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Anestesia para hemicorporectomia: relato de caso

Resumo

Introducão:

A hemicorporectomia cursa com repercussões hemodinâmicas e ventilatórias que fazem o manejo anestésico ser definitivo para o desfecho do paciente.

Objetivo:

Relatar a condução anestésica em um portador de carcinoma espinocelular submetido à hemicorporectomia de urgência após episódio de choque hipovolêmico.

Relato de caso:

Após sangramento pela lesão, paciente apresentou choque hipovolêmico classe 3, sendo submetido à abordagem de urgência sob anestesia geral inalatória e analgesia multimodal endovenosa, apresentando instabilidade hemodinâmica com necessidade de transfusão sanguínea maciça após secção medular e retirada da peça cirúrgica.

Conclusão:

O manejo pelo anestesista se faz fundamental em situações como a relatada para assegurar a sobrevida do paciente.

PALAVRAS-CHAVE
Complicações intraoperatórias; Amputação; Choque hemorrágico

Abstract

Introduction:

Hemicorporectomy progresses with hemodynamic and ventilatory repercussions that make anesthesia management definitive to patient outcome.

Objective:

Report anesthesia approach for a patient with squamous cell carcinoma submitted to urgent hemicorporectomy after an episode of hypovolemic shock.

Case report:

After lesion bleeding, the patient presented hypovolemic shock class 3, and was submitted to urgent procedure under general inhalation anesthesia and intravenous multimodal analgesia, presenting hemodynamic instability requiring massive blood transfusion after spinal cord transection and removal of surgical specimen.

Conclusion:

Anesthetic management is essential in scenarios such as the one reported to assure patient survival.

KEYWORDS
Intraoperative complications; Amputation; Hemorrhagic shock

Introdução

Hemicorporectomia, definida como desarticulação ao nível da coluna lombar e secção medular para remoção da extremidade inferior do corpo, é indicada em casos de neoplasias pélvicas e perineais localmente avançadas.11 Weaver JM, Flynn MB. Hemicorporectomy: review article. J Surg Oncol. 2000;73:117-24. Procedimento raro, com poucas descrições, cujo porte e repercussões (hemodinâmicas e ventilatórias) determinam a morbidade e sobrevida do paciente.

No primeiro momento crítico, a ligadura da artéria aorta distal ou das artérias ilíacas gera aumento da pós-carga e, por conseguinte, sobrecarga de volume para o ventrículo esquerdo o qual precisará de pressões de enchimento cada vez maiores para vencer a resistência vascular sistêmica aumentada pelo clampeamento. Isso se refletirá na elevação da pressão hidrostática capilar pulmonar, levando à transudação de fluido para os alvéolos e aumentando o risco de edema agudo de pulmão.22 MacIver DH, Clark AL. The vital role of the right ventricle in the pathogenesis of acute pulmonary edema. Am J Cardiol. 2015;115:992-1000. Em seguida, a veia cava também é ligada, reduzindo o retorno venoso e mantendo grande volume intravascular em área corporal a ser reduzida pela metade, ou seja, uma importante perda sanguínea através da peça cirúrgica, refletindo na necessidade de transfusão.33 Elliott P, Alexander JP. Translumbar amputation. Anaesthesia. 1982;37:576-81.,44 Saint Maurice JPC, Kahn M, Riniezki M, et al. Anesthesie-reanimation pour une hemicorporectomie. Cahiers Anesthesiol. 1971;4:397-413.

Outro tempo importante é a secção medular seguida de choque neurogênico, causando taquiarritmias e hipotensão severa, podendo levar à parada cardiorrespiratória.55 Barnett CC, Ahmad J, Janis JE, et al. Hemicorporectomy: back to front. Am J Surg. 2008;196:1000-2. Todavia, observa-se resposta à reposição volêmica, já que a hipotensão também é gerada ou agravada pelo sangramento; inicia-se, então, transfusão sanguínea, conforme monitorização hemodinâmica disponível.33 Elliott P, Alexander JP. Translumbar amputation. Anaesthesia. 1982;37:576-81.

Mais um fator relevante diz respeito à estimulação de dor quando, durante a manipulação cirúrgica, o manuseio prolongado do tecido faz com que nociceptores ativados estimulem o sistema nervoso central, desencadeando resposta inflamatória, o que pode aumentar a atividade autônoma neuronal, com diminuição do limiar de ativação desses receptores e aumento da resposta a estímulos supraliminares, o que se define como sensibilização periférica.66 Henriques AA, Mesquita AC, Santos AP, et al. Dor e cuidados paliativos. 1aed. Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de Anestesiologia/SBA; 2018.

Em seguida, esses estímulos geram reflexos somáticos e autonômicos, aumentando o risco de isquemia miocárdica, insuficiência cardíaca, tromboembolismo, redução de volume e capacidade pulmonares e espasmo reflexo da musculatura abdominal, o que, por sua vez, dificulta a respiração profunda e a tosse, retendo secreções e facilitando o surgimento de atelectasias e infecções de vias aéreas inferiores.77 Hui D, dos Santos R, Chisholm G, et al. Clinical signs of impending death in câncer patients. Oncologist. 2014;19:681-7.

Dessa forma, este artigo relata o caso de um portador de Carcinoma Espinocelular (CEC), submetido à cirurgia de hemicorporectomia após choque hemorrágico e que cursa com novo choque intraoperatório e o manejo anestésico para manutenção do paciente.

Relato do caso

Homem, 31 anos, 50 kg, 1,55 m, estado físico ASA P3, devido a insuficiência renal crônica não dialítica (creatinina 4 mg.dL-), anemia crônica em tratamento específico com eritropoietina (hemoglobina basal 7 g.dL-1) e espinha bífida, programado para cirurgia de hemicorporectomia por carcinoma espinocelular em região sacral com estadiamento TNM T3N1M0. Antes da cirurgia, ele apresentou choque hipovolêmico classe III devido a sangramento pela lesão; fez-se o clampeamento do vaso sangrante e transfusão sanguínea; estabilizado, iniciou-se o preparo para a cirurgia. Já com monitorização obrigatória e venóclise, foi induzido com fentanil 150 mcg, etomidato 15 mg e cisatracúrio 7,5 mg. Fez-se intubação orotraqueal e ventilação mecânica controlada por volume, punção de acesso venoso central em veia jugular interna direita e monitorização de pressão arterial invasiva em artéria radial esquerda. A contraindicação do bloqueio de neuroeixo, dada a instabilidade hemodinâmica recente, motivou analgesia com Cetamina 15 mg e sulfato de magnésio 2 g. Propofol e remifentanil em bomba de infusão contínua com dose alvo-controlada mantiveram a anestesia. Ao retirar-se a peça cirúrgica, ocorreu hipotensão grave e taquicardia, precisando de droga vasoativa e transfusão sanguínea, com melhora hemodinâmica verificada por gasometria arterial intermitente e parâmetros de monitorização. O paciente recebeu no total 10 bolsas de concentrado de hemácias, dez de plasma fresco, dez unidades de crioprecipitados e 1.500 mL de cristaloide. Após 14 horas de anestesia, ele foi levado ao CTI com droga vasoativa e parâmetros de monitorização estáveis, onde se manteve analgesia controlada de horário com tramadol e gabapentina. Passadas 48 horas pós-operatórias, o paciente foi extubado sem dor e sem desconforto ventilatório, porém mantendo droga vasoativa.

Discussão

Durante a hemicorporectomia, há dois momentos cruciais para o desfecho: a ligadura dos grandes vasos e a desarticulação da coluna lombar com a secção do cordão medular, as quais estão associadas à grande perda sanguínea e hipotensão neurogênica.

Após a ligadura da aorta, a elevação dos membros inferiores foi proposta para facilitar o retorno venoso e atuar como autotransfusão, reduzindo a necessidade de transfusão alogênica.88 Miller TR, Mackenzie AR, Randall HT. Translumbar amputation for advanced cancer: indications and physiologic alterations in rour cases. Ann Surg. 1966;164:514-21. No entanto, Elliot e Alexander (1982) não observaram aumento da pressão venosa central do seu paciente com essa manobra, não refletindo benefício para melhora volêmica, de modo que utilizaram no total dois litros de cristaloides e três unidades de Concentrado de Hemácias (CH) para compensação do paciente.33 Elliott P, Alexander JP. Translumbar amputation. Anaesthesia. 1982;37:576-81.

Ainda sobre a estabilização volêmica, Shafir et al. (1984) optaram por transfusão desde o início da cirurgia, totalizando seis unidades de CH e 6,4 litros de cristaloides, aparentemente sem benefício significativo, uma vez que não reduziu a gravidade da hipotensão neurogênica e aumentou o risco de edema agudo de pulmão, o que, no entanto, não foi relatado no caso. Ao contrário, a maioria dos autores reforça a importância de fluidoterapia com base no novo peso do paciente, o que também não foi praticado no presente relato.99 Shafir M, Abel M, Tausk H, et al. Hemicorporectomy perioperative management: A case presentation and review of literature. J Surg Oncol. 1984;6:79-82.

Outro momento com potencial de sangramento de repercussão hemodinâmica importante é a ligadura da veia cava, com maior risco de lesão acidental do plexo de Batson devido ao seu ingurgitamento, podendo ser evitado optando-se pela abordagem inicialmente anterior para divisão das estruturas vertebrais e secção da medula, conforme observado em revisão de literatura feita por Barnett Jr et al. (2008).55 Barnett CC, Ahmad J, Janis JE, et al. Hemicorporectomy: back to front. Am J Surg. 2008;196:1000-2.

Quanto às repercussões ventilatórias, neste caso, não foi observado edema agudo de pulmão, mas há relatos dessa complicação tanto no pós-operatório tardio quanto 19 anos após a cirurgia.1010 Ferrara BE. Hemicorporectomy: the contribution of Frederick E. Kredel. J S C Med Assoc. 1988;84, 83-83. Além disso, foram observadas redução da capacidade pulmonar total, capacidade vital, volume residual funcional e relação ventilação-perfusão em ambas as bases pulmonares (gerando aumento de consumo de oxigênio) progressivamente no período pós-operatório.1111 Ferrara BE. Hemicorporectomy: a collective review. J Surg Oncol. 1990;45:270-8.

Já com relação à secção medular, Elliot e Alexander (1982) observaram elevação da frequência cardíaca até 150 bpm associada a dois episódios de taquicardia supraventricular e valores de pressão sistólica abaixo de 60 mmHg, responsiva a fluidoterapia,33 Elliott P, Alexander JP. Translumbar amputation. Anaesthesia. 1982;37:576-81. tal como aqui e para Shafir et al. (1984) em que a pressão arterial média atingiu valores de 25-30 mmHg, também responsiva a volume.99 Shafir M, Abel M, Tausk H, et al. Hemicorporectomy perioperative management: A case presentation and review of literature. J Surg Oncol. 1984;6:79-82. A fim de evitar choque neurogênico, diversos autores defendem a injeção intradural de anestésico local.55 Barnett CC, Ahmad J, Janis JE, et al. Hemicorporectomy: back to front. Am J Surg. 2008;196:1000-2.

Outra preocupação durante a condução da anestesia diz respeito à analgesia. Neste caso, fez-se venosa, sem queixa de dor no pós-operatório, o que, entretanto, pode ter sido alterado devido prescrição controlada de horário de analgésicos pós-operatórios. A mesma opção foi feita por Shafir et al. (1984), cujo paciente recebeu 10 mg de pantopon e 5 mg de droperidol pré-operatórios e indução com 200 mg de cetamina, 45 mg de bloqueador neuromuscular não especificado e manutenção com óxido nitroso e enflurano; e, no pós-operatório imediato, mantido com morfina em infusão contínua (reduzindo a dose gradativamente), porém sua evolução com tremores, hipertermia e alteração de consciência provavelmente associada à síndrome de abstinência a opioides também prejudicou a avaliação do método escolhido.99 Shafir M, Abel M, Tausk H, et al. Hemicorporectomy perioperative management: A case presentation and review of literature. J Surg Oncol. 1984;6:79-82.

Já no caso de Elliott e Alexander (1982), a paciente foi pré-medicada com diazepam oral, em seguida, submetida à anestesia peridural ao nível de T6-T7 com inserção de cateter específico e injeção de 2 mg de morfina diluída em 10 mL de solução salina e, depois, induzida com tiopental, fentanil, droperidol e pancurônio, sendo a anestesia mantida com óxido nitroso, o que não impediu que ela apresentasse dores do “membro fantasma” durante a recuperação.33 Elliott P, Alexander JP. Translumbar amputation. Anaesthesia. 1982;37:576-81.

Devido à escassez de relatos sobre a anestesia para hemicorporectomia, sugere-se comparação com outro procedimento de igual porte, alterações hemodinâmicas e semelhanças técnicas, a hemipelvectomia, cuja revisão sistemática demonstrou elevadas chances de perda sanguínea com necessidade média de reposição com sete unidades de CH e 3500-8500 L de cristaloide. A anestesia de escolha foi geral associada a bloqueio peridural, com significativa superioridade da analgesia em neuroeixo sobre a venosa total, no entanto 31,4% dos pacientes apresentaram dor pós-operatória grave, 30% desenvolveram dor persistente (com durabilidade maior do que um a dois meses após a cirurgia) e 90% poderiam evoluir com dor do “membro fantasma”.1212 Couto AGH, Fonseca CO, Renni MJP, et al. Taxa de sobrevida e dados perioperatórios de pacientes submetidos à hemipelvectomia: série retrospectiva. Mundo J Surg Oncol. 2016;14:255.

O controle hemodinâmico intraoperatório tem base nos parâmetros de monitorização e é mantido durante todo o procedimento, mas com maior importância durante a ligadura dos grandes vasos pélvicos e a secção medular, quando é necessário uso de droga vasoativa e reposição volêmica criteriosa pelo anestesista, podendo levar a complicações hemodinâmicas, sobretudo pós-operatórias, que determinem a sobrevida do paciente. Assim, também é importante a estratégia adotada para analgesia como bloqueios de neuroeixo com anestésico local ou somente com opioides (como poderia ter sido feito neste caso), bloqueios periféricos e analgesia venosa. Não há definição da melhor técnica até o momento, uma vez que depende das condições do paciente, devendo ser individualizada, além de não haver estudos em série que permitam testá-las.

Desta forma, o planejamento e manejo adequados da anestesia são fundamentais para o desfecho do caso. Procedimentos raros e complexos devem ser descritos, inclusive detalhando as técnicas utilizadas, eventuais complicações e evolução clínica do paciente para nortear abordagens futuras. Neste caso, a experiência e conhecimento acumulados pela equipe médica, com base em outros procedimentos de grande porte em pacientes críticos e portadores de diversas comorbidades concorreram para o desfecho favorável do ato anestésico-cirúrgico.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Feb 2020

Histórico

  • Recebido
    8 Set 2019
  • Aceito
    9 Dez 2019
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