RESUMO
O estudo tem como objetivo compreender o papel do voleibol sentado na promoção da virada biográfica de mulheres com deficiência, reconhecendo a interseccionalidade de marcadores sociais da diferença nos processos de inclusão promovidos pelo e no ambiente esportivo. Obtivemos informações por meio de questionário, observação participante e entrevista. Compreendemos que o voleibol sentado foi fator contribuinte na modificação da percepção e autoidentificação das participantes da pesquisa, mas que outras sobreposições de características também ocorrem intragrupo. Apesar dos aspectos paradoxais estudados, o voleibol sentado forneceu bases para uma mudança de atitude social frente à deficiência.
Palavras-chave: Mulheres com deficiência; Marcadores sociais; Interseccionalidade; Voleibol sentado
ABSTRACT
The study aims to understand the role of sitting volleyball in the promotion of the biographical turn of women with disabilities, recognizing the intersectionality of social markers of difference in the inclusion processes promoted by such body practice. Obtaining information through questionnaire, participating observation and interview. We understood that sitting volleyball was a contributing factor in modifying the perception and self -identification of research participants, but that other characteristics overlays also occur intragroup. Despite the paradoxical aspects studied, the sitting volleyball provided foundations for a change of social attitude towards disability.
Keywords: Womens with disability; Social markers; Interseccionality; Sitting volleyball
RESUMEN
El estudio tiene como objetivo comprender el papel del vóleibol sentado en la promoción del giro biográfico de mujeres con discapacidad, reconociendo los marcadores sociales de la diferencia en los procesos de inclusión promovidos por dicha práctica corporal. Se obtuvo información a través del cuestionario, observación participante y entrevista. Entendimos que voleibol sentado contribuyó a modificar la percepción y la autoidentificación de los participantes de la investigación, pero que otras características también ocurren intragrupo. A pesar de los aspectos paradójicos estudiados, el voleibol sentado proporcionó bases para un cambio en la actitud social hacia la discapacidad.
Palabras-clave: Mujeres con discapacidad; Marcadores sociales; Interseccionalidad; Voleibol sentado
O presente estudo tem como objetivo compreender o papel do voleibol sentado na promoção de viradas biográficas na vida social, econômica, cultural e familiar de um grupo de mulheres com deficiência praticantes de voleibol sentado, com o reconhecimento da influência da interseccionalidade de marcadores sociais das diferenças de múltiplas características (mulher, mãe, esposa, pessoa com deficiência, pobre, negra, entre outros), considerando a inclusão social promovida pela e na modalidade esportiva na vida dessas pessoas, bem como será discutido o impacto de alguns marcadores presentes nessa prática corporal nas relações sociopolíticas intragrupo dessa parcela da população, especialmente quando desempenhada em alto rendimento, estabelecendo hierarquia social, prestígio, privilégio, status socioeconômico etc., ao distinguir – e ao selecionar – paratletas consideradas mais aptas entre as praticantes.
Este artigo aborda informações obtidas durante pesquisa de doutorado realizada pela autora em 2022, tendo como participantes um grupo de nove mulheres com deficiência, jogadoras de voleibol sentado, agora sob a perspectiva dos marcadores sociais das diferenças – tema relevante para a área de educação física e ciências do esporte –, reconhecendo a interseccionalidade na origem dos diversos estigmas socialmente impostos e que interferem em seus modos de vida.
A PESQUISA E O GRUPO PARTICIPANTE
O estudo foi desenvolvido a partir da experiência da autora na condução de pesquisa de doutorado realizado na Faculdade de Educação Física da Universidade de Brasília (FEF/UnB), concluído em 2022, focado nas corporeidades de mulheres com deficiência praticantes de voleibol sentado. Esse grupo social é formado por nove mulheres com algum tipo de deficiência física, predominantemente adquirida e em sua maioria com amputação de membro inferior, o que abriu a possibilidade de avançar na investigação, agora com o enfoque da análise no problema ora delimitado, consistente no papel do paradesporto no cotidiano de pessoas que possuem, como características inatas ou adquiridas, diversas camadas de marcadores sociais da diferença.
Para estruturar nossas discussões, a pesquisa é contextualizada a partir dos estudos de Akotirene (2019); Bodgan e Biklen (1994); Crenshaw (2002); Gil (2007); Goffman (2012); Le Breton (2012; 2013); Sassaki (2009); Silva et al. (2021); e Silva (2022).
JUSTIFICATIVA
A investigação se justifica porque a pessoa e seu corpo são elementos centrais nos debates da educação física e nas ciências do esporte, nichos do conhecimento que exigem uma extrapolação das análises unidimensionais realizadas no contexto da multiplicidade de demandas apresentadas à comunidade acadêmica, focada no enfrentamento das questões que estão nas agendas acadêmicas e políticas porque impactam nas relações sociais. Isso pode resultar em desigualdades, discriminação e exclusão social, interferindo na consequente produção de conhecimento direcionado a garantir o exercício de direitos humanos para todas as pessoas.
ABORDAGEM METODOLÓGICA
No âmbito da pesquisa social, investigar mulheres com deficiência com a incidência de outros marcadores sociais representa um desafio epistemológico, teórico e paradigmático, pois esse conjunto é atravessado por múltiplas diferenças e desigualdades – caracterizador de um conjunto de práticas opressoras que interagem (Akotirene, 2019) –, o que impõe uma superação da abordagem meramente biológica e direciona o foco da pesquisa para uma compreensão que englobe os aspectos biopsicossociais dessa parcela da população (Silva, 2022).
Por termos como objeto de estudo o papel do esporte na vida de mulheres com deficiência, delineamos nossa investigação com enfoque na abordagem qualitativa (Gil, 2007), revisitando informações obtidas tecnicamente por meio da aplicação de questionários, entrevistas e observação participante. Este artigo, portanto, está lastreado na revisão das transcrições de entrevistas realizadas com as participantes, na observação participante e suplementado na releitura das respostas aos questionários produzidos durante os estudos de doutorado, agora interpretados com foco no tema em discussão.
Segundo Bodgan e Biklen (1994), a abordagem qualitativa favorece processos de pesquisas sociais em que o/a pesquisador/a interage com os sujeitos da pesquisa, experimentando sua realidade concreta. Entendemos a pesquisa qualitativa baseada em características apresentadas por esses autores como um termo genérico que agrupa diversas estratégias de investigação, cujas informações recolhidas são ricamente descritas. Com esse objetivo, as questões foram formuladas com o objetivo de investigar os fenômenos em sua complexidade e em contexto ecológico que não se estabelecem mediante a operacionalização de variáveis.
Apresentamos um questionário às nove participantes, contemplando aspectos socioeconômicos, com o fim de obter informações relativas às atividades de subsistência das participantes, meios de transporte utilizados, qualidade de vida, além de dados educacionais (nível de escolaridade e educação extraescolar) e relacionados aos condicionantes sociais de acesso e de permanência em ambientes de esporte e de lazer (Gil, 2007). O questionário continha indagações abertas e fechadas, focadas na perspectiva de cada participante acerca das situações que vivem e viveram, observando o anonimato.
Já a entrevista foi conduzida de forma semiestruturada (Gil, 2007), por meio de videoconferência, em razão de parte da pesquisa ter sido realizada durante a pandemia de Covid-19. Elas foram agendadas via WhatsApp e ocorreram individualmente, foram gravadas e posteriormente transcritas.
A observação participante é uma técnica de obtenção de informações que impõe a imersão da investigador no campo (Bodgan e Biklen, 1994). Isso ocorreu neste estudo com a inserção da pesquisadora no cotidiano esportivo, com registros das questões relevantes em um diário de campo. Houve participação nos treinamentos, compartilhamento de momentos competitivos (como torcedora) e comemorativos, trocas de mensagem por WhatsApp, ligações telefônicas e videochamadas.
As informações foram interpretadas e foi possível estruturar um texto com conclusões provisórias dos significados atribuídos pelas participantes sobre suas experiências como mulheres, atletas com deficiência, de nível socioeconômico médio/baixo, migrantes, algumas delas homoafetivas, negras, mães, todos marcadores sociais interligados.
Em atendimento aos preceitos legais e éticos da pesquisa com seres humanos, o projeto de pesquisa foi aprovado pelo comitê de ética em pesquisa da Universidade de Brasília (CEP/UnB), sob o número CAAE 22294019.5.0000.0030, parecer nº 3.785.188.
MARCADORES SOCIAIS NA CONFORMAÇÃO DA IDENTIDADE DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA E INTERSECCIONALIDADE
Os marcadores sociais da diferença são sistemas de classificação resultantes de normas, valores e crenças sociais que, a partir de determinadas características, distinguem e identificam grupos sociais em uma sociedade, dispondo-os em categorias – geradoras de estereótipos, discriminações e estigmas –, sempre atravessadas umas pelas outras (Zamboni, 2014).
Esses sistemas de classificação têm repercussão na definição das experiências dos indivíduos, no discurso e na prática social ao ignorar que os seres humanos esboçam suas diferenças em suas múltiplas dimensões – nas proporções corporais; em sua gestualidade (expressões corporais); nos usos do corpo e da linguagem; e nas diversas interações e conexões que ocorrem na vida social –, as quais, aqui, são destacadas dentro das atividades físicas e esportivas.
A interseccionalidade é um fator que vulnerabiliza de maneira particular diferentes grupos de mulheres (Crenshaw, 2002) – e, conforme discutimos aqui, de mulheres dentro de um mesmo grupo –, pois as múltiplas diferenças caracterizadoras de dificuldades, preconceitos e estigmas (Goffman, 2012) – como mãe, negra, pobre, homossexual etc. – são somadas à situação de deficiência, destituindo-as de proteção dos direitos humanos e interligando-se em um sistema opressor (Akotirene, 2019).
A abordagem interseccional como perspectiva de análise nos permite compreender as relações sociais em jogo dentro da complexidade do tempo histórico em que se encontra a sociedade brasileira, localizando a articulação dos marcadores sociais da diferença na prática social, aqui especificamente no envolvimento das participantes com o voleibol sentado.
Identificamos uma premência para colocação desses temas na agenda política como uma perspectiva de transformação da realidade de opressões cruzadas e de subordinações a que as pessoas com deficiência estão submetidas. Isso é feito aqui por meio da ampliação do debate acadêmico, analisando as informações a partir da articulação das categorias de diferenças e dos efeitos da dinâmica dos marcadores sociais da diferença que dão sentido e atribuem significado a esses corpos.
Uma pessoa com deficiência enfrenta desafios que se adicionam a outros marcadores, em que a diferença é transformada em estigma (Goffman, 2012). A opressão e o efeito negativo experimentado impactam na forma como as pessoas com deficiência veem a si mesmas, pois o corpo é uma estrutura simbólica em que há uma transferência de um conteúdo em um significado carregado de valor construído socialmente (Le Breton, 2013). Segundo o autor, pessoas julgam as outras por sua aparência corporal, reconhecendo haver uma intimação ao homem contemporâneo para que modele seu corpo, oculte sua idade e suas “fragilidades” e conserve o corpo em um padrão conformado socialmente. Le Breton (2012) assinala ainda que a relação socialmente estabelecida com a pessoa com deficiência evidencia o modo como um grupo social percebe o corpo da outra pessoa e lida com a diferença.
Dentro do contexto social brasileiro, a relação é paradoxal, pois o sistema normativo vigente estabelece direitos, enquanto a prática social evidencia descumprimentos. Isso expõe: a) uma opressão ativa e deliberada em forma de arquitetura inacessível; e b) uma opressão passiva, ao reservar às pessoas com deficiência tratamento de pena, de inferioridade e ou de subalternidade, próprios de uma sociedade capacitista, que se baseia em uma concepção comportamental e anatomicamente definida e que padroniza corpos e atitudes considerados apropriados à espécie humana. O entendimento é de que as pessoas com deficiência são consideradas inferiores em dignidade e em valor e, por isso, são estabelecidas relações sociais ambivalentes com essas pessoas.
A própria linguagem utilizada pela sociedade para se referir às pessoas com deficiência é um revelador das atitudes e valores sociais que delineiam as relações entre os corpos diversos (Silva, 2022). Utilizamos “pessoa com deficiência”, expressão oficialmente adotada em Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência realizada pela ONU, em 2007 (Silva, 2022), no lugar de terminologias anteriormente empregadas, que demonstravam a discriminação em relação a essas pessoas (p.ex.: inválidos, incapazes, desabilitados, retardados, excepcionais, aleijados, defeituosos, inferiores etc.), refletindo atitudes e valores da sociedade e repercutindo no potencial de confirmação dos estereótipos de desvalorização, de marginalização e de exclusão dessa parcela da população. Também evitamos o uso de eufemismos ao nos referirmos à pessoa com deficiência ou expressões que buscam diluir as diferenças de tratamento (p.ex.: “especial”, “exemplo de superação” etc.), com o fim de abrirmos caminhos efetivos para a equidade de tratamentos entre pessoas com e sem deficiência.
Nessa vertente, ampliando a compreensão desse marcador social da diferença, Sassaki (2009) chama a atenção para as interações de fatores, como as dimensões de barreiras: arquitetônica (físicas), comunicacional (comunicação entre pessoas), metodológicas (métodos e técnicas de lazer, de trabalho, de educação etc.), instrumental (instrumentos, ferramentas, utensílios etc.) programática (políticas públicas, legislações, normas etc.), e atitudinal (preconceitos, estereótipos, rótulos e discriminações) e as associadas aos impedimentos naturais (como lesões, amputações etc.).
Em atenção ao paradigma da interseccionalidade, a deficiência atravessa outros marcadores, como gênero, cor, raça, posição econômica, orientação sexual, origem etc. Esse conjunto modifica a compreensão da própria noção de deficiência, que anteriormente era baseada exclusivamente no paradigma médico e descartava as dimensões social, atitudinal e simbólica no estudo do tema. Assim, a abrangência terminológica confronta a visão reducionista da deficiência e confirma que o cuidado com a linguagem é necessário e é indissociável das práticas de inclusão nos ambientes sociais variados, incluindo o esportivo e o educacional.
A linguagem influencia a autopercepção de todas as pessoas, especialmente as com deficiência, mas apenas a mudança na nomenclatura é insuficiente para transformar a atitude da sociedade com essa parcela da população, quando interpretada de maneira segregada de outros marcadores sociais e quando ignora o objetivo mais amplo de promover inclusão. No entanto, é uma das possíveis formas de mudança no autoconceito e no desenvolvimento de uma identidade positiva da pessoa com deficiência, com consequências nos modos de sentir, de pensar e de agir, com potencial de aprimorar suas experiências nos diversos contextos. O uso do vocabulário adequado está no rol das práticas inclusivas e mostra o quanto determinada atitude de uma pessoa pode interferir em suas relações com o outro (Silva, 2022).
MULHERES COM DEFICIÊNCIA JOGADORAS DE VOLEIBOL SENTADO: A VIRADA BIOGRÁFICA E A INTERSECCIONALIDADE EXTRA E INTRAGRUPO
As participantes deste estudo são mulheres que, em maioria, adquiriram a deficiência física em determinado momento de suas vidas em razão de acidentes ou de doenças. Antes, já traziam algumas características que as discriminavam conforme os espaços de convivência, interações e relações: são mulheres, em regra de baixa renda e de nível escolar médio e algumas delas já eram mães, esposas ou companheiras. Com a ocorrência de eventos subsequentes (acidentes com veículos automotores, câncer, paralisia infantil etc.), a essas mulheres foi agregado um novo marcador, o de pessoas com deficiência.
Entre as nove participantes, três eram mães, uma é negra, cinco têm média escolaridade, oito tem baixo nível socioeconômico, duas são homoafetivas e todas tiveram a oportunidade de iniciar a vida esportiva depois que se tornaram pessoas com deficiência. O cruzamento desses marcadores caracteriza a interseccionalidade discutida por Crenshaw (2002), afetando de maneira particular esse grupo de mulheres.
Ao lado dos processos de dor vividos por essas pessoas, decorrentes de amputações, tratamentos e procedimentos médicos, adaptação a próteses, membro-fantasma, dor-fantasma, outros se iniciaram: a dependência inicial de outras pessoas, processos psicológicos como depressão, modificação de rotinas e nas formas de realizar as atividades diárias, a reinserção no mundo de trabalho, ajustes em seus lares para adaptá-los à nova realidade ou a necessidade de aprenderem outros modos de agir diante de seu novo mundo, separações e novas uniões amorosas e questões familiares decorrentes das limitações impostas pela condição adquirida, entre múltiplos outros fatores.
O grupo participante, entretanto, apresenta uma característica que une essas mulheres justamente em razão dessa condição (pessoa com deficiência): todas elas vieram a se conhecer e a se interessar pelo voleibol sentado – um esporte tornado paralímpico em 1980 (6ª edição dos Jogos Paralímpicos, na Holanda) – criado em 1956 por Tammo van der Scheer e Anton Albers (Silva, 2022), que consiste em uma modificação do voleibol dito tradicional, que é jogado sentado no chão, com algumas alterações (quadra menor, rede mais baixa, regras distintas na realização de alguns gestos técnicos, entre outras modificações).
Essas pessoas integravam, ao tempo do estudo original (doutorado), uma associação de pessoas com deficiência situada em Aparecida de Goiânia (Associação dos Deficientes Físicos de Aparecida de Goiânia-ADAP), em Goiás, que tinha entre as atividades propostas tanto o ensino do voleibol sentado, quanto o treinamento de atletas de alto nível para participação em competições estaduais, nacionais e internacionais. Apenas a título de exemplo, das nove mulheres participantes da pesquisa, cinco integram a seleção brasileira e tiveram participações em jogos paralímpicos, campeonatos mundiais, parapan-americanos e sul-americanos.
Todo essa ambiência no esporte promoveu, de fato, uma modificação na autopercepção e nas interações, conexões e relações dessas mulheres com deficiência, uma vez que a característica adquirida – a deficiência física – não significava apenas um fator de discriminação; ao contrário, esse marcador era condição para participação em um grupo e em uma atividade que abria a possibilidade de obtenção de reconhecimento social, de novas oportunidades de crescimento e de desenvolvimento de seus potenciais, além de propiciar o surgimento de novas relações, compreensões e perspectivas.
Apesar de o paradesporto representar uma porta de oportunidades, não se busca aqui romantizar a ideia de que o ingresso na prática corporal do voleibol sentado, promovido pela deficiência que antecedeu essa opção, apenas trouxe benefícios na vida dessas pessoas. O fato de se praticar uma modalidade esportiva coletiva de alto rendimento também traz conflitos, cria atritos, promove distinções e tratamentos preconceituosos intragrupo. A pesquisa identificou que havia uma estratificação entre as praticantes de voleibol sentado, especialmente em razão da segregação criada entre as praticantes que integravam a seleção brasileira e as que não a integravam, mas não limitado a esse fator.
Como exemplo e como ocorre com muitas mulheres trabalhadoras, uma das participantes tinha de administrar múltiplas jornadas e precisava levar suas crianças aos treinos, diante da impossibilidade de deixá-los em casa com o genitor ou com outra pessoa. Algumas paratletas tinham que trabalhar, enquanto outras tinham patrocínio; uma das participantes é profissional em uma empresa, mãe e esposa; outra participou de campanhas publicitárias remuneradas. Aspectos de origem e geoeconômicos também foram identificados: quando a ADAP formou sua equipe, somente uma praticante era de Goiânia (região metropolitana da qual Aparecida de Goiânia faz parte) e oito tiveram que se mudar para a capital de Goiás, sendo que duas eram nordestinas e uma oriunda da região norte. Cinco eram usuárias de transporte público. Somente quatro participavam de treinamento de musculação em academias especializadas.
Esse ambiente eclético, formado por pessoas com diferentes tipos de deficiência, com distintos níveis socioeconômicos e com realidades pessoais e interesses muito específicos também gerava distinções no desempenho atlético e, com isso, conflitos surgiam – como ocorre em qualquer nicho social –, especialmente no que se referia à seleção das atletas para integrarem a equipe principal da ADAP e ao tratamento subsequente dado pela comissão técnica a essas paratletas, que vieram também a integrar a seleção brasileira da modalidade. Esse fato repercutia na vida das praticantes de distintas maneiras. Como exemplo, havia horário, quadra e treinamento específicos para as atletas selecionadas, além do surgimento de oportunidades pelo status de representarem o Brasil em competições internacionais (patrocínio, participação em campanhas publicitárias, obtenção de mais seguidores nas redes sociais etc.).
A interseccionalidade dessas categorias de classificação – os marcadores sociais das diferenças (Zamboni, 2014) – contribui para desnaturalizar as relações, desvelar as articulações de umas em relação às outras, retroalimentando um sistema opressor (Akotirene, 2019) em que as disputas e as relações de poder estabelecidas dentro do grupo social em estudo repercutiam nas relações sociais mais amplas.
Mesmo com esses conflitos comuns no contexto social e diante das diferenças intragrupo vividas no esporte, observamos que o voleibol sentado manteve o potencial de contribuir para mudanças positivas na vida pessoal de todas as praticantes, seja por direcionar o interesse profissional (duas se tornaram fisioterapeutas e uma está cursando nutrição) ou para levar a condutas que favorecem o alcance de qualidade de vida (busca por alimentação adequada, qualidade do sono, disciplina diária de treinamento, observância dos horários etc.).
Em resumo, reconhecemos que essas novas realidades caracterizadas pelos distintos marcadores citados, que se cruzam e se interpõem, são o resultado de um recursivo processo de percepção, autoaceitação, desenvolvimento pessoal direto ou circunstancial, que decorre das significativas oportunidades apresentadas na vida dessas mulheres com deficiência pelo e no esporte.
O estudo indica que houve uma subversão da lógica premente em nossa cultura, lastreada no estabelecimento de limites e de restrições impostas ao desenvolvimento potencial do corpo com deficiência, decorrente do engajamento dessas mulheres no esporte, fator contribuinte para mitigação e mesmo eliminação de barreiras socialmente interpostas em suas trajetórias.
Também se constata a necessidade de aprofundamento do tema pela comunidade acadêmica, promovendo a formação adequada de professores para lidar com essa realidade, bem como produzindo conhecimento apto a fomentar as discussões das medidas mais apropriadas para conformar as políticas públicas que mitiguem práticas segregacionistas e discriminadoras.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo do presente trabalho foi compreender o papel do voleibol sentado na promoção da virada biográfica de mulheres com deficiência, reconhecendo a interseccionalidade de marcadores sociais da diferença nos processos de inclusão promovidos pelo e no ambiente esportivo.
A análise da interseccionalidade de marcadores sociais das diferenças na experiência das pessoas com deficiência em geral e, em especial, das integrantes do grupo social investigado nos fez compreender as dinâmicas e as estruturas da sociedade brasileira contemporânea, que contribuem para oprimir e marginalizar essas pessoas de maneira cultural e socialmente construída, restringindo o desenvolvimento de suas potencialidades.
O voleibol sentado pode fornecer as bases para uma mudança de atitude social frente à deficiência, permitindo que essa parcela da população seja atendida em seus direitos inalienáveis em todos os ambientes. Essa modificação social vem a ser efetivada pela alteração dos significados socialmente atribuídos à pessoa com deficiência, que se encontram culturalmente enraizados e podem ser declarados como a própria origem da discriminação.
As relações estabelecidas entre essas mulheres com deficiência e o mundo social foram sendo modificadas de maneira mais acentuada a partir da inserção no campo paradesportivo. Um ambiente em que as integrantes têm características corporais semelhantes contribuiu para que suas autopercepções fossem sendo transformadas, conectando-as a um universo de possibilidades que interferiu no fluxo de suas vidas.
É justamente o caráter transitório das representações sociais que nos instigou nesta tentativa de modificação da percepção do impacto dos marcadores sociais das diferenças de mulheres com deficiência jogadoras de voleibol sentado, diante da necessidade de recuperar o sentido humano em dignidade e em valor mediante suas potencialidades realizáveis.
O ambiente das participantes também gerou novos estigmas e outros preconceitos, caracterizados pelos privilégios e pelas relações de poder que surgiram quando são eleitas as consideradas mais aptas e habilidosas para a modalidade e as que não eram selecionadas para determinadas competições. Essas novas camadas reforçam a perspectiva da interseccionalidade já discutida e acabam por fragilizar e oprimir as mais vulneráveis.
De qualquer forma, essas mulheres passaram a apresentar modificações na forma de perceberem a si mesmas e em suas relações dentro e fora do grupo, possíveis a partir de uma efetiva virada biográfica proporcionada pelo esporte, fazendo-as ressurgir em dignidade e prestígio, inspirando relações sociais solidárias entre as integrantes do grupo social em estudo e em suas relações com outras pessoas, sustentadas pelo ecossistema do paradesporto.
O resultado da pesquisa corrobora a ideia de que as experiências pelo e no voleibol sentado desestabilizam o pressuposto sociocultural de que mulheres com deficiência estão situadas hierarquicamente em posição de inferioridade no desempenho físico quando comparadas às mulheres sem deficiência. A potência dessa constatação é revelada por sinais de mudanças na percepção de si, na autoconfiança e no reforço da autoestima, por meio da redefinição do autoconceito das participantes, ao se engajarem na prática desse esporte paralímpico.
Reconhecemos a necessidade de avançar na discussão acadêmica dessa temática de maneira crítica e reflexiva, a fim de que a formação inicial e continuada dos professores – e especialmente os de educação física – contemple os múltiplos aspectos relacionados aos marcadores sociais das diferenças, trazendo ao debate público a necessidade de mitigação e eliminação de práticas discriminatórias, com a consequente transformação das representações sociais vigentes.
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FINANCIAMENTO
O presente trabalho não contou com apoio financeiro de nenhuma natureza para sua realização.
REFERÊNCIAS
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
22 Nov 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
29 Maio 2024 -
Aceito
01 Out 2024