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Antinocicepção intravenosa sem opioides orientada pelo Índice de Analgesia/Nocicepção: relato de caso

Resumo

Introdução

A anestesia sem opioides diminui a incidência de eventos adversos associados aos opioides, mas a profundidade antinociceptiva ideal dessa abordagem não está claramente definida. Personalizar a infusão intraoperatória sem opioides com o uso de monitor de nocicepção pode ser a solução.

Relato de caso

Descrevemos a viabilidade e as eventuais limitações da titulação da antinocicepção sem opioides por meio do uso do Índice de Analgesia/Nocicepção (Mdoloris, Lille, França) durante cirurgia abdominal de grande porte em paciente com obesidade. Depois de estabilizar o equilíbrio nocicepção-antinocicepção da paciente no intraoperatório, revertemos rapidamente a anestesia e a paciente não precisou de opioides no pós-operatório.

Conclusão

A personalização da antinocicepção sem opioides por meio do emprego de monitor de nocicepção é factível. A abordagem pode otimizar a antinocicepção intraoperatória e melhorar o conforto pós-operatório.

Palavras-chave
Nocicepção; Dor; Medicina perioperatória; Monitorização

Abstract

Background:

Opioid-free anesthesia decreases the incidence of opioid adverse events, but its optimal antinociceptive depth has not been clearly defined. Personalizing intraoperative opioid-free infusions with a nociception monitor may be the solution.

Case report:

We describe the feasibility and potential limitations of titrating opioid-free antinociception during major abdominal surgery using the Analgesia Nociception Index (Mdoloris, Lille, France) in an obese patient. After stabilizing the patient’s nociception-antinociception balance intraoperatively we quickly reversed anesthesia and the patient did not require postoperative opioids.

Conclusion:

Personalizing opioid-free antinociception with a nociception monitor is feasible. It may optimize intraoperative antinociception and improve postoperative comfort.

Keywords
Nociception; Pain; Perioperative medicine; Monitoring

Introdução

Foi demonstrado que a Anestesia Sem Opioides (ASO) diminui as complicações pós-operatórias associadas aos opioides e pode ser uma ferramenta útil para melhorar a recuperação após a cirurgia.11 Wu CL, King AB, Geiger TM, et al. American Society for Enhanced Recovery and Perioperative Quality Initiative Joint Consensus Statement on Perioperative Opioid Minimization in Opioid-NaivePatients. Anesth Analg. 2019;129:567-77.

No entanto, até hoje, pouco está definido sobre o uso de monitores nociceptivos e sua capacidade de guiar o componente antinociceptivo da ASO. Determinar a analgesia para o obeso mórbido é um desafio singular na medicina perioperatória.22 Nightingale CE, Margarson MP, Shearer E, et al. Peri-operativemanagement of the obese surgical patient 2015: Association of Anaesthetists of Great Britain and Ireland Societyfor Obesity and Bariatric Anaesthesia. Anaesthesia. 2015;7:859-76. Os opioides são os analgésicos mais potentes disponíveis, mas também são responsáveis por apreciáveis efeitos colaterais. Mais especificamente, os pacientes obesos podem desenvolver depressão respiratória pós-operatória e apneia obstrutiva que podem levar à hipercapnia, hipoxemia e até o óbito.22 Nightingale CE, Margarson MP, Shearer E, et al. Peri-operativemanagement of the obese surgical patient 2015: Association of Anaesthetists of Great Britain and Ireland Societyfor Obesity and Bariatric Anaesthesia. Anaesthesia. 2015;7:859-76. Além disso, a incidência de obesidade aumenta constantemente e, mais do que nunca, os anestesiologistas precisam encontrar alternativas na monitorização e na terapia perioperatória que melhorem os desfechos do paciente. ASO é uma resposta potencial para o problema, uma vez que a administração de analgésicos não opioides que tenham efeito limitado sobre os controle da respiração e que diminuam a necessidade de opioides pós-operatórios possibilita o despertar mais rápido, seguro e confortável desses pacientes.33 Bakan M, Umutoglu T, Topuz U, et al. Opioid-free total intravenous anesthesia with propofol, dexmedetomidine andlidocaine infusions for laparoscopic cholecystectomy: a prospective, randomized, double-blinded study. Brazilian J Anesthesiol(English Ed). 2015;65:191-9. A abordagem pode, entretanto, ser limitada por metas analgésicas não determinadas e os próprios analgésicos não opioides podem ser responsáveis por eventos adversos.

Uma abordagem alvo-direcionada, que visa adequada antinocicepção (p. ex., medindo o equilíbrio nociceptivo-antinociceptivo) e narcose (por exemplo, com eletroencefalograma frontal) poderia reduzir os efeitos negativos da infusão excessiva de drogas. O Índice de Analgesia/Nocicepção (IAN) (MDoloris, Lille, França) mostrou capacidade de orientar a antinocicepção intraoperatória com base em opioides e prever a dor pós-operatória.44 Turan G, Ar AY, Kuplay YY, et al. Analgesia Nociception Index forperioperative analgesia monitoring in spinal surgery. Brazilian J Anesthesiol (English Ed). 2017;67:370-5.,55 Abdullayev R, Uludag O, Celik B. Analgesia Nociception Index: assessment of acute postoperative pain. Brazilian J Anesthesiol. 2019;69:396-402. Ao analisar o domínio de alta frequência (ou seja, 0,15 a 0,5 Hz) da variabilidade da frequência cardíaca e corrigindo a variabilidade da frequência respiratória, o ANI tenta avaliar o equilíbrio do sistema nervoso autônomo como um substituto para a nocicepção. Partindo-se do pressuposto que a variabilidade da frequência cardíaca é mediada predominantemente pelo sistema parassimpático, o IAN exibe um parâmetro numérico sem unidade que aumenta com a atividade parassimpática (ou seja, 0 – nenhum tônus parassimpático, 100 – nenhum tônus simpático).55 Abdullayev R, Uludag O, Celik B. Analgesia Nociception Index: assessment of acute postoperative pain. Brazilian J Anesthesiol. 2019;69:396-402. A nocicepção estimula uma resposta simpática e, por consequência, quanto mais nocivo um estímulo, menor o valor no IAN. Uma observação importante é que a variabilidade da frequência cardíaca não é puramente um indicador de nocicepção, mas da resposta do paciente ao estresse e inflamação.66 Williams DWP, Koenig J, Carnevali L, et al. Heart rate variabilityand inflammation: A meta-analysis of human studies. Brain Behav Immun. 2019;80:219-26

Embora o IAN tenha sido consideravelmente estudado durante técnica anestésica baseada em opioides, sua utilidade na ASO ainda precisa ser determinada.

Foi obtido consentimento informado por escrito e este manuscrito segue as diretrizes do CARE.

Relato de caso

Relatamos o caso de uma paciente de 56 anos com classificação do estado físico da American Society of Anesthesiology (ASA) 3, com queixa de incontinência urinária por fístula do trígono vesico-vaginal, que necessitou de cistectomia laparoscópica e aberta combinadas e urostomia do conduto ileal. A paciente foi atendida no CHU Rennes e deu consentimento para o relato de caso. Com peso de 140 kg para uma altura de 162 cm, o Índice de Massa Corporal (IMC) foi calculado em 53 kg.m-2. Associados à obesidade mórbida, apresentava diabetes tipo 2 e hipertensão arterial. Optamos por evitar o uso de opioide no intraoperatório e decidimos pela anestesia combinada intravenosa e inalatória sem opioide.

A paciente estava em jejum no pré-operatório por pelo menos 6 horas para sólidos e 2 horas para líquidos claros. Foi monitorada com monitores ASA padrão, Índice Bispectral (Covidien, Dublin, Irlanda), IAN e sequência de quatro estímulos TOF-Watch (Alsevia Pharma, Paris, França). Um cateter intravenoso periférico de calibre 18 foi instalado e a infusão de cristaloides fixada em 3 mL.kg-1.h-1. Os alvos para a pressão arterial média, o índice bispectral e o IAN foram definidos como superiores a 70 mmHg, entre 40 e 60 e entre 50 e 70, respectivamente. Após 3 minutos de pré-oxigenação, as infusões de dexmedetomidina, cetamina e lidocaína foram iniciadas nas velocidades de infusão de 2,3 µg.kg-1.h-1, 0,12 mg.kg-1.min-1 e 0,85 mg.kg-1.h-1, respectivamente. A perda da consciência foi obtida com bolus de 150 mg de propofol e, após obtenção de ventilação adequada, foram administrados 10 mg de cisatracúrio e 12 mg de dexametasona. Sevoflurano foi ajustado para manter o índice bispectral entre 40 e 60. A infusão de cetamina e dexmedetomidina foi ajustada para manter IAN entre 50 e 70. As taxas de infusão de cetamina e dexmedetomidina foram modificadas em 10% a 50% a critério do anestesiologista. Se o IAN aumentasse e o índice bispectral diminuísse, apesar dos valores constantes da expiração do sevoflurano, a dexmedetomidina era reduzida primeiro. Cisatracúrio foi infundido para manter sequência de quatro estímulos de 0 durante a parte laparoscópica da cirurgia. Um cateter venoso central e cateter urinário foram colocados e 1 g de paracetamol e 100 mg de cetoprofeno foram administrados antes da incisão. A duração da anestesia foi de 516 minutos; da cirurgia, 441 minutos (185 minutos de laparoscopia); e a extubação ocorreu 10 minutos após o término da cirurgia. Um episódio de hipotensão (70/40 mmHg) associado a bradicardia (40 bpm) ocorreu na indução e regrediu com a intubação traqueal. A frequência cardíaca e a pressão arterial média mantiveram-se acima de 50 bpm e 70 mmHg durante o restante do ato anestésico.

Não foram necessários vasopressores ou agentes inotrópicos. O BIS e o IAN permaneceram na faixa-alvo por 84% e 60% do tempo do caso, respectivamente. O bloqueio neuromuscular foi totalmente revertido no final da cirurgia. Os principais eventos intraoperatórios são detalhados na tabela 1.

Tabela 1
Índice Analgesia/Nocicepção, Índice Bispectral, frequência cardíaca, pressão arterial média e administração dos anestésicos

A paciente foi extubada na sala de cirurgia e chegou à sala de recuperação pós-anestésica com pressão arterial de 115/70 mmHg, frequência cardíaca de 67 bpm e oximetria de pulso de 92% com máscara de oxigênio a 6 L.min-1. A oximetria de pulso subiu rapidamente para 98% com máscara de oxigênio a 8 L.min-1. O oxigênio foi diminuído progressivamente e a oximetria de pulso permaneceu acima de 94% pelo restante dos cuidados pós-anestésicos. Além da infusão de lidocaína 0,4 mg.kg-1.h-1 por duas horas, nenhum outro analgésico foi administrado. A paciente não apresentou queixas e teve alta da sala de recuperação pós-anestésica 159 minutos após admissão. O paracetamol controlou adequadamente a dor na enfermaria. Durante o período de hospitalização, a função renal permaneceu normal, mas o período pós-operatório foi complicado por infecção do sítio cirúrgico no 8° dia, que exigiu atenção. Ela voltou para casa 23 dias após a cirurgia.

Discussão

Este relato de caso evidencia a viabilidade da anestesia combinada intravenosa sem opioides e inalatória para paciente obesa submetido a cirurgia abdominal de grande porte. Não foram administrados opioides à paciente durante todo o período perioperatório. Além disso, mostramos a possibilidade e os desafios de aplicar um protocolo de antinocicepção dirigido por metas durante a ASO. Embora nossa estratégia tenha permitido a rápida recuperação anestésica no período pós-operatório imediato, a adesão ao protocolo durante o caso poderia ser melhorada com relação ao IAN (ou seja, 60% do tempo do caso com IAN entre 50 e 70). Quanto ao BIS, a adesão ao protocolo anestésico guiado por metas, no entanto, foi consideravelmente melhor (ou seja, 84% do tempo do caso com índice bispectral na faixa estabelecida pelo protocolo). Uma das principais limitações do uso de analgésicos não opioides é o tempo de ação relativamente prolongado. Nossa paciente, por exemplo, permaneceu com IAN acima de 70 por mais de uma hora, apesar da diminuição da infusão de dexmedetomidina em 40%. Além disso, as múltiplas tarefas que devem ser desenvolvidas pelo anestesiologista no ambiente perioperatório frequentemente limitam a adesão do profissional ao protocolo. Usar um sistema de apoio à decisão ou até mesmo um sistema totalmente automatizado que acopla um monitor nociceptivo com bombas de infusão de analgésicos pode ajudar o médico a melhorar a adesão ao protocolo.77 Coeckelenbergh S, Zaouter C, Alexander B, et al. Automatedsystems for perioperative goal-directed hemodynamic therapy. J Anesth. 2020;34:104-14. Apesar dessas dificuldades, no entanto, ainda fomos capazes de estabilizar o equilíbrio nocicepção-antinocicepção da paciente e mantivemos o IAN entre 50 e 70 até o final da cirurgia sem qualquer instabilidade hemodinâmica intraoperatória. Fomos então capazes de reverter rapidamente a anestesia e a paciente não desenvolveu náuseas, insuficiência respiratória ou apneia obstrutiva pós-operatória. A total ausência de opioides no manejo analgésico perioperatório da paciente pode ter sido um fator determinante na rápida recuperação da paciente na unidade de cuidados pós-operatórios.

É importante ressaltar que, embora muitos estudos tenham analisado os efeitos da ASO na necessidade de opioides no pós-operatório, até onde sabemos, pouco foi publicado sobre monitoramento nociceptivo e ASO. Ao otimizar o equilíbrio nocicepção-antinocicepção do paciente no intraoperatório, existe a possibilidade de eliminar completamente a necessidade de opioides pós-operatórios para alguns pacientes. Nossa equipe está investigando os efeitos das técnicas para eliminação do uso de opioides guiadas por metas de antinocicepção, e estudos futuros, incluindo séries de casos, análises retrospectivas e ensaios clínicos randomizados, determinarão se a otimização intraoperatória da antinocicepção melhora o conforto pós-operatório e o desfecho. Algumas populações, como os pacientes com obesidade mórbida, podem se beneficiar muito com essa estratégia analgésica personalizada sem opioide. A antinocicepção sem opioides guiada por metas é factível e pode otimizar a analgesia perioperatória, o que levaria ao maior conforto pós-operatório.

Agradecimentos

Os autores gostariam de agradecer à equipe médica e de enfermagem do CHU Rennes.

Glossário

  • IAN  Índice Analgesia/Nocicepção
  • BPM  Batimentos Por Minuto
  • IMC  Índice de Massa Corporal
  • CARE  Relato de Caso

References

  • 1
    Wu CL, King AB, Geiger TM, et al. American Society for Enhanced Recovery and Perioperative Quality Initiative Joint Consensus Statement on Perioperative Opioid Minimization in Opioid-NaivePatients. Anesth Analg. 2019;129:567-77.
  • 2
    Nightingale CE, Margarson MP, Shearer E, et al. Peri-operativemanagement of the obese surgical patient 2015: Association of Anaesthetists of Great Britain and Ireland Societyfor Obesity and Bariatric Anaesthesia. Anaesthesia. 2015;7:859-76.
  • 3
    Bakan M, Umutoglu T, Topuz U, et al. Opioid-free total intravenous anesthesia with propofol, dexmedetomidine andlidocaine infusions for laparoscopic cholecystectomy: a prospective, randomized, double-blinded study. Brazilian J Anesthesiol(English Ed). 2015;65:191-9.
  • 4
    Turan G, Ar AY, Kuplay YY, et al. Analgesia Nociception Index forperioperative analgesia monitoring in spinal surgery. Brazilian J Anesthesiol (English Ed). 2017;67:370-5.
  • 5
    Abdullayev R, Uludag O, Celik B. Analgesia Nociception Index: assessment of acute postoperative pain. Brazilian J Anesthesiol. 2019;69:396-402.
  • 6
    Williams DWP, Koenig J, Carnevali L, et al. Heart rate variabilityand inflammation: A meta-analysis of human studies. Brain Behav Immun. 2019;80:219-26
  • 7
    Coeckelenbergh S, Zaouter C, Alexander B, et al. Automatedsystems for perioperative goal-directed hemodynamic therapy. J Anesth. 2020;34:104-14.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    Nov-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    17 Fev 2020
  • Aceito
    4 Jul 2020
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