Acessibilidade / Reportar erro

Influência do propranolol pré-operatório no índice cardíaco durante a fase anepática do transplante hepático

Resumos

INTRODUÇÃO:

O transplante hepático (TH) é a melhor opção terapêutica para doença hepática em estágio terminal (DHET). As medicações betabloqueadoras não seletivas, como o propranolol, atuam diretamente no sistema cardiovascular (SCV) e são frequentemente usadas na prevenção de hemorragia digestiva decorrente da HP. Os efeitos do propranolol no SCV de cirróticos durante o TH não são conhecidos.

OBJETIVO:

Avaliar a influência do uso pré-operatório do propranolol no índice cardíaco (IC) durante a fase anepática do TH.

MÉTODO:

Avaliaram-se 101 pacientes adultos (73 homens, 72,2%) submetidos a transplante ortotópico de fígado doador cadáver, pela técnica de piggyback com preservação da veia cava inferior retro-hepática, feito no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais. Não houve diferença de gravidade pelo sistema MELD entre os grupos, p = 0,70. Foram comparados o uso pré-operatório de propranolol com o desfecho do IC durante a fase anepática do TH em cinco grupos (I: aumento do IC; II: redução do IC inferior a 16%; III: redução do IC igual a ou maior do que 16% e menor do que 31%; IV: redução do IC igual a ou maior do que 31% e menor do que 46%;V: redução do IC igual a ou maior do que 46%).

RESULTADOS:

Pacientes que fizeram uso pré-operatório de propranolol no grupo I (46,4%) foram estatisticamente semelhantes aos dos grupos II (60%), III (72,7%), IV (50%) e V (30,8%), p = 0,57.

CONCLUSÃO:

O propranolol no pré-transplante, como profilaxia para hemorragia digestiva, pode ser considerado seguro, pois não se associou à pioria do IC na fase anepática do TH.

Transplante de fígado; Débito cardíaco; Antagonista adrenérgico beta; Propranolol


INTRODUCTION:

Liver transplantation is the best therapeutic option for end-stage liver disease. Non-selective beta-blocker medications such as propranolol act directly on the cardiovascular system and are often used in the prevention of gastrointestinal bleeding resulting from HP. The effects of propranolol on cardiovascular system of cirrhotic patients during liver transplantation are not known.

OBJECTIVE:

Evaluate the influence of propranolol used preoperatively on cardiac index during the anhepatic phase of liver transplantation.

METHOD:

101 adult patients (73 male [72.2%]) who underwent cadaveric donor orthotopic liver transplantation by piggyback technique with preservation of the retrohepatic inferior vena cava performed at Hospital das Clinicas, Federal University of Minas Gerais were evaluated. There was no difference in severity between groups by the MELD system, p = 0.70. The preoperative use of propranolol and the cardiac index outcome were compared during the anhepatic phase of liver transplantation in 5 groups (I: increased cardiac index, II: cardiac index reduction lower than 16%, III: cardiac index reduction equal to or greater than 16% and less than 31%, IV: cardiac index reduction equal to or greater than 31% and less than 46%, V: cardiac index reduction equal to or greater than 46%).

RESULTS:

Patients in group I (46.4%) who received propranolol preoperatively were statistically similar to groups II (60%), III (72.7%), IV (50%) and V (30.8%), p = 0.57.

CONCLUSION:

The use of propranolol before transplantation as prophylaxis for gastrointestinal bleeding may be considered safe, as it was not associated with worsening of cardiac index in anhepatic phase of liver transplantation.

Liver transplant; Cardiac output; Beta-adrenergic antagonist; Propranolol


INTRODUCCIÓN:

El trasplante hepático (TH) es la mejor opción terapéutica para la enfermedad hepática en estado terminal. Los betabloqueantes no selectivos, como el propranolol, actúan directamente en el sistema cardiovascular y a menudo son usadas en la prevención de la hemorragia digestiva proveniente de la hipertensión portal. Los efectos del propranolol en el sistema cardiovascular de cirróticos durante el TH no se conocen.

OBJETIVO:

Evaluar la influencia del uso preoperatorio del propranolol en el índice cardíaco (IC) durante la fase anhepática del TH.

MÉTODO:

Se estudiaron 101 pacientes adultos (73 hombres [72,2%]) sometidos a trasplante ortotópico de hígado de donante cadáver, por la técnica de piggyback con preservación de la vena cava inferior retrohepática, en el Hospital das Clínicas de la Universidad Federal de Minas Gerais. No hubo diferencia respecto a la gravedad por el sistema Meld entre los grupos (p = 0,70). Se comparó el uso preoperatorio del propranolol con el resultado del IC durante la fase anhepática del TH en 5 grupos (i: aumento del IC; ii: reducción del IC < 16%; iii: reducción del IC ≥ 16% y < 31%; iv: reducción del IC ≥ 31% y < 46%;v: reducción del IC ≥ 46%).

RESULTADOS:

El número de pacientes que usaron el propranolol en el preoperatorio en el grupo i (46,4%) fue estadísticamente similar a los grupos ii (60%), iii (72,7%), iv (50%) y v (30,8%), p = 0,57.

CONCLUSIÓN:

El propranolol en el pretrasplante, como profilaxis para la hemorragia digestiva, puede ser considerado seguro porque no se asoció con el empeoramiento del IC en la fase anhepática del TH.

Trasplante de hígado; Gasto cardíaco; Antagonista betaadrenérgico; Propranolol


Introdução

Desde o primeiro transplante hepático (TH) em humanos feito em Denver, nos Estados Unidos da América, por Starzl em 1963, grandes avanços, como a melhor preservação dos órgãos, o aperfeiçoamento das técnicas cirúrgicas, a ampliação dos conhecimentos da anestesiologia e a evolução da terapia imunossupressora, transformaram o TH na melhor opção terapêutica para doença hepática em estágio terminal (DHET).1Starzl TE, Marchioro TL, Vonkaulla KN, et al. Homotrans- plantation of the liver in humans. Surg Gynecol Obstet. 1963;117:659-76. Atualmente a sobrevida após TH é de, aproximadamente, 90%, 85% e 80% em um, três e cinco anos, respectivamente.2Menon KV, Hakeem AR, Heaton ND. Meta-analysis: recurrence and survival following the use of sirolimus in liver transplan- tation for hepatocellular carcinoma. Aliment Pharmacol Ther. 2013;37:411-9.

A cirrose é a causa mais comum de hipertensão porta (HP) e ocasiona aumento tanto da resistência vascular intra-hepática como do fluxo portal. A HP está associada a graves complicações, como ascite, encefalopatia hepática e sangramento de varizes esofagogástricas3Garcia-Tsao G, Sanyal AJ, Grace NDC, et al. Preven- tion and management of gastroesophageal varices and variceal hemorrhage in cirrhosis. Hepatology. 2007;46: 922-38. A redução do gradiente de pressão venosa hepática (GPVH) abaixo de 12 mmHg é essencial para diminuir o risco de hemorragia digestiva alta nos pacientes com HP. Os medicamentos betabloqueadores não seletivos, como o propranolol e o pindolol, reduzem a HP, por atuar na diminuição do débito cardíaco (DC) e na vasoconstrição esplâncnica, e, assim, o fluxo portal.3Garcia-Tsao G, Sanyal AJ, Grace NDC, et al. Preven- tion and management of gastroesophageal varices and variceal hemorrhage in cirrhosis. Hepatology. 2007;46: 922-38. , 4De Franchis R, Faculty BV. Revising consensus in portal hyper- tension: report of the Baveno V consensus workshop on methodology of diagnosis and therapy in portal hypertension. J Hepatol. 2010;53:762-8. and 5La Mura V, Abraldes JG, Raffa S, et al. Prognostic value of acute hemodynamic response to i.v. propranolol in patients with cirrhosis and portal hypertension. J Hepatol. 2009;51: 279-87. As ações farmacológicas dos betabloqueadores tem interferência no sistema cardiovascular (SCV) durante o período perioperatório do TH e impactam na funcionalidade do fígado transplantado.6Schepis F, Vukotic R, Berzigotti A, et al. Hemodynamic response to propranolol in patients with recurrent HCV-related cirrhosis after liver transplantation: a case-control study. Liver Transpl. 2013;19:450-6.

O período intraoperatório do TH é, classicamente, dividido em três fases: pré-anepática, anepática e neo-hepática. Durante a fase anepática alterações hemodinâmicas intensas podem ocorrer e é importante que o anestesiologista esteja preparado para aprimorar esse paciente durante a reperfusão do enxerto, momento crítico e com alta incidência de instabilidade do SCV.7Ozier Y, Klinck JR. Anesthetic management of hepatic transplantation. Curr Opin Anaesthesiol. 2008;21: 391-400.

Desse modo, é importante conhecer os efeitos do propranolol pré-operatório durante o TH.

Objetivos

Avaliar a interferência do uso pré-operatório do propranolol e variáveis clínico-cirúrgicas no IC durante a fase anepática do transplante ortotópico de fígado doador cadáver.

Método

Trata se de estudo prospectivo feito no Instituto Alfa de Gastroenterologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC-UFMG). Esta pesquisa recebeu aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG, projetos CAAE 0244.0.203.000-08 e CAAE 0406.0.203.000-11.

Durante o período do estudo, de 29 de agosto de 2008 a 5 de janeiro de 2012, foram feitos 218 transplantes de fígado, 13 deles retransplantes. Preencheram os critérios de inclusão 114 pacientes, que concordaram com e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, após o convite para participar do estudo. Devido à deficiência na coleta dos dados hemodinâmicos, foram excluídos 13 pacientes.

Foram considerados critérios de inclusão: idade igual ou superior a 18 anos, transplante com doador cadáver pela técnica de piggyback e assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. Foram considerados critérios de exclusão: TH prévio, hepatectomia prévia, instabilidade hemodinâmica pré-operatória, caracterizada pela necessidade de uso de medicamentos vasopressores, insuficiência hepática aguda e hepatite autoimune.

Cento e um pacientes participaram do estudo, 73 do sexo masculino (72,2%). As indicações de TH foram: cirrose pós-viral C (33,7%), cirrose etanólica (28,7%), cirrose criptogênica (20,8%), cirrose pós-viral B (6,9%), cirrose biliar primária (3,9%) e outras (5,9%). Faziam uso de betabloqueador no período pré-transplante 54 pacientes (53,5%) e o propranolol foi a medicação empregada como profilaxia para hemorragia de varizes esofagogástrica.3Garcia-Tsao G, Sanyal AJ, Grace NDC, et al. Preven- tion and management of gastroesophageal varices and variceal hemorrhage in cirrhosis. Hepatology. 2007;46: 922-38.

O pacientes participantes do estudo foram submetidos a anestesia geral balanceada. A indução da anestesia foi feita com etomidato (0,3 mg/Kg), fentanil (5 µg/Kg) e rocurônio (1,2 mg/Kg), o plano anestésico foi mantido com isoflurano a 1 CAM (concentração alveolar mínima) monitorado pelo analisador de gases anestésicos e foram usadas doses adicionais de fentanil e rocurônio, quando necessário.

Antes da incisão cirúrgica, todos os pacientes foram submetidos à seguinte monitoração: pressão intra-arterial por meio da cateterização da artéria radial, pressões de artéria pulmonar, pressão de oclusão da artéria pulmonar e débito cardíaco contínuo com o uso do cateter de Swan-Ganz DDC-Edwards(r) e do monitor Vigilance-Edwards(r). Os dados coletados incluíram: pressão intra-arterial média (PIA), pressão venosa central (PVC), pressão de artéria pulmonar média (PAP), pressão capilar pulmonar (PCP), frequência cardíaca (FC) e débito cardíaco (DC). Além dos dados hemodinâmicos, foi registrada a dosagem das drogas vasopressoras usadas no intraoperatório.

Os registros ocorreram nos seguintes tempos cirúrgicos: indução da anestesia (T1), início da fase anepática, caracterizada como a clampagem da veia porta (T2); cinco minutos antes da reperfusão do enxerto, caracterizada como fim da fase anepática (T3). Neste estudo foi considerado como duração da fase anepática (T2-T3) o tempo decorrido entre T2 e T3.

A partir dos dados coletados e com o software de cálculos do monitor Vigilance-Edwards(r), foram calculados a área de superfície corporal (ASC), o índice de resistência vascular periférica (IRVP) e o IC. O índice de massa corporal (IMC) foi calculado pela seguinte fórmula: IMC = peso (Kg)/altura (metros).2Menon KV, Hakeem AR, Heaton ND. Meta-analysis: recurrence and survival following the use of sirolimus in liver transplan- tation for hepatocellular carcinoma. Aliment Pharmacol Ther. 2013;37:411-9. O Meld (modelo para doença hepática estágio terminal) usado neste estudo foi o Meld calculado, e não o corrigido.

De acordo com a variação percentual do IC ocorrida entre o início (T2) e o fim (T3) da fase anepática e com a gravidade do comprometimento da função miocárdica, os pacientes foram alocados em cinco grupos: Grupo I: aumento do IC; Grupo II: redução do IC inferior a 16%; Grupo III: redução do IC igual a ou maior do que 16% e menor do que 31%; Grupo IV: redução do IC igual a ou maior do que 31% e menor do que 46% e Grupo V: redução do IC igual a ou maior do que 46%. Os grupos II, III, IV e V apresentaram desfecho desfavorável do IC cardíaco.

Análise estatística

O software usado nas análises foi o SPSS versão 18. O nível de significância de referência nas análises univariadas foi de 0,20. Na análise multivariada foi considerado nível de significância de 0,05.

Para as variáveis contínuas aplicou-se o teste de normalidade Shapiro-Wilk para se decidir por testes paramétricos ou não paramétricos na análise dos dados.

Nas análises descritivas, as variáveis contínuas foram apresentadas com os valores médios e os desvios padrão, as variáveis categóricas com as frequências e porcentagens.

Para a comparação de variáveis contínuas em cinco grupos independentes (I, II, III, IV e V) aplicou-se o teste de comparação de médias Anova, quando as variáveis tinham distribuição normal gaussiana, e o teste de comparação de medianas Kruskal-Wallis, quando as variáveis tinham distribuição não normal gaussiana.

Para verificar a associação de variáveis categóricas em cinco grupos aplicou-se o teste qui-quadrado de tendência linear, pois, nesse caso, os grupos têm uma importância de ordenação.

Resultados

A análise descritiva das características clínicas dos pacientes encontra-se na tabela 1.

Tabela 1 -
Análise descritiva das variáveis dos pacientes estudados

Na tabela 2 é possível verificar a frequência e a porcentagem de algumas variáveis categóricas.

Tabela 2 -
Característica da população do estudo em frequência e porcentagem

A tabela 3 apresenta a associação entre variáveis categóricas e a variação do IC nos diferentes grupos.

Tabela 3 -
Associação de variáveis categóricas com os cinco grupos de variação do índice cardíaco na fase anepática

A tabela 4 apresenta a associação entre variáveis continuas com a variação do IC nos diferentes grupos.

Tabela 4 -
Associação de variáveis contínuas com os cinco grupos de variação do índice cardíaco na fase anepática

Discussão

Há mais de quatro décadas, desde o desenvolvimento do propranolol por James Black,8Black JW, Crowther AF, Shanks RG, et al. A new adrenergic betarecptor antagonist. Lancet. 1964;1:1080-1. os betabloqueadores adrenérgicos vêm sendo usados no tratamento de hipertensão arterial sistêmica, na doença arterial coronariana, no infarto do miocárdio e na insuficiência cardíaca. Destacam-se, principalmente, pela ação nos receptores beta-adrenérgicos do SCV. No coração os receptores beta-1 estão presentes no nó sinoatrial (aceleram a despolarização), no músculo cardíaco (aumentam a contratilidade) e nos tecidos de transmissão (aumentam a velocidade de condução) e determinam aumento do débito cardíaco. Já os receptores beta-2 têm ação na musculatura vascular periférica (causam vasodilatação).9Chrysant SG, Chrysant GS. Current status of β-blockers for the treatment of hypertension: an update. Drugs Today (Barc). 2012;48:353-66. Na prevenção medicamentosa de hemorragia digestiva por varizes esofagogástricas em pacientes com HP, o betabloqueador é indicado e iniciado em doses baixas (propranolol 20 mg/dia) com aumento progressivo de acordo com a tolerância do paciente e a redução da FC.1010 Chen Yl, Ghali P. Prevention and management of gastro- esophageal varices in cirrhosis. lnt J Hepatol. 2012;2012: 150-750.

A função ventricular sistólica é determinada pela pré-carga, pós-carga e contratilidade miocárdica, fatores que interferem no IC. Durante a avaliação pré-operatória do paciente com DHET é importante que seja dada atenção ao SCV, pois a hepatopatia terminal pode estar associada à miocardiopatia cirrótica. Nesses pacientes o DC poderá estar aumentado, devido à redução da pós-carga mesmo na vigência de disfunção contrátil. Contudo, frente a um momento de grande exigência do SCV, como ocorre durante o TH, a disfunção miocárdica poderá se manifestar e a resposta cardíaca poderá ser insatisfatória e determinar um desfecho desfavorável.1111 Lee RF, Glenn TK, Lee SS. Cardiac dysfunction in cirrhosis. Best Pract Res Clin Gastroenterol. 2007;21:125-40. Wong et al., estudando a função miocárdica do paciente cirrótico assintomático para doença cardiovascular, durante a execução de exercício físico, encontraram menor aumento do DC nesses do que nos do grupo controle. A diminuição do desempenho cardíaco tem como fatores a hipertrofia ventricular esquerda, a disfunção diastólica e a redução da resposta cronotrópica.1212 Wong F, Girgrah N, Graba J, et al. The cardiac response to exercise in cirrhosis. Gut. 2001;49:268-75. No presente estudo, avaliamos a variação do IC na fase anepática do TH, que é o período de grande exigência para o SCV, com o intuito de encontrarmos fatores pré-operatórios que possam estar associados ao desfecho desfavorável, que é a pioria do desempenho miocárdico.

O TH pela técnica clássica envolve a hepatectomia do doador com ressecção da veia cava retro-hepática associada à oclusão temporária das veias cava e porta durante a fase anepática, o que acarreta redução do retorno venoso ao coração, diminuição da perfusão renal e congestão do sistema venoso esplâncnico nessa fase.1313 Figueras J, Llado L, Ramos E, et al. Temporary portocaval shunt during liver transplantation with vena cava preserva- tion. Results of a prospective randomized study. Liver Transpl. 2001;7:904-11. Com o intuito de não haver interferência da técnica empregada durante o procedimento cirúrgico sobre os dados analisados, incluímos apenas os TH feitos com a técnica piggyback, em que há preservação da veia cava inferior. Mesmo com a técnica piggyback, há a necessidade da oclusão da veia porta, o que ocasiona aumento da pressão portal, com congestão do leito esplâncnico e edema intestinal. Em 1993, Tzakis et al. descreveram o uso da técnica piggyback com a colocação de anastomose porto-cava temporária (APCT) para comunicação da veia porta com a veia cava inferior infra-hepática durante a fase anepática. 1414 Tzakis AG, Reyes J, Nour B, et al. Temporary end to side por- tacaval shunt in orthotopic hepatic transplantation in humans. Surg Gynecol Obstet. 1993;176:180-2. Figueras et al., com objetivo de avaliar se a APCT melhoraria a evolução hemodinâmica e metabólica durante TH com técnica piggyback, encontraram melhoria do perfil hemodinâmico com menor necessidade de hemoderivados no grupo em que foi confeccionada a APCT, porém esse benefício foi mais evidente em um subgrupo de pacientes que apresentavam fluxo portal superior a 1.000 mL/min ou gradiente porto-cava maior ou igual a 16 mmHg. 1313 Figueras J, Llado L, Ramos E, et al. Temporary portocaval shunt during liver transplantation with vena cava preserva- tion. Results of a prospective randomized study. Liver Transpl. 2001;7:904-11. Margarit et al. avaliaram as vantagens da APCT durante o TH e concluíram que a APCT, na fase anepática, reduz a necessidade de transfusão de concentrado de hemácias e melhora a função renal pós-operatória, apenas no grupo de pacientes com fluxo da veia porta superior a 800 mL/min. 1515 Margarit C, de Cenarruzabeitia lL, Lázaro JL, et al. Portacaval shunt and inferior vena cava preservation in orthotopic liver transplantation. Transplant Proc. 2005;37: 3896-8. Muscari et al., avaliando 84 pacientes submetidos a TH com a técnica piggyback, concluíram que o uso rotineiro da APCT não é justificado. 1616 Muscari F, Suc B, Aguirre J, et al. Orthotopic liver transplan- tation with vena cava preservation in cirrhotic patients: is systematic temporary portacaval anastomosis a justified pro- cedure? Transplant Proc. 2005;37:2159-62. No presente estudo, foram confeccionados APCT durante a fase anepática, em apenas 15,8% dos pacientes ( tabela 2), e não foi encontrada associação entre APCT e alteração percentual do IC durante a fase anepática ( tabela 3).

A tabela 4 mostra que algumas variáveis moderadoras, que poderiam interferir no desfecho, foram controladas. Fatores importante nessa avaliação foram a duração da fase anepática (T2/T3), que poderia estar aumentada por dificuldade cirúrgica. A PVCm, que poderia ser influenciada pela clampagem parcial da veia cava com a técnica cirúrgica de piggyback e influenciar no IC, se mostrou semelhante estatisticamente em todos os grupos avaliados. Raval et al., em artigo de revisão, relatam que pacientes com DHET apresentam comprometimento da função sistólica e diastólica do coração não evidenciado no repouso, mas sim nos períodos de grande exigência, o que ocasiona redução do IC por comprometer a função contrátil, o relaxamento diastólico e a condução eletrofisiológica do miocárdio. Essas alterações no paciente cirrótico são conhecidas como miocardiopatia cirrótica e estão diretamente relacionadas à gravidade da DHET. 1717 Raval Z, Harinstein ME, Skaro Al, et al. Cardiovascular risk assessment of the liver transplant candidate. J Am Coll Cardiol. 2011;58:223-31. No nosso estudo, baseado no sistema Meld, todos os grupos foram estatisticamente semelhantes e mostraram que não houve interferência da gravidade da doença hepática no IC.

Em um artigo de revisão sobre a fisiopatologia e as implicações clínicas da miocardiopatia cirrótica, Yang e Lin citam a importância dos receptores beta-adrenérgicos para função contrátil do coração e o comprometimento desses receptores no paciente com DHET.1818 Yang YY, Lin HC. The heart: pathophysiology and clinical implications of cirrhotic cardiomyopathy. J Chin Med Assoc. 2012;75:619-23. Zenghua et al., em estudo experimental, concluíram que a contratilidade miocárdica em resposta à estimulação dos receptores beta-adrenérgicos era atenuada em ratos cirróticos, devido à diminuição da densidade associada ao comprometimento na via de sinalização desses receptores.1919 Ma Z, Miyamoto A, Lee SS. Role of altered beta-adrenoceptor signal transduction in the pathogenesis of cirrhotic cardiomyopathy in rats. Gastroenterology. 1996;110: 1191-8. Vilas-Boas et al., estudando os efeitos do propranolol no sistema renina-angiotensina em pacientes cirróticos, demonstraram alterações dos parâmetros hemodinâmicos com redução do IC na fase pré-anepática do TH nos pacientes tratados com propranolol no período pré-operatório.2020 Vilas-Boas WW, Ribeiro-Oliveira A, Ribeiro Rda C, et al. Effect of propranolol on the splanchnic and peripheral renin angiotensin system in cirrhotic patients. World J Gastroenterol. 2008;14:6824-30. Com o objetivo de avaliar a interferência do propranolol na função miocárdica durante a fase anepática do TH, correlacionamos esses pacientes usuários de propranolol com a variação do IC na fase anepática e não encontramos associação estatisticamente significativa (tabela 3). A dose de propranolol dos nossos pacientes variou entre 20 mg e 120 mg dia. O quadro clínico de pacientes com DHET raramente permite a administração aprimorada da medicação betabloqueadora adrenérgica.1010 Chen Yl, Ghali P. Prevention and management of gastro- esophageal varices in cirrhosis. lnt J Hepatol. 2012;2012: 150-750. A não interferência do propranolol na variação do IC pode ter ocorrido devido à dose administrada pré-operatória ser considerada baixa, para que haja bloqueio importante dos receptores beta-adrenérgicos do coração e comprometimento da função contrátil miocárdica nesse momento de estresse miocárdio que é a fase anepática.

Acreditamos que a depressão miocárdica durante a fase anepática possa ocorrer devido ao acúmulo de citocinas pró-inflamatórias,2121 Arranz J, Soriano A, Garcia l, et al. Effect of proinflammatory cytokines (lL-6, TNF-alpha, lL-1beta) on hemodynamic perfor- mance during orthotopic liver transplantation. Transplant Proc. 2003;35:1884-7. ocorrido no decorrer do TH e intensificado no fim dessa fase, associado à miocardiopatia cirrótica latente. Essa associação entre citocinas inflamatórias e pioria do desempenho miocárdico tem sido muito estudada no choque séptico,2222 Hartemink KJ, Groeneveld AB. Vasopressors and inotropes in the treatment of human septic shock: effect on innate immunity? lnflammation. 2012;35:206-13. and 2323 Zanotti-Cavazzoni SL, Hollenberg SM. Cardiac dysfunction in severe sepsis and septic shock. Curr Opin Crit Care. 2009;15:392-7. que pode trazer substrato para uma futura compressão desse evento no TH.

Conclusão

O uso de do propranolol em cirróticos pré-transplante hepático para profilaxia de hemorragias por varizes esofagogástricas é seguro para o SCV durante a fase anepática do transplante hepático.

References

  • 1
    Starzl TE, Marchioro TL, Vonkaulla KN, et al. Homotrans- plantation of the liver in humans. Surg Gynecol Obstet. 1963;117:659-76.
  • 2
    Menon KV, Hakeem AR, Heaton ND. Meta-analysis: recurrence and survival following the use of sirolimus in liver transplan- tation for hepatocellular carcinoma. Aliment Pharmacol Ther. 2013;37:411-9.
  • 3
    Garcia-Tsao G, Sanyal AJ, Grace NDC, et al. Preven- tion and management of gastroesophageal varices and variceal hemorrhage in cirrhosis. Hepatology. 2007;46: 922-38.
  • 4
    De Franchis R, Faculty BV. Revising consensus in portal hyper- tension: report of the Baveno V consensus workshop on methodology of diagnosis and therapy in portal hypertension. J Hepatol. 2010;53:762-8.
  • 5
    La Mura V, Abraldes JG, Raffa S, et al. Prognostic value of acute hemodynamic response to i.v. propranolol in patients with cirrhosis and portal hypertension. J Hepatol. 2009;51: 279-87.
  • 6
    Schepis F, Vukotic R, Berzigotti A, et al. Hemodynamic response to propranolol in patients with recurrent HCV-related cirrhosis after liver transplantation: a case-control study. Liver Transpl. 2013;19:450-6.
  • 7
    Ozier Y, Klinck JR. Anesthetic management of hepatic transplantation. Curr Opin Anaesthesiol. 2008;21: 391-400.
  • 8
    Black JW, Crowther AF, Shanks RG, et al. A new adrenergic betarecptor antagonist. Lancet. 1964;1:1080-1.
  • 9
    Chrysant SG, Chrysant GS. Current status of β-blockers for the treatment of hypertension: an update. Drugs Today (Barc). 2012;48:353-66.
  • 10
    Chen Yl, Ghali P. Prevention and management of gastro- esophageal varices in cirrhosis. lnt J Hepatol. 2012;2012: 150-750.
  • 11
    Lee RF, Glenn TK, Lee SS. Cardiac dysfunction in cirrhosis. Best Pract Res Clin Gastroenterol. 2007;21:125-40.
  • 12
    Wong F, Girgrah N, Graba J, et al. The cardiac response to exercise in cirrhosis. Gut. 2001;49:268-75.
  • 13
    Figueras J, Llado L, Ramos E, et al. Temporary portocaval shunt during liver transplantation with vena cava preserva- tion. Results of a prospective randomized study. Liver Transpl. 2001;7:904-11.
  • 14
    Tzakis AG, Reyes J, Nour B, et al. Temporary end to side por- tacaval shunt in orthotopic hepatic transplantation in humans. Surg Gynecol Obstet. 1993;176:180-2.
  • 15
    Margarit C, de Cenarruzabeitia lL, Lázaro JL, et al. Portacaval shunt and inferior vena cava preservation in orthotopic liver transplantation. Transplant Proc. 2005;37: 3896-8.
  • 16
    Muscari F, Suc B, Aguirre J, et al. Orthotopic liver transplan- tation with vena cava preservation in cirrhotic patients: is systematic temporary portacaval anastomosis a justified pro- cedure? Transplant Proc. 2005;37:2159-62.
  • 17
    Raval Z, Harinstein ME, Skaro Al, et al. Cardiovascular risk assessment of the liver transplant candidate. J Am Coll Cardiol. 2011;58:223-31.
  • 18
    Yang YY, Lin HC. The heart: pathophysiology and clinical implications of cirrhotic cardiomyopathy. J Chin Med Assoc. 2012;75:619-23.
  • 19
    Ma Z, Miyamoto A, Lee SS. Role of altered beta-adrenoceptor signal transduction in the pathogenesis of cirrhotic cardiomyopathy in rats. Gastroenterology. 1996;110: 1191-8.
  • 20
    Vilas-Boas WW, Ribeiro-Oliveira A, Ribeiro Rda C, et al. Effect of propranolol on the splanchnic and peripheral renin angiotensin system in cirrhotic patients. World J Gastroenterol. 2008;14:6824-30.
  • 21
    Arranz J, Soriano A, Garcia l, et al. Effect of proinflammatory cytokines (lL-6, TNF-alpha, lL-1beta) on hemodynamic perfor- mance during orthotopic liver transplantation. Transplant Proc. 2003;35:1884-7.
  • 22
    Hartemink KJ, Groeneveld AB. Vasopressors and inotropes in the treatment of human septic shock: effect on innate immunity? lnflammation. 2012;35:206-13.
  • 23
    Zanotti-Cavazzoni SL, Hollenberg SM. Cardiac dysfunction in severe sepsis and septic shock. Curr Opin Crit Care. 2009;15:392-7.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    03 Nov 2013
  • Aceito
    05 Fev 2014
Sociedade Brasileira de Anestesiologia R. Professor Alfredo Gomes, 36, 22251-080 Botafogo RJ Brasil, Tel: +55 21 2537-8100, Fax: +55 21 2537-8188 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: bjan@sbahq.org