Open-access Os usos da teoria sociológica de Pierre Bourdieu em periódicos científicos da área de Educação Física no Brasil

RESUMO

O objetivo do estudo foi investigar o processo de mobilização da teoria sociológica de Pierre Bourdieu no campo da Educação Física no Brasil a partir da produção divulgada em oito periódicos da área. Os dados revelam que 54% dessas publicações utiliza o referencial para reforçar ou refutar argumentos, ao passo que 22% dos textos não tem nenhuma associação rigorosa com a teoria e 24% possui uma relação sistemática com os conceitos subjacentes a esse modelo teórico. Conclui-se que os usos da teoria de Bourdieu ainda estão abertos no campo, sendo necessário um investimento mais sistemático nesse referencial.

Palavras Chave: Pierre Bourdieu; Epistemologia; Educação Física; Revistas Eletrônicas

ABSTRACT

The aim of the study was to investigate the process of mobilization of the sociological theory of Pierre Bourdieu in the field of Physical Education in Brazil from the production published in eight periodicals of the field. The data show that 54% of these publications use the referential to reinforce or refute arguments, while 22% of the texts have no strict association with the theory and 24% have a systematic relationship with the concepts underlying this theoretical model. It is concluded that the uses of Bourdieu’s theory are still open in the area, requiring a more systematic investment in this referential.

Keywords: Pierre Bourdieu; Epistemology; Physical Education; Electronic Magazines

RESUMEN

El objetivo del estudio fue investigar el proceso de movilización de la teoría sociológica de Pierre Bourdieu en el campo de la Educación Física en Brasil a partir de la producción divulgada en ocho periódicos del área. Los datos revelan que el 54% de esas publicaciones utiliza el referencial para reforzar o refutar argumentos, mientras que el 22% de los textos no tiene ninguna asociación rigurosa con la teoría y el 24% tiene una relación sistemática con los conceptos subyacentes a ese modelo teórico. Se concluye que los usos de la teoría de Bourdieu todavía están abiertos en el área, lo que requiere una inversión más sistemática en este referencial.

Palavras Chave: Pierre Bourdieu; Epistemología; Educación Física; Revistas Electrónicas

INTRODUÇÃO

O sociólogo francês Pierre Bourdieu, ao longo de sua trajetória intelectual, se concentrou em desvelar as maneiras pelas quais o mundo social se (re)produz em seus arranjos políticos, econômicos, culturais, etc., no sentido de legitimar, naturalizar ou transformar estruturas de desigualdade associadas à conservação de determinados sistemas de crenças. Somado a isso, o autor também buscou identificar as formas de violência simbólica que atuam nas diferentes áreas de conflito que compõem os domínios da atividade humana estruturalmente organizados como campos (Marchi Júnior, 2004; Garcia Júnior; Pessanha, 2013; Souza, 2014; Bortoluci; Jackson; Pinheiro Filho, 2015; Peters, 2017; Souza; Marchi Júnior, 2017).

Por sinal, uma dessas áreas de conflito, é o campo acadêmico-científico, sendo, portanto, o campo da Educação Física (EF) perspectivada nesses termos ao longo do manuscrito. De acordo com Bourdieu (2013, p. 42), o campo científico é um espaço de disputa, isto é, um local no qual: “[...] cada um depende de todos os outros, ao mesmo tempo concorrentes e clientes, adversários e juízes, para o determinar de sua verdade e de seu valor, isto é, de sua vida e morte simbólica”. Nesse espaço, está em jogo um capital simbólico que outorga e define a legitimidade científica, não só daqueles que estão sendo analisados como também do próprio analista social.

É, inclusive, por via desse esforço de objetivação que é possível devolver luz e sentido às posições ocupadas pelos protagonistas desse tipo de análise reflexiva no interior dos respectivos campos científicos em que circunscrevem seus ofícios. Nessa esteira, cabe reconhecer que Bourdieu é mentor de uma teoria sociológica que mobiliza dialogicamente agente e estrutura, de modo a romper com matrizes teóricas que atribuíam primazia analítica, ora ao indivíduo, ora à sociedade. Em que pese, todavia, esse trato relacional, em termos metateóricos, pode-se dizer que Bourdieu atualiza a tradição durkheimiana e, a rigor, conserva a dimensão de objetividade do mundo social (Souza, 2014; Peters, 2017). Ademais, para Bourdieu, toda sociologia rigorosa é, inicialmente, uma espécie de autossociologia que coloca em suspenso as crenças tornadas campo e as crenças tornadas corpo no investigador. Em outras palavras, o autor se empenhou em propor um quadro de sustentação da objetividade científica que ao mesmo tempo primasse pela objetivação reflexiva do pesquisador (Souza; Marchi Júnior, 2017; Peters, 2017).

Reconhecida, portanto, a força interna dessa “terceira via epistemológica” (Bourdieu, 2003), alinhada ao desejo de entender os modos pelas quais essa obra se espraiou não só no campo da Sociologia, mas também em diferentes áreas e domínios de investigação empírica, o presente artigo objetiva investigar o processo de mobilização da teoria sociológica de Pierre Bourdieu no campo da Educação Física no Brasil a partir da produção divulgada em oito periódicos da área.

Para dar conta dessa investidura, o texto foi dividido fundamentalmente em três seções. Na primeira delas, são descritos os encaminhamentos teóricos-metodológicos utilizados na pesquisa. Já na segunda parte do texto, apresenta-se uma série de análises sobre os usos de sua teoria no campo da EF no Brasil a partir da realidade empírica investigada. Por fim, à maneira de exercício reflexivo, são trazidas as conclusões em face aos resultados acumulados no estudo.

ENCAMINHAMENTOS TEÓRICOS-METODOLÓGICOS

Em um primeiro momento, com a finalidade de dimensionar os usos da teoria sociológica de Pierre Bourdieu no universo da EF brasileira, foi realizado um mapeamento sistemático dos textos completos publicados em periódicos científicos de âmbito nacional. Como critério de escolha das revistas, estabeleceu-se o seguinte: os periódicos deveriam [1] ter acesso livre a todos os números publicados, seja na forma digital, ou meio impresso; [2]; Serem classificados dentro da plataforma Sucupira como pertencentes ou qualis da/em EF, e, por fim, [3] apresentar um espaço consolidado em seu escopo para divulgação das pesquisas de caráter sociocultural em EF.

Dessa forma, foram selecionados os seguintes periódicos científicos: Revista Movimento (RM), Revista Motriz (RMZ), Revista Brasileira de Ciência do Esporte (RBCE), Revista Brasileira de Educação Física e Esporte (RBEFE), Revista da Educação Física da UEM - Journal of Pshysical Education (JPE), Revista Licere (RL), Revista Motrivivência (RMT) e Revista Pensar a Prática (RPP). Nesse mapeamento sistemático da literatura, foram coletados artigos originais, artigos de revisão, relatos de experiência, ensaios, resenhas, anais de eventos, entre outros materiais que compunham as seções e espaços específicos de cada revista desde que fundadas, demarcando, por meio desse recorte temporal, um trabalho de 38 anos de revisão do conhecimento.

Após a delimitação dos periódicos científicos, em uma segunda etapa da pesquisa, aprouve acessar de forma direta os sítios de cada uma das revistas selecionadas e realizar, de forma manual, os downloads de todos os textos com o objetivo de compor o banco de dados para investigação. De todos os periódicos selecionados, apenas o JPE não apresentava todos os exemplares na plataforma online. Dessa forma, os textos a partir de 1989 (início da divulgação), até o ano de 1995 (recorte que começa a serem disponibilizados os textos online), foram consultados em versão impressa, na própria biblioteca da Universidade Estadual de Maringá. Nesse percurso, encontrou-se um total de 10.668 trabalhos. Após a coleta de dados, com a finalidade de refinamento desse material, foram aplicados os critérios de inclusão e exclusão dos textos, definidos pela presença ou não do descritor “BOURDIEU” e/ou “BORDIEU” (pois em alguns textos o nome do autor foi escrito/citado de forma equívoca). Ao final da análise de todo o material (10.668 textos), chegou-se ao número de 513 produtos que acionam e referenciam Pierre Bourdieu em seus escritos. A Tabela 1 sintetiza esse processo:

Tabela 1
Quantidade de obras coletadas e incluídas na análise.

De posse desses dados, a terceira etapa da pesquisa consistiu, por seu turno, na análise teórica do material de modo a contribuir com o debate epistemológico sobre a apropriação teórica e sobre o estatuto dos esforços de teorização no campo de EF. Nesse sentido, partiu-se do pressuposto de que os usos da teoria sociológica de Bourdieu poderiam ser analisados com base nas noções desenvolvidas por Catani, Catani e Pereira (2002) ao estudarem a apropriação do referencial de Bourdieu no campo educacional brasileiro. De acordo com os autores, há três modos de apropriação dessa teoria. Uma primeira denominada apropriação incidental, “[...] caracterizada por referências rápidas do autor [...]” (p. 7). A segunda, apropriação conceitual tópica “[...] caracterizada pelo fato de deixar entrever a utilização, conquanto não sistemática, de citações e, eventualmente, de conceitos do autor [...]” (p. 8). Por fim, a apropriação do modo de trabalho, que consiste em:

[...] maneiras de apropriação reveladoras da utilização sistemática de noções e conceitos do autor, tais como campo, estratégia, habitus, etc., bem como mostram preocupação central com o modus operandi da teoria (construção do objeto, pensar relacional, análise reflexiva, objetivação do sujeito objetivante, etc.) (Catani; Catani; Pereira, 2002, p. 8).

Em síntese, a apropriação incidental caracteriza-se por referências rápidas, geralmente em notas de rodapé, sem relação aprofundada com a teoria e conceitos teóricos. Já a apropriação conceitual tópica consiste em utilizar um ou outro conceito de forma não sistemática, mobilizada para reforçar ou refutar argumentos ou resultados. Por sua vez, a apropriação do modo de trabalho seria a utilização sistemática de noções e conceitos, ou seja, uma mobilização fidedigna do modus operandi bourdieusiano.

Cabe ressaltar que, com esse tipo de abordagem delimitada, não se pretende valorar a utilização do referencial teórico de Bourdieu no campo da EF, mas tão somente identificar e explicar como “está acontecendo” os usos dessa teoria em um campo diferente daquele que consubstanciou sua produção. Em outras palavras, reuniu-se informações e análises com o intuito maior de delinear uma tela sobre os diferentes tipos de usos da teoria sociológica de Pierre Bourdieu no campo acadêmico-científico da EF no país.

RESULTADOS

No tocante ao total de manuscritos revisitados (10.668), 53,9% (n=5.749) tratam-se de artigos originais, 3,7% (n=398) artigos de revisão e 27,9% (n=2.978) resumos. Ensaios representam um total de 2,7% (n=290). Resenhas e Relatos de Experiências equivalem 1,1% (n=116) e 1,2% (n=132) respectivamente. Os demais textos (seções específicas de cada revista) agrupados representam um total de 9,5% (n=1.005). Já os trabalhos incluídos na análise correspondem a 4,8% (n=513) do material reunido e isso porque são justamente aqueles textos que fizeram uso do quadro teórico de Bourdieu nos periódicos científicos investigados. A distribuição desses trabalhos foi disposta em ordem cronológica, conforme se expressa no gráfico 1.

Gráfico 1
Distribuição cronológica dos trabalhos sobre Pierre Bourdieu nos periódicos científicos da Educação Física.

Conforme nota-se, do final dos anos 1980 até 2017, houve um crescimento exponencial na mobilização de aspectos e conceitos da teoria de Bourdieu para a produção dos manuscritos publicados nos periódicos do campo aqui em tela. É verdade que a própria vazão de artigos como um todo no espaço editorial das revistas muito provavelmente também aumentou ao longo dessas quase três décadas. Também é provável que o mesmo crescimento possa ter se feito valer em relação à circulação de outros marcos teóricos, mas esse não foi o motivo da análise. Ademais, durante o percurso investigativo, constatou-se que as primeiras alusões à teoria de Bourdieu no contexto dos periódicos investigados são de trabalhos publicados na RBCE em 1988 e 1989, um achado diferente do que expuseram Medeiros e Godoy (2009) ao relatarem que somente no ano de 2003 houve as primeiras referências ao sociólogo na RBCE.

Por sinal, essa primeira citação de 1988 foi feita pelos pesquisadores Francisco Máuri de Carvalho Freitas e Joaquim Ignácio Cardoso Filho, ambos, na ocasião, locados na Universidade Federal do Rio de Janeiro, no artigo intitulado: “Educação Física: Decapitação Cultural e Hegemonia Imperialista”. Para o estudo em questão, os autores fizeram uso das contribuições da obra “A Reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino”. Já a segunda citação, de 1989, advém do texto “Esporte-Estado-Sociedade” de Valter Bracht. Nessa época ainda, mais precisamente em 1983, Renato Ortiz organizava o livro “Pierre Bourdieu: Sociologia”, o qual foi relançado em 2003 com o título “A sociologia de Pierre Bourdieu”. Essa última obra, inclusive, foi utilizada pela autora Fernanda Simone Lopes de Paiva em seu texto “Aprendizagem motora e Educação Física: uma contribuição ao debate” na RBCE em 1992. Trata-se efetivamente de uma terceira menção ao autor em ordem cronológica no corpus documental perscrutado.

Em 1995, Micheli Ortega Escobar publica, na RMT o texto “Cultura Corporal na escola: Tarefas da Educação Física”, utilizando como aporte teórico o livro “A Reprodução”. Por sua vez, Patrícia Din, Fabricio Avancini Silva e Victor Andrade de Melo publicam, também na RMT, o trabalho intitulado “Parâmetros para utilização do Esporte em um projeto de lazer - Um Relato de Experiência”, texto esse, que de forma pioneira, fez uso de uma das principais e mais utilizadas obras de Bourdieu no campo da EF, a saber, o livro “Questões de Sociologia”. Nesse mesmo ano de 1995 foram publicados os textos: “Jovens-velhos esportistas eternamente?” e “Mas, afinal, o que estamos perguntando com a pergunta ‘o que é Educação Física’”, de autoria de Antônio Jorge Soares e Valter Bracht respectivamente. Os dois trabalhos tratam-se das primeiras obras a referenciarem Bourdieu na RM.

Já a RMZ apresenta seus primeiros textos que mobilizam a teoria no ano de 1996, em especial na Figura dos pesquisadores Heber Eustáquio de Paula com o trabalho: “Cabeça de ferro, peito de aço, perna de pau: A construção do corpo esportista brincante” e Irene C. Rangel-Betti e Mauro Betti no artigo intitulado “Novas perspectivas na formação profissional em Educação Física”. Os referenciais mobilizados foram “Questões de Sociologia” e “Esboço de uma teoria da prática” respectivamente.

Seguindo nessa linha cronológica, cabe destacar que no percurso editorial do JPE, o primeiro trabalho a referenciar Bourdieu data de 1998 com o título “Educação Física Feminina: Uma abordagem de gênero sobre as décadas de 1930 e 1940”. Nesse artigo, a autora Ana Júlia Pinto Pacheco cita a obra “A Dominação Masculina”. Por seu turno, o segundo pesquisador a citar Bourdieu no JPE foi Manuel Sergio com o texto: “Motricidade Humana e Saúde” de 2001, em iniciativa pioneira entre os periódicos investigados ao utilizar a obra “Lições de aula”, referente à aula inaugural que Bourdieu ministrou ao assumir a cadeira de Sociologia no Collège de France.

Em 1999, Antônio Jorge Soares publicou o primeiro trabalho com Bourdieu na RBEFE, designado: “Racismo no Futebol do Rio de Janeiro nos anos 20: Uma história de identidade”. Entre as obras utilizadas, se destaca o livro “Questões de Sociologia”. Jorge Olímpio Bento, por conseguinte, foi o produtor de um segundo texto que fez menção à Bourdieu na RBEFE. Trata-se de artigo publicado em 2007 com o título “Acerca da formação dos mestres e doutores”.

Já os primeiros artigos publicados na RL a partir do descritor proposto, datam de 2001 com Maurício Roberto da Silva e o trabalho “A exploração do trabalho infantil e suas relações com o tempo de Lazer/Lúdico: Quando se descansa se carrega pedra!” e de 2003 com José Sergio Leite Lopes, a partir, do artigo “Lazer, trabalho e cultura popular”. Em ambos os manuscritos, a obra “Questões de Sociologia” foi acionada como referencial principal de suporte analítico.

Na RPP, os textos a citarem Bourdieu também remontam ao início dos anos 2000. Em 2005, Juracy da Silva Guimarães publicou o artigo intitulado “O ensino do esporte como problema multidisciplinar” ao passo que, em 2006, Dulce Maria Filgueira de Almeida Suassuna, Fabio de Assis Gaspar e Juarez Oliveira Sampaio publicaram o texto “A Educação Física na Universidade de Brasília e a formação de professores: aspectos epistemológicos”. O primeiro texto se reportou à obra “Questões de Sociologia” e o segundo ao livro “Coisas Ditas”.

Dando continuidade à construção desse percurso analítico, outro aspecto interessante que merece ser observado se refere aos picos de utilização da teoria de Bourdieu no contexto das revistas investigadas. Em 1997, um primeiro pico foi induzido em virtude da publicação de 10 textos na RBCE, todos apresentados no X Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte, realizado entre 20 e 25 de outubro de 1997 na cidade de Goiânia. Outro pico significativo passível de se verificar foi deflagrado em 2010 como fruto de uma onda crescente de mobilização do quadro teórico de Bourdieu no contexto estudado a partir do ano de 2007. Nesse período, foram publicados 119 textos em que houve menções ao autor, um aumento percentual de 230% (Brasil, 2018).

Esses dados, por sua vez, parecem remeter a uma tendência de mobilização histórica do referencial teórico de Bourdieu no campo de EF, influenciada, principalmente, por novos agentes pretendentes à participação no jogo científico. A diversidade de autores que passou a mobilizar aspectos da teoria, saltou, por exemplo, de 30 autores/coautores diferentes em 2007 para 78 autores/coautores diferentes em 2010. Essa movimentação sugerida, por seu turno, pode conservar alguma espécie de intimidade com a intensificação do processo de tradução das obras de Bourdieu no país nos anos 2000 (Brasil, 2018).

Interessante observar que foi justamente com esse tipo de preocupação teórica em mente, sobre as relações de poder subjacentes à mobilização de referenciais teóricos consagrados no campo de EF, que nos propomos, num nível seguinte de esforço, a investigar algumas lógicas que perpassam as redes de autorias e respectivas coautorias dos manuscritos. Para esse tipo de análise, inicialmente agrupou-se os 513 textos que correspondiam ao refinamento final do banco de dados, em três categorias definidas conforme a quantidade de autores por produto. Feita essa divisão inicial, na sequência, procurou-se entender como essa lógica refletia nos periódicos investigados.

Tal como sugere a Tabela 2, a maior parte dos textos que mobilizam aspectos da teoria de Bourdieu em sua estrutura, são de autoria individual ou de dupla autoria (n=332). Nesse contexto, destacam-se a divulgação de trabalhos na RBCE (n=88) e na RM (n=84), sugerindo uma lógica de campo científico em que os investigadores historicamente valorizavam outro formato de parcerias acadêmicas. De qualquer modo, como já pontuado por Lazzarotti-Filho et al. (2012), o aumento na autoria compartilhada parece estar tornando-se recorrente no campo da EF, até mesmo em relação à área sociocultural, que, por tradição, parece ter mais resistência a essa tendência de produção e socialização do conhecimento científico. Já, nesse estudo, foi possível constatar que o JPE, com uma média de 2,78 autores por texto, e a RPP, com uma média de 2,77 autores por texto, são, dentre os periódicos investigados, aqueles em que os agentes mais publicam de forma compartilhada.

Tabela 2
Frequência relativa e absoluta da distribuição de autoria nos periódicos estudados.

No entanto, conforme já dito, a autoria individual e dupla autoria ainda representam a maior porcentagem de todos os textos analisados (64,7%), sendo que as médias mais baixas, de autoria e coautoria, se concentram respectivamente na RMZ (1,87 autor/texto), RBCE (1,92 autor/texto) e RMT (2,12 autores/texto). Isso fica ainda mais evidente, quando analisando os dados no recorte temporal proposto para esse estudo, conforme demonstra o Gráfico 2.

Gráfico 2
Distribuição cronológica dos trabalhos que citam Bourdieu em relação à autoria nos periódicos científicos da Educação Física investigados.

Na prática, isso sugere que no âmago da atividade científica de caráter sociocultural em EF, a autoria mais individualizada seria melhor avaliada, sinalizando quais seriam os potenciais agentes dominantes dentro da estrutura do campo (Bourdieu, 2004). Em outros termos, a publicação individual além de sinalizar para uma lógica da autonomia acadêmica, aponta, sobretudo, para o acúmulo de capital científico, intelectual e simbólico, ao menos no que se refere à lógica estabelecida pelo prisma das ciências soft no campo da EF.

Esse tipo de hipótese pôde, inclusive, ser melhor testada quando aprouve problematizar, a partir do que propositaram Catani, Catani e Pereira (2002), sobre os tipos de apropriação do referencial teórico de Bourdieu que se fizeram presentes na totalidade de textos que compuseram o banco de dados para essa investigação. (Gráfico 3).

Gráfico 3
Tipo de apropriação teórica do referencial de Bourdieu nos periódicos da EF investigados.

Como se pode notar (no gráfico 3), 54% das publicações nos periódicos investigados (276 textos) acionam o referencial de Bourdieu a partir da apropriação conceitual tópica, ou seja, se caracterizam como textos que geralmente citam a teoria de Bourdieu junto a outros referenciais, para reforçar ou refutar argumentos, trazendo consigo um ou outro conceito teórico, porém sem a mobilização fidedigna dos preceitos epistemológicos e metodológicos que compõem o referencial em questão tais como discutidos por Souza e Marchi Júnior (2017). Isso, por conseguinte, pode significar muitas coisas, inclusive contrastantes. Por um lado, esse tipo de apropriação poderia representar um produtivo exercício de confrontação epistemológica frente aos objetos que satisfazem a especificidade das agendas de investigação no campo da EF, ao ponto de se produzir níveis de conhecimento científico renovados e aderentes à área. Por outro lado, esse tipo de apropriação pode denotar um ecletismo hermético e dificuldades de operacionalização da teoria e do ato de teorizar no campo da EF.

No que versa à apropriação incidental da teoria de Bourdieu no campo de EF, essa representa um percentual de 22% (114 manuscritos) no cenário de mobilização teórica inferida da totalidade de textos analisados no presente estudo. Trata-se de de relações com a teoria que se expressaram no corpus documental reunido em notas de rodapé ou na mobilização do autor na seção de referências bibliográficas dos estudos, porém sem nenhuma citação no corpo do texto, ou seja, sem nenhum indício de associação mais aprofundada com a teoria. As perguntas que podem ser feitas para esse tipo de apropriação são, dentre outras possíveis: no que o autor e sua teoria efetivamente ajudaram para a consecução das análises e oferta de argumentos? Não seria, em tais casos, dispensável a recorrência ao referencial? Bourdieu estaria sendo acionado por que efetivamente contribui para a construção teórica do objeto ou por que se tornou um referencial da moda no campo?

Em contraste com esse tipo de apropriação, verificou-se que em 24% do material analisado (123 textos) foram satisfeitos e evidenciados níveis de relação sistemática com as noções e com os conceitos centrais da teoria de Bourdieu, fazendo justiça ao modo de trabalho perspectivado pelo sociólogo francês. Não é de estranhar que justamente esse tipo de relação teórica com o referencial em questão se constitua em um poder simbólico que tem a possibilidade de conceber, ou ainda, de remodelar a partir das categorias cognitivas da própria teoria algumas visões de mundo em voga no campo, assim como influenciar ou definir os modos de utilização e apropriação deste referencial. Ademais, depreende-se deste tipo de mobilização teórica uma posição distintiva no campo da EF em relação ao manejo da teoria de Bourdieu e que, por seu turno, tem a ver tanto com a formação de um habitus científico reflexivo quanto com as dinâmicas estruturais do campo.

Na esteira, inclusive, desse pano de fundo teórico é que se procurou mapear no material perscrutado como os periódicos estão recebendo os trabalhos com as diferentes formas de apropriação. Para isso, elaboramos a Tabela 3 que descreve a frequência relativa e absoluta do total de obras coletadas, dividida por periódico científico.

Tabela 3
Frequência relativa e absoluta da distribuição da apropriação nos periódicos estudados.

De acordo com o disposto na Tabela 3, verificamos que do total dos textos divulgados nos oito periódicos científicos selecionados, a maior porcentagem total (26,1%) está publicada na RM. Além de representar 31,7% dos trabalhos que utilizam a teoria com uma apropriação do modo de trabalho. O segundo periódico que mais divulga textos produzidos desde a perspectiva de apropriação do modo de trabalho da teoria de Bourdieu foi a RBCE (17,1%). Com base nos dados reunidos no estudo e sintetizados na Tabela 3, é possível afirmar que tanto a RM, em seus 134 textos com menção à Bourdieu, quanto à RBCE, com um total de 113 textos que referenciam o autor, se constituem em duas plataformas decisivas para fazer essa referência teórica circular no campo da EF no Brasil. As duas revistas respondem por 48,8% dos textos que utilizam/citam/referenciam Bourdieu, observando a apropriação do modo de trabalho, tal como proposto por Catani, Catani e Pereira (2002), no recorte cronológico da pesquisa. As demais revistas, evidentemente, também contribuíram nesse percurso, no sentido de dar visibilidade a estudos e objetos que não só mobilizam esse referencial, como também o fazem em relativa observância aos critérios editoriais e avaliativos que satisfazem as especificidades históricas de cada um dos periódicos que compuseram o campo empírico do estudo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A teoria dos campos de Pierre Bourdieu oferece subsídios para a reflexão e apreensão de diferentes objetos investigativos, sendo, dessa forma, mobilizada em várias áreas do conhecimento, inclusive, transcendendo o campo das Ciências Sociais e Humanas, devido ao caráter relacional de seus conceitos que escorregam para outras áreas. Nessa esteira, como foi possível demonstrar no decorrer do estudo, um dos campos em que o referencial do autor tem se espraiado com frequência é o da EF, muito em virtude do investimento de pesquisadores e grupos de pesquisa em torno de uma obra que potencialmente satisfazia discussões caras à EF e, por conseguinte, induzia o campo a um novo estágio de relações teóricas (Souza; Marchi Júnior, 2017).

Assim, ao visualizarmos as primeiras mobilizações de sua teoria no campo da EF em cada um dos periódicos analisados, depreende-se que a potencialidade oferecida pelo referencial teórico bourdieusiano para um trato diferenciado de temáticas como o corpo e o esporte em suas relações de dominação simbólica e de reprodução social, foi um fator preponderante para que, inicialmente, investigadores acionassem esse motor de análise alternativa para levar a rigor a atividade científica no campo. Em outras palavras, esses pesquisadores passam a visualizar no trabalho do sociólogo francês, conceitos e ferramentas de análise do tecido social distintos aos modelos teóricos anteriores, em um esforço nítido de tentar romper com cenários de terra firme e, em alguma medida, de ciência normativa.

Nas décadas que seguiram a esses usos teóricos iniciais no contexto dos periódicos de EF aqui investigados, nota-se que progressivamente houve uma maior aproximação com o referencial do autor, ainda que orientada por uma lógica de apropriação teórica com menor rigor metodológico. Isto é, os resultados encontrados no decorrer da pesquisa sugerem que essa teoria alcançou os diversos círculos acadêmicos em intensidades diferentes, sendo essa condição refletida no modo com que os agentes se apropriam do referencial. Nesses termos, aqueles pesquisadores que manejam a teoria de forma mais sistemática, provavelmente estiveram envoltos em um reduto no qual o trabalho de Bourdieu circulou com maior ênfase, ou ainda, seguindo uma linha geracional (Brasil, 2018). Em adição, também atua o aspecto da legitimidade acadêmica a ser mantida em torno dos usos da teoria e o que isso representa em termos de dedicação à tarefa de apropriação teórica.

À maneira de fechamento, aponta-se que a apropriação da teoria de Bourdieu nos periódicos científicos em EF se dá de forma muito mais conceitual tópica e incidental, o que, por seu turno, sugere, no mínimo três tomadas de posições diferenciadas. Uma delas seria um uso mais heterodoxo e consciente da teoria para atender a fins e interesses investigativos específicos ou localizar e confrontar a referida teoria frente a outras teorizações rotinizadas no campo. Uma segunda possibilidade seria mesmo o uso ornamental da teoria com vistas a citar pontualmente um autor da moda que não só passa a se fazer notar na estrutura dos artigos de caráter sociocultural e pedagógico publicados nos periódicos da EF como, ao mesmo tempo, empresta um lucro distintivo a quem o mobiliza. Essa transferência de capital simbólico da teoria para quem maneja a teoria, está presente, claro, nas outras lógicas de mobilização desse referencial. Finalmente, o processo de apropriação, de fato, pode estar sendo dificultoso. Daí a relativa superficialidade e imprecisão no emprego da teoria de Bourdieu em parte da produção investigada.

Feito esse percurso, fica-se com a sensação de que não só a apropriação como também os usos da teoria sociológica de Bourdieu ainda estão em abertos no campo, sendo necessário não apenas um investimento mais sistemático nesse referencial, mas no aporte das Ciências Sociais de forma mais ampla, de modo a se rever o estatuto da teoria no campo e a importância e medida equilibrada do esforço de teorizar em EF e em ciência (social) dos esportes.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    06 Maio 2019
  • Aceito
    14 Out 2019
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