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Papel da ventilação não invasiva no período perioperatório de doentes com patologia neuromuscular: caso clínico

Resumos

A miosite por corpos de inclusão é uma miopatia inflamatória que cursa com inflamação crônica muscular associada à fraqueza muscular. Caracteriza-se por uma síndrome ventilatória restritiva com necessidade de suporte ventilatório sob ventilação não invasiva. Os autores descrevem caso clínico e respectivo manuseio anestésico de paciente com miopatia por corpos de inclusão proposta para vertebroplastia que realça a importância da anestesia locorregional e da ventilação não invasiva e inclui as técnicas de tosse assistida, mantidas durante todo o período perioperatório.

Ventilação não invasiva; Anestesia locorregional; Miosite por corpos de inclusão


The inclusion body myositis is an inflammatory myopathy that leads to chronic muscle inflammation associated with muscle weakness. It is characterized by a restrictive ventilatory syndrome requiring ventilatory support under non-invasive ventilation. The authors describe a clinical case and the anaesthetic management of a patient with inclusion body myopathy candidate for vertebroplasty, which highlights the importance of locoregional anaesthesia and of noninvasive ventilation and includes assisted cough techniques, maintained throughout the perioperative period.

Noninvasive ventilation; Locoregional anaesthesia; Inclusion body myositis


Introdução

As doenças neuromusculares são um desafio à feitura de procedimentos invasivos, pelo risco respiratório que acarretam. A diminuição da força muscular respiratória, a tosse ineficaz e a acumulação de secreções orofaríngeas condicionam um elevado risco de falha na extubação orotraqueal após ventilação com pressão positiva nos doentes com doença neuromuscular (DNM). Por isso são considerados como doentes de elevado risco para anestesia geral.11. Vianello A, Arcaro G, Braccioni F, et al. Prevention of extubation failure in high-risk patients with neuromuscular disease. J Crit Care. 2011;26:517-24.and22. Whitney J, Harden B, Keilty S. Assisted cough: a new technique. Physiotherapy. 2002;88:201-7. São, ainda, habitualmente doentes com comorbilidades associadas, o que os torna candidatos preferenciais a técnicas de anestesia locorregional.33. Robinson P, Douglas J, Foot C. Respiratory management of adult patients with progressive neuromuscular disease: non-invasive ventilation and the role of the intensivist. Curr Anaesth Crit Care. 2007;18:237-51.

A miosite por corpos de inclusão é uma doença rara que faz parte de um grupo de doenças musculares conhecidas como miopatias inflamatórias, que se caracterizam pela inflamação crônica muscular associada a fraqueza muscular. A diminuição da força muscular é geralmente progressiva (ocorre gradualmente durante meses ou anos) e afeta tanto a musculatura proximal como a distal e pode afetar apenas um hemicorpo. É mais frequente no sexo masculino e os sintomas da doença geralmente têm início após os 50 anos. As formas familiares surgem habitualmente na infância e não apresentam alterações inflamatórias. Ambas as formas têm inclusões intracitoplasmáticas e intranucleares do tecido muscular.44. Adam D. The infections and inflammatory myopathies. In: Ropper AH, Samuels MA, editors. Principles of neurology. 6th ed. New York: McGraw-Hill; 1997. p. 1409-10. Não existe cura para essa patologia nem um padrão claro de tratamento.

O atingimento dos músculos respiratórios, caracterizado por uma síndrome ventilatório restritivo de evolução progressiva, leva à necessidade de suporte ventilatório sob ventilação não invasiva (VNI). Dada a eficácia demonstrada da VNI associada às técnicas de tosse assistida nas DNM, essas deverão ser continuadas no período perioperatório nos doentes que já estejam fazendo previamente a VNI e simplificam, dessa forma, quer o ato cirúrgico quer o anestésico.55. Souvatzis X, Katonis PG, Licoudis SA, Marouli DG, Askitopoulou H. Subarachnoid anesthesia for kyphoplasty: is anesthesia ade- quate? Anesth Analg. 2010;111:238-40. A ventilação mecânica garante uma maior estabilidade da fisiologia da respiração, com cumprimento das trocas gasosas, e reduz, assim, os efeitos do estresse cirúrgico.44. Adam D. The infections and inflammatory myopathies. In: Ropper AH, Samuels MA, editors. Principles of neurology. 6th ed. New York: McGraw-Hill; 1997. p. 1409-10.

Caso clínico

Paciente feminina, 71 anos, seguida em consulta de pneumologia por miosite de corpos de inclusão, com risco anestésico ASA III (comorbidades associadas: hipertensão arterial, fibrilação auricular), ventilada havia cerca de cinco anos com BiPAP no domicílio (18 horas/dia), proposta para cifoplastia percutânea por fratura osteoporótica de T11-T12 ou por fratura pós-traumática de T11-T12.

Perante uma doente com elevado risco anestésico, dada a sua função pulmonar (Capacidade Vital Forçada = 1,05 L, com perda de 22% com decúbito dorsal e pico de fluxo de tosse de 120 L/min - síndrome restritiva grave com redução franca do pico de tosse), optou-se inicialmente pelo tratamento médico, com analgesia e imobilização da doente no internamento durante 12 dias.

Uma vez que, apesar da terapêutica, a doente mantinha queixas álgicas intensas, após discussão multidisciplinar do caso clínico foi decidida a cifoplastia percutânea sob VNI intraoperatória, com apoio do in-exsuflador mecânico, para garantir a eliminação das secreções que eventualmente pudessem surgir durante a cirurgia.

Para aprimoramento pré-operatório, procedeu-se à iniciação e ao ensino do uso da tosse assistida à equipe de enfermagem e aos parentes da doente na semana que precedeu o ato cirúrgico, com aprimoramento dos parâmetros ventilatórios de acordo com a oximetria noturna e a gasimetria arterial.

A cirurgia foi então feita sob anestesia epidural torácica no nível de T12-L1, com administração de 60 mg de ropivacaína 0,75%. Obteve-se um nível de bloqueio sensitivo superior em T7 e a cirurgia prosseguiu com a doente posicionada em decúbito ventral. No bloco operatório estavam presentes não só as equipas médicas de ortopedia e anestesiologia, mas também de pneumologia, para salvaguardar a eventual possibilidade de ser necessária a intubação por broncofibroscopia (pelo posicionamento) e consequente ventilação invasiva.

Durante toda a intervenção cirúrgica a doente manteve VNI por BiPAP por pressão positiva binível nas vias aéreas com máscara nasal, nas pressões de 5 cmH2O de pressão positiva expiratória nas vias aéreas (EPAP) e 18 cmH2O de pressão positiva inspiratória nas vias aéreas (IPAP), em módulo espontâneo-temporizado (ST) e sem necessidade de técnicas de tosse assistida adicionais no intraoperatório. A doente permaneceu sempre sem dor, hemodinamicamente estável e sem episódios de dessaturação, dispneia ou acumulação de secreções ao longo dos cerca de 120 minutos de duração do procedimento. A destacar ainda o fato de não ter sido necessário oxigênio suplementar. Mantiveram-se sempre saturações periféricas de oxigênio superiores a 97% em ventilação com ar ambiente. Já na Unidade de Cuidados Pós-Anestésicos, por dessaturação e referência da doente à sensação de presença de secreções brônquicas, foi usada a tosse assistida. O episódio reverteu imediatamente após a eliminação de rolhão de secreções mucosas. Sem registo de intercorrências adicionais, a doente teve alta para o internamento de ortopedia após algumas horas de recuperação, nas quais permaneceu sem complicações até a data de alta hospitalar.

Foram tomadas medidas preventivas relativamente à deambulação da doente no domicílio. Foi incentivado o recurso ao uso de cadeira de rodas e a doente manteve critérios clínicos para continuação do uso no domicílio das técnicas de tosse assistida. Foi reavaliada em consulta de pneumologia cerca de duas semanas após a cirurgia.

Discussão

A cifoplastia/vertebroplastia percutânea, técnica minimamente invasiva usada no tratamento de fraturas osteoporóticas e tumores osteolíticos dos corpos vertebrais, consiste na introdução percutânea na vértebra afetada de um balão, que após insuflação e posterior desinsuflação/remoção cria um espaço vertebral que é depois preenchido com cimento acrílico ou biológico.55. Souvatzis X, Katonis PG, Licoudis SA, Marouli DG, Askitopoulou H. Subarachnoid anesthesia for kyphoplasty: is anesthesia ade- quate? Anesth Analg. 2010;111:238-40. É uma intervenção cirúrgica que implica o posicionamento do doente em decúbito ventral e que é feita geralmente sob anestesia geral.55. Souvatzis X, Katonis PG, Licoudis SA, Marouli DG, Askitopoulou H. Subarachnoid anesthesia for kyphoplasty: is anesthesia ade- quate? Anesth Analg. 2010;111:238-40. Ao longo do tempo, com a crescente experiência dos ortopedistas nesse tipo de técnica, tem sido possível em muitos casos diminuir o tempo necessário à feitura desse tipo de cirurgia. Também tem sido possível ir ajustando a técnica anestésica associada. Assim, se inicialmente quase todos os doentes eram operados sob anestesia geral, mais recentemente tem surgido a sedação como uma opção cada vez mais usada, apesar de necessitar de ser invariavelmente complementada por uma boa anestesia local, sobretudo do periósteo.55. Souvatzis X, Katonis PG, Licoudis SA, Marouli DG, Askitopoulou H. Subarachnoid anesthesia for kyphoplasty: is anesthesia ade- quate? Anesth Analg. 2010;111:238-40. Ainda assim, há momentos específicos em que os doentes acabam por sentir algum desconforto, notadamente com a introdução dos trocars, a insuflação do balão e a injeção do cimento. 55. Souvatzis X, Katonis PG, Licoudis SA, Marouli DG, Askitopoulou H. Subarachnoid anesthesia for kyphoplasty: is anesthesia ade- quate? Anesth Analg. 2010;111:238-40.

No caso apresentado, perante as comorbidades da doente e pelo fato de se tratar de um tipo de intervenção ainda pouco frequente no hospital de origem (e, por isso, com grande probabilidade de se tornar mais demorada), nem a anestesia geral nem a sedação pareciam boas opções. Colocou-se então a hipótese de fazer um bloqueio do neuroeixo que, nesse contexto, surge com especial interesse, uma vez que, ao evitar a manipulação da via aérea e a ventilação invasiva, oferece vantagens claras em doentes com patologia neuromuscular e atingimento muscular respiratório subjacente, quer no intra quer no pós-operatório. Recentemente, Souvatzis et al. reportaram uma série de casos de doentes submetidos a cifoplastia sob bloqueio subaracnóideo (BSA). O BSA, sendo limitado no tempo, tornou-se ineficaz nos casos em que a cirurgia é prolongada.55. Souvatzis X, Katonis PG, Licoudis SA, Marouli DG, Askitopoulou H. Subarachnoid anesthesia for kyphoplasty: is anesthesia ade- quate? Anesth Analg. 2010;111:238-40. O bloqueio epidural, pela presença de cateter permite, por um lado, ultrapassar esse contratempo de cirurgia mais prolongada do que o previsto e, por outro, a necessidade intraoperatória de cifoplastia em vértebras adjacentes e possibilita ajuste do nível anestésico adequado. Adicionalmente, apesar de não descrita, a dose de anestésico local usada por esses autores condiciona habitualmente alterações hemodinâmicas mais significativas do que em caso de anestesia epidural, instabilidade essa a evitar em doentes de alto risco anestésico.

O fato de se ter proposto esse procedimento anestésico, e com a ventilação garantida por VNI, possibilitou que a uma doente com patologia neuromuscular fosse oferecida uma opção terapêutica que permitisse a resolução imediata da sua situação clínica, com alta médica ao terceiro dia pós-operatório, a deambular com apoio e sem referir dor. De outra forma, as opções consistiriam ou em tratamento médico conservador (com imobilização e todos os riscos associados) ou em cifoplastia sob anestesia geral, com ventilação invasiva, o que implicaria um pós-operatório de cuidados intensivos e eventual necessidade de traqueostomia e descanulação e acarretaria um maior período de internamento e consequente risco de patologia nosocomial.

A avaliação e a vigilância multidisciplinar durante todo o período peri-operatório, incluindo o procedimento cirúrgico, foram fundamentais para o sucesso terapêutico, uma vez que estavam garantidas e salvaguardadas situações de eventual necessidade de suporte ventilatório invasivo ou instabilidade hemodinâmica que pudessem surgir.

A destacar ainda a importância nesse tipo de doentes de um aprimoramento pré-operatório da disfunção respiratória subjacente. As técnicas de tosse assistida contribuem, em todo o perioperatório, para uma minimização do risco das intercorrências respiratórias a que esses doentes estão propensos. No caso apresentado não houve necessidade de técnicas de tosse assistida no intraoperatório, fato atribuído a seu extenso uso no pré-operatório.

A reavaliação da doente na segunda semana pós-operatória permitiu concluir que a qualidade de vida era superior à apresentada previamente à fratura/tratamento cirúrgico, o que demonstra claramente os benefícios das opções clínicas escolhidas.

Conclusão

A anestesia epidural, ao evitar a manipulação da via aérea, oferece inúmeras vantagens em doentes com patologia neuromuscular com necessidade de serem submetidos a intervenções cirúrgicas.

O acompanhamento multidisciplinar e o recurso a técnicas de suporte ventilatório garantem a esses doentes uma melhor qualidade de vida e devem, por isso, ser promovidos em todo o perioperatório.

References

  • 1
    Vianello A, Arcaro G, Braccioni F, et al. Prevention of extubation failure in high-risk patients with neuromuscular disease. J Crit Care. 2011;26:517-24.
  • 2
    Whitney J, Harden B, Keilty S. Assisted cough: a new technique. Physiotherapy. 2002;88:201-7.
  • 3
    Robinson P, Douglas J, Foot C. Respiratory management of adult patients with progressive neuromuscular disease: non-invasive ventilation and the role of the intensivist. Curr Anaesth Crit Care. 2007;18:237-51.
  • 4
    Adam D. The infections and inflammatory myopathies. In: Ropper AH, Samuels MA, editors. Principles of neurology. 6th ed. New York: McGraw-Hill; 1997. p. 1409-10.
  • 5
    Souvatzis X, Katonis PG, Licoudis SA, Marouli DG, Askitopoulou H. Subarachnoid anesthesia for kyphoplasty: is anesthesia ade- quate? Anesth Analg. 2010;111:238-40.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Feb 2016

Histórico

  • Recebido
    05 Mar 2013
  • Aceito
    10 Jun 2013
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