Open-access Reação alérgica ao corante azul patente em cirurgia de mama - relato de caso

Resumo

Os autores apresentam um caso de reação alérgica ao azul patente em uma paciente submetida à exérese de linfonodo em sentinela associada a uma ressecção segmentar de mama. Paciente apresentou aproximadamente pós 20 minutos da injeção do corante hipotensão (PA = 70 × 30 mmHg) associada a aumento da frequência cardíaca. Foi tratada satisfatoriamente com diminuição da fração inspirada do anestésico inalatório e reposição volêmica. No fim do procedimento apresentava placas urticariformes azuladas em cabeça, pescoço, membros superiores e tronco e foi usada hidrocortisona. Evoluiu, sem intercorrências, na sala de recuperação pós-anestésica e teve alta duas horas após o término do procedimento cirúrgico sem a presença das alterações cutâneas. Alta hospitalar na manhã seguinte à cirurgia. A incidência de reações alérgicas com o emprego do azul patente é muito superior às reações de hipersensibilidade observadas com drogas anestésicas e adjuvantes. Portanto, o anestesiologista deve ficar atento à instabilidade cardiovascular associada a alterações cutâneas quando do uso do azul patente para o diagnóstico precoce e tratamento adequado dessa reação de hipersensibilidade com o emprego do corante.

PALAVRAS-CHAVE Anestesia; Anafilaxia; Hipersensibilidade; Azul patente

Abstract

We present a case of allergic reaction to patent blue in a patient who underwent excision of sentinel lymph node associated with segmental breast resection. About 20 min after the dye injection, the patient developed hypotension (BP = 70 × 30 mmHg) associated with increased heart frequency. The patient was treated successfully with decreased inspired fraction of inhaled anesthetic and fluid replacement. At the end of the procedure, she presented with bluish urticarial-like plaques on the head, neck, upper limbs, and trunk; hydrocortisone was then used. The patient recovered uneventfully and was discharged from the PACU 2 h after the end of surgery without skin changes, and was discharged from hospital on the morning after surgery. The incidence of allergic reactions with the use of patent blue is far superior to the hypersensitivity reactions seen with anesthetic and adjuvant drugs. Therefore, the anesthesiologist must be aware of cardiovascular instability associated with skin changes during the use of patent blue, for early diagnosis and appropriate treatment of this hypersensitivity reaction to this dye.

KEYWORDS Anesthesia; Anaphylaxis; Hypersensitivity; Patent blue

Introdução

A biopsia do linfonodo sentinela no tratamento cirúrgico do câncer de mama inicial vem sendo amplamente usada como parte do protocolo de rotina e evita a linfadenectomia total na maioria dos casos.1,2 Para identificação do linfonodo pode ser usado o corante azul patente ou o radiofármaco tecnésio, ambos de forma isolada ou em associação.1 No entanto têm sido relatadas reações de hipersensibilidade, mediada por IgE, ao corante azul patente, em uma incidência média de 1,8% (0,1% a 2,8%), reações essas em alguns casos severas, com repercussões hemodinâmicas graves, que necessitam de drogas vasoativas.1-4 Essa frequência é superior à das reações de hipersensibilidade observadas durante a anestesia, que é em torno de 0,01% a 0,02%.5

Outro efeito observado com o uso do azul patente são as alterações da oximetria de pulso, em função da interferência na leitura do comprimento de onda, usado para medir a oxi-hemoglobina.2 O objetivo deste relato é apresentar um caso de reação alérgica no período intraoperatório após injeção subcutânea periareolar do corante azul patente.

Relato de caso

Paciente, 45 anos, 72 kg, P2, proveniente do Centro de Oncologia (Ceon) do Hospital Universitário Oswaldo Cruz, da Universidade de Pernambuco (UPE), Recife, programada para ressecção segmentar de mama esquerda com ressecção de linfonodo em sentinela. Na avaliação pré-anestésica relata hipertensão arterial e uso de enalapril sem outras comorbidades. Nega alergias a medicamentos, alimentos e ao látex. Nega tabagismo. Etilista social. Relata uso de medicação ansiolítica (bromazepam). Refere anestesias anteriores sem complicações. Exames pré-operatórios: parecer cardiológico, hemograma, coagulograma, bioquímica (ureia, glicose, creatinina, TGO, TGP) e urinálise sem anormalidades. Não foi feita medicação pré-anestésica. Ao chegar à sala de cirurgia foi feita punção venosa com cateter de teflon n° 20G no membro superior direito. Monitoração básica com cardioscópio, oxímetro de pulso e pressão arterial não invasiva que mostrava ritmo cardíaco regular sinusal, frequência cardíaca (FC) de 90 bpm, saturação de oxigênio (SatO2) de 98% e pressão arterial de 130 × 70 mmHg. Após pré-oxigenação com O2 a 100% sob máscara e administração de cefazolina (2 gr), a indução da anestesia foi feita com o uso de fentanil (250 µg), propofol (150 mg) e rocurônio (50 mg). Intubação traqueal com tubo 7,5 mm com balonete e complementação da monitoração básica com o uso do capnógrafo. Ventilação controlada mecânica com volume corrente de 570 mL e frequência respiratória de 12 ipm. Nesse momento os parâmetros cardiorrespiratórios evidenciavam ritmo cardíaco regular sinusal, FC: 85 bpm, SatO2: 100%, ETCO2: 30 e PNI: 110 × 65 mmHg. A manutenção da anestesia foi obtida com o uso de sevoflurano (2% a 2,5%) e O2-N2O (50%-50%). Imediatamente antes da incisão cirúrgica foi administrado azul patente a 2,5% (2 mL) no tecido subcutâneo periareolar. Aproximadamente 20 minutos após a injeção do azul patente ocorreu hipotensão arterial (70 × 30 mmHg) e aumento da FC: 100 bpm, sem alterações no ritmo cardíaco, SatO2 e capnografia. Foram administrados 400 mL de ringer com lactato e diminuição da concentração inspirada de sevoflurano para 1,5%. Aproximadamente 10 minutos após a reposição volêmica e diminuição na fração inspirada do halogenado a pressão arterial era 100 × 60 mmHg e FC: 90 bpm, sem alterações nos demais parâmetros avaliados. O ato anestésico-cirúrgico transcorreu até o fim sem complicações. Foi usada dipirona (2 gr) com a finalidade de analgesia pós-operatória. O tempo cirúrgico foi de 50 minutos. Ao término do procedimento foi usado sulfato de atropina (1 mg) e neostigmina (2 mg) para reversão do bloqueio neuromuscular. Após a retirada dos campos cirúrgicos foi observada a presença de numerosas placas urticariformes (azuladas) principalmente na face, no pescoço, nos membros superiores e no tórax (figs. 1 e 2). Foi administrada hidrocortisona (500 mg). A paciente rapidamente despertou da anestesia e foi extubada na sala de cirurgia. Apresentava consciente, relatava prurido de baixa intensidade, sem dor, com estabilidade cardiovascular e respiratória (pressão arterial: 150 × 90 mHg; FC: 95 bpm e SatO2: 98%). Apresentou náuseas e foi empregada ondansetrona (8 mg). Foi levada para a Sala de Recuperação Pós-Anestésica (SRPA). Após 60 minutos não apresentava alterações cutâneas. Alta da SRPA 120 minutos após o término do ato anestésico cirúrgico. Alta hospitalar na manhã seguinte da cirurgia sem intercorrências.

Figura 1
Presença de numerosas placas urticariformes em face, pescoço, membros superiores e tórax.
Figura 2
Presença de numerosas placas urticariformes.

Discussão

Os corantes mais usados para identificação do linfonodo em sentinela são azul isossulfan (mais usado na Europa) e azul patente (mais usado no Brasil e nos Estados Unidos) e em uma menor frequência o azul de metileno.1,6 Tanto o azul isossulfan como o azul patente pertencem ao grupo dos corantes triarilmetano. O azul patente tem apenas um grupo hidroxila adicional.1 Têm sido atribuídas aos corantes inúmeras reações de hipersensibilidade imediatas e pode haver sensibilidade cruzada entre as duas drogas.1,6 Ao contrário, o azul de metileno tem sido considerado mais seguro do que o azul patente e constitui uma opção efetiva a esse na identificação do linfonodo sentinela, fato esse, entretanto, contestado por alguns autores.1 Existem evidências de que cerca de 2,7% da população seria alérgica ao corante azul, o que pode ser atribuído à sensibilização ocasionada pela exposição repetida a alguns produtos, como tecidos, cosméticos, papel, couro e medicamentos, que contêm esses corantes.1 O azul patente, após injeção intradérmica ou intraparenquimatosa, é captado por vasos linfáticos da área de drenagem, liga-se à albumina e 2/3 são absorvidos na primeira hora e completamente em 24 horas. É excretado pela urina e bile e o paciente pode apresentar urina de coloração azul por até 24 horas.1,3

Três graus de gravidade relacionados a reações de hipersensibilidade ao azul patente têm sido descritos:3,4 grau I (69%-87%) - caracterizado por urticária de cor azulada, prurido e rasch generalizado; grau II (3,2%-8%) - apresenta hipotensão (pressão arterial sistólica < 70 mmHg) sem necessidade do uso de vasopressor e ausência de broncoespasmo e laringoespasmo; e grau III (1,1%) - caracterizado por colapso cardiovascular severo que necessita de vasopressor com suspensão do procedimento cirúrgico e traslado do paciente para unidade de terapia intensiva. Os sinais mais precoces de reação alérgica são hipotensão e rasch cutâneo sem broncoespasmo ou edema de vias aéreas. Embora sejam uma manifestação inicial, as alterações cutâneas nem sempre são imediatamente detectadas, devido à presença dos campos cirúrgicos.5 O início do quadro de hipersensibilidade ocorre, mais tardiamente, entre 10-45 minutos após a injeção do corante (média = 17 minutos), diferentemente das reações de hipersensibilidade habituais observadas durante a anestesia, que são mais precoces, o que muitas vezes retarda o diagnóstico diferencial da reação alérgica.3,5 As reações cutâneas desaparecem entre 1-20 horas.3 O tratamento varia de acordo com a gravidade do quadro alérgico. Em pacientes graus I e II o tratamento farmacológico baseia-se no uso de corticosteroides (hidrocortisona, dexametasona), anti-histamínicos (difenidramina, prometazina) e reposição volêmica com cristaloide. Já nos pacientes classificados como grau III existe necessidade de vasopressor (adrenalina, metaraminol, etilefrina, efedrina, noradrenalina). A resposta ao vasopressor pode ser obtida com uma dose inicial do fármaco ou necessitar de infusão prolongada da droga.1-4 A depressão do sistema cardiovascular pode ser prolongada e necessitar de suporte cardiovascular e internação em unidade de terapia intensiva. Parada cardíaca é infrequente, com reanimação satisfatória.6 Não encontramos na literatura caso de óbito devido à reação alérgica ao uso do azul patente. Aspecto importante para o anestesiologista é que as reações alérgicas ao azul patente podem ser bifásicas e ocorrer um episódio subsequente de hipotensão entre seis e oito horas após o evento inicial. Os pacientes devem ser mantidos monitorados na sala de recuperação pós-anestésica ou unidade de terapia intensiva nesse período, mesmo que hemodinamicamente estáveis.5 Teste cutâneo positivo para alergia a azul patente e elevação dos níveis séricos de histamina (valor normal ≤ 10 nmoL.L-1), IgE e triptase (devido à desgranulação dos mastócitos; valor normal = 13,5 µg.L-1) geralmente estão presentes nesses pacientes.5-8 Por causa da histamina de meia vida de eliminação curta (15-20 minutos) é recomendável a coleta de sangue 30 minutos após a reação de hipersensibilidade. A triptase sérica apresenta pico plasmático de uma hora e permanece elevada por seis horas.5 São recomendadas duas amostras de triptase com 60 e 120 minutos. Níveis normais de triptase não excluem uma reação de hipersensibilidade, visto que algumas reações alérgicas são mediadas pelos basófilos e pela ativação do complemento, que não aumentam os níveis séricos de triptase.6 Tem sido recomendado o teste de hipersensibilidade por meio da injeção de pequeno volume da droga e esperar alguns minutos para verificar o surgimento dessas reações alérgicas. Entretanto, o uso de dose-teste é controverso e não existe evidência de que a anafilaxia seja reduzida.9 O teste cutâneo (skin-prick ou intradérmico, principalmente), no qual se usa um volume muito menor do que o da dose teste, parece ser o teste ideal, com alta sensibilidade e especificidade para detecção de pacientes com hipersensibilidade ao azul patente.9 Pacientes alérgicos e em uso de inibidores da enzima de conversão da angiotensina ou inibidor do receptor da angiotensina II são de risco para desenvolver reações alérgicas com o uso do azul patente.5

Outro efeito observado com o uso do azul patente é interferência na leitura da oximetria de pulso, que causa uma queda aparente da saturação de oxigênio. Essa interferência é decorrente de o pico de absorção da luz do azul patente (638 mm) ser muito próximo dos 660 mm da desoxi-hemoglobina.5 O aumento da absorção da luz nessa região pode ser interpretado pelo oxímetro de pulso como presença de desoxi-hemoglobina e diminuir falsamente a saturação de oxigênio.5 A latência e a duração da queda da saturação de oxigênio dependem do local da injeção do azul patente. Injeção intravascular causa uma queda imediata e severa da saturação de oxigênio que persiste por poucos minutos.5 Quando administrado dentro do parênquima mamário ocorre uma redução máxima de 11% (média de 5%) que ocorre 15 a 30 minutos após a injeção.5

As reações de hipersensibilidade ao azul patente são muito mais frequentes do que aquelas observadas habitualmente durante uma anestesia e podem variar desde alterações cutâneas até depressão cardiovascular intensa e prolongada e necessitar de internação em unidade de terapia intensiva e apoio cardiovascular. A nossa paciente apresentou uma reação de hipersensibilidade grau II devido à injeção subcutânea do azul patente, que evoluiu satisfatoriamente sem deixar sequelas. Portanto, o anestesiologista deve estar atento para alergia ao azul patente em caso de instabilidade cardiovascular e procurar a presença de alterações cutâneas que confirmam o diagnóstico clínico da reação de hipersensibilidade, que pode ser complementado pela dosagem de níveis séricos de triptase, histamina e IgE, bem como pelos testes cutâneos.

  • Trabalho feito no Serviço de Anestesiologia do Hospital Universitário Oswaldo Cruz, Universidade de Pernambuco, Recife, PE, Brasil.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    07 Dez 2013
  • Aceito
    12 Fev 2014
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