e do protocolo anestésico nesta doente teve em consideração as recomendações atuais conhecidas para doentes com mielopatia. A anestesia do neuroeixo foi descartada devido à coagulopatia e aos riscos de exacerbação/progressão da doença. Os fármacos selecionados, notadamente indutor e relaxante muscular, procuraram minimizar o risco de complicações perioperatórias graves.

Conclusões

A paraparesia espástica tropical é uma complicação neurológica rara da infecção pelo HTLV-1, endêmica no Japão, na Colômbia, no Brasil e em países das Caraíbas. Caracteriza-se pela instalação lenta e progressiva de espasticidade, hiperreflexia, fraqueza muscular predominantemente nos membros inferiores, distúrbios vesicais e alterações da sensibilidade.

O manuseio desses doentes é desafiante. Habitualmente a anestesia geral é selecionada em detrimento das técnicas anestésicas do neuroeixo pela possibilidade de exacerbação da doença. A escolha do indutor e, principalmente, do relaxante muscular a se usar (evitar sempre que possível os relaxantes despolarizantes) é primordial para evitar complicações perioperatórias graves que prolonguem o internamento hospitalar e resultem na progressão da atividade da doença. A monitoração atenta do bloqueio neuromuscular é imprescindível e indiscutível.

References

  • 1
    Centers for Disease Control and Prevention. Recomendations for counseling persons infected with HTLV type I and II, Junho 1993.
  • 2
    Kanmura Y, Komoto R, Kawasaki K, et al. Anesthetic considerations in myelopathy associated with human T-cell lymphotropic virus. Anesth Analg. 1996;83:1120-1.
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    Poveda-Jaramillo R, Pacheco A, Martínez A. Tropical spastic paraparesis and anesthesia, case report and topic review. Rev Colomb Anestesiol. 2012;40:162-6.
  • 4
    Ribas JG, Melo GC. Mielopatia associada ao vírus linfotrópico humano de células T do tipo 1 (HTLV-1). Rev Soc Bras Med Trop. 2002;35:377-84.
  • 5
    Nitahara K, Matsuyama M, Sakuragi T, et al. Depression of evoked electromyographic (EEMG) responses by propofol in a patient with human t-cell lymphotropic virus type i - associated myelopathy (HAM). Anesth Analg. 2000;91:755-7.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    5 Nov 2014
  • Aceito
    2 Dez 2014
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