O tipo político fascista e o esporte: uma abordagem epistemológica

The fascist political type and sport: an epistemological approach

El tipo político fascista y el deporte: un enfoque epistemológico

RESUMO

O presente artigo objetivou investigar à luz da teoria de Adorno como o esporte é utilizado na propaganda bolsonarista. O trabalho tem um caráter teórico-empírico, cujos aspectos do pensamento de Adorno tornam-se instrumento para análise do fenômeno esportivo. Metodologicamente, foram analisadas as publicações do perfil oficial do Instagram de Jair Bolsonaro que fizessem alguma menção ao esporte. Verificou-se que há uma vinculação entre o esporte de alto rendimento e a propaganda fascista difundida pelo perfil de Bolsonaro. Concluiu-se que a propaganda fascista incorpora estratégias de cunho psicológico e anti-intelectual visando atingir às massas na propagação de fatos desvinculados de seu contexto e pseudoverdades, com o propósito de penetração das ideias fascistas.

Palavras-chave:
Fascismo; Bolsonarismo; Propaganda; Esporte

ABSTRACT

This article aimed to investigate, in the light of Adorno's theory, how sport is used in Bolsonarist propaganda. The work has a theoretical-empirical character, whose aspects of Adorno's thought become an instrument for analyzing the sporting phenomenon. Methodologically, publications from Jair Bolsonaro's official Instagram profile that made any mention of sport were analyzed. It was found that there is a link between high-performance sport and the fascist propaganda spread by Bolsonaro's profile. It was concluded that fascist propaganda incorporates psychological and anti-intellectual strategies aimed at reaching the masses in the propagation of facts disconnected from their context and pseudo-truths, with the purpose of penetrating fascist ideas.

Keywords:
Fascism; Bolsonarism; Advertising; Sport

RESUMEN

Este artículo tuvo como objetivo investigar a la luz de la teoría de Adorno cómo el deporte es utilizado en la propaganda bolsonarista. La obra tiene un carácter teórico-empírico cuyos aspectos del pensamiento de Adorno convertirse en análisis del fenómeno deportivo. Metodológicamente se analizaron las publicaciones del perfil oficial de Instagram de Jair Bolsonaro que hicieran mención al deporte. Se constató que existe un vínculo entre el deporte de alto rendimiento y la propaganda fascista difundida por el perfil de Bolsonaro. Se concluyó que la propaganda fascista incorpora estrategias psicológicas y antiintelectuales encaminadas a llegar a las masas en la propagación de hechos desconectados de su contexto y pseudoverdades con el propósito de penetrar ideas fascistas.

Palabras-clave:
Fascismo; Bolsonarismo; Publicidad; Deporte

INTRODUÇÃO

Com a ascensão e a consolidação do fascismo no contexto político mundial, elementos ideológicos desse espectro são notados em diversos segmentos da sociedade, extrapolando o campo político-partidário e avançando em instituições como a família, a escola e a religião, bem como o mundo do trabalho. Como característica marcante desse movimento, a oposição de extrema direita à racionalidade científica encaminha uma corrente anti-intelectual que potencializa as próprias questões ideológicas, conforme observado em Malina et al. (2021).

Embora o movimento fascista atual seja referenciado enquanto uma nova direita, as bases ideológicas do fascismo são antigas e produzem, no interior da produção acadêmica, diferentes posicionamentos. Moraes (2013) aponta que a caracterização atual do fascismo não se vincularia às experiências anteriores, apontando que “[...] ainda que guardem algum grau de proximidade em função de uma prática comum, são distintas em seus propósitos” (Moraes, 2013, p. 1).

Löwy (2020) atenta que existem outras formas para conceituar o movimento atual do fascismo no Brasil. No entanto, o autor compreende que a caracterização como fascista ou neofascista pode se aplicar a alguns, mas não a todos os movimentos. Os que se assemelham com o fascismo clássico dos anos de 1930, mas possuem também diferenças substanciais, o autor designa como neofascistas.

A despeito das divergências de nomenclatura atribuída aos movimentos contemporâneos de extrema-direita – fascista, nazista, nazifascista, neonazista ou pós-fascista – não se ignora sua gênese e raízes históricas no fascismo, assim como suas transformações. No presente trabalho, denominaremos o movimento da extrema-direita enquanto um movimento fascista.

No Brasil, o fascismo ganhou poder com a chegada de Jair Messias Bolsonaro (Bolsonaro) à Presidência da República (2019-2022). Mesmo derrotado na tentativa de reeleger seu representante, o fascismo expresso na consolidada na corrente chamada de bolsonarista, deixou um rastro de destruição, como observado na ciência e tecnologia e nas políticas públicas que garantem os direitos sociais, além de outros campos.

Diversas foram (e ainda são) as estratégias utilizadas pelo bolsonarismo no meio social para garantir seus interesses. As ações atingem diferentes segmentos da sociedade como, dentre outros:

• Os canais de comunicação, em especial as redes sociais, tendo como fio condutor a desinformação e se manifestam por meio das fake news (Recuero e Gruzd, 2019), notícias falsas com propagandas ideológicas positivas para o governo e/ou negativas para a oposição;

• A educação, se apropriando do debate e com investidas em políticas de redução dos direitos das minorias sociais, com a implementação do Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares, com o projeto de Escola Sem Partido e com a tentativa de instaurar o homeschooling (Pereira e Ota, 2023);

• O campo político, com o debate das chamadas “ideologia de gênero” e “marxismo cultural”, que na visão bolsonarista seriam instrumentos de subversão da ordem vigente a serviço do comunismo mundial (Miguel, 2021).

A disseminação dos valores fascistas também se faz presente nas práticas sociais como é o caso do esporte. Por um lado, é possível observar atletas, ex-atletas e profissionais do esporte demonstrarem apoio ao projeto societário bolsonarista e às pautas conservadoras. Por outro lado, historicamente, se observa a utilização do esporte como instrumento para desviar o foco das opressões, prática comum durante o regime ditatorial civil-militar brasileiro (1964-1985) (Peragene, 2021).

A relação entre o fascismo e o esporte pode trazer elementos para pensar a sociedade contemporânea. Dessa forma, o presente estudo buscou investigar o processo de apropriação do esporte pelo fascismo como forma de difusão-difusora de sua ideologia a partir de aspectos epistemológicos.

Para tanto, investigamos o discurso bolsonarista no Instagram. A capilaridade da narrativa no meio digital privilegia a análise, visto que as redes sociais proporcionaram novos veículos de transmissão de discurso e novas formas de comunicar (Sinhoretto, 2022), aproximando candidatos e eleitores, e promovendo maior mobilização social e engajamento destes na dinâmica política, com a criação e com o compartilhamento de conteúdo no meio digital (Bento, 2020). Além disso, o esporte é um segmento com bastante visibilidade na mídia e guarda uma relação essencialmente política (Malina et al., 2019).

METODOLOGIA

O presente estudo consiste em uma pesquisa teórico-empírica, uma vez que combina esses elementos para pensar a ideologia da extrema direita e a forma pela qual ela se apropria do esporte. À luz da teoria de Theodor Adorno foram abordados aspectos epistemológicos desse escopo de pensamento e como ganhou capilaridade por meio das redes sociais. A partir disso, estabelecemos relações entre a ideologia política do fascismo e os fenômenos que permeiam o esporte, buscando evidenciar contradições. Para tanto, quando necessário, recorremos aos fatos históricos recentes que envolveram o esporte e a mídia, bem como manifestações políticas.

A fim de subsidiar empiricamente a discussão e trazer elementos para análise, investigamos a presença ou a ausência do esporte na propaganda bolsonarista. Para tal, consideramos as publicações no feed do perfil oficial de Jair Bolsonaro (@jairmessiasbolsonaro), no Instagram, em que o conteúdo visual (fotos e vídeos) e escrito (legendas) guardassem alguma relação com o esporte. O procedimento metodológico de análise foi a avaliação das postagens de forma individual, identificando o conteúdo visual e as legendas. A busca se deu por alguma forma de menção ao esporte ou conteúdo esportivo, como uma camisa ou uma bandeira de um clube, a figura de uma personalidade do esporte, uma prática esportiva de lazer, uma referência textual a investimentos na área, entre outras.

O recorte temporal da análise totalizou 4 anos e 4.439 publicações. Cobriu do primeiro dia de janeiro de 2019 até o último dia de dezembro de 2022, ou seja, os 4 anos de mandato de Bolsonaro à frente da Presidência da República. Nesse período, das 4.439 publicações verificadas, após a leitura de todo o material, descartou-se 4.319 publicações. Nas 120 publicações restantes, a temática do esporte esteve presente, de diferentes formas e manifestações e foram objeto específico de análise.

Justifica-se a escolha do Instagram porque, dentre as diversas redes sociais existentes na qual Bolsonaro se manifesta politicamente, possui apelo no conteúdo visual quando comparado ao conteúdo escrito da publicação. Ao acessar o perfil de algum usuário no Instagram, o layout da rede social prioriza o conteúdo visual (fotos e vídeos) e suprime o conteúdo escrito (legendas), que são de, no máximo, 2.200 caracteres.

O tratamento dos dados decorreu de forma simultânea, isto é, os elementos teóricos presentes na obra de Adorno (2020, 2019, 2015) subsidiaram análises dos contextos sociopolítico e esportivo brasileiro, assim como a pesquisa realizada na rede social, de modo a trazer mais elementos que nos possibilitem delinear um panorama do fascismo no país, no que diz respeito a forma e conteúdo de suas veiculações ideológicas, via esporte.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Nos 4 anos em que Bolsonaro esteve como Presidente da República (2019-2022), seu perfil oficial do Instagram postou 4.439 publicações, uma média de 1.109 por ano, 92 por mês, 3 por dia. Desse total, o esporte aparecia em 120 publicações. A partir do cruzamento estabelecido entre o conteúdo visual (vídeos e imagens) e o conteúdo escrito (legendas), observou-se que as publicações assumiam 4 tipos distintos no que se refere à mensagem que pretendia comunicar. O Quadro 1 traz as 4 categorias e a definição de cada uma delas.

Quadro 1
Categorias das publicações e definição de cada uma delas.

CATEGORIA	DEFINIÇÃO
Esporte de Rendimento	O conteúdo visual estabelece relação com o conteúdo escrito de maneira a comunicar algo sobre o esporte de rendimento (ex. investimento em infraestrutura esportiva para atletas).
Imagem de instituições, atletas e ex-atletas	O conteúdo visual está relacionado à instituições esportivas (ex. postagens de Bolsonaro assistindo a jogos de clubes de futebol pela televisão ou no estádio) sem que o conteúdo escrito aborde contribuições ou algo significativo para o esporte de rendimento e/ou; a utilização da imagem de atletas e ex-atletas em apoio às medidas governamentais ou à figura de Bolsonaro, independentemente de ter relação ou não com o esporte de rendimento (ex. vídeo de Neymar declarando apoio a Bolsonaro durante uma live).
Saúde, Lazer, Educação e Políticas Públicas	O conteúdo visual está voltado para o esporte na perspectiva da saúde, do lazer e/ou da educação (ex. pessoas ou o próprio Bolsonaro praticando alguma atividade física), além do conteúdo escrito abordar o tema políticas públicas.
Ausência de relação entre o esporte e a mensagem comunicada	O conteúdo visual apresenta algum aspecto esportivo (ex. Bolsonaro fazendo um pronunciamento sobre política vestindo a camisa de um clube de futebol), mas a legenda comunica algo que não se refere ao tema.

• Fonte: Os autores.

Dentre as 120 publicações analisadas, 5 delas possuem elementos que podem ser enquadrados em mais de uma categoria (por exemplo, combinam elementos do esporte de rendimento com a imagem de instituições, atletas e ex-atletas). Para fins de análise, o que fora tomado como referência de análise é o teor da mensagem que se pretende comunicar. Logo, foram totalizadas 125 publicações/mensagens em 4 categorias. O Quadro 2 detalha as categorias encontradas e quantidade de publicações/mensagens em cada uma delas.

Quadro 2
Quantidade de publicação no perfil de Jair Bolsonaro no Instagram distribuídos nas categorias.

CATEGORIA	NÚMERO DE PUBLICAÇÕES
Esporte de Rendimento	17
Imagem de instituições, atletas e ex-atletas	45
Saúde, Lazer, Educação e Políticas Públicas	19
Ausência de relação entre o esporte e a mensagem comunicada	44

• Fonte: Os autores.

A partir dos resultados obtidos, compreende-se que, em relação às categorias Esporte de Rendimento e Imagem de instituições, atletas e ex-atletas, conforme identificado no Quadro 2, seriam categorias de maior capilaridade possivelmente em decorrência de uma maior difusão midiática do esporte de rendimento, assim como a identificação de atletas reconhecidos pelo público em geral, podendo gerar um maior engajamento nas redes sociais do que outras temáticas.

Para analisar o conteúdo das postagens e os processos de uso da propagando como condutoras e expressões do fascismo, metodologicamente dividimos o processo analítico em dois tópicos. O primeiro tópico aborda como a propaganda pode ser utilizada enquanto instrumento ideológico de bandeiras fascistas. Para essa discussão, balizamos o conteúdo das postagens relativas às categorias Esporte de Rendimento e Imagem de instituições, atletas e ex-atletas à luz da compreensão desenvolvida por Adorno (2020, 2019, 2015). No segundo tópico, discutimos a relação entre liderança e os seguidores dos movimentos de extrema direita à luz da psicanálise freudiana, articulando as demais categorias identificadas nas postagens, como pode ser visto no Quadro 2. Cabe pontuar que, embora tenhamos feito uma divisão entre a propaganda midiática e os fundamentos psicanalíticos, tal recorte é meramente didático, já que esses processos ocorrem de forma articulada e interdependente. A fundamentação freudiana permite analisar possíveis elementos psicológicos contidos na propaganda fascista que apontem para uma organização da subjetividade do homem e como a disseminação do ideário fascista visa sensibilizar e mobilizar a estrutura psicológica do indivíduo.

A PROPAGANDA NA DISSEMINAÇÃO DO IDEÁRIO FASCISTA POR MEIO DO ESPORTE

A partir dos dados coletados percebeu-se que o esporte se fez presente na propaganda bolsonarista, manifestando-se em diferentes vertentes, mas com um apelo ao esporte midiático, representado, na maior parte, pelo futebol masculino. No entanto, notam-se poucas publicações como a da Figura 1, que trata de comunicar algo relevante ao esporte de rendimento (17). Tal fato pode estar atribuído ao viés da gestão de Bolsonaro.

Figura 1
Bolsonaro junto a atletas medalhistas.

Entre 2019 e 2022, o cenário esportivo passou por mudanças significativas, principalmente na vertente do alto rendimento. Dentre as mais expressivas, destacam-se a extinção do Ministério do Esporte, suprimido a uma secretaria e incorporado ao Ministério da Cidadania; a abertura de crédito extraordinário no orçamento; a adequação do combate ao doping à comunidade internacional e o enrijecimento na repressão à violência de torcedores. Tais mudanças podem ser avaliadas como positivas ou negativas, porém, a atitude que mais impactou o esporte foi o veto de itens direcionados a atletas, principalmente o auxílio emergencial do esporte, com a premissa governamental de que não havia recursos disponíveis. Além disso, sua aprovação impactaria no pagamento do auxílio emergencial que vigorava à época, destinado à grande população (Matias, 2021).

Apesar de poucas publicações relacionadas aos investimentos no esporte de rendimento, o bolsonarismo demonstra um enorme apelo a essa vertente, posto que predominam publicações em que o perfil de Bolsonaro se utiliza da imagem de clubes, atletas e ex-atletas (42) com grande visibilidade no meio social, vide a Figura 2.

Figura 2
Bolsonaro ao lado de jogador do Palmeiras.

Com efeito, o esporte enquanto propaganda parece acessar não somente os apoiadores de Bolsonaro, mas os próprios atletas e ex-atletas. Lembre-se o ex-jogador Daniel Alves, que manifestou o apoio a Bolsonaro em suas redes sociais durante o dia 7 de setembro de 2021 postando o slogan do governo (Silva, 2022). Neymar, por sua vez, manifestou-se durante a campanha de Bolsonaro, em 2022 publicando em seu perfil pessoal no TikTok um vídeo cantando uma paródia em apoio ao candidato (UOL, 2022). Já o ex-atleta, agora treinador, Renato Gaúcho, na sua chegada ao Flamengo, em 2021, gravou um vídeo: “Fala, Mourão! Tudo bem? Agora é mais um para usar a máscara do Flamengo. Estamos juntos, sempre, com o homem, com o nosso mito. Abraço” (Valbão, 2022).

Pôde-se depreender, visualizando sistematicamente as publicações relacionadas ou ao esporte de rendimento (17) ou a partir de seus atores e instituições (42) que, sob o aspecto epistemológico, não parece haver condução, reavaliação, conceituação do esporte, ou outros signos do conhecimento, quer em fartura, quer em objetividade.

Nesse sentido, Adorno (2015) observa que o material de propagação fascista tem pouca preocupação com a concretude e tangibilidade das questões políticas. A propaganda baseia-se muito mais em cálculos psicológicos do que propriamente na intenção de conseguir seguidores a priori, visto a ausência de objetivos racionais expressos de maneira racional. Assim, necessitam de mecanismos que transformem a libido na ligação entre líder e seguidores, bem como entre os próprios seguidores, conforme já havia sido descrito anteriormente por Freud.

Na perspectiva epistemológica, compreende-se que a propaganda fascista, destinada em sua eficácia ao grupo geral da sociedade, traz elementos psicológicos por seus objetos serem irracionais e autoritários, não alcançáveis por convicções racionais, mas sim por um despertar da herança arcaica do sujeito (Adorno, 2015). Portanto, compreende-se, em níveis psicológicos, que, apesar de poucas melhorias no âmbito esportivo, sujeitos do esporte de rendimento possam apoiar a figura de Bolsonaro (Figura 3), o que os aproxima de uma perspectiva anti-intelectual estimulada e endossada pela propaganda fascista.

Figura 3
Neymar declara apoio à reeleição de Bolsonaro.

Outra teoria que utilizamos para explicar a relação entre os atores do esporte e Bolsonaro é a de associação entre a manifestação fascista e a imagem do líder, a partir do conceito de identificação (Freud, 2020), não importando se ele realmente lidera ou se é mandatário dos interesses do grupo. Ainda segundo Freud, o prestígio do líder e a redução da capacidade intelectual, fundamentais para o efeito de sugestão mútua entre os indivíduos, tem origem na libido, em Eros. Neste sentido, são os laços emocionais que mantêm o grupo unido, constituindo-se na própria essência da mente grupal. A identificação, ao desempenhar um papel primitivo no Complexo de Édipo, apresenta-se como a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa (Freud, 2020). A identificação parece ser, portanto, uma explicação para o fenômeno da sugestão e contágio, de como os indivíduos, em grupo, se ligam e submetem à emoção.

Assim sendo, há uma personificação da propaganda fascista: se transfere a discussão sobre causas objetivas para a constante reiteração de nomes e de supostos grandes homens, centralizados na figura de Bolsonaro, apoiando a proposta do fascismo em torno dele: o “mito”. Nesse sentido, Freud (2020) e Adorno (2015) nos mostram que a identificação é um desses mecanismos que garantem essa coesão.

A propaganda cumpre o papel de identificação ao líder e a falta de racionalidade de seu conteúdo fortalece o anti-intelectualismo, seja por verdades distorcidas ou por mentiras contadas. Assim, os atores do esporte são usados na propaganda, mas o efeito dela também recai sobre eles. Como exemplo, Lucas Moura, também jogador de futebol, declarou em um podcast ser conservador, de direita e defensor dos princípios cristãos e da família. Apesar de defender sua concepção político-ideológica, o jogador reproduz a irracionalidade difundida pela propaganda fascista. A identificação com o líder aparece ao declarar que “Bolsonaro é um cara que mais se aproxima do que acredito, da ideologia que eu acho que é correta para o nosso país”. Já o anti-intelectualismo se manifesta na reprodução do que é irracional, ao afirmar que Lula defende praticamente tudo que ele é contra e que “[...] não tem nada diferente entre nazismo e comunismo [...] não podemos voltar nesse retrocesso. Sem contar os casos de corrupção” (Valbão, 2022).

Compreende-se, portanto, que a propaganda bolsonarista parece demonstrar um apelo à vertente do esporte de rendimento, buscando ser um ponto comum entre Bolsonaro e seus apoiadores, revelando mais a menção ao efeito da relação consciente-inconsciente do que um acréscimo de conhecimento específico ou inovador relacionado ao esporte.

CULTO AO LÍDER E ESPORTE: CONTRIBUIÇÕES DA ANÁLISE FREUDIANA

Nesta seção foi explorada a relação entre a liderança dos movimentos fascistas e seus seguidores, demonstrando como esse arranjo ocorre por meio do esporte, a partir da síntese conceitual que Adorno (2020, 2019, 2015) produz à luz da psicanálise freudiana.

As publicações que tratam sobre pautas sociais relacionas ao esporte são minoria (19). Pouco se observa, ao longo do governo bolsonarista, publicações que trazem o esporte sob a perspectiva do lazer, da saúde e da educação, apresentando políticas públicas (Figura 4).

Figura 4
Bolsonaro em uma partida beneficente.

Conforme Frizzo (2019), a extinção do Ministério do Esporte foi adotada com uma das justificativas para a recuperação na crise econômica, mas impactou as políticas públicas que garantiam os direitos sociais. Tal medida reduziu a participação do Estado beneficiando a iniciativa privada como promotora do esporte.

Mesmo que grande parte da população mais pobre tenha sido escanteada durante o governo Bolsonaro, ele obteve mais de 58 milhões de votos recebidos na disputa presidencial de 2022. Tal questão pode ser analisada segundo vários vieses. Um deles encontra explicação em Adorno (2015). Ele compreende que o comportamento político do seguidor fascista se torna irreconciliável com seus próprios interesses racionais enquanto pessoa privada, bem como com os do grupo ou classe ao qual pertence de fato. O autor adota uma perspectiva epistemológica advinda da Psicanálise para essa assertiva. Nesse sentido, a irracionalidade despertada do seguidor seria bastante racional do ponto de vista do líder: ela necessariamente tem que ser “[...] uma convicção que não é baseada em percepções e raciocínios, mas em um vínculo erótico” (Adorno, 2015, p. 166).

Nesse contexto e na mesma perspectiva epistemológica, Adorno (2015) observa que o padrão libidinal do fascismo e a técnica dos representantes políticos fascistas são autoritárias. Essas técnicas apropriam-se do mesmo mecanismo epistêmico-psicológico, levando os indivíduos a submeterem-se às regressões, reduzindo-se a meros membros de um grupo.

Segundo a perspectiva adorniana, esse apoio a Bolsonaro pode ser estar relacionado ao quadro mental do extrato da população que sofre de frustrações sem sentido e desenvolvem uma irracionalidade. Esse poderia ser, portanto, um dos mecanismos da propaganda fascista: tomar os homens por serem “filhos” da cultura de massa padronizada de hoje. Dessa forma, conforme Adorno (2015), a propaganda fascista precisaria reproduzir essa mentalidade existente para seus próprios propósitos e a repetição compulsiva, sem propriamente precisar induzir uma mudança.

Cabe esclarecer, entretanto, que, para Adorno (2019, 2015), disposições psicológicas não causam o fascismo. A psicologia tornou-se apenas mais um elemento no interior de um sistema cuja totalidade é demandada contra o potencial de resistência das massas, ou seja, a própria racionalidade da massa. A psicologia das massas foi apropriada por seus líderes e transformada em um meio de dominação, pois ela não se expressa diretamente através dos movimentos de massa.

Outro grupo de publicações observadas foram aquelas que, apesar de se utilizarem do esporte, não guardam relação com ele (44). Isto é, demonstram ausência de relação entre o esporte e a mensagem comunicada. Foram publicações em que Bolsonaro apareceu com algum elemento que o relaciona ao esporte, como uma camisa ou uma bandeira de clube, mas que o conteúdo escrito não guarda qualquer relação com o esporte, conforme visto na Figura 5.

Figura 5
Vídeo de Bolsonaro em visita ao Farol da Ilha da Paz, em São Francisco do Sul (SC).

Alinhado à perspectiva epistemológica teórico-crítica, Adorno (2020) nos mostra que a propaganda não teria em sua essência a disseminação de ideias sistematizadas e organizadas através de uma racionalidade consciente (Garzia-Roza, 2007), mas a propaganda teria como ponto principal conduzir o engajamento das massas buscando dialogar com aspectos que não estão na superfície do homem, isto é, elementos que visam atingir as profundezas, implicando e mobilizando pulsões no homem que estão latentes e nem sempre são reconhecidas e manifestas em sua forma aparente. Desse modo de vista do inconsciente freudiano, para a mobilização das pulsões humanas, há pouca importância na racionalidade consciente, a concretude das questões políticas e os possíveis desdobramentos dessa perspectiva.

Desse modo, a falta de congruência epistemológica do conteúdo visual com o conteúdo escrito veiculado pelo perfil de Bolsonaro evidencia que as publicações assumem caráter apelativo para gerar uma aproximação ou uma pretensa afetividade com os torcedores e simpatizantes de determinado time, visto que nas publicações dessa categoria predominam a imagem de Bolsonaro vestindo a camisa de algum time de futebol.

Nesse sentido, aproxima-se também desta categoria de publicações a perspectiva anti-intelectual, uma vez que o receptor não precisa se preocupar com o teor do conteúdo escrito, mas sim se identificar com o conteúdo visual. Apesar dessa pretensa aproximação de Bolsonaro com seus seguidores por meio do esporte, Adorno (2015) nos alerta que os líderes/agitadores fascistas podem ser considerados “incitadores da turba”, não somente pelo desprezo que têm pelas massas, mas por promover a agressividade emocional e irracional, bem como a ação violenta sem nenhum fim político coerente.

Conforme observado, o apoio de pessoas ligadas ao esporte ao governo Bolsonaro não está relacionado a melhorias do esporte. Logo, essa identificação de parte da população ao bolsonarismo está para além das mudanças ocorridas no campo esportivo, ou seja, conforme Adorno (2020), está nos componentes ideológicos que conformam um tipo político.

À luz de Adorno (2015), pode-se inferir que a figura pública de Bolsonaro se constituiu a partir de um dos dispositivos básicos da propaganda fascista personalizada, o conceito de “grande homem comum”. Esse conceito sugere uma onipotência, mas também aproxima o líder da massa, dando a sensação de ser um de nós, alguém saudável e desprendido de riqueza material ou espiritual.

O propósito da identificação foi construído ao longo de todo o governo Bolsonaro, remetendo-o como alguém simples e acessível ao povo, que assina documentos com caneta “Bic”, toma café em padarias e estabelecimentos locais, anda de moto no meio do povo e veste camisas tanto dos maiores clubes de futebol quanto dos times de pequena expressão. No entanto, essa figura se constrói por meio de outros mecanismos que não só o apelo de um líder das massas, popular e humilde por suas atitudes. Em Adorno (2015), observa-se a caracterização do líder fascista como a de alguém que tem compulsão a falar e a enganar e que se utiliza de uma linguagem própria destituída de significado racional. Tais características também estão presentes em Bolsonaro.

Além disso, os mecanismos de projeção dos indivíduos que formam esse tipo político, recaem nos indivíduos que representam quer uma ameaça ao ideal do eu representado pela figura do líder, quer pelos indivíduos que são visualizados por características que revelam mecanismos de defesa de pensamentos inaceitáveis recalcados no inconsciente. Esse fenômeno da disseminação de notícias distorcidas ou falsas (fake news) por meio das redes sociais pode ser compreendido em Adorno (2020) ao apontar que os elementos da ideologia fascista são falsos, porém, se apropriando do que é verdadeiro e usando-o a serviço de uma ideologia não verdadeira. Em outras palavras, a técnica utilizada pelos fascistas é a inversão verdade-inverdade, retirando de contexto, isolando e distorcendo fatos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O esporte tem sido usado como forma de promoção dos ideários do fascismo e, por meio de seus representantes, tem sido cada vez mais difundidos. Nesse contexto, a propaganda se apresenta como um instrumento potente para a corrente bolsonarista, assim como o foi para consolidar regimes autoritários no século XX, como o fascismo e o nazismo. Conforme observa Adorno (2015), a propaganda fascista usa estratégias psicológicas e sem racionalidade para atingir as massas. Em meio ao conteúdo difundido estão presentes fatos, fatos tirados de contexto e pseudoverdades que mais confundem do que esclarecem, aproximando-se de uma perspectiva anti-intelectual de conteúdo.

Nessa perspectiva, as redes sociais constituem-se como um importante meio de propaganda. O fascismo tem um alcance potente nesses espaços e, ali, indivíduos fizeram do esporte, bem como de seus símbolos, um instrumento para estabelecer uma relação de proximidade entre fascistas e seu líder. O esporte, nessa perspectiva, torna-se mediador na construção e ampliação da identificação. Estabelecer relações com Adorno, portanto, fornece-nos subsídios teóricos para refletirmos sobre o tipo político e a assunção de ideias fascistas disseminadas, que se utilizam, via de regra, de valores deturpados.

Por fim, cabe ressaltar a tentativa, no presente artigo, de suscitar a indagação a respeito do grau de impregnação e alcance de ideias fascistas no e pelo esporte, no contexto da manifestação capitalista característica do século XXI.

• FINANCIAMENTO

  O presente trabalho não contou com apoio financeiro de nenhuma natureza para sua realização.

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  27 Nov 2023
• Data do Fascículo
  2023

Histórico

• Recebido
  10 Set 2023
• Aceito
  23 Out 2023