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Aventuras da dialética na Educação Física brasileira

Adventures of the dialectic in Brazilian Physical Education

Aventuras de la dialéctica en la Educación Física brasilera

RESUMO

Este artigo oferece uma reflexão sobre a leitura que uma determinada crítica marxista produz dos giros linguísticos ou do pós-modernismo na Educação Física. Após descrevê-la, com base em uma revisão de literatura realizada em artigos de seus principais representantes, opera uma interpretação crítica dos pressupostos que a sustentam, oportunidade para apresentar nossa própria posição sobre eles.

Palavras-chave:
Educação Física; Marxismo; Epistemologia; Linguagem

ABSTRACT

This article offers a reflection on the reading that a certain Marxist critique produces of linguistic turns or postmodernism in Physical Education. After describing it, based on a literature review carried out in articles by its main authors, operates a critical interpretation of the assumptions that support it, an opportunity to present our own position on them.

Keywords:
Physical Education; Marxism; Epistemology; Language

RESUMEN

Este artículo ofrece una reflexión sobre la lectura que una determinada crítica marxista realiza a los giros lingüísticos o del posmodernismo en la Educación Física. Después de describirla, con base en una revisión de la literatura realizada en artículos de sus principales representantes, produce una interpretación crítica de los presupuestos que la sustentan, oportunidad para presentar nuestra propia posición frente a estos.

Palabras-clave:
Educación Física; Marxismo; Epistemología; Lenguaje

INTRODUÇÃO1 1 O título faz referência ao livro “As aventuras da dialética”, do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (2006).

Se as palavras servem para confundir as coisas, é porque a batalha a respeito das palavras é indissociável da batalha a respeito das coisas. (Rancière, 2014, pRancière J. O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo; 2014.. 117).

As pedagogias críticas de uma forma geral e as específicas, como o caso da Educação Física, foram gestadas a partir do diagnóstico de que o sistema educacional nas sociedades capitalistas cumpre a função, por meio de diferentes mecanismos, de reforçar ou reproduzir as relações sociais instituídas. Esse diagnóstico foi operado a partir de distintas referências teóricas, com destaque para diferentes vertentes do marxismo, ou mesmo, daquelas que foram por ele, em maior ou menor grau, influenciadas. No Brasil, uma das teorias pedagógicas que mais se destaca como pedagogia crítica é a pedagogia histórico-crítica, elaborada por Dermeval Saviani e colaboradores. Essa pedagogia se diz sustentada teoricamente no Materialismo Histórico Dialético (MHD), assim como a pedagogia crítico-superadora da Educação Física, em grande medida naquela baseada.

Coerentemente com esse referencial teórico e com as pretensões das teorias críticas em geral, essa pedagogia advoga a participação da educação num processo de transformação social, mais especificamente, no caso da pedagogia histórico-crítica, na superação da sociedade capitalista na direção de uma sociedade socialista. Essa última é vista como a forma de organização social que permitiria a realização das potencialidades humanas com o fim da exploração do homem pelo homem, característica da sociedade capitalista.

Independentemente da consistência com que essa teoria pedagógica argumenta e explicita a vinculação do trabalho pedagógico com o processo de transformação social na direção do socialismo como resposta às necessidades de nosso contexto político, nos parece interessante analisar os usos que no campo específico da Educação Física vem se fazendo do MHD na fundamentação da teoria pedagógica crítica (particularmente a pedagogia crítico-superadora) e nos estudos sobre o campo da Educação Física em geral (por exemplo, na discussão epistemológica).

O debate pedagógico no campo da Educação Física vai, a partir do final dos anos 1990 e mais fortemente nos anos 2000, ser povoado por uma gama de referências teóricas (críticas) que ultrapassam as fronteiras do MHD. Talvez seja a metáfora do “guarda-chuva” aquela que melhor caracteriza a variedade de perspectivas que poderiam ser agrupadas, hoje, sob o nome de pedagogia crítica. Isso vai produzir uma reação daqueles que afirmam manter-se fiéis ao MHD no sentido de, por um lado, criticar esse desenvolvimento como um “desvio” teórico, e por outro, realizar esforços, materializados em diversos artigos, para demonstrar os equívocos teóricos dessas outras referências. Nesse último sentido, foram alvos da crítica particularmente aqueles estudos que, adequadamente ou não, são classificados como “pós-modernos”.

No presente texto focamos nossa atenção nessa reação. Para tanto, realizamos um levantamento dos textos marxistas que contém críticas às posições teóricas divergentes do MHD. A intenção é avaliá-las, tanto em relação às objeções endereçadas às referências teóricas que não vinculadas ao MHD, quanto nas respostas direcionadas às críticas já operadas em relação aos textos produzidos a partir do MHD.

Considerando o objetivo que “anima” o dossiê, o artigo está organizado de modo a, inicialmente, descrever as reações da crítica marxista à virada linguística e ao pós-modernismos na Educação Física2 2 Não é possível falar hoje em marxismo, sendo mais apropriado falar em marxismos já que são muitas as vertentes que se desdobraram da obra original de Karl Marx e Friedrich Engels. O que podemos perceber é que todas essas vertentes advogam constituir-se na correta interpretação do original, contenda que nos parece não ser possível decidir. Assim, nos referimos, neste texto, àquelas formulações que têm como referência a pedagogia histórico-crítica. No entanto, também abarcamos outras referências, como é o caso do marxista húngaro György Lukács. . Na segunda parte, antes das considerações finais, avaliamos a pertinência, a coerência e a consistência argumentativa da crítica produzida.

DESCREVENDO AS REAÇÕES AO PÓS-MODERNISMO, À VIRADA LINGUÍSTICA E AO PRESUMÍVEL “RECUO DA TEORIA”

À luz da literatura que serviu de fonte para a revisão conduzida, é possível dizer que a crítica marxista da Educação Física mobilizada rejeita qualquer possibilidade de teorizar a objetividade do conhecimento ou de proferir afirmações verdadeiras sobre o mundo que não estejam inscritas nos quadros do representacionismo científico e/ou filosófico, perspectiva que pressupõe, por sua vez, um realismo forte. De várias maneiras este argumento está presente nos textos revisitados.

Como asseveram Sacardo e Silva (2017)Sacardo M, Silva RHR. A crítica dos giros epistemológicos e/ou linguísticos no debate político-epistemológico da área da Educação Física. Germinal. 2017;9(2):26-39. http://dx.doi.org/10.9771/gmed.v9i2.15883.
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, sua posição contrária aos giros linguísticos parte do pressuposto de que, para existir o conhecimento e a própria possibilidade da verdade, é preciso que existam objetos a serem conhecidos, assim como é preciso compreender que tais objetos existem independentes das afirmações que se fazem sobre eles. Portanto, concluem os autores,

[...] nossa concepção de verdade se fundamenta no ato de conhecer na medida em que entendemos que o conhecimento é a reprodução do objeto em nossa mente; quando a verdade perde seu sentido e seu caráter objetivo e passa a ser relativa, múltipla e, portanto, subjetivista, isto é, cada sujeito tem sua verdade [...]. (Sacardo e Silva, 2017, pSacardo M, Silva RHR. A crítica dos giros epistemológicos e/ou linguísticos no debate político-epistemológico da área da Educação Física. Germinal. 2017;9(2):26-39. http://dx.doi.org/10.9771/gmed.v9i2.15883.
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. 31).

Lavoura e Martins (2017)Lavoura TN, Martins LM. A dialética do ensino e da aprendizagem na atividade pedagógica histórico-crítica. Interface. 2017;21(62):531-41. http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0917.
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e Morschbacher (2015)Morschbacher M. O debate epistemológico na área da Educação Física: crítica aos “giros epistemológicos” a partir da ontologia e da gnosiologia. In: V Seminário de Epistemologia e Teorias da Educação (EPISTED); 2015; Salvador. Anais Eletrônicos. Salvador: UFBA; 2015. p. 1-14., na mesma senda que os autores acima, afirmam que a negação da objetividade do “em si” do real, ao pressupor a não existência das coisas de modo independente do sujeito, torna a realidade uma construção subjetiva. Este seria um problema das abordagens pós e dos giros linguísticos que a sustentam, pois deslocariam a origem do conhecimento “da realidade” para processos intersubjetivos informados pela linguagem.

Esse tipo de associação ajuda a entender por que, nos artigos considerados na revisão, a crítica ao representacionismo é interpretada como idealismo filosófico. Em outras palavras, idealistas são aqueles autores que, na Educação Física, colocaram em questão o modo correspondentista de compreensão da realidade. Essa vinculação, que não é nova, é empregada para debater questões diversas. Frizzo (2013)Frizzo GFE. Objeto de Estudo da Educação Física: as concepções materialistas e idealistas na produção do conhecimento. Motrivivência. 2013;XXV(40):192-206. http://dx.doi.org/10.5007/2175-8042.2013v25n40p192.
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diz que o idealismo está presente nos conceitos de cultura corporal de movimento e cultura de movimento já que ambos não dizem respeito à totalidade concreta, ao tratar de signos, sentidos e significados “[...] que são externalizados à atividade prática objetivada ou são subjetivamente idealizados num sentido de linguagem através do movimento” (Frizzo, 2013, pFrizzo GFE. Objeto de Estudo da Educação Física: as concepções materialistas e idealistas na produção do conhecimento. Motrivivência. 2013;XXV(40):192-206. http://dx.doi.org/10.5007/2175-8042.2013v25n40p192.
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. 198)3 3 Para Frizzo (2013), o conceito de cultura corporal, como presente na pedagogia crítico-superadora, não seria idealista pois ele parte da categoria trabalho como atividade humana produtiva. .

Compreensão semelhante também tem Morschbacher (2015, pMorschbacher M. O debate epistemológico na área da Educação Física: crítica aos “giros epistemológicos” a partir da ontologia e da gnosiologia. In: V Seminário de Epistemologia e Teorias da Educação (EPISTED); 2015; Salvador. Anais Eletrônicos. Salvador: UFBA; 2015. p. 1-14.. 8), para quem a subordinação da materialidade do ser “[...] a linguagem (em suma, a uma condição subjetiva) permite-nos localizar os ‘giros epistemológicos’ no quadro do idealismo”. Para Scapin et al. (2021, pScapin GJ, Gomes GV, Souza MAS. Educação Física como linguagem no âmbito das mediações do capitalismo. Revista Interdisciplinar de Ensino. Pesqui Ext. 2021;9:416-22.. 419-420), “[...] as tendências de base idealistas, a partir da virada linguística, ‘esvaziaram’ o objeto (do conhecimento e da ciência com relação à realidade) ‘ontologicamente independente de representações e palavras e se transfere à linguagem, às palavras e os discursos’”.

Avançando com a caracterização dessa crítica marxista aos giros, não é difícil identificar que, nessa literatura, a oposição entre aparência e essência também é evocada em diversas passagens. Segundo Lavoura (2020, pLavoura TN. Natureza e especificidade da Educação Física na escola. Poiésis. 2020;14(25):99-119. http://dx.doi.org/10.19177/prppge.v14e25202099-119.
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. 114),

[...] para a lógica dialética materialista, o verdadeiro conhecimento sobre um dado objeto ou fenômeno da realidade é aquele capaz de reproduzir os traços essenciais daquilo que se quer conhecer. [...] indo além de sua aparência fenomênica, empírica, imediatamente visível, captável sensorialmente.

Albuquerque e Taffarel (2020)Albuquerque A, Taffarel CZ. Projeto histórico e projeto de escolarização: contribuições das teorias histórico-cultural, pedagogia histórico-crítica e abordagem crítico-superadora do ensino da Educação Física. Poiésis. 2020;14(25):52-70. http://dx.doi.org/10.19177/prppge.v14e25202052-70.
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concluem que, quanto às explicações acerca do estatuto científico, da natureza e da especificidade da Educação Física, trata-se de explicar o problema não em sua aparência, mas buscar a sua essência, que é histórica. Para elas, é tarefa da ciência e da filosofia captar a concreticidade. Conforme Barros et al. (2022), oBarros BL Jr, Moraes DB, Dias ES, Gama ACV, Húngaro M. Aspectos controversos de uma interpretação do giro linguístico sobre a ontologia de Lukács como referência crítica na Educação Física. Movimento. 2022;28:e28034. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.122538.
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tecido social do real se ampara em uma teia de determinações que se configura em objetividades, que pressupõem em si a unidade contraditória da aparência e da essência. De acordo com os autores, as relações sociais podem se manifestar por formas de reprodução que resultem em um mascaramento da realidade, evidenciando uma aparência que, não necessariamente, represente a essência dos fenômenos. Assim sendo, concluem os autores parafraseando Marx, que “[...] se não houvesse distinção entre aparência e essência, quais justificativas teríamos para os recursos da ciência?” (Barros et al., 2022, pBarros BL Jr, Moraes DB, Dias ES, Gama ACV, Húngaro M. Aspectos controversos de uma interpretação do giro linguístico sobre a ontologia de Lukács como referência crítica na Educação Física. Movimento. 2022;28:e28034. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.122538.
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. 10).

Para a crítica marxista aqui descrita, os giros interditam a possibilidade do conhecimento rigoroso da realidade, pressupõem que todos os discursos são igualmente válidos (relativismo), independente do critério de verdade, decretam a falência da racionalidade (a miséria da razão), da universalidade, da totalidade, das metanarrativas etc. Nas palavras de Sacardo e Silva (2017), aSacardo M, Silva RHR. A crítica dos giros epistemológicos e/ou linguísticos no debate político-epistemológico da área da Educação Física. Germinal. 2017;9(2):26-39. http://dx.doi.org/10.9771/gmed.v9i2.15883.
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perspectiva dos defensores dos giros epistemológicos e/ou linguísticos não consegue avançar além das práticas descritivas, da verdade entendida a partir de consensos intersubjetivos e da implementação de postura conservadora. Não surpreende os termos empregados pela crítica aqui considerada às perspectivas que, em sua pluralidade, operam com tais giros: decadência ideológica do pensamento burguês moderno, teorias conservadoras que representam a filosofia da decadência, irracionalismo pós-moderno, imposturas teóricas, simplismo intelectual etc. (Húngaro et al. 2017Húngaro EM, Patriarca AC, Gamboa S. A decadência ideológica e a produção científica na Educação Física. Pedagógica. 2017;19(40):43-67. http://dx.doi.org/10.22196/rp.v19i40.3741.
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; Albuquerque e Taffarel, 2020Albuquerque A, Taffarel CZ. Projeto histórico e projeto de escolarização: contribuições das teorias histórico-cultural, pedagogia histórico-crítica e abordagem crítico-superadora do ensino da Educação Física. Poiésis. 2020;14(25):52-70. http://dx.doi.org/10.19177/prppge.v14e25202052-70.
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; Lavoura e Martins, 2017Lavoura TN, Martins LM. A dialética do ensino e da aprendizagem na atividade pedagógica histórico-crítica. Interface. 2017;21(62):531-41. http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0917.
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; Scapin et al., 2021Scapin GJ, Gomes GV, Souza MAS. Educação Física como linguagem no âmbito das mediações do capitalismo. Revista Interdisciplinar de Ensino. Pesqui Ext. 2021;9:416-22.).

Para Húngaro et al. (2017)Húngaro EM, Patriarca AC, Gamboa S. A decadência ideológica e a produção científica na Educação Física. Pedagógica. 2017;19(40):43-67. http://dx.doi.org/10.22196/rp.v19i40.3741.
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, os intelectuais da decadência são os responsáveis pela ocultação da realidade, que servem aos interesses do capital exatamente ao mascarar as intenções de uma classe social poderosa. Seria o marxismo, em meio ao processo de ocultação da realidade, a única teoria em condições de mostrar o mundo “lá fora” como ele “realmente é”, desvelando o que encobre a verdade objetiva. Taffarel et al. (2019, pTaffarel CNZ, Hack C, Morschbacher M. Educação Física na Germinal: 10 anos de contribuições em defesa do marxismo. Germinal. 2019;10(3):142-54. http://dx.doi.org/10.9771/gmed.v10i3.29215.
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. 145) compreendem que uma teoria pedagógica marxista na Educação Física, com base em uma concepção científica, apresenta “[...] explicações coerentes, lógicas, compatíveis e com aderência ao real”, de maneira que existem leis e categorias da dialética que se expressam nas investigações sucessivas sobre o objeto. Sem o marxismo “[...] não se consegue com radicalidade, rigorosidade e com uma visão de conjunto, propor uma teoria para a Educação Física, na perspectiva da revolução, que hoje está, mais do que nunca, na pauta do dia” (Albuquerque e Taffarel, 2020, pAlbuquerque A, Taffarel CZ. Projeto histórico e projeto de escolarização: contribuições das teorias histórico-cultural, pedagogia histórico-crítica e abordagem crítico-superadora do ensino da Educação Física. Poiésis. 2020;14(25):52-70. http://dx.doi.org/10.19177/prppge.v14e25202052-70.
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. 68).

Em sua “batalha das ideias” contra os giros e o pós-modernismo, merece destaque as investidas na filosofia de Lukács como resposta adequada ao antirrealismo e ao ceticismo pós-moderno na área. O filósofo húngaro é importante pois ele permitiria corroborar o estatuto ontológico da realidade advogado pela crítica marxista aqui mencionada, ao mesmo tempo em que oferece um contraponto, com o conceito de trabalho, a centralidade conferida à linguagem no processo de conhecer o mundo. Entre a linguagem e o trabalho, os textos revisados vão destacar a primazia deste último como fenômeno originário do ser social e dos próprios processos de produzir conhecimento (Frizzo, 2013Frizzo GFE. Objeto de Estudo da Educação Física: as concepções materialistas e idealistas na produção do conhecimento. Motrivivência. 2013;XXV(40):192-206. http://dx.doi.org/10.5007/2175-8042.2013v25n40p192.
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; Sacardo e Silva, 2017Sacardo M, Silva RHR. A crítica dos giros epistemológicos e/ou linguísticos no debate político-epistemológico da área da Educação Física. Germinal. 2017;9(2):26-39. http://dx.doi.org/10.9771/gmed.v9i2.15883.
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; Barros et al., 2022Barros BL Jr, Moraes DB, Dias ES, Gama ACV, Húngaro M. Aspectos controversos de uma interpretação do giro linguístico sobre a ontologia de Lukács como referência crítica na Educação Física. Movimento. 2022;28:e28034. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.122538.
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; Lavoura e Martins, 2017Lavoura TN, Martins LM. A dialética do ensino e da aprendizagem na atividade pedagógica histórico-crítica. Interface. 2017;21(62):531-41. http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0917.
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).

Outro tema recorrente na crítica marxista aos giros e ao pós-modernismo é a ideia de que determinados discursos educacionais, ainda que revestidos de uma conotação progressista, representam ideários neoliberais e ideologias pós-modernas (Lavoura e Martins, 2017Lavoura TN, Martins LM. A dialética do ensino e da aprendizagem na atividade pedagógica histórico-crítica. Interface. 2017;21(62):531-41. http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0917.
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; Scapin et al. 2021Scapin GJ, Gomes GV, Souza MAS. Educação Física como linguagem no âmbito das mediações do capitalismo. Revista Interdisciplinar de Ensino. Pesqui Ext. 2021;9:416-22.; Ortigara e Coral, 2016Ortigara V, Coral MA. Ensino desenvolvimental: uma possibilidade para a superação da perspectiva ontológica realista empírica na área da Educação Física. Contraponto. 2016;16(1):98-116. http://dx.doi.org/10.14210/contrapontos.v16n1.p98-116.
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). Nos textos considerados, conceitos como epistemologia da prática, professor reflexivo e pedagogia do aprender a aprender seriam as expressões deste pensamento conservador na Educação Física.

Para essa crítica marxista, este “combo educacional” representaria um “recuo da teoria” nos debates pedagógicos da área. Essa compreensão está balizada pela interpretação de que a valorização dos professores no seu contexto de trabalho confere demasiada centralidade ao saber cotidiano, prático, tácito, subjetivo, empírico, local, popular, marcada por

[...] uma narrativa sensualista e descritiva da mera experiência cotidiana imediata [...] pela produção e veiculação de um conhecimento absolutamente empobrecido, reduzindo a teoria a meros jogos de linguagem e a constructos discursivos subjetivistas, promovendo a naturalização dos fenômenos sociais, atomizando a realidade à particularidade imediata do cotidiano, este que acaba eleito como o limite da inteligibilidade humana. (Santos et al., 2020, pSantos CL Jr, Rodrigues RCF, Lavoura TN. Formação de professores de Educação Física: velhos problemas, novas lutas. In: Soares MG, Athayde P, Lara L, editores. Ciências do Esporte, Educação Física e produção do conhecimento em 40 anos do CBCE. Natal: Editora da UFRN; 2020. p. 51-64.. 58).

Esta leitura, reproduzida em outros textos da bibliografia revisitada, traz implícita a ideia de que o supracitado “combo educacional” não permite conhecer a materialidade do real, pois elas seriam exatamente caracterizadas pela falta de sistematicidade e pela incapacidade de ir além das aparências. A crítica marxista em análise vai defender uma “inflação” da teoria, o que corresponderia à defesa do saber escolarizado e da ciência no lugar do saber tácito e do conhecimento adquirido pela experiência nos locais de trabalho cotidiano. Não haveria, assim, outra possibilidade de superar a empiria fenomênica, a fatualidade imediata e a aparência senão por meio da reflexão teórica (leia-se, científica) que seja capaz de, verdadeiramente, reproduzir os traços essenciais do objeto.

No próximo tópico discutiremos essa reação aos giros na Educação Física, analisando a coerência e consistência das críticas produzidas.

INTERPRETANDO A CRÍTICA MARXISTA NA EDUCAÇÃO FÍSICA

No que diz respeito aos conceitos de pedagogia do aprender a aprender, de epistemologia da prática e do professor reflexivo, é importante dizer que a crítica destinada a eles reproduz objeções similares àquela que a pedagogia histórico-crítica reservou ao pragmatismo filosófico. Ghiraldelli (1998, pGhiraldelli P Jr. A filosofia da educação do pragmatismo americano e o “Manifesto dos Pioneiros da educação nova”: uma crítica a J. M. Azanha e D. Saviani. Filosofia. Soc Educ. 1998;2(2):33-45.. 38) comenta que essa pedagogia igualou “[...] a prática dos pragmatistas à ‘prática sensível’, então toma os pragmatistas por pessoas presas a um empirismo banal, empobrecido [...]”, concluindo que eles somente poderiam pensar a educação sob o ângulo de técnicas palpáveis e eficientes. As críticas aqueles três conceitos, portanto, seriam atualizações deste argumento e seriam entendidas como uma tentativa de se opor à formação de um professor desintelectualizado, preso às empirias compartilhadas, às experiências imediatas, limitado às suas competências instrumentais, que dispensaria o conhecimento como campo de inteligibilidade como resultado do recuo da teoria.

Este tipo de interpretação, por sua vez, é possível pois a crítica marxista aqui considerada pressupõe uma compreensão “substantiva” ou “forte” de teoria, particularmente a científica. Este “teoricismo” implica, grosso modo, que “verdadeiro” é sinônimo de “correspondente ao real” e que o real (e, portanto, a verdade) não é acessível senão pela mediação da (verdadeira) teoria. A fé na teoria assim concebida ou, nos termos da crítica marxista aqui mobilizada, a necessidade de a teoria ser catalisadora da prática, reflete uma nostalgia pelo modelo de investigação chamado desvelamento da realidade, próprio do logocentrismo e de toda tradição representacionista, aí incluída a vertente ontológica inspirada nos escritos de Lukács, já que, com sua ontologia materialista, os críticos do (neo)tecnicismo educacional estariam em condições de ultrapassar o achatamento do mundo produzido por uma ontologia empiricista que impossibilita alcançá-lo em sua intransitividade.

Essa compreensão “substantiva” de teoria (e seu realismo subjacente), por sua vez, está relacionada à concepção da linguagem como meio de representação entre um sujeito e um objeto. Essa visão, tradicional no plano de produção do conhecimento, pressupõe que há um eu nuclear capaz de examinar crenças e desejos em referência não apenas a coerência que eles mantêm entre si, mas, especialmente, em função a algo externo às redes linguísticas onde são tecidos. O “problema” da crítica marxista descrita no tópico anterior é que ela acredita nesta possibilidade, ou seja, crê na aproximação/afastamento da “coisa em si” ou na capacidade de construir um sistema de categorias capaz de dar conta da “realidade do real”.

Como alternativa a essa perspectiva “substancializada” de teoria é preciso operar com uma compreensão que, de um lado, ofereça uma alternativa ao “esvaziamento intelectual da prática” que está presente não só, mas também na crítica marxista descrita na primeira parte do artigo. De outro lado, esta outra intepretação da teoria precisa ser um antídoto ao modo racionalista e/ou objetivista (marxista, neste caso) de se conceber a ação pedagógica, segundo o qual a teoria é um guia (catalisadora) para a prática em vez de ser uma ferramenta com a qual o docente ou o profissional constrói a sua teoria prática. Em suma, esse novo entendimento da teoria (baseado numa razão comunicativa), ao se concentrar na necessidade de gerar discursos descritivos interessantes e férteis para nossos propósitos educacionais, aumenta as chances da teorização da Educação Física impactar positivamente na intervenção ao abandonar a autocomplacente ignorância prática e sua autoindulgente busca de categoria acadêmica (ambas características presentes na concepção “substantiva” de teoria).

Além disso, a noção de recuo da teoria baseia-se na ideia de que aqueles que estão diretamente envolvidos no cotidiano não têm teoria, pelo menos não aquela teoria “verdadeira” ou que permitiria alcançar uma leitura correta da sua realidade. Por isso, os detentores da “teoria” precisam esclarecer, por meio de um discurso legislador, aqueles que não a possuem, ao invés de propor um diálogo entre as teorias dos práticos e a teoria dos teóricos. Isso evitaria que fosse negado “a priori” qualquer conteúdo de verdade presente na “teoria dos práticos” e evitaria que a “teoria” fosse percebida por esses como uma ameaça.

Avancemos na análise da crítica pedagógica marxista em análise. As afirmações de que a partir dos giros linguísticos está sendo advogado que a verdade é subjetivista, ou seja, cada sujeito teria a sua verdade, são totalmente equivocadas. Nada mais contrário à virada linguística do que a ideia de que a verdade é subjetiva, já que um de seus cânones é, exatamente, a demonstração, por parte de Wittgenstein, da impossibilidade de uma “linguagem privada”. Somente seria possível defender um acesso privado às condições de validez pagando o preço de uma teoria “correspondentista” de verdade.

Ao mesmo tempo, nenhuma perspectiva teórica que se identifica ou assume os giros linguísticos afirma que não existem objetos, uma vez que esses seriam meras construções subjetivas e, assim, cada sujeito teria a sua própria verdade. De uma vez por todas, para a virada linguística “o mundo objetivo” não deixou de existir. No entanto, e esse é o ponto, só temos acesso a ele a partir da mediação da linguagem, mesmo porque os “sujeitos” (e a consciência) não se apresentam ao mundo ou não estão no mundo como tábulas rasas ou nuas, ou seja, já estão socialmente conformados. Por isso, o conhecimento não é nem objetivo, nem subjetivo, mas intersubjetivo. Os “sujeitos” são constituídos em comunidades de linguagem antes de objectualizarem a realidade com fins de conhecimento. Assim, ao contrário do que se afirma, não significa defender a chamada “pós-verdade”, e sim, que a verdade é resultado de um processo intersubjetivo, que inclui obviamente a realidade objetiva – não se trata de dizer que a realidade é simplesmente uma construção linguística, e sim, levar isso em consideração quando fazemos afirmações acerca da realidade.

Na perspectiva de Gadamer (2008)Gadamer HG. Verdade e método I. Petrópolis: Vozes; 2008., por exemplo, é incontornável que operemos com pré-conceitos (que não é um defeito, mas uma condição de), que, aliás, nos protegem da avalanche de estímulos do meio-ambiente e nos liberam de recomeçar sempre novamente a produção do conhecimento. A visão mentalista do conhecimento e o realismo forte, por seu turno, supõem que o pensamento se vale da linguagem para apreender e dizer o mundo (produzir o conhecimento); no entanto, o pensamento não preexiste à linguagem, pois pensamento é linguagem. Quando falamos da existência de um mundo4 4 Nós humanos só temos mundo como mundo porque assim o nomeamos, mas isso, é óbvio, não significa que ele não exista “objetivamente” ou não tenha “materialidade”, sendo que “objetivamente” significa aqui que ele é a referência para a construção do conhecimento humano. independentemente da linguagem, precisamos lembrar que “[...] temos que realizar na própria linguagem a distinção entre linguagem e mundo”. É esclarecedora a reflexão da escritora Clarice Lispector (1998, pLispector C. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco; 1998.. 175-176) a respeito:

Ah, mas para chegar à mudez, que grande esforço da voz. Minha voz é o modo como vou buscar a realidade; a realidade, antes da minha linguagem, existe como um pensamento que não pensa, mas por fatalidade fui e sou impelida a precisar saber o que o pensamento pensa. A realidade antecede a voz que a procura, mas como a terra antecede a árvore, mas como o mundo antecede o homem, mas como o mar antecede a visão do mar, a vida antecede o amor, a matéria do corpo antecede o corpo, e por sua vez a linguagem um dia terá antecedido a posse do silêncio. Eu tenho à medida que designo – e este é o esplendor de se ter uma linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que não consigo designar. A realidade é a matéria prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la – e como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas – volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu.

Outro equívoco recorrente é o de que os defensores dos giros linguísticos estariam tomando como fator determinante básico da conformação do ser humano a linguagem no lugar do trabalho. Não se trata de uma ontologia – ou como disse Adorno (2009, pAdorno TW. Dialética negativa. Rio de Janeiro: Zahar; 2009.. 109), na sua “Dialética Negativa”, referindo-se ao idealismo de Hegel e ao materialismo de Engels: “O próprio conceito de primeiro merece a crítica dialética”. Citando novamente Clarice Lispector (1998)Lispector C. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco; 1998., para quem a palavra e o mundo são simultâneos, poderíamos dizer que trabalho e linguagem são co-originários ou co-emergentes. Não há a alegada concorrência entre trabalho e linguagem pela qualificação do que é o ser humano5 5 Foi a partir de Engels (1979, p. 218) que vários autores marxistas buscaram remontar a origem da linguagem ao trabalho e sua prioridade frente àquele. “Que esta explicação da origem da linguagem por meio e com a ajuda do trabalho, é a única correta, demonstra-o a comparação com outros animais [...]. Primeiramente o trabalho e, em seguida, em consequência dele, a palavra [...]”. .

Outro aspecto que merecia uma cuidadosa atenção é a ideia de que a revolução socialista é a solução para os impasses do capitalismo (Albuquerque e Taffarel, 2020Albuquerque A, Taffarel CZ. Projeto histórico e projeto de escolarização: contribuições das teorias histórico-cultural, pedagogia histórico-crítica e abordagem crítico-superadora do ensino da Educação Física. Poiésis. 2020;14(25):52-70. http://dx.doi.org/10.19177/prppge.v14e25202052-70.
http://dx.doi.org/10.19177/prppge.v14e25...
). Sob o aspecto político, afirmações como essa, a de que a revolução estaria hoje, mais do que nunca, na pauta do dia, não encontra respaldo no cenário político contemporâneo. Muito pelo contrário, a esquerda mundial colocou como prioridade o aprofundamento da democracia e não a revolução socialista (inclusive por meio da violência) como forma de alcançar maior justiça social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos parece pertinente lembrar das críticas que, já na década de 1990, Ghiraldelli (1994)Ghiraldelli P Jr. Educação e razão histórica. São Paulo: Cortez; 1994. endereçava à pedagogia marxista brasileira, particularmente às posições e teorizações de Dermeval Saviani. O autor chamava a atenção para o fato de que a pedagogia marxista não dialogava com os estudos contemporâneos da Filosofia Social, cujas análises socavavam muitas das posições e leituras nas quais se baseava a pedagogia histórico-crítica e mesmo o marxismo que lhe servia de base. E mais, afirmava que a pedagogia marxista no Brasil, ao se recusar a revisar criticamente seus pressupostos, se comporta “[...] como a avestruz diante do perigo” (Ghiraldelli, 1994, pGhiraldelli P Jr. Educação e razão histórica. São Paulo: Cortez; 1994.. 190). Não parece diferente a postura da crítica marxista com a qual dialogamos neste texto, inclusive por que ela também não se desenvolveu a partir de autores cáusticos e críticos da própria tradição marxista.

Na “batalha das ideias” contra os giros linguísticos, a crítica marxista aqui considerada, de um lado, tem sistematicamente reafirmado postulados que são objetos da crítica dirigida a ela. Nos textos mencionados em nossa análise (e em outros não citados aqui) não há exercício autocrítico que coloque em questão a veracidade dos próprios pressupostos ou, mesmo, a correção das críticas dirigidas aos “detratores” ou “desertores” do marxismo6 6 Neste contexto, vale mencionar a reflexão de Azevedo et al. (2021), que analisam o “quão perto ou distante” do marxismo está o livro “Educação Física e aprendizagem social”, de Valter Bracht. Além de concluírem que Bracht não é marxista, o conteúdo do seu livro veicularia a ideologia burguesa pelo fato de dialogar com autores que não são marxistas propriamente ditos. A pergunta fundamental não pode ser se determinada abordagem é ou não marxista, já que isso boicota “a priori” a possibilidade de aquela possuir algum conteúdo de verdade. . Pensar com Marx, mas, se necessário, contra ele, autocriticamente, não é um traço da pedagogia crítica marxista da Educação Física, ao menos a que aqui foi referenciada.

No próprio campo do marxismo (que é também plural!), alguns temas e teses têm sido objeto de reflexão e revisão no sentido de considerar os desenvolvimentos contemporâneos. Ghiraldelli (1994)Ghiraldelli P Jr. Educação e razão histórica. São Paulo: Cortez; 1994., com base em Habermas, indica a necessidade de repensar a utopia da sociedade do trabalho, já que suas energias utópicas estariam se esgotando. Além disso, seria preciso enfrentar as mudanças que vem reconfigurando no capitalismo contemporâneo a questão das classes sociais ou da luta de classes, consideradas no marxismo como o motor da história. Mesmo autores contemporâneos que se consideram marxistas alertam para o fato de que é preciso revisar as posições originais, entre eles Roy Bhaskar, Ernesto Laclau, David Harvey e outros. Por fim, a própria ideia de socialismo está em questão. É muito difícil hoje discutir o socialismo ou o comunismo como foi pensado originalmente e num determinado contexto por Marx e Engels. Nesse sentido, são muito interessantes, entre outros, os aportes de Axel Honneth (2015)Honneth A. Die Idee des Sozialismus. Berlin: Suhrkamp; 2015., Thomas Piketty (2020)Piketty T. Capital e ideologia. Rio de Janeiro: Intrínseca; 2020. e Tarso Genro (2003)Genro T. Nem tão distante nem tão impossível. Jornal Folha de São Paulo; São Paulo; 16 nov. 2003. Secção Opinião..

Cabe ainda analisar, muito brevemente, as consequências políticas das posições epistemológicas discutidas até aqui. Historicamente os regimes autoritários se caracterizam exatamente por se basearem em fundamentos últimos tomados como verdades (raça superior; verdade divina; superioridade natural da elite, etc.)7 7 Merleau-Ponty (2006) mostra como no decurso da revolução soviética, para conter a resistência a ela, o partido comunista foi entendido como portador da verdade histórica. Nesse sentido, Arendt (2021) se pergunta como foi possível que Marx tenha sido utilizado para construir um sistema político totalitário? . Essas posturas são responsáveis pelo “ódio à democracia”, como bem demonstrou Rancière (2014)Rancière J. O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo; 2014.. Na epistemologia e na democracia não podemos abrir mão de buscar a “verdade” (justificação para Richard Rorty e também Rainer Forst) entre aspas, portanto, entendida como processual e por isso mesmo nunca alcançável de forma definitiva, junto com a democracia sempre em construção. Se no debate político e na epistemologia alguém possuir a verdade (no sentido de saber como o mundo é ou, mais, deveria ser), essa pessoa decreta o fim da política8 8 De certa forma, a tese de Marx de que o Estado se autodissolveria quando do comunismo, quando já não existiriam as condições que o tornaram necessário, contém também a ideia do fim da política. Ver a respeito Arendt (2021). (e da democracia). Por isso, colocamos sempre em debate nossas compreensões/explicações de como o mundo é (que podem orientar nossas decisões) e de como desejamos que o mundo seja. A democracia, assim, é o espaço do pluralismo, da divergência, do conflito de visões, da transgressão da ordem, do conhecimento em processo, do diálogo, da ausência de certezas absolutas, só compatíveis, portanto, com uma postura epistemológica que advoga uma noção também processual de verdade. Como sugere Magro (1998)Magro C. O que é uma teoria da linguagem. In: Pinto PRM, Pinto C, editores. Filosofia analítica, pragmatismo e ciência. Belo Horizonte: Editora UFMG; 1998. p. 177-89., talvez devêssemos deixar de falar dos afazeres de cientistas como sendo fornecer os elementos para a apreensão da verdade final e descrever suas atividades como sendo a criação de espaços para conversação e reflexão.

Entendemos, para finalizar, que a “batalha das ideias”, para ser produtiva, ou seja, fazer avançar o conhecimento, não pode se orientar por um olhar que busca exclusivamente identificar oposições do tipo “ou isso ou aquilo”, descartando quase a-priori as possibilidades de convergência (isso e aquilo). Isso tem levado, em muitos casos, a um crônico desconsiderar dos argumentos de referências teóricas divergentes. Com isso se perde a oportunidade de não só pensar contra, mas pensar também com. Ou mesmo, por exemplo, não só pensar contra Habermas com Marx, mas também, pensar com Habermas contra Habermas ou mesmo, pensar contra Marx com Marx. Por outro lado, algumas posturas confundem a necessária rigorosidade com que se defende uma determinada perspectiva teórica, com rigidez que muitas vezes se vincula a uma determinada posição política não menos rígida. Não se trata de afirmar um “vale tudo ou qualquer coisa”, num ecletismo que flerta com um relativismo radical, mas sim, de manter uma postura de abertura aos argumentos de posições divergentes das próprias. Só assim, entendemos, o debate pode prosperar e a “batalha das ideias” fazer sentido.

  • 1
    O título faz referência ao livro “As aventuras da dialética”, do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (2006)Merleau-Ponty M. As aventuras da dialética. São Paulo: Martins Fontes; 2006..
  • 2
    Não é possível falar hoje em marxismo, sendo mais apropriado falar em marxismos já que são muitas as vertentes que se desdobraram da obra original de Karl Marx e Friedrich Engels. O que podemos perceber é que todas essas vertentes advogam constituir-se na correta interpretação do original, contenda que nos parece não ser possível decidir. Assim, nos referimos, neste texto, àquelas formulações que têm como referência a pedagogia histórico-crítica. No entanto, também abarcamos outras referências, como é o caso do marxista húngaro György Lukács.
  • 3
    Para Frizzo (2013), oFrizzo GFE. Objeto de Estudo da Educação Física: as concepções materialistas e idealistas na produção do conhecimento. Motrivivência. 2013;XXV(40):192-206. http://dx.doi.org/10.5007/2175-8042.2013v25n40p192.
    http://dx.doi.org/10.5007/2175-8042.2013...
    conceito de cultura corporal, como presente na pedagogia crítico-superadora, não seria idealista pois ele parte da categoria trabalho como atividade humana produtiva.
  • 4
    Nós humanos só temos mundo como mundo porque assim o nomeamos, mas isso, é óbvio, não significa que ele não exista “objetivamente” ou não tenha “materialidade”, sendo que “objetivamente” significa aqui que ele é a referência para a construção do conhecimento humano.
  • 5
    Foi a partir de Engels (1979, pEngels F. Dialética da natureza. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1979.. 218) que vários autores marxistas buscaram remontar a origem da linguagem ao trabalho e sua prioridade frente àquele. “Que esta explicação da origem da linguagem por meio e com a ajuda do trabalho, é a única correta, demonstra-o a comparação com outros animais [...]. Primeiramente o trabalho e, em seguida, em consequência dele, a palavra [...]”.
  • 6
    Neste contexto, vale mencionar a reflexão de Azevedo et al. (2021)Azevedo VMC, Melo MP, Gawryszewski B. A educação física e a aprendizagem social: um diálogo de Bracht com a filosofia marxista. Cocar. 2021;15(33):1-21., que analisam o “quão perto ou distante” do marxismo está o livro “Educação Física e aprendizagem social”, de Valter Bracht. Além de concluírem que Bracht não é marxista, o conteúdo do seu livro veicularia a ideologia burguesa pelo fato de dialogar com autores que não são marxistas propriamente ditos. A pergunta fundamental não pode ser se determinada abordagem é ou não marxista, já que isso boicota “a priori” a possibilidade de aquela possuir algum conteúdo de verdade.
  • 7
    Merleau-Ponty (2006)Merleau-Ponty M. As aventuras da dialética. São Paulo: Martins Fontes; 2006. mostra como no decurso da revolução soviética, para conter a resistência a ela, o partido comunista foi entendido como portador da verdade histórica. Nesse sentido, Arendt (2021)Arendt H. Pensar sem corrimão: compreender (1953-1975). Rio de Janeiro: Bazar do Tempo; 2021. se pergunta como foi possível que Marx tenha sido utilizado para construir um sistema político totalitário?
  • 8
    De certa forma, a tese de Marx de que o Estado se autodissolveria quando do comunismo, quando já não existiriam as condições que o tornaram necessário, contém também a ideia do fim da política. Ver a respeito Arendt (2021)Arendt H. Pensar sem corrimão: compreender (1953-1975). Rio de Janeiro: Bazar do Tempo; 2021..
  • FINANCIAMENTO

    O presente trabalho não contou com apoio financeiro de nenhuma natureza para sua realização.

REFERÊNCIAS

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    » http://dx.doi.org/10.19177/prppge.v14e25202052-70
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    31 Jul 2023
  • Aceito
    04 Set 2023
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