RESUMO
O objetivo deste artigo foi analisar, de forma interseccional, o perfil e a experiência da participação das mulheres no futebol no Brasil. Realizamos uma análise comparativa entre as mulheres, baseada nos dados da PNAD de 2015 (IBGE, 2017). Os dados foram tratados com estatística descritiva. São justamente as mulheres negras, pobres, jovens, de menor escolaridade que se engajam com o futebol, o que contrasta com um perfil oposto que se engaja com atividades físicas. A experiência dessas mulheres é marcada pela ênfase competitiva, em espaços públicos ou gratuitos de prática de futebol participativo. Esses resultados evidenciam a importância de observar como os divisores sociais dificultam o acesso ao futebol e das políticas públicas para democratizá-lo.
Palavras-chave: Gênero; Futebol feminino; Interseccionalidade; Lazer
ABSTRACT
The objective of this article was to analyze, in an intersectional way, the profile and experience of women's participation in football in Brazil. We carried out a comparative analysis between women, based on data from the 2015 PNAD (IBGE, 2017). The data were treated with descriptive statistics. It is precisely black, poor, young, less educated women who engage in football, which contrasts with the opposite profile who engages in physical activities. The experience of these women is marked by a competitive emphasis, in public or free spaces for participatory football practice. These results highlight the importance of observing how social divides hinder access to football and public policies to democratize it.
Keywords: Gender; Women’s football; Interseccionality; Leisure
RESUMEN
El objetivo de este artículo fue analizar, de manera interseccional, el perfil y la experiencia de la participación femenina en el fútbol en Brasil. Realizamos un análisis comparativo entre mujeres, a partir de datos de la PNAD de 2015 (IBGE, 2017). Los datos fueron tratados con estadística descriptiva. Son precisamente mujeres negras, pobres, jóvenes y con menor nivel educativo las que practican fútbol, lo que contrasta con el perfil opuesto que practica actividades físicas. La experiencia de estas mujeres está marcada por un énfasis competitivo, en espacios públicos o libres para la práctica participativa del fútbol. Estos resultados resaltan la importancia de observar cómo las divisiones sociales obstaculizan el acceso al fútbol y a las políticas públicas para democratizarlo.
Palabras-clave: Género; Fútbol femenino; Interseccionalidad; Ocio
INTRODUÇÃO
O futebol é a modalidade esportiva mais popular no Brasil, representando um espaço privilegiado de sociabilidade, educação e construção de vínculos (Damo, 2006; Gastaldo, 2005). Em uma visão positiva sobre o esporte, o futebol é descrito por DaMatta (1982) como espaço privilegiado para que as pessoas se expressem livremente no Brasil, revelando suas habilidades e dificuldades sem constranger suas relações fora do jogo, constituindo-se, como uma forma de recreação, dentro da qual cumpre o papel de criação de solidariedade e identidade social. No entanto, historicamente, esse espaço tem sido reservado aos homens, uma das últimas áreas de sociabilidade masculina onde ainda é possível circular pedagogias de masculinidades ligadas à virilidade e à agressividade (Dunning, 1986).
A forma como os meninos e homens se vinculam ao futebol, no Brasil, é mediada por uma diversidade de possibilidades. Damo (2006) destaca que, apesar da hegemonia das representações vinculadas ao futebol espetacularizado e clubístico, existem outras matrizes futebolísticas que articulam diferentes maneiras de praticar e se engajar com o esporte: o futebol da bricolagem, informal das peladas de lazer; o futebol de várzea e o futebol escolar ou das escolinhas e clubes. Essas distintas matrizes de futebóis reforçam o predomínio masculino na modalidade. Hegemonia essa que é desafiada pelas mulheres que se engajam com o futebol. Afinal, a despeito de décadas de proibição legal da prática de futebol por mulheres no Brasil, de marginalização das jogadoras e das equipes femininas, de anulação simbólica de suas conquistas e silenciamento, as mulheres continuaram resistindo a essas interdições culturais e desafiando o status do futebol como “área de reserva masculina” (Goellner, 2020).
No entanto, essas interdições colocam o engajamento das mulheres no futebol de maneiras distintas a dos homens. A diversidade das matrizes de futebóis é mediada para o futebol de mulheres a partir da ideia de uma matriz de futebol participativo. Segundo Kessler (2015), no contexto do futebol de mulheres, a matriz espetacularizada é quase inexistente, enquanto as matrizes bricolada e comunitária se fundem. A autora destaca que, ao contrário do futebol de homens, onde existe um espaço significativo para o futebol informal/ bricolado e de várzea, para elas essa dinâmica é menos evidente, já que as quadras e ruas são tomadas por homens e não existem muitas ligas comunitárias femininas estruturadas. Nesse sentido, as mulheres tendem a se organizar em equipes, mesmo para a prática de caráter menos formalizado, já que as ligas e torneios são escassos e pouco estruturados. Assim, o futebol participativo é uma combinação das matrizes bricolada e comunitária (Kessler, 2015).
Essa situação particular demonstra que as mulheres enfrentam barreiras maiores para se dedicar ao futebol. Segundo Martins et al. (2021), as mulheres representam 6% das pessoas acima de 15 anos que se envolvem com o futebol no Brasil. Esse retrato estatístico ilustra o resultado das relações de gênero que materializam discursos e relações de poder que dificultam o acesso delas a esse esporte. Por gênero compreendemos a produção cotidiana das operações e das construções culturais e linguísticas de diferenciação que organizam a percepção social do que é ser homens e mulheres na nossa sociedade (Scott, 1995).
Além disso, Martins et al. (2021) destacam que as brasileiras que se envolvem com o futebol são majoritariamente negras e advindas das classes sociais economicamente desfavorecidas, enfatizando a importância do olhar interseccional sobre o futebol praticado pelas mulheres. A interseccionalidade se refere à forma como diferentes desvantagens identitárias se somam e produzem desigualdades nas experiências cotidianas (Cho et al., 2013; Collins e Bilge, 2020)
Considerando esse cenário, nos perguntamos sobre a forma como os diferentes marcadores sociais estão relacionados às experiências de mulheres com o futebol? Nesse sentido, o objetivo deste artigo é analisar, de forma interseccional, o perfil da participação das mulheres no futebol no Brasil, demonstrando de que modo os divisores sociais interferem na experiência delas no esporte. Para tanto, utilizamos de forma descritiva os dados do suplemento especial de atividade física da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (PNAD). Com isso, enfatizamos a forma como as desvantagens acumuladas por diferentes identidades conformam potenciais obstáculos, bem como são contornados por elas. A compreensão dessas experiências das mulheres com o futebol permite evidenciar apontamentos para a democratização desse esporte. A próxima seção do artigo apresenta o referencial teórico metodológica da interseccionalidade, para em seguida detalhar o percurso metodológico da investigação. Os resultados são apresentados em dois tópicos distintos, sobre o perfil das mulheres que se envolvem com o futebol e sobre suas experiências, que são, na sequência, amarrados pelas considerações finais.
A INTERSECCIONALIDADE COMO FERRAMENTA ANALÍTICA
O olhar interseccional tem ganhado espaço nos estudos de gênero, que enfoca os desafios para a justiça social a partir da exploração das diferentes dimensões da desigualdade (Crenshaw, 1991). A interseccionalidade foi introduzida no final dos anos 1980 como um termo heurístico para focar a atenção nas dinâmicas complexas da diferença e nas solidariedades da igualdade no contexto da política antidiscriminatória e dos movimentos sociais. O objetivo desse tipo de olhar é demonstrar como desvantagens de diferentes identidades se combinam na produção de desigualdades e das relações assimétricas de poder (Cho et al., 2013; Collins e Bilge, 2020). Compreender a combinação dessas desvantagens é primordial para construir discursos, ações políticas e programas que se direcionam àquelas pessoas que são marginalizadas das narrativas identitárias essencializadas. A interseccionalidade enfatiza como as matrizes de poder e de dominação operam por meio de categorias de identidade sobrepostas.
Por essa via, uma problematização da categoria “mulheres” tornou-se urgente para a pluralização das alianças, das identificações e dos feminismos que lutam contra o machismo, sexismo, misoginia e as demais formas de produção da diferença que hierarquizam os corpos e as identidades. Dessa forma, em vez de pensarmos a experiência das mulheres como única, devemos perceber também a pluralidade de formas existentes de performatizar feminilidades, agenciadas pelas pessoas em relação ao contexto, às relações de poder, às masculinidades e das situações, mas também atravessadas por outros divisores sociais, como raça e classe (Butler, 1990).
Nesse sentido, a categoria gênero é relacional, atravessada por relações de poder e interseccionalizada por outras clivagens. Estas conformam distintas experiências para se fazer gênero. A análise interseccional das relações de gênero permite explorar como as pessoas são simultaneamente posicionadas e se posicionam se em múltiplas categorias, como gênero, classe e etnia (Christensen e Jensen, 2012). Com isso, em vez de focar nas identidades, Choo e Ferree (2010) defendem uma abordagem centrada no processo para a interseccionalidade, destacando como as dinâmicas de poder se traduzem nas identidades. Isso significa, por exemplo, olhar para a racialização em vez das raças, para a exploração econômica em vez de classes, e para a performatividade de gênero em vez de gêneros. Choo e Ferree (2010) ressaltam que esse enfoque implica estudos comparativos e contextualizados da interseccionalidade, conectando diferentes níveis de análise, demonstrando como as identidades são constituídas de forma relacional e afetam umas às outras. Portanto, no processo de construção das subjetividades, as divisões sociais são importantes para entendermos os sistemas que organizam e classificam as experiências dos indivíduos.
METODOLOGIA
Para mapeamento do perfil e da experiência de mulheres com o futebol, nos baseamos, a partir de uma abordagem descritiva, nos dados estatísticos do Suplemento de Práticas de Esporte e Atividades Físicas da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2015 (IBGE, 2017). Até 2015, a PNAD era uma pesquisa de caráter anual que contribuía para a atualização, por meios amostrais, dos dados nacionais do Censo, sobre as características gerais da população, educação, trabalho, rendimento e habitação.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2017), as informações sobre práticas esportivas foram estabelecidas para uma pessoa de cada domicílio, com 15 ou mais anos de idade, selecionada aleatoriamente. Ao todo, foram entrevistadas 71.143 pessoas para este suplemento1. Para nossa pesquisa, trabalhamos sobre o prisma de duas perguntas: (1) No período de referência de 365 dias, praticou algum esporte no tempo livre (fora do horário de trabalho e de educação física na escola)? (2) Qual o principal esporte que praticou no período de referência de 365 dias? Cabe destacar a resposta a essa última pergunta observa atividades físicas e esportivas (AFEs)2, como esporte, mas também caminhada, musculação, ginástica, dança etc. Essas perguntas permitiram englobar as mulheres da amostra em três grupos distintos: a totalidade da amostra das brasileiras que participaram da pesquisa; as mulheres que responderam sim à pergunta (1), ou seja, que praticam AFES; e as mulheres que responderam, na pergunta 2, que praticam futebol, futsal, beach soccer e/ou futebol society. Os dados foram tratados com estatística descritiva.
Para observar a forma como a interseccionalidade afetava as mulheres que praticam futebol, lançamos mão de uma análise comparativa entre os três grupos, a fim de perceber como divisores sociais de raça, classe, idade, região e maternidade interferem como desvantagens acumuladas ou privilégios na adesão desses grupos às AFEs e o futebol em particular. Por fim, analisamos de maneira comparativa a experiência com o esporte dos dois grupos de mulheres que responderam sim à pergunta 1. Deste modo, a seção dos resultados e discussão está dividida em dois tópicos: a) perfil das mulheres que jogam futebol; b) experiência da participação das mulheres no futebol.
PERFIL DAS MULHERES QUE JOGAM FUTEBOL NO BRASIL
As mulheres que jogam futebol no Brasil são mais jovens (em média 23 anos) que a média das mulheres brasileiras em geral (em média 44 anos) As que praticam AFEs, por outro lado, apresentam uma média de idade próxima a da amostra da pesquisa (em média 41 anos). Este dado sugere que, diante do maior decréscimo da participação nas AFEs que afeta as mulheres durante a adolescência e início da idade adulta (Farooq et al., 2020), aquelas que jogam futebol conseguiram contornar esse obstáculo. No entanto, a distância com a média da população demonstra que a idade se coloca como um fator que afasta as mulheres do futebol. Por outro lado, a idade, combinada ao gênero, também interferem na motivação para a prática das AFEs, de modo que os mais jovens têm uma tendência a buscarem atividades voltadas à competição e aos esportes coletivos, enquanto as mulheres e os mais velhos tendem a buscar atividades voltadas à saúde (Molanorouzi et al., 2015).
Além da idade, outras hierarquias sociais se cruzam produzindo desvantagens acumuladas em distintos divisores sociais que se refletem nas chances de prática de AFEs (Cho et al., 2013). Por exemplo, nossos dados reafirmam um cenário já conhecido de que as mulheres que praticam AFEs no Brasil têm renda e escolaridade maiores que a média da população feminina (PNUD, 2017). A maior escolarização atesta uma dinâmica de desigualdade, na qual o acúmulo maior de anos de estudo por parte das pessoas de renda mais alta tende a possibilitar manter a posição social favorecida familiar (Salata, 2022). Em contrapartida, as mulheres que jogam futebol possuem menos anos de escolarização e renda individual média inferior à média geral das mulheres da amostra.
Poucas das mulheres que jogam futebol possuem ensino superior e uma fração relevante delas ainda não completou o ensino médio, o que contrasta à fração da população feminina com esse grau máximo de instrução. Além da baixa escolarização, é esperado que jovens tenham rendas mais baixas, já que ainda estariam se inserindo no mercado profissional. No entanto, quando observamos a renda média per capita familiar, notamos que são jovens de uma origem social menos privilegiada.
A origem social mais vulnerável das mulheres que jogam futebol nos faz olhar também para outros marcadores além do de gênero e de classe social para compreender as raízes dessa desigualdade, como a raça. Embora a classe tenha um efeito significativo sobre a renda, a discriminação racial afeta tanto direta quanto indiretamente a posição socioeconômica, em especial, ao produzir desigualdades e exclusões durante a escolarização, na alocação profissional e na definição dos salários (Salata, 2020). Essas intersecções criam desvantagens que afetam a disponibilidade do tempo de lazer e o envolvimento com as AFEs, em especial quando combinadas com o gênero. Isso porque as mulheres, em geral, enfrentam mais restrições ao lazer do que os homens ao serem mais responsabilizadas socialmente pelas obrigações domésticas e de cuidado familiar (Lenneis e Pfister, 2017). O Gráfico 1 ilustra essa relação.
No entanto, esses obstáculos não se apresentam de forma uniforme entre elas, já que mulheres que dedicam menor tempo aos afazeres domésticos tendem a ter mais tempo disponível para o lazer (Barbosa, 2018; Hargreaves, 1989). Nesse sentido, as mulheres mais pobres, negras e menos escolarizadas têm uma chance menor de praticar AFEs.
Se as desvantagens sociais de raça e classe se combinam ao gênero para produzir hierarquias no tempo disponível ao lazer das mulheres, outro aspecto que se soma é a maternidade. Enquanto para homens, ter mais filhos não interfere no tempo de lazer, para as mulheres há um efeito significativo (Barbosa, 2018). Deste modo, as mulheres que praticam AFEs tendem a ter menos filhos que a média da população, o que se acentua no caso do futebol, como pode ser observado no Gráfico 2. Cabe destacar que há uma prevalência de mães entre as mulheres futebolistas, indicando que há processos de agenciamento diante desses obstáculos de natureza social, racial e familiar.
Avançando ainda em relação a outros marcadores sociais de diferença, interrogamos sobre o efeito do território para o envolvimento com o futebol. Pesquisas demonstram que o tamanho da população e o IDH da cidade de origem guardam relação com a possibilidade de uma pessoa se tornar atleta (Accocella et al., 2023; Teoldo e Cardoso, 2021). Isso estaria relacionado a uma maior abundância de oportunidades, recursos e programas destinados ao engajamento esportivo, o que teria como resultado uma maior quantidade de pessoas praticando esse esporte. Por essa razão, a hipótese de que as mulheres que jogam futebol e que praticam esporte tendem a se concentrar nos maiores centros populacionais e econômicos do país.
Contrastando com essa hipótese, notamos que há uma distribuição desigual entre as mulheres que jogam futebol e a população em geral, conforme é possível visualizar no Gráfico 3. O Norte concentra quase metade das jogadoras do país, sobretudo, nos estados de Amazonas e Pará, região do segundo menor IDH médio brasileiro (PNUD, 2016). Por outro lado, a maior desproporção entre população e mulheres que jogam futebol está no Sudeste, região de maior IDH médio do país (PNUD, 2016), o que demonstra que o maior interesse das mulheres pelo futebol se desenvolvia afastado também dos grandes centros econômicos e futebolísticos do país. A presença de jogadoras amadoras provenientes das periferias das cidades e de localidades com menor IDH repete o achado de outras pesquisas, demonstrando que a possibilidade de engajamento com o futebol para mulheres é maior para aquelas que nascem fora dos grandes centros (Chan-Vianna e Moura, 2017; Pisani, 2018).
A análise do perfil das mulheres que jogam futebol, portanto, demonstrou como racialização, hierarquias econômicas, etarismo e relações de gênero se cruzam produzindo um acúmulo de identidades e desvantagens, com as quais essas mulheres precisam negociar, contornar. Os dados do perfil de participação das mulheres nas AFEs repete o que pesquisas anteriores já demonstraram: há inúmeras barreiras sociais e culturais para o engajamento feminino com essas atividades, o que se torna particularmente acentuado no caso do futebol (Goellner, 2020; Martins et al., 2021; Pisani, 2018). Segundo Scraton (2018), desde a infância as aulas de educação física reforçam uma divisão sexual do lazer, que afastaria as meninas das práticas esportivas e das atividades físicas, conformando-as dentro de uma feminilidade normalizada.
No entanto, a experiência das mulheres não é homogênea, sendo atravessadas por questões de raça, nação, classe, sexualidade, nacionalidade, idade, entre outros fatores (Henderson e Gibson, 2013). A complexidade do olhar interseccional permite articular as experiências subjetivas e os agenciamentos particulares com as matrizes de dominação e de poder, buscando reconciliar perspectivas mais macro-políticas com dimensões subjetivas (Francombe-Webb e Toffoletti, 2018; Hancock, 2019; Henderson e Gibson, 2013). Dessa forma, a seguir, exploraremos como essas mulheres se inserem e se relacionam com o universo do futebol no cotidiano.
EXPERIÊNCIAS DA PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES NO FUTEBOL NO BRASIL
As divisões sociais e identidades ase combinam como dinâmicas de exclusão e tem como consequência a geração de distintas oportunidades de educação e ocupação, com efeitos diretos e indiretos na socialização e no lazer (Salata, 2020). Nesse sentido, destacamos a importância de um olhar aos sentidos da experiência esportiva das mulheres de forma não as enquadrar em expectativas generificadas ou racializadas (Bruening, 2005). Ou seja, em vez de olhar as mulheres e querer enquadrá-las em atividades “mais leves”, menos competitivas, naturalizando algumas tendências cuja raiz é absolutamente social; devemos observar como essas mulheres negociam esses discursos e rompem barreiras na inserção esportiva. Por exemplo, ao interrogar sobre as razões que levaram essas mulheres a praticar o futebol, em comparação às razões que fazem uma mulher praticar esporte, percebemos sinais das pluralidades das experiências.
Destacamos que, diferentemente dos esportes em geral, que o fazem pela saúde (cerca de 60%), as mulheres que jogam futebol o fazem por razões vinculadas ao prazer ou à competição (cerca de 80%). Notamos uma valoração positiva da prática esportiva para essas mulheres, vinculada à socialização, ao divertimento e à autorrealização. Isso é particularmente importante, porque as razões elencadas pelas mulheres para não praticar AFEs estão relacionadas à falta de companhia (35%) e falta de tempo (37%) (IBGE, 2017).
Por outro lado, a maioria das mulheres que jogam futebol se dedicam a esse esporte uma ou duas vezes na semana ao esporte (cerca de 60%), o que contrasta com a participação das mulheres que se dedicam às AFES, que costumam frequentá-las de 3 a 7 vezes por semana (66%). Isso pode estar relacionado à classe social, que faz com que a disponibilidade de tempo de lazer para mulheres seja maior para aquelas que são oriundas de classes economicamente favorecidas, diminuindo o impacto da divisão sexual do trabalho como uma barreira para tal prática (Barbosa, 2018; Lenneis e Pfister, 2017). Deste modo, é possível levantar a hipótese, para outras pesquisas, de que, mesmo para essas mulheres que jogam futebol, tempo e espaços com outras mulheres (companhia) são fatores que obstaculizam seu envolvimento esportivo.
Ainda, na medida em que competir é um dos sentidos de prática do futebol para mulheres, a seguir observamos como se dá esse envolvimento competitivo. Em primeiro lugar, analisamos a fração das mulheres que se envolvem em experiências competitivas. Na medida em que competir é um sentido mais presente entre aquelas que jogam futebol, espera-se que este envolvimento seja mais presente entre estas do que entre as mulheres que se envolvem nas AFEs em geral. Esse cenário é ratificado pelo Gráfico 4, que demonstra que a fração das mulheres que competem no futebol é oito vezes maior que aquelas que competem em outros esportes.
Em segundo lugar, observamos como se dá esse envolvimento competitivo, isto é, se elas estão vinculadas permanentemente a alguma instituição. Neste caso, as frações de entre os dois agrupamentos não se diferenciam na mesma proporção, como mostrado no Gráfico 5. Isso nos faz levantar a hipótese de que, na medida em que a dedicação semanal é pouco frequente e que não há um vínculo formalizado com alguma instituição, essa participação competitiva ocorre de forma esporádica, o que corrobora com um cenário de ausência de ligas amadoras de futebol consolidadas com torneios de naipe feminino também.
Por outro lado, espaços públicos também são menos utilizados pelas mulheres que jogam futebol, como observado no Gráfico 6. Esse dado ratifica o que pesquisas anteriores demonstravam em relação à ausência das meninas nos espaços comumente utilizados para prática de futebol, normalmente dominados por homens (Luz e Kuhnen, 2013; Sousa e Altmann, 1999). Além da geografia de gênero da ocupação desses espaços, as crianças e as mulheres ainda esbarram em obstáculos como a ausência de sensação de segurança física e sujeição à violência (Wenetz, 2014).
A maioria delas é vinculada a uma instituição de ensino, ratificando o impacto do esporte escolar/universitário para oportunização de treinamento e de prática competitiva para o futebol/futsal de meninas e mulheres. Esse tipo de vínculo se aproxima ao que Kessler (2015) descreveu como futebol participativo. As mulheres no futebol constroem laços informais de pertencimento, que são, muitas vezes, precários e atravessados por questões de falta de recursos e impossibilidade de pagamento por espaços de prática. Notamos também um contraste entre as mulheres que praticam AFEs daquelas que jogam futebol: como pode ser observado no Gráfico 7, as primeiras tendem a utilizar instalações mediante a algum tipo de pagamento, enquanto as últimas utilizam instalações de uso gratuito.
Por fim, as mulheres que jogam futebol, em maior proporção do que as que praticam esporte de forma geral, não dispõem de orientação profissional para tal, demonstrando a forte presença de uma prática espontânea e auto-organizada, ratificando a escassez de recursos para que elas treinem e compitam, como no Gráfico 8.
Esses dados corroboram com uma dupla situação de classe entre os dois agrupamentos, de modo que as mulheres que praticam AFEs têm mais condições econômicas para pagar para realizar alguma atividade, o que não se confirma com relação àquelas que praticam futebol. Nesse sentido, a existência do futebol de mulheres é marcada por uma dinâmica de classe e gênero que distingue as mulheres do esporte formalizado e separa o futebol participativo - de mulheres - do futebol institucionalizado e da matriz espetacularizada - dos homens (Kessler, 2015).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao interrogarmos sobre a forma como os marcadores sociais de diferença se relacionam com a experiência de mulheres no futebol olhamos para um panorama descritivo, com base nos dados estatísticos da PNAD de 2015. Observamos a intersecção das relações de gênero com diferentes divisões sociais, como raça, classe, idade, território e maternidade. O olhar para prevalência de mulheres negras, pobres, jovens, de menor escolaridade e distante dos grandes centros populacionais e econômicos do país, nos convoca a pesquisas futuras que investiguem as razões e as causas que contribuem para que a modalidade tenha uma adesão maior por pessoas que acumulam desvantagens advindas do cruzamento dessas identidades.
Essas questões ganham maior relevância na medida em que se observa que é justamente nesse estrato social que se vê a menor tendência à participação em AFEs dentre as mulheres de uma forma geral. Ou seja, são jovens e mulheres cujas barreiras para o engajamento esportivo são incontavelmente maiores que as das brancas, mas que, no entanto, quando se relacionam com o esporte, optam pelo futebol. Assim, notamos um cenário em que o envolvimento com o futebol contraria as tendências estatísticas predominantes do envolvimento esportivo das mulheres.
Esse contraste levanta duas considerações importantes. Em primeiro lugar, a tendência estatística não deve ser lida como “um destino” inescapável. Cabe olhar criticamente as experiências, as oportunidades e os sentidos atribuídos. Nesse sentido que o olhar para a experiência das mulheres com o futebol demonstra que, a despeito do acúmulo de desvantagens advindas das identidades interseccionais, elas agenciam-se e contornam as barreiras e desigualdades. Para tanto, é fundamental abandonar as expectativas estereotipadas que muitas vezes restringem as oportunidades das mulheres no esporte, reconhecendo a diversidade de sentidos e formas de se envolver.
No entanto, esse cenário está mudando. A partir de 2016, mas sobretudo em 2019 e 2023, assistimos a um grande crescimento do futebol de mulheres no país. Os jogos olímpicos e a Copa do Mundo trouxeram visibilidade para a seleção e as recentes regulamentações da Conmebol obrigaram os clubes tradicionais do futebol brasileiro a constituírem equipes femininas. Com isso, mais atenção tem sido destinada às mulheres, o que pode ter como consequência um aumento no número das praticantes. Por essa razão, é interessante que outras pesquisas acompanhem, de forma racialmente crítica, os efeitos dessas mudanças.
AGRADECIMENTOS
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES).
-
1
A PNAD de 2015 foi a única da série que possuiu, a pedido do Ministério do Esporte, um suplemento especial para conhecer os hábitos de atividade física da população brasileira. Detalhamentos acerca da forma como IBGE construiu seu banco amostral se encontram no relatório da pesquisa (IBGE, 2017).
-
2
Utilizamos a denominação AFEs proposta pelo PNUD (2017) para expressar a multiplicidade de possibilidades e significados das formas humanas de expressão do movimento (caminhar, dançar, praticar esporte, brincar, ginástica etc), seja pelas mais diversas razões (saúde, prazer, etc),
-
FINANCIAMENTO
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
REFERÊNCIAS
-
Accocella LR, Silva LFN, Martins MZ, Galatti LR. Da proibição à ascensão (onde?): mapeamento geográfico dos locais de nascimento das atletas e dos clubes de futebol de mulheres participantes do campeonato brasileiro. Motrivivência. 2023;35(66):1-17. http://doi.org/10.5007/2175-8042.2023.e93441
» http://doi.org/10.5007/2175-8042.2023.e93441 - Barbosa ALN H. Tendências na alocação do tempo no Brasil: trabalho e lazer. Brasília: IPEA; 2018.
-
Bruening JE. Gender and racial analysis in sport: are all the women white and all the blacks men? Quest. 2005;57(3):330-49. http://doi.org/10.1080/00336297.2005.10491861
» http://doi.org/10.1080/00336297.2005.10491861 - Butler J. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge; 1990.
-
Chan-Vianna AJ, Moura DL. Futebol, mulheres e interação social. LICERE Rev Programa Pós-grad interdiscip Est Lazer. 2017;20(4):1-21. http://doi.org/10.35699/1981-3171.2017.1722
» http://doi.org/10.35699/1981-3171.2017.1722 -
Cho S, Crenshaw KW, McCall L. Toward a field of intersectionality studies: theory, applications, and praxis. Signs. 2013;38(4):785-810. http://doi.org/10.1086/669608
» http://doi.org/10.1086/669608 -
Choo HY, Ferree MM. Practicing intersectionality in sociological research: a critical analysis of inclusions, interactions, and institutions in the study of inequalities. Sociol Theory. 2010;28(2):129-49. http://doi.org/10.1111/j.1467-9558.2010.01370.x
» http://doi.org/10.1111/j.1467-9558.2010.01370.x -
Christensen A-D, Jensen SQ. Doing intersectional analysis: methodological implications for qualitative research. NORA. 2012;20(2):109-25. http://doi.org/10.1080/08038740.2012.673505
» http://doi.org/10.1080/08038740.2012.673505 - Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo; 2020.
-
Crenshaw K. Mapping the margins: intersectionality, identity politics, and violence against women of color. Stanford Law Rev. 1991;43(6):1241-99. http://doi.org/10.2307/1229039
» http://doi.org/10.2307/1229039 - DaMatta R. Futebol: opio do povo drama de justiça social. Novos Etudos CEBRAP. 1982;1:54-60.
- Damo AS. Senso de jogo. Esporte Soc. 2006;1:1-43.
-
Dunning E. Sport as a male preserve: notes on the social sources of masculine identity and its transformations. Theory Cult Soc. 1986;3(1):79-90. http://doi.org/10.1177/0263276486003001007
» http://doi.org/10.1177/0263276486003001007 -
Farooq A, Martin A, Janssen X, Wilson MG, Gibson AM, Hughes A, et al. Longitudinal changes in moderate-to-vigorous-intensity physical activity in children and adolescents: a systematic review and meta-analysis. Obes Rev. 2020;21(1):e12953. http://doi.org/10.1111/obr.12953 PMid:31646739.
» http://doi.org/10.1111/obr.12953 -
Francombe-Webb J, Toffoletti K. Sporting females: power, diversity and the body. In: Mansfield L, Caudwell J, Wheaton B, Watson B, editores. The Palgrave handbook of feminism and sport, leisure and physical education. London: Palgrave Macmillan; 2018. p. 43-55. http://doi.org/10.1057/978-1-137-53318-0_4
» http://doi.org/10.1057/978-1-137-53318-0_4 -
Gastaldo É. O complô da torcida”: futebol e performance masculina em bares. Horiz Antropol. 2005;11(24):107-23. http://doi.org/10.1590/S0104-71832005000200006
» http://doi.org/10.1590/S0104-71832005000200006 - Goellner SV. Futebol de mulheres: histórias, memória e desafios. In: Martins MZ, Wenetz I, editores. Futebol de mulheres no Brasil: desafios para as políticas públicas. Curitiba: CRV; 2020.
-
Hancock A-M. Empirical intersectionality: a tale of two approaches. In: Hankivsky O, Jordan-Zachery JS, editores. The Palgrave handbook of intersectionality in public policy. Cham: Springer International Publishing; 2019. p. 95-132. http://doi.org/10.1007/978-3-319-98473-5_5
» http://doi.org/10.1007/978-3-319-98473-5_5 -
Hargreaves J. The promise and problems of women’s leisure and sport. In: Rojek C, editor. Leisure for leisure: critical essays. London: Palgrave Macmillan; 1989. p. 130-49. http://doi.org/10.1007/978-1-349-19527-5_8
» http://doi.org/10.1007/978-1-349-19527-5_8 -
Henderson KA, Gibson HJ. An integrative review of women, gender, and leisure: increasing complexities. J Leis Res. 2013;45(2):115-35. http://doi.org/10.18666/jlr-2013-v45-i2-3008
» http://doi.org/10.18666/jlr-2013-v45-i2-3008 - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios: suplemente de práticas de esporte e atividade física 2015. Rio de Janeiro: IBGE; 2017.
- Kessler CS. Mais que Barbies e ogras: uma etnografia do futebol de mulheres no Brasil e nos Estados Unidos [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2015.
-
Lenneis V, Pfister G. Too tired for exercise? The work and leisure of female cleaners in Denmark. Leis Stud. 2017;36(4):530-41. http://doi.org/10.1080/02614367.2016.1216579
» http://doi.org/10.1080/02614367.2016.1216579 -
Luz GM, Kuhnen A. O uso dos espaços urbanos pelas crianças: explorando o comportamento do brincar em praças públicas. Psicol Reflex Crit. 2013;26(3):552-60. http://doi.org/10.1590/S0102-79722013000300015
» http://doi.org/10.1590/S0102-79722013000300015 -
Martins M, Silva K, Vasquez V. As mulheres e o país do futebol: intersecções de gênero, classe e raça no Brasil. Movimento. 2021;27:e27006. http://doi.org/10.22456/1982-8918.109328
» http://doi.org/10.22456/1982-8918.109328 -
Molanorouzi K, Khoo S, Morris T. Motives for adult participation in physical activity: type of activity, age, and gender. BMC Public Health. 2015;15(1):66. http://doi.org/10.1186/s12889-015-1429-7 PMid:25637384.
» http://doi.org/10.1186/s12889-015-1429-7 - Pisani M S. “Sou feita de chuva, sol e barro”: o futebol de mulheres praticado na cidade de São Paulo [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2018.
- Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD. Desenvolvimento humano nas macrorregiões brasileiras. Brasília: PNUD; 2016.
- Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD. Movimento é vida: relatório do Programa Nacional de Desenvolvimento Humano da ONU. Brasília: ONU; 2017.
-
Salata A. Race, class and income inequality in Brazil: a social trajectory analysis. Dados. 2020;63(3):e20190063. http://doi.org/10.1590/dados.2020.63.3.213
» http://doi.org/10.1590/dados.2020.63.3.213 -
Salata AR. Desigualdade de resultados educacionais em meio à expansão do sistema de ensino: um estudo considerando o caráter posicional da escolaridade. Civitas Rev Cienc Soc. 2022;22:e43097. http://doi.org/10.15448/1984-7289.2022.1.43097
» http://doi.org/10.15448/1984-7289.2022.1.43097 - Scott J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educ Real. 1995;20(2):71-99.
-
Scraton S. Feminism(s) and PE: 25 years of shaping up to womanhood. Sport Educ Soc. 2018;23(7):638-51. http://doi.org/10.1080/13573322.2018.1448263
» http://doi.org/10.1080/13573322.2018.1448263 -
Sousa ES, Altmann H. Meninos e meninas: expectativas corporais e implicações na educação física escolar. Cad CEDES. 1999;19(48):52-68. http://doi.org/10.1590/S0101-32621999000100004
» http://doi.org/10.1590/S0101-32621999000100004 -
Teoldo I, Cardoso F. Talent map: how demographic rate, human development index and birthdate can be decisive for the identification and development of soccer players in Brazil. Sci Med Footb. 2021;5(4):293-300. http://doi.org/10.1080/24733938.2020.1868559 PMid:35077299.
» http://doi.org/10.1080/24733938.2020.1868559 -
Wenetz I. As crianças ausentes na rua e nas praças: etnografia dos espaços vazios. Civitas Rev Cienc Soc. 2014;13(2):346-63. http://doi.org/10.15448/1984-7289.2013.2.15477
» http://doi.org/10.15448/1984-7289.2013.2.15477
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
02 Dez 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
31 Maio 2024 -
Aceito
29 Set 2024