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Cisto hidático na medula cervical complicada por via aérea difícil com potencial risco de vida: relato de caso

Resumo

O cisto hidático na região cervical é uma condição extremamente rara que pode criar desafios para os anestesiologistas. O reconhecimento oportuno das vias aéreas difíceis e a preparação do plano de manejo são cruciais para evitar complicações com risco de vida, como danos cerebrais hipóxicos. Descrevemos um caso de difícil controle das vias aéreas em um paciente com cisto hidático cervical maciço. Utilizamos sedação com cetamina-propofol em baixa dose e spray de lidocaína para anestesia local orofaríngea. Relaxantes musculares não foram utilizados e a respiração espontânea foi mantida durante a intubação. O reconhecimento, a avaliação e o planejamento perioperatório são essenciais para o manejo difícil das vias aéreas em pacientes com cisto hidático cervical.

PALAVRAS-CHAVE
Manuseio das vias aéreas; Intubação intratraqueal; Obstrução das vias respiratórias; Equinococose

Abstract

Hydatid cyst in the cervical region is an extremely rare condition that can create challenges for anesthesiologists. Timely recognition of difficult airway and preparing the management plan is crucial to avoid life-threatening complications such as hypoxic brain damage. We describe a case of difficult airway management in a patient with massive cervical hydatid cyst. We used a low-dose ketamine-propofol sedation and lidocaine spray for local oropharyngeal anesthesia. Muscular relaxants were not used, and spontaneous breathing was maintained during intubation. Recognition, assessment, and perioperative planning are essential for difficult airway management in patients with cervical hydatid cyst.

KEYWORDS
Airway management; Intratracheal intubation; Airway obstruction; Cystic echinococcosis

Introdução

A doença hidática é uma infecção causada pelo Echinococcus granulosus, que é prevalente principalmente na América do Sul, Sul da Ásia Oriental, Nova Zelândia, Austrália e Médio Oriente.11 Jarboui S, Hlel A, Daghfous A, et al. Unusual location of primary hydatid cyst: soft tissue mass in the supraclavicular region of the neck. Case reports in medicine. 2012. Cistos hidáticos na medula ocorrem em 1% de todos os casos e são mais frequentemente localizados na porção dorsal.22 Pamir MN, Akalan N, Özgen T, et al. Spinal hydatid cysts. Surgical neurology. 1984;21:53-7. Nos estágios iniciais, a doença hidática é geralmente assintomática e o diagnóstico definitivo é realizado por métodos de imagem, tais como ultrassonografia, Tomografia Computadorizada (TC), Ressonância Magnética (RM) e imunodiagnóstico.33 Zhang W, McManus DP. Recent advances in the immunology and diagnosis of echinococcosis. FEMS Immunol Med Microbiol. 2006;47:24-41. A localização cervical do cisto hidático pode ser um desafio para neurocirurgiões e anestesiologistas. O manejo inadequado das vias aéreas pode levar a consequências perigosas, potencialmente letais. O reconhecimento oportuno de vias aéreas difíceis e preparo do plano de manejo são cruciais para evitar complicações com risco de vida, como lesão cerebral hipóxica e óbito. O objetivo deste relato de caso é apresentar nossos pontos de vista em relação ao manejo de um paciente com cisto hidático gigante na medula cervical com obstrução das vias aéreas, pela perspectiva da anestesiologia.

Relato de caso

Um paciente do sexo masculino com 25 anos de idade foi admitido ao departamento de neurocirurgia de medula do National Neurosurgery Center, com história recorrente de cisto hidático na região cervical. Havia sido internado previamente em nosso hospital três anos antes para retirada de cisto hidático no nível de C3-C4-C5, ressecção de corpos vertebrais de C3-C4-C5 e espondilodese C2-C6. A doença recorreu em um período de três anos e levou a obstrução grave das vias aéreas. Na admissão, a RM mostrou crescimento progressivo do cisto hidático na região cervical com crescimento para a região paravertebral, compressão da medula, mielomalácia no nível de C3-C4 (fig. 1).

Figura 1
Corte sagittal de RM cervical de cabeça e pescoço mostrando crescimento progressivo de cisto hidático (flecha), compressão da medula cervical, esôfago e vias aéreas (traqueia, laringe, faringe).

No exame pré-anestésico de rotina, não conseguiu a extensão do pescoço devido à espondilodese e classificação de Mallampati modificada grau IV. A faringe estava quase completamente obstruída pela parede faríngea posterior pelo crescimento do cisto hidático. O paciente estava ligeiramente agitado, mais provavelmente em função da leve hipóxia e hipercapnia. O SpO2 era 89%−92%−94% e pO2, 81 mmHg; enquanto recebia 3 litros de oxigênio por minuto via cânula nasal, o pCO2 se manteve a 48 mm.Hg, a pressão arterial não invasiva a 140/90 mm.Hg e pulso de 88 batimentos por minuto. O paciente foi encaminhado como emergencial à sala de cirurgia.

Na sala de cirurgia, realizamos monitoramento anestésico padrão, incluindo monitoramento de saturação periférica de hemoglobina, pulso, ECG, pressão arterial não invasiva e temperatura. Após cateterização de veia periférica com cânula intravenosa 18G, começamos infusão de soro fisiológico padrão. Com a previsão de intubação difícil, convidamos um endoscopista e trouxemos o carrinho e material de via aérea difícil para estabelecimento da via cirúrgica. Não conseguimos realizar a endoscopia pré-operatória de vias aéreas (como método avançado de avaliação de vias aéreas) porque foi impossível passar o endoscópio pelas áreas comprimidas da faringe, laringe e traqueia. Como o paciente estava agitado e não inteiramente cooperante, não consideramos intubação acordada sob bloqueio regional e decidimos realizar intubação traqueal sob sedação mínima a moderada e anestesia tópica da orofarínge em respiração espontânea.

Usamos a seguinte técnica de intubação: pré-oxigenação consciente com 100% de oxigênio por 6 minutos, seguida por sedação mínima, que incluiu administração intravenosa de 0,5 mg.kg-1 de propofol para sedação e dose sub-hipnótica de cetamina (0,7 mg.kg-1) para analgesia, lidocaína spray a 10% para anestesia tópica da orofaringe, sem bloqueadores musculares; a respiração espontânea foi conservada. Antes da laringoscopia, usou-se lidocaína spray a 10% na faringe para anestesia local da orofaringe. Após laringoscopia direta, o broncoscópio de fibra ótica foi inserido na traqueia e o tubo endotraqueal foi guiado sob controle visual. O local correto foi confirmado por visualização por fibra ótica, etCO2, ausculta bilateral dos pulmões. Este método nos permitiu conservar o oxigênio alto, minimizar o risco de depressão respiratória e encurtar o tempo de indução para intubação, enquanto se realizava analgesia adequada. A saturação arterial não caiu abaixo de 90% durante o período de indução e intubação. A cirurgia durou três horas e foi finalizada com sucesso. Após a cirurgia, o paciente foi transferido para a unidade de Recuperação Pós-Anestésica (RPA) e extubado sem intercorrências após completa recuperação da anestesia.

Discussão e conclusão

O preparo para via aérea difícil deve incluir equipamento para o manejo de vias aéreas difíceis, informando e incluindo profissionais experientes em manejo de via aérea difícil, pré-oxigenação com oxigênio a 100%, e administração de oxigênio durante manejo das vias aéreas.44 Apfelbaum JL, Hagberg CA, Caplan RA, et al. Practice guidelines for management of the difficult airwayan updated report by the American Society of Anesthesiologists task force on management of the difficult airway. Anesthesiology. 2013;118:251-70. Cistos hidáticos cervicais podem ser reconhecidos como causa potencial de via aérea difícil. Como tais pacientes podem chegar com obstrução de vias aéreas, pode ser impossível usar algumas opções de manejo de via aérea difícil, como a máscara laríngea. A estratégia para via aérea difícil deve ser planejada antes. A escolha de hipnóticos, sua dose e a profundidade da sedação podem ter um papel crucial e até espelhar um erro mínimo que pode levar a consequências trágicas. Nosso paciente apresentava vários fatores de risco para via aérea difícil. Primeiro, foi internado em estágio avançado de doença, com estreitamento grave da faringe, laringe e traqueia que levou a dificuldades na respiração. Poderia resultar em insuficência respiratória grave mesmo se tivesse sido internado vários dias depois. Segundo, como havia sido submetido a espondilodese cervical recentemente, não havia flexão ou extensão do pescoço, causando dificuldades adicionais no manejo das vias aéreas. Antes da cirurgia, o paciente ficou agitado e foi díficil manter sua cooperação, portanto, não usamos anestesia regional para intubação acordada. Decidimos realizar intubação com respiração espontânea. Fracionamos lentamente uma combinação de dose subhipnótica de cetamina (0,7 mg.kg-1) e propofol (0,5 mg.kg-1). O spraying maciço da área orofaríngea com lidocaína pareceu propiciar anestesia tópica suplementar. O paciente foi sedado adequadamente, e a respiração espontânea, conservada. Uma alternativa para dose baixa de cetamina e propofol poderia ser dexmedetomedina, que tem sido usada para “indução consciente” embora só haja poucos casos publicados até o presente.55 Bergese SD, Khabiri B, Roberts WD, et al. Dexmedetomidine for conscious sedation in difficult awake fiberoptic intubation cases. Journal of clinical anesthesia. 2007;19:141-4.

Embora o método que usamos tenha sido bem sucedido, os seguintes métodos também poderiam ser considerados nessa situação: 1) Sedação consciente com dexmedetomedina + anestesia regional e anestesia tópica da orofaringe com spray de lidocaína seguido de intubação orotraqueal; 2) Estabelecimento de via aérea cirúrgica sob anestesia regional com auxílio do cirurgião otorrino. Entretanto, como a anatomia cervical do nosso paciente era distorcida (devido ao cisto hidático), a via aérea cirúrgica também poderia ser difícil de estabelecer. Embora não possamos depender do resultado de um único caso, acreditamos que possa ser útil para a prática dos anestesiologistas.

Concluindo, este caso enfatiza o manejo de via aérea difícil em um paciente com cisto hidático na medula cervical. Cisto hidático na medula cervical pode levar a complicações com ameaça à vida, e a mais temida é a obstrução causando via aérea difícil. O reconhecimento, avaliação e planejamento pré-operatório do manejo de vias aéreas difíceis é essencial para o tratamento cirúrgico do cisto hidático cervical.

References

  • 1
    Jarboui S, Hlel A, Daghfous A, et al. Unusual location of primary hydatid cyst: soft tissue mass in the supraclavicular region of the neck. Case reports in medicine. 2012.
  • 2
    Pamir MN, Akalan N, Özgen T, et al. Spinal hydatid cysts. Surgical neurology. 1984;21:53-7.
  • 3
    Zhang W, McManus DP. Recent advances in the immunology and diagnosis of echinococcosis. FEMS Immunol Med Microbiol. 2006;47:24-41.
  • 4
    Apfelbaum JL, Hagberg CA, Caplan RA, et al. Practice guidelines for management of the difficult airwayan updated report by the American Society of Anesthesiologists task force on management of the difficult airway. Anesthesiology. 2013;118:251-70.
  • 5
    Bergese SD, Khabiri B, Roberts WD, et al. Dexmedetomidine for conscious sedation in difficult awake fiberoptic intubation cases. Journal of clinical anesthesia. 2007;19:141-4.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Out 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Oct 2020

Histórico

  • Recebido
    6 Jul 2019
  • Aceito
    1 Ago 2020
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