Acessibilidade / Reportar erro

Quando uma porta não apresenta retorno sanguíneo: relato de dois casos de causas raras de mau posicionamento de cateter venoso central

Resumos

Apresentamos dois casos de mau posicionamento de cateter venoso central. Têmem comum a ausência do retorno sanguíneo livre em um dos lúmens imediatamente após acolocac¸ão. O primeiro é um caso de hidrotórax direito associado ao cateterismo venoso central,com a ponta do cateter em localizac¸ão intrapleural. Nesse caso, a porta distal nunca estevepatente. No segundo caso houve um aumento da pressão de aspirac¸ão através da porta medialpor causa da formac¸ão de alc¸a no cateter.A ausência de fluxo livre na aspirac¸ão de um lúmen do cateter central não deve ser subesti-mada. Nessas circunstâncias, o cateter não deve ser usado e deve ser removido.

Cateter venoso central; Hidrotórax; Alça; Mau posicionamento


We present two cases of misplaced central venous catheters having in common theabsence of free blood return from one lumen immediately after placement. The former is acase of right hydrothorax associated with central venous catheterization with the catheter tipin intra-pleural location. In this case the distal port was never patent. In the latter case therewas an increased aspiration pressure through the middle port due to a catheter looping.The absence of free flow on aspiration from one lumen of a central catheter should not beundervalued. In these circumstances the catheter should not be used and needs to be removed.

Central venous catheter; Hydrothorax; Looping; Malposition


Introdução

Cateterismo venoso central é um procedimento comum na prática de anestesia, usado para fins terapêuticos e de diagnóstico, como monitorar a pressão venosa central e a administração de líquidos e medicamentos no período perioperatório.

Em geral, essa técnica tem uma taxa de complicação de aproximadamente 15%,11. McGee DC, Gould MK. Preventing complications of central venous catheterization. N Engl J Med. 2003;348:1123-33. incluindo trombose, infecção, obstrução e complicações mecânicas que normalmente ocorrem durante a inserção e que dependem das relações anatômicas das veias centrais.

Apresentamos dois casos de complicações raras associadas ao cateterismo da veia jugular interna direita, com o objetivo de enfatizar a importância de verificar a desobstrução de cada porta antes de prosseguir com o seu uso, mesmo quando a técnica não apresenta dificuldades.

Relato de caso 1

Paciente do sexo feminino com 33 anos, 54 kg, 155 cm, estado físico ASA I (de acordo com a classificação da Sociedade Americana de Anestesiologistas) e adenoma hepático, apresentou-se para hepatectomia esquerda eletiva.

Após a indução da anestesia, um cateter venoso central de lúmen triplo (7.0-French) foi inserido na veia jugular interna direita (Certofix(r) Trio - B. Braun), com o uso de referências anatômicas e da técnica de Seldinger. A inserção foi feita em uma tentativa por um anestesiologista experiente e de acordo com o protocolo de conduta do hospital. Nesse momento, o retorno sanguíneo foi observado a partir das portas proximal e medial do cateter, mas não da distal. Todas as portas foram facilmente lavadas. O cateter foi fixado em 12 cm de comprimento. A monitoração da pressão venosa central foi conectada à porta distal.

A cirurgia transcorreu sem intercorrências. A pressão venosa central foi mantida abaixo de 5 mmHg, sem necessidade de vasodilatadores.

No fim do procedimento, a paciente estava acordada, sem sinais de distúrbio respiratório. Posteriormente, na sala de recuperação pós-anestésica (SRPA), seis horas após a cirurgia, queixou-se de dor no peito direito e dispneia. À ausculta, não havia sons respiratórios no hemitórax direito com embotamento da percussão. O cateter venoso central não estava permeável e não havia retorno sanguíneo.

A radiografia de tórax mostrou opacidade no hemitórax direito e observou-se que a ponta do cateter estava em direção oposta à silhueta cardíaca (Fig. 1).

Figura 1
Raio-X de tórax tomado no leito que mostra hidrotórax direito nove horas após a inserção do cateter venoso central.

Um dreno torácico foi inserido, com drenagem imediata de 2.500 mL de líquido seroso, seguido por alívio sintomático. A paciente foi transferida para a enfermaria. O tubo torácico foi removido após cinco dias e a paciente recebeu alta totalmente recuperada.

Relato de caso 2

Paciente do sexo feminino, 67 anos, ASA III, apresentou-se ao departamento de emergência com história de diarreia e dor abdominal havia duas semanas. Um corpo estranho (osso de galinha) foi encontrado preso na sigmoide. Após tentativa frustrada de removê-lo por colonoscopia, propôs-se que a paciente fosse levada para uma laparotomia exploratória. Sua história médica incluía obesidade mórbida (peso, 110 kg; altura, 150 cm), doença cardíaca isquêmica com angina ao esforço moderado, diabetes mellitus , doença pulmonar obstrutiva crônica e hipotireoidismo.

Um cateter venoso central foi indicado por causa da dificuldade de obtenção de um acesso periférico e possível necessidade de terapia vasopressora. Após a indução da anestesia, um cateter venoso central de lúmen triplo (7.0-French) foi inserido na veia jugular interna direita (Certofix(r) Trio - B. Braun) com o uso de referências anatômicas e da técnica de Seldinger. A inserção foi feita em uma tentativa por um anestesiologista experiente e de acordo com o protocolo de conduta do hospital. O procedimento transcorreu sem intercorrências, exceto por uma pequena resistência inicial para recuperar o fio-guia. A porta medial do cateter não apresentou retorno passivo do sangue, o que pode ser obtido somente com aspiração à pressão negativa moderada. Um leve aumento da resistência durante a injeção também foi observado nessa porta. As portas restantes estavam permeáveis e facilmente retornando o sangue. O cateter foi fixado em 11 cm de comprimento. Uma infusão com cristaloides foi iniciada.

A cirurgia prosseguiu e a paciente foi submetida a uma sigmoidectomia aberta. No pós-operatório imediato, a paciente foi transferida para a unidade de terapia intensiva (UTI) para manter o suporte ventilatório mecânico. Terapia vasopressora não foi necessária.

Na UTI, uma radiografia de tórax foi feita e a alça formada pelo cateter venoso central foi observada (Fig. 2).

Figura 2
Raio-X de tórax tomado no leito que mostra a alça formada pelo cateter venoso central.

O cateter foi removido sem resistência. Um novo cateter venoso central foi inserido na veia subclávia direita, com o uso de referências anatômicas e da técnica de Seldinger, sem intercorrências. Após 36 horas, o cateter foi removido e a paciente transferida para a enfermaria. Três dias depois, a paciente precisou de uma nova linha central por causa do acesso periférico difícil. A veia jugular interna direita foi usada, novamente com referências anatômicas e técnica de Seldinger, sem complicações. Após 10 dias, a paciente recebeu alta, totalmente recuperada.

Discussão

Hidrotórax é uma complicação rara descrita em cerca de 0,5% dos casos em adultos com cateterismo central,22. Duntley P, Siever J, Korwes ML, et al. Vascular erosion by cen-tral venous catheters. Clinical features and outcome. Chest. 1992;101:1633e1638. o que é explicado pela proximidade da veia cava superior com a pleura direita.33. Gibson F, Bodenham A. Misplaced central venous catheters: applied anatomy and practical management. Br J Anaesth. 2013;110:333-46. Essa complicação é geralmente descrita em casos de erosão vascular progressiva de um cateter intravascular inicial 44. Rudge CJ, Bewick M, Mccoll I. Hydrothorax after central venous catheterization. Br Med J. 1973;3:23-5.,55. Iberti TJ, Katz LB, Reiner MA, et al. Hydrothorax as a late complication of central venous indwelling catheters. Surgery. 1983;94:842-6.and66. Kunizawa A, Fujioka M, Mink S, et al. Central venous catheter-induced delayed hydrothorax via progressive erosion of central venous wall. Minerva Anestesiol. 2010;76:868-71. e pode estar associada ao mau posicionamento da ponta ou à fixação insegura do cateter com os movimentos de vaivém.77. Maroun R, Chalhoub M, Harris K. Right internal jugular venous cannulation complicated by tension hydrothorax. Heart Lung. 2013;42:372-4. Porém, em nosso caso, a ausência do retorno sanguíneo ao aspirar a porta distal sugere não uma erosão, mas uma lesão vascular durante a inserção, o que representa, pelo que sabemos, o único caso de uma complicação desse tipo.

A erosão vascular com consequente hidrotórax após cateterismo da veia jugular interna direita é extremamente rara e foi descrita em 5% de todos os casos de hidrotórax associado ao cateter.22. Duntley P, Siever J, Korwes ML, et al. Vascular erosion by cen-tral venous catheters. Clinical features and outcome. Chest. 1992;101:1633e1638. Tal raridade pode estar relacionado ao fato de que a veia jugular interna direita cursa diretamente com a veia cava superior.88. Bannon MP, Heller SF, Rivera M. Anatomic considerations for central venous cannulation. Risk Manag Healthc Policy. 2011;4:27-39. Após uma revisão da literatura, observamos que o posicionamento venoso central da subclávia esquerda se constitui um fator de risco para essa complicação. Dutley et al. descreveram as vias de cateterização que causaram hidrotórax: subclávia esquerda em 46% dos casos, subclávia direita em 18%, jugular interna esquerda em 20%, jugular interna direita em 5%, jugular externa em 6% e braquial em 5%. 22. Duntley P, Siever J, Korwes ML, et al. Vascular erosion by cen-tral venous catheters. Clinical features and outcome. Chest. 1992;101:1633e1638.

As manifestações clínicas de dor no peito são semelhantes às descritas na literatura em casos de hidrotorax. Um hidrotórax hipertensivo também pode ser desenvolvido.77. Maroun R, Chalhoub M, Harris K. Right internal jugular venous cannulation complicated by tension hydrothorax. Heart Lung. 2013;42:372-4.

Em nosso caso, a restrição de fluidoterapia, destinada a manter uma pressão venosa central baixa durante a hepatectomia parcial, provavelmente contribuiu para o atraso no diagnóstico.

A formação de uma alça em cateter venoso central é uma complicação rara, descrita em 2,9% das cateterizações.99. Malatinsk´y J, Kadlic T, Májek M, et al. Misplacement and loop formation of central venous catheters. Acta Anaesthesiol Scand. 1976;20:237-47. A formação de alça em nó já foi descrita, principalmente durante o cateterismo de artéria pulmonar ou de veia subclávia direita.1010. Juneja R, Mehta Y. Looping of a subclavian catheter: an unusual presentation. J Cardiothorac Vasc Anesth. 1994;8:255e257.,1111. Bagul NB, Menon NJ, Pathak R, et al. Knot in the cavae: an unusual complication of swan-ganz catheters. Eur J Vasc Endovasc Surg. 2005;29:651e653.and1212. Vetrugno L, Piccoli G, Costa MG, et al. The dos and do knots of central venous catheterization. J Clin Anesth. 2012;24:148-50.

A formação de alça pode ocorrer por causa do fecho da ponta do cateter no óstio de uma veia afluente, o que permite a consequente progressão do cateter de modo a formar uma alça.99. Malatinsk´y J, Kadlic T, Májek M, et al. Misplacement and loop formation of central venous catheters. Acta Anaesthesiol Scand. 1976;20:237-47. Em nosso caso, a alça formada pode ter resultado da interferência da ponta do cateter no óstio da veia subclávia direita ou da veia braquiocefálica esquerda. A dificuldade de recuperar o fio-guia e de aspiração do sangue a partir da porta medial sugere que o cateter estava parcialmente dobrado, mas mantinha sua permeabilidade.

Vários estudos demonstraram que a punção venosa central guiada por ultrassom pode aumentar as taxas de sucesso e diminuir as complicações.1313. Karakitsos D, Labropoulos N, De Groot E, et al. Real-time ultrasound-guided catheterisation of the internal jugular vein: a prospective comparison with the landmark technique in critical care patients. Crit Care. 2006;10:R162.,1414. Leung J, Duffy M, Finckh A. Real-time ultrasonographically-guided internal jugular vein catheterization in the emer-gency department increases success rates and reduces complications: a randomized, prospective study. Ann Emerg Med. 2006;48:540-7.and1515. Mey U, Glasmacher A, Hahn C, et al. Evaluation of an ultrasound-guided technique for central venous access via the internal jugular vein in 493 patients. Support Care Cancer. 2003;11:148-55. Os principais benefícios do uso de ultrassom incluem o aumento da taxa de sucesso global e a redução do tempo de punção por agulha, redução de punção da carótida e de hematoma da carótida, redução de hemotórax e pneumotórax.1313. Karakitsos D, Labropoulos N, De Groot E, et al. Real-time ultrasound-guided catheterisation of the internal jugular vein: a prospective comparison with the landmark technique in critical care patients. Crit Care. 2006;10:R162.

Hidrotórax foi descrito após canulação da veia jugular interna guiada por ultrassom.77. Maroun R, Chalhoub M, Harris K. Right internal jugular venous cannulation complicated by tension hydrothorax. Heart Lung. 2013;42:372-4. Não encontramos caso de formação de alça em cateter ou fio-guia guiado por ultrassom. A canulação central guiada por ultrassom parece incapaz de prevenir essas complicações raras.

Complicações mecânicas associadas ao cateterismo venoso central podem ocorrer no momento da inserção ou surgir mais tarde. A investigação radiológica precoce, principalmente com uma radiografia de tórax, pode ajudar a identificar o problema e a planejar a extração do cateter. Em situações específicas, outros exames como a angiografia ou tomografia computadorizada podem ser úteis.1212. Vetrugno L, Piccoli G, Costa MG, et al. The dos and do knots of central venous catheterization. J Clin Anesth. 2012;24:148-50.

Em ambos os casos clínicos que descrevemos, a única característica foi a dificuldade do retorno sanguíneo em uma das portas mediante aspiração, o que sugere que essa característica não deve ser subestimada. Mesmo que o procedimento transcorra sem intercorrências, em caso de ausência de fluxo livre mediante aspiração de todos os lumens o cateter não deve ser usado e precisa ser removido.

References

  • 1
    McGee DC, Gould MK. Preventing complications of central venous catheterization. N Engl J Med. 2003;348:1123-33.
  • 2
    Duntley P, Siever J, Korwes ML, et al. Vascular erosion by cen-tral venous catheters. Clinical features and outcome. Chest. 1992;101:1633e1638.
  • 3
    Gibson F, Bodenham A. Misplaced central venous catheters: applied anatomy and practical management. Br J Anaesth. 2013;110:333-46.
  • 4
    Rudge CJ, Bewick M, Mccoll I. Hydrothorax after central venous catheterization. Br Med J. 1973;3:23-5.
  • 5
    Iberti TJ, Katz LB, Reiner MA, et al. Hydrothorax as a late complication of central venous indwelling catheters. Surgery. 1983;94:842-6.
  • 6
    Kunizawa A, Fujioka M, Mink S, et al. Central venous catheter-induced delayed hydrothorax via progressive erosion of central venous wall. Minerva Anestesiol. 2010;76:868-71.
  • 7
    Maroun R, Chalhoub M, Harris K. Right internal jugular venous cannulation complicated by tension hydrothorax. Heart Lung. 2013;42:372-4.
  • 8
    Bannon MP, Heller SF, Rivera M. Anatomic considerations for central venous cannulation. Risk Manag Healthc Policy. 2011;4:27-39.
  • 9
    Malatinsk´y J, Kadlic T, Májek M, et al. Misplacement and loop formation of central venous catheters. Acta Anaesthesiol Scand. 1976;20:237-47.
  • 10
    Juneja R, Mehta Y. Looping of a subclavian catheter: an unusual presentation. J Cardiothorac Vasc Anesth. 1994;8:255e257.
  • 11
    Bagul NB, Menon NJ, Pathak R, et al. Knot in the cavae: an unusual complication of swan-ganz catheters. Eur J Vasc Endovasc Surg. 2005;29:651e653.
  • 12
    Vetrugno L, Piccoli G, Costa MG, et al. The dos and do knots of central venous catheterization. J Clin Anesth. 2012;24:148-50.
  • 13
    Karakitsos D, Labropoulos N, De Groot E, et al. Real-time ultrasound-guided catheterisation of the internal jugular vein: a prospective comparison with the landmark technique in critical care patients. Crit Care. 2006;10:R162.
  • 14
    Leung J, Duffy M, Finckh A. Real-time ultrasonographically-guided internal jugular vein catheterization in the emer-gency department increases success rates and reduces complications: a randomized, prospective study. Ann Emerg Med. 2006;48:540-7.
  • 15
    Mey U, Glasmacher A, Hahn C, et al. Evaluation of an ultrasound-guided technique for central venous access via the internal jugular vein in 493 patients. Support Care Cancer. 2003;11:148-55.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Feb 2016

Histórico

  • Recebido
    28 Dez 2013
  • Aceito
    12 Fev 2014
Sociedade Brasileira de Anestesiologia R. Professor Alfredo Gomes, 36, 22251-080 Botafogo RJ Brasil, Tel: +55 21 2537-8100, Fax: +55 21 2537-8188 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: bjan@sbahq.org