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A sociologia do corpo de Le Breton e sua relação com a agenda pós-moderna

The sociology of the body by Le Breton and its relationship with the postmodern agenda

La sociología del cuerpo de Le Breton y su relación con la agenda posmoderna

RESUMO

O artigo tem como objetivo identificar aproximações da “sociologia do corpo” de David Le Breton com a agenda pós-moderna. Por uma revisão bibliográfica foi possível abordar conceitos-chave, identificar suas principais ideias e argumentos, e analisá-los sob uma perspectiva crítico-ontológica. Constatamos que tal sociologia, ao buscar superar a dicotomia corpo biológico e “espírito”, compreende-o como uma ficção, um lugar de representações e símbolos que mediam as interações sociais e influenciam as identidades individuais e coletivas. Limitando-se por uma negação da totalidade social e do sujeito histórico, e assumindo uma desreferencialização do real.

Palavras-chave:
Sociologia do corpo; Agenda pós-moderna; Crítica ontológica; Educação Física

ABSTRACT

The article aims to identify the convergence between David Le Breton's “sociology of the body” and the postmodern agenda. Through a literature review, it was possible to address key concepts, identify their main ideas and arguments, and critically analyze them from a critical-ontological perspective. We found that this sociology, in its attempt to overcome the dichotomy between the biological body and the 'spirit,' views it as a fiction, a realm of representations and symbols that mediate social interactions and influence individual and collective identities. Constrained by a denial of social totality and the historical subject, it assumes a dereferentialization of the real.

Keywords:
Sociology of the body; Postmodern agenda; Ontological critique; Physical Education

RESUMEN

El artículo tiene como objetivo identificar las convergencias entre la “sociología del cuerpo” de David Le Breton y la agenda posmoderna. A través de una revisión bibliográfica, fue posible abordar conceptos clave, identificar sus ideas principales y argumentos, y analizarlos críticamente desde una perspectiva crítico-ontológica. Encontramos que esta sociología, al intentar superar la dicotomía entre el cuerpo biológico y el 'espíritu', lo ve como una ficción, un ámbito de representaciones y símbolos que median las interacciones sociales e influyen en las identidades individuales y colectivas. Limitada por la negación de la totalidad social y el sujeto histórico, asume una desreferencialización de lo real.

Palabras-clave:
Sociología del cuerpo; Agenda posmoderna; Crítica ontológica; Educación Física

INTRODUÇÃO

A presença dos estudos de David Le Breton no campo da Educação Física no Brasil exerce influência significativa (Baptista et al., 2013Baptista TJR, Silva LRT, Silva APM, Vilarinho S No, Pereira FR, Alves CL, et al. Perspectivas epistemológicas da produção do conhecimento sobre corpo nos GTTs Memória, Cultura e Corpo (1999, 2003) e Corpo e Cultura (2011). In: XVIII Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte; 2013 Ago 2-7; Brasília. Anais. Brasília: CBCE; 2013. p. 1-13.; Silva et al., 2023Silva AC, Duarte CP, Baptista TJR. Grupo de Trabalho Temático Corpo e Cultura do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte entre uma diversidade de temáticas e referenciais. Rev Saúde Corpo Mov 2023;1:1-14.), proporcionando uma perspectiva teórica que valoriza a “corporeidade” como um campo de conhecimento e reflexão, superando visões reducionistas do corpo como uma entidade puramente biológica.

Como objetivo deste trabalho visamos identificar princípios da agenda pós-moderna no desenvolvimento teórico de Le Breton (2018Le Breton D. Desaparecer de si: uma tentação contemporânea. Petrópolis: Vozes; 2018., 2007Le Breton D. Sociologia do corpo. 2. ed. Petrópolis: Vozes; 2007., 2003Le Breton D. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Campinas: Papirus; 2003.). Para tanto, uma revisão bibliográfica foi realizada no intuito de extrair de sua “sociologia do corpo” conceitos-chave, identificar suas principais ideias e argumentos, e analisá-los criticamente sob uma perspectiva crítico-ontológica. Por um esforço de contribuir para uma noção de corpo que não se restrinja aos apontamentos das ciências da natureza, nem se limite às análises sobre a aparência e as marcas que expõem discursos de linguagens e padrões sócio culturais, por meio das mudanças de superfície dos volumes, das formas, das dobras, dos ângulos, das sombras, dos tons, dos pesos, dos movimentos, dentre outros.

O que se sugere é que a natureza humana pode ser equiparada a um ser flexível, cheio de formas, automoldantes e dotado de inúmeras possibilidades de expressão e transformação. Mas como nos lembra Eagleton (2011), aEagleton T. A ideia de cultura. São Paulo: Unesp; 2011. realidade da humanidade e sua trajetória histórica têm se caracterizado, de forma notável, pela ausência de flexibilidade, evidenciada pelo monótono ciclo biológico de necessidade, escassez e opressão política imposto pelo capital.

A SOCIOLOGIA DO CORPO DE LE BRETON

A “sociologia do corpo” é uma vertente da sociologia que busca compreender o corpo como fenômeno social e cultural, repleto de representações e imaginários na relação entre indivíduo e sociedade. Nesse domínio, Le Breton apresenta uma abordagem “ficcional” do corpo, entendendo-o não apenas como um atributo pessoal, mas como um lugar e um tempo inseparáveis da identidade. Le Breton destaca que o termo “corpo” é uma ficção culturalmente eficiente, uma comunidade de sentido e valor que molda o lugar, os componentes, as performances e os imaginários, de forma mutante e contraditória nas sociedades humanas (Le Breton, 2007Le Breton D. Sociologia do corpo. 2. ed. Petrópolis: Vozes; 2007.).

Para Le Breton (2007)Le Breton D. Sociologia do corpo. 2. ed. Petrópolis: Vozes; 2007. a “corporeidade” permeia a vida cotidiana e é mediada por essa dimensão simbólica, em que o corpo se torna um “vetor semântico” que permite a existência por meio da percepção de sistemas simbólicos, buscando superar “antigas legitimações” que criticavam a relação do corpo com os outros e com o mundo. Movimentos como o feminismo, a body-art, a “revolução sexual” e novas terapias desafiaram a sociedade estável da época. Para essa abordagem, não há nada de universal nas defesas tradicionais do corpo. O corpo passa a ser o protagonista das ações sociais, mas na condição de se apresentar como um projeto, rompendo com o cotidiano normalizado, moralizado e conformista.

A ideia de encarar o corpo como um projeto se evidencia no fenômeno crescente das modificações corporais (Ferreira, 2006Ferreira VS. Marcas que demarcam: corpo, tatuagem e body piercing em contextos juvenis [tese]. Lisboa: Instituto Universitário de Lisboa, Escola de Sociologia e Políticas Públicas; 2006.). Le Breton (2003)Le Breton D. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Campinas: Papirus; 2003. compreende que o corpo é como um rascunho que pode ser modificado de acordo com a vontade, angústias e expectativas diante do outro. Trata-se de transformar a aparência imperfeita, em que o corpo se torna um “rascunho a ser corrigido” e aperfeiçoado.

Essa sociologia nos permite identificar o corpo como um inventário de costumes e movimentos, na perspectiva de objeto de representações, mesmo que por uma negação da dualidade entre sujeito e objeto. O corpo se torna o sujeito da cultura. Nesse sentido, os estudos do corpo compartilham interesses comuns ao abordar a relação entre indivíduo e sociedade.

O CORPO COMO OBJETO DE REPRESENTAÇÕES

O corpo é compreendido como um elemento essencial para a compreensão das relações humanas no cotidiano, tanto aquelas que ocorrem por meio dos sentidos corporais quanto aquelas que se originam na esfera pública. Le Breton (2007)Le Breton D. Sociologia do corpo. 2. ed. Petrópolis: Vozes; 2007. argumenta que as interações entre indivíduos são mediadas pela “corporeidade” e que traduz as formas de relação com o mundo.

Segundo o autor:

O corpo não existe em estado natural, sempre está compreendido na trama social de sentidos, mesmo em suas manifestações aparentes de insurreição, quando provisoriamente uma ruptura se instala na transparência da relação física com o mundo do ator (dor, doença, comportamento não habitual, etc.) (Le Breton, 2007, pLe Breton D. Sociologia do corpo. 2. ed. Petrópolis: Vozes; 2007.. 32).

Para compreender a “corporeidade”, é necessário considerar a noção de sociedade na perspectiva de Le Breton (2007), oLe Breton D. Sociologia do corpo. 2. ed. Petrópolis: Vozes; 2007. qual busca referências na sociologia de autores importantes, como Georg Simmel, que afirma que a sociedade existe onde quer que vários indivíduos entrem em interação, impulsionados por determinados Instintos (Trieben) – eróticos, religiosos ou sociais – ou para determinados fins. Simmel (1983)Simmel G. Sociologia. São Paulo: Ática; 1983. O problema da sociologia; p. 59-79. destaca que esses instintos motivam ações que vão além da consciência individual, e as relações sociais são formadas por diferentes graus de “sociação”, com conteúdos que envolvem interesses, fins, inclinações, estados ou movimentos psíquicos.

György Lukács, no sentido de reconhecer Simmel, destaca a sensibilidade e capacidade filosófica deste último, em ver minuciosamente fenômenos da vida cotidiana e conseguir revelar singularidades. Também situa Simmel no movimento estético impressionista, no qual expressa-se na constante essência de transição e recusa da totalidade e, na representação mais lapidar do pluralismo metodológico. O filosofar de Simmel faz-se no reconhecimento da multiplicidade infinita de possibilidades de posições e representações filosóficas. Isto, para Lukács, se torna um fator limitante de Simmel (Lukács, 2018Lukács G. Georg Simmel. Dissonância 2018;2:325-33.).

Simmel (1983)Simmel G. Sociologia. São Paulo: Ática; 1983. O problema da sociologia; p. 59-79. concebe o fenômeno social como uma unidade entre forma e conteúdo, na qual a sociação ocorre quando indivíduos coexistem e adotam formas de colaboração e cooperação para satisfazer seus interesses. A partir dessa perspectiva, Le Breton (2007)Le Breton D. Sociologia do corpo. 2. ed. Petrópolis: Vozes; 2007. destaca a importância da constituição sensorial entre os indivíduos e a interpretação dos fenômenos sociais pelo corpo.

Essa é a dimensão mais enraizada na intimidade do sujeito, a mais intocável; é aquela do claro-escuro, uma vez que drena o imenso campo sensório. De uma área cultural para outra, e mais freqüentemente de uma classe social para outra, os atores decifram sensorialmente o mundo de maneira diferenciada (Le Breton, 2007, pLe Breton D. Sociologia do corpo. 2. ed. Petrópolis: Vozes; 2007.. 55).

Le Breton (2007)Le Breton D. Sociologia do corpo. 2. ed. Petrópolis: Vozes; 2007. identifica o corpo como um acessório de práticas e sentidos, uma interface entre o social e o individual, entre a natureza e a cultura. O corpo é entendido como um objeto de pesquisa sociológica e antropológica, que vai além da determinação biológica e é permeado por uma rede de significações.

Embora Le Breton não seja um teórico interacionista simbólico no sentido estrito, sua abordagem sociológica de corpo compartilha muitos princípios e conceitos fundamentais desta perspectiva de análise da realidade social. Ele adota uma abordagem simbólica ao explorar como as pessoas constroem significados em relação ao corpo e à “corporeidade”. E analisa as práticas corporais, as experiências sensoriais, as representações culturais e as narrativas pessoais em torno do corpo reconhecendo a importância dos símbolos e dos significados atribuídos a ele (Le Breton, 2007Le Breton D. Sociologia do corpo. 2. ed. Petrópolis: Vozes; 2007., 2003Le Breton D. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Campinas: Papirus; 2003.).

Nesse sentido, uma hipótese ocorre para nós, na medida em que o autor oferece uma análise que não apenas relembra os estudos clássicos de Simmel e o Interacionismo Simbólico, mas se expõe como uma crítica pós-moderna que parece reutilizar àquelas perspectivas.

OS ESTUDOS SOBRE O CORPO E A AGENDA PÓS-MODERNA

O estudo sobre o corpo passa a ter um destaque a partir de um período histórico na qual a agenda pós-moderna ascende. Trata-se, por exemplo, de uma época de relevantes transformações que ocorreram nas sociedades capitalistas no fim da década de 1960 e de como esses acontecimentos tiveram explicações por um conjunto de concepções políticas, filosóficas e estéticas que se assentava nesse tempo de acentuada “crise estrutural do capital” e o aprofundamento das desigualdades sociais, bem como o fim do chamado “socialismo real” (Húngaro, 2001Húngaro EM. Modernidade e totalidade – em defesa de uma categoria ontológica [dissertação]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2001.).

No texto A condição pós-moderna, Lyotard (2009)Lyotard J. A condição pós-moderna. 12. ed. Rio de Janeiro: José Olympio; 2009. postula sobre o “fim das metanarrativas” acerca do futuro. Trata-se de uma argumentação em que estaríamos vivendo desde o fim dos anos de 1960 sob uma “ideologia do presente”, no qual os progressos históricos da humanidade teria sido uma ilusão frente a experiência de um século de guerras, fome e crueldade. Por isso, a modernidade, a universalização e o futuro, que substituíram as cosmogonias particularistas fadaram por desaparecer. O futuro teria entrado em crise e uma nova ordem do tempo se postou em um presente contínuo, isto é, a história teria seu fim e não tinha mais importância o passado.

David Harvey afirma que a pós-modernidade surge como uma lógica cultural no interior dos movimentos sociais do final dos anos 1960 (Harvey, 1992Harvey D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola; 1992.). A interpretação dada pela filosofia desse tempo, em especial a francesa, postulou que a ideia de universalismo foi posta em dúvida. Ferry (1988)Ferry L. Pensamento 68: ensaio sobre o anti-humanismo contemporâneo. São Paulo: Ensaio; 1988. diz que essa filosofia ao se deparar com o “Maio de 1968” se expressa como um sintoma desse tempo, escolhendo resolutamente o partido do anti-humanismo.

Neste contexto, uma nova onda de ação popular se mobilizou através de uma nova estética, ética e moral. O que tínhamos passou a expressar dúvidas e questionamentos, não apenas pelas posturas políticas representadas pelos partidos, mas pela culpabilização sobre o pesadelo que a razão tinha nos dados. Acrescentando uma outra interpretação, conseguimos ver em Fredric Jameson que a pós-modernidade traduz “uma lógica cultural do capitalismo tardio” (Jameson, 1996, pJameson F. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática; 1996.. 80).

Ao retirar a história, o passado, como referência para o desenvolvimento de uma teleologia, a crítica pós-moderna interpreta isto que vivemos como um mundo de incertezas, em que “[...] nossa vida cotidiana, nossas experiências psíquicas, nossas linguagens culturais são hoje dominadas pelas categorias de espaço e não pelas de tempo, como eram no período anterior do alto modernismo” (Jameson, 1996, pJameson F. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática; 1996.. 43).

O corpo, então, ao ser referenciado no espaço só é possível de ser encarado por mensurações sobre sua particularidade no presente contínuo, não há a possibilidade do novo autêntico – apenas de se amparar na obsolescência programada –, pois este foi interrompido com o “fim da história”. Jameson (1996, pJameson F. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática; 1996.. 52) diz que: “[...] o sujeito perdeu sua capacidade de estender de forma ativa suas protensões e retensões em um complexo temporal e organizar seu passado e seu futuro como experiência coerente”. Com isso, as novas formas de estar no mundo demandadas pela crise estrutural do capital, ao terem como referência o cancelamento do futuro, encurtam as expectativas e coloca o indivíduo em uma condição de estar sozinho no mundo, abrigado por seu corpo, como espaço conclusivo de seus projetos pessoais e/ou de único reduto de sobrevivência.

Logo, acreditamos que significados de corpo que esteja atrelado à agenda pós-moderna esteja determinado por uma noção de ser humano fragmentado, o qual se permite a possibilidade dos “fins do homem”, a “morte do sujeito”, e atualmente, o “desaparecimento de si”1 1 Ao proclamar em meados de 1960, a morte do homem e do sujeito, Michel Foucault anuncia a era do estruturalismo, um pensamento que nega o sujeito em detrimento da racionalidade burocrática. Assumindo, assim, que “[...] o homem é um puro ‘dado’ passivo de estruturas apriorísticas, que a liberdade é apenas uma ‘ilusão’, que o humanismo (os problemas da construção do homem por si mesmo) são um ‘falso problema’, uma mera ‘doxologia’” (Coutinho, 2010, p. 74). Portanto, ao proclamar a “morte da ideologia”, decreta como irracionais, diz Carlos Nelson Coutinho, as questões do sentido da vida, da luta por uma nova sociedade, da liberdade humana real. Acompanha esse pensamento, o “homem estrutural” de Roland Barthes, o “os fins do homem” de Jacques Derrida, dentre outros. Coutinho (2010) vai demonstrar, a partir de Marx e Lukács, o quanto de resquício há do problema da razão na filosofia burguesa ao se ater nos flancos da decadência ideológica burguesa. . Além disso, há referências às políticas pós-classistas (ou pós-modernas) que se ocultam nas intensidades do corpo para evitar questões exageradamente “globais” (Eagleton, 1993Eagleton T. A ideologia da estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1993.).

O fim do sujeito histórico e a desreferencialização do real são aspectos que Húngaro (2001)Húngaro EM. Modernidade e totalidade – em defesa de uma categoria ontológica [dissertação]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2001. identificou em sua pesquisa, como configurações irracionalistas da crítica pós-moderna. Como Lyotard (2009)Lyotard J. A condição pós-moderna. 12. ed. Rio de Janeiro: José Olympio; 2009. defende a realidade com base na teoria dos “jogos de linguagem” de Ludwig Wittgenstein, haveria um consenso sobre a semântica da verdade, o qual estaria submetido à pragmática desses jogos. Tal disputa não demandaria uma concordância de opiniões, mas uma forma de vida. Neste sentido, “[...] o real deixa de ser a referência para a verdade. A realidade objetiva dá lugar à representação simbólica do real, deixando de ser o fundamento ontológico de qualquer tipo de conhecimento” (Húngaro, 2001, pHúngaro EM. Modernidade e totalidade – em defesa de uma categoria ontológica [dissertação]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2001.. 73).

Quanto ao sujeito histórico, Húngaro (2001)Húngaro EM. Modernidade e totalidade – em defesa de uma categoria ontológica [dissertação]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2001. demonstra que este perde sua legitimidade na luta revolucionária e em seu lugar assume os inúmeros sujeitos sociais com racionalidades distintas. Esse movimento ao se denominar pós-moderno tem como plano o ataque a modernidade e, por ser assim, criticam, a saber:

[...] que o mundo possa ser apreendido enquanto totalidade; contestam a possibilidade da emancipação humana enquanto revolução social, assim como a existência de um sujeito histórico revolucionário que desempenhe algum papel principal; questionam a realidade como fundamento último da verdade de um juízo; julgam que não há verdade e sim verdades, já que todo discurso científico está assentado em ‘jogos de linguagem’ e é, portanto, apenas uma argumentação sem referência à realidade (Húngaro, 2001, pHúngaro EM. Modernidade e totalidade – em defesa de uma categoria ontológica [dissertação]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2001.. 29).

Neste sentido, a análise sobre a realidade passou a conceder interpretações sobre objetos mais específicos, particularidades que não são compreendidas suficientemente quando não se prioriza a “totalidade social”. O alvo, agora, da agenda pós-moderna é o concreto, em que os fenômenos e suas variadas manifestações apenas importam na sua especificidade naquele tempo e espaço delimitado, ou seja, em sua própria lógica.

Diante disto, Húngaro (2001, pHúngaro EM. Modernidade e totalidade – em defesa de uma categoria ontológica [dissertação]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2001.. 30), nos coloca uma questão fundamental: “se é possível afirmar que a realidade não pode ser compreendida enquanto totalidade, como modificá-la em seu conjunto?”. Essa inquietação é cara, porque questiona a função das ciências, de modo que o sentido de nos mantermos vivos é construir um mundo melhor para as futuras gerações.

Mas na medida em que tentamos essa tarefa, situados no modo de produção capitalista, deparamo-nos com uma realidade que necessariamente precisa ser superada para garantirmos a vida. Então, a emancipação humana diante dessa totalidade social capitalista precisa ser mantida como um projeto, com isto a “[...] possibilidade revolucionária está debitada à possibilidade de compreensão do mundo como totalidade” (Húngaro, 2001, pHúngaro EM. Modernidade e totalidade – em defesa de uma categoria ontológica [dissertação]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2001.. 30).

Portanto, ao considerar a realidade social como fragmentada, a agenda pós-moderna defende que é inviável a apreensão totalizante dessa realidade. Claro que o conhecimento de todos os fatos que compõe a realidade não é possível, especialmente se a tratamos pela tradição marxiana, na qual a totalidade é ontologicamente revelada pela relação dialética entre a teleologia e a causalidade.

Por conseguinte, pressupomos que a partir deste contexto surge um interesse recorrente pelo corpo como objeto de estudo. Herold (2009)Herold C Jr. Os estudos sobre o corpo para além da apologia e da negação: contraposição crítica ao pós-modernismo. Educ Rev 2009;33:221-34. demonstra que tal interesse se deu em duplo sentido:

[...] primeiro pela crítica ao pensamento moderno graças ao lugar subalterno atribuído do corpo e, em segundo lugar, pela relevância que a corporeidade passou a ter em estudos nas mais variadas áreas que passaram a concebê-la como o locus no qual a busca da possibilidade de construir uma vida pessoal com sentido se daria (Herold, 2009Herold C Jr. Os estudos sobre o corpo para além da apologia e da negação: contraposição crítica ao pós-modernismo. Educ Rev 2009;33:221-34., pp. 224-225).

Isto significa ter o corpo compreendido como algo a ser instrumentalizado pela mente – como afirmava um dos filósofos mais fundamentais da modernidade, Descartes, que proclamava pela racionalidade cartesiana – e passando a ser encarado como uma possibilidade de realização individual em meio aos resultados históricos do século XX, de maneira que o corpo apresenta ser um local propício para projetos pessoais de vida (Ferreira, 2006Ferreira VS. Marcas que demarcam: corpo, tatuagem e body piercing em contextos juvenis [tese]. Lisboa: Instituto Universitário de Lisboa, Escola de Sociologia e Políticas Públicas; 2006.). Onde é possível “[...] buscar a felicidade individual em meio a fatos que ao serem estudados sem a ‘arrogância’ moderna, passaram a serem adjetivados como incompreensíveis e incontroláveis, não valendo a pena a reflexão e a construção de uma possibilidade de mudança” (Herold, 2009, pHerold C Jr. Os estudos sobre o corpo para além da apologia e da negação: contraposição crítica ao pós-modernismo. Educ Rev 2009;33:221-34.. 225).

O interesse pelo corpo, do movimento pós-moderno, demandou diferentes linhas de investigação. Herold (2009)Herold C Jr. Os estudos sobre o corpo para além da apologia e da negação: contraposição crítica ao pós-modernismo. Educ Rev 2009;33:221-34. demonstra que houve algo bastante positivo nesse deslocamento acadêmico para o corpo, pois foi um grande avanço em sua própria concepção, na medida em que o caráter histórico do cotidiano, das representações, dos usos e o valor da corporalidade serviu para ampliar nosso entendimento sobre o corpo. Diz ele:

Na história, o corpo passou a ser um objeto privilegiado nas várias obras que surgiram analisando a história cotidiana e dos grupos marginas da sociedade. Na filosofia, obras e teses foram elaboradas para evidenciar que o preconceito racionalista havia deixado os analistas cegos para a presença do corpo em múltiplas temáticas. Nas ciências humanas, a constituição mesma da possibilidade da vida em sociedade passou pelos laços que, para existirem e funcionarem na cotidianidade, são sustentados pelo corpo e pela corporeidade (Herold, 2009, pHerold C Jr. Os estudos sobre o corpo para além da apologia e da negação: contraposição crítica ao pós-modernismo. Educ Rev 2009;33:221-34.. 226).

Este autor afirma que essas formulações influenciaram a sociedade de tal modo que questões relacionadas à saúde, ao “bem-estar”, e à beleza passaram a ser objetivos a serem construídos como projeto de vida e dotados de significados prontos para a valorização por diversas classes sociais. O mito da “saúde perfeita” se torna uma referência a ser alcançado sob os mais diversos tratamentos e cuidados corporais.

Porém, nos cabe situar que estamos sobre a intensa crise do capital desde a década de 1970, que demanda novas formas de consumo e estabelece ao corpo a função crucial de acúmulo de capital. Ao ponto que a “indústria cultural” se torna um meio de cooptar as pessoas para o interesse do mercado do corpo sob a égide do discurso da saúde, bem-estar e qualidade de vida. Nesta direção, Baptista (2013)Baptista TJR. A educação do corpo na sociedade do capital. Curitiba: Appris; 2013. expõe uma investigação importante sobre esse problema, apontando que há um processo de controle e educação do corpo que se orienta pelos meios de comunicação, ao ponto de atender as necessidades do capital quando coloca o corpo nos padrões definidos a se adequar ao trabalho, por exemplo, o treinamento corporal que evita a degeneração orgânica. A mensuração do corpo acaba sendo uma estratégia de referência moldante das formas, volumes e outras grandezas fáceis de serem mensuradas, fiscalizadas e classificadas para os padrões exigidos pelo mercado.

Além disso, Herold (2009)Herold C Jr. Os estudos sobre o corpo para além da apologia e da negação: contraposição crítica ao pós-modernismo. Educ Rev 2009;33:221-34. nos corrobora que a condução das análises sobre o corpo, pelo movimento pós-moderno, apresenta-se tanto no aspecto da “valorização” quanto da sua “execração”. A desvalorização do corpo e da corporalidade caminhou tanto pelas formulações acadêmicas quanto pelas práticas sociais cotidianas, afirmando que “[...] o mote mais recorrente dessa desvalorização, extremamente coadunada com as ideias que advogam a existência de uma ‘sociedade de consumo’, é a limitação da materialidade corporal perante as tecnologias da informação” (Herold, 2009, pHerold C Jr. Os estudos sobre o corpo para além da apologia e da negação: contraposição crítica ao pós-modernismo. Educ Rev 2009;33:221-34.. 228).

Esta postulação de que o corpo impede um ideário transhumano se apresenta na crítica de Bonfim (2018)Bonfim LSV. A ontologia humana X ontologia das máquinas. In: Amorim R, Amorim D, Bonfim L, editores. Ecologia Transhumana: inteligência artificial e singularidade. Paulo Afonso: SABEH; 2018. p. 111-129. a respeito de uma ontologia das máquinas. Possivelmente isso siga os mesmos projetos que buscam a superação do corpo mediados pelas expressões artísticas e os movimentos de caráter religioso denunciados por Herold (2009)Herold C Jr. Os estudos sobre o corpo para além da apologia e da negação: contraposição crítica ao pós-modernismo. Educ Rev 2009;33:221-34., fato este, de pura ficção. E a maior constatação disso é que produzimos e nos reproduzimos por uma sociedade do trabalho. É neste sentido que reconhecemos a afirmação marxiana de que o ser humano é um ser que cria a si mesmo sócio-historicamente. E sobre as máquinas/tecnologias e por onde se pode chegar com a ciência da informação, ficamos com a análise de Bonfim (2018)Bonfim LSV. A ontologia humana X ontologia das máquinas. In: Amorim R, Amorim D, Bonfim L, editores. Ecologia Transhumana: inteligência artificial e singularidade. Paulo Afonso: SABEH; 2018. p. 111-129. em referência a Georg W. F. Hegel:

Por não ser/ter espírito a máquina é um ser em-si que não pode fazer o movimento de para-si, por isto não pode fazer história e logo ser senhora da história, ser a própria história. Ela também não pode ser o inabalável e irredutível fundamento e ponto de partida do agir de todos seu fim e sua meta, pois ela é meio, ferramenta para o ser humano, ainda que ele possa deliberar a ela o poder de deliberar sobre sua própria vida (Bonfim, 2018, pBonfim LSV. A ontologia humana X ontologia das máquinas. In: Amorim R, Amorim D, Bonfim L, editores. Ecologia Transhumana: inteligência artificial e singularidade. Paulo Afonso: SABEH; 2018. p. 111-129.. 116).

É por meio desse pensamento ficcionário que muitas teorias sobre o corpo se justificam. Nesse sentido, nossa investigação passa a identificar fundamentos na “sociologia do corpo” de Le Breton que expõem o corpo como parte de um aglomerado de fragmentos sociais, emergido como sujeitos no interior de circunstâncias imprevisíveis que não obedecem à legalidade histórica alguma e são descolados de uma realidade constituída por uma totalidade social enquanto um complexo de múltiplas determinações.

CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS À SOCIOLOGIA DO CORPO DE LE BRETON

Não há dúvidas que devemos aceitar, em termos, as noções sobre o corpo como um suporte de signos e/ou um significante à espera de decifrações, no entanto é preciso considerar que pelo corpo atravessa as mais diversas necessidades que compõem o “mundo dos homens” e que são determinantes para o desenvolvimento humano.

A corporalidade constitui-se, fundamentalmente, da resposta às necessidades pela atividade material vital que lhe corresponde. A sua materialização é expressa pela corporalidade que se desenvolve através da mediação do ser humano com a natureza a partir do trabalho. Neste sentido, trata-se, portanto, de se antecipar de expressões da cultura por uma investigação ontológico materialista (Lukács, 2012Lukács G. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo; 2012.).

Então, devemos considerar que a determinação predominante se faz na produção da vida. Mas esse produzir se dá numa dimensão histórica e social, pois segundo Marx e Engels (2007, pMarx K, Engels F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo; 2007.. 34), “[...] os homens têm história porque têm de produzir sua vida, e têm de fazê-lo de modo determinado: isto é dado por sua organização física, tanto quanto sua consciência”. Isto é,

[...] o modo pelo qual os homens produzem seus meios de vida depende, antes de tudo, da própria constituição dos meios de vida já encontrados e que eles têm de reproduzir. Esse modo de produção não deve ser considerado meramente sob o aspeto de ser a reprodução da existência física dos indivíduos. Ele é, muito mais, uma forma determinada de sua atividade, uma forma determinada de exteriorizar sua vida, um determinado modo de vida desses indivíduos. (Marx e Engels, 2007, pMarx K, Engels F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo; 2007.. 87).

Para Marx e Engels (2007)Marx K, Engels F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo; 2007., essa produção da vida se dá pelas relações na produção. Contudo, essa produção é realizada pelo ser humano mediante uma ação, uma finalidade posta pela consciência desse ser frente à natureza, compreendendo o trabalho como categoria fundante do ser social. Mas esta consciência não foi dada ao homem e não é uma condição a priori, pois se reconhece que o desenvolvimento do ser social parte do ser em geral (Lukács, 2012Lukács G. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo; 2012.).

Segundo Marx e Engels (2007, pMarx K, Engels F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo; 2007.. 94), “[...] não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência”. Isto significa que o ser social é o gênero humano desenvolvido historicamente, quando “[...] a produção das ideias, das representações, da consciência está em princípio diretamente entrelaçada com a atividade material e o intercâmbio material dos homens, linguagem da vida real” (Marx e Engels, 2007, pMarx K, Engels F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo; 2007.. 93).

As necessidades materiais dadas por nossa natureza são o que nos projeta para o simbólico. As ameaças sobre nossas vidas e o que a torna difícil são de nossa própria natureza. O poder do simbólico se dá pela fragilidade vital do homem. É como se o corpo precisasse de cultura, contudo, ele a antecede e encontra em sua própria natureza o substrato para se realizar como ser humano. Não como fantasma ou ficção, não como espectro de representações descolado do ser em geral. É assim que o corpo se mostra. É aqui onde a realidade de fato “é”, onde o ser social se concretiza. Por assim ser, o corpo se mostra como algo a ser investigado, pois demanda significados e relações que estão em nexo com a realidade. Mas o corpo é algo finito, no sentido de reconhecermos que “[...] a natureza tem sobre a cultura a vitória final, costumeiramente conhecida por morte” (Eagleton, 2011, pEagleton T. A ideia de cultura. São Paulo: Unesp; 2011.. 128).

As análises sobre um indivíduo em Le Breton (2018Le Breton D. Desaparecer de si: uma tentação contemporânea. Petrópolis: Vozes; 2018., 2007Le Breton D. Sociologia do corpo. 2. ed. Petrópolis: Vozes; 2007., 2003Le Breton D. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Campinas: Papirus; 2003.) situa-o descolado da materialidade social, encontrando nele apenas os sintomas de uma realidade social. Esta realidade, não teve transformações fundamentais em sua base material no último século, continuamos a nos reproduzir por meio do capitalismo. Trata-se do mesmo indivíduo ordenado pelas relações de produção capitalista, na qual a propriedade privada e o trabalho alienado impõem uma condição de vida empobrecida e estagnada pela insegurança no cumprimento de satisfação de necessidades básicas. O indivíduo desses textos de Le Breton parece ter superado o processo de alienação no qual estamos pendurado pela natureza do capital e seu domínio sobre as forças produtivas.

Para Le Breton (2018, pLe Breton D. Desaparecer de si: uma tentação contemporânea. Petrópolis: Vozes; 2018.. 7), o indivíduo “[...] já não dispõe à sua volta, como outrora, de um quadro político para se afirmar em uma luta comum, já não é mais apoiado por uma cultura de classe e por um destino compartilhado com outros”. Alienação, fetichismo, reificação, razão dialética, história etc. não integram parte da gramática do antropólogo francês ao explicar o indivíduo. O seu mundo parece disposto no presentismo contínuo e nos discursos semânticos que sobrecarregam a corporalidade, como se não houvesse uma história que nos outorga o cotidiano e nos legitima à construir o futuro.

Lembremos que Marx (2015)Marx K. Os manuscritos de Paris e os manuscritos econômicos e filosóficos de 1844. São Paulo: Expressão Popular; 2015. nos mostra quanto social são os sentidos, de quão socializada são as linguagens, como conferimos em Lukács (2012)Lukács G. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo; 2012., quando demonstra que o trabalho é a “forma originária” do ser social, na medida em que possibilita a passagem do ser orgânico para o ser social e permite o desenvolvimento de complexos pertencentes ao ser social que se baseiam no trabalho. Contudo, na concretude do corpo, sabor não se sente pela visão, nem odores se sentem por ouvidos. A evolução dos órgãos humanos foi capaz de deixá-los aptos a satisfazerem necessidades cada vez mais complexas.

Não obstante, Eagleton (2011)Eagleton T. A ideia de cultura. São Paulo: Unesp; 2011. aponta:

[...] a linguagem abre de um só golpe novas possibilidades de comunicação e novos modos de exploração. A transição do jardim tedioso e feliz da existência sensível para o estimulante e precário plano da vida semiótica foi uma felix culpa, um Pecado Original que foi um cair para cima em vez de para baixo. […] Nossa existência simbólica, abstraindo-nos das restrições sensoriais de nossos corpos, pode levar-nos a nos excedermos e nos destruirmos. Somente um animal linguístico poderia criar armas nucleares, e só um animal material poderia ser vulnerável a elas (Eagleton, 2011, pEagleton T. A ideia de cultura. São Paulo: Unesp; 2011.. 141, grifo nosso).

Este autor insiste em nos mostrar a relevância da cultura, mas ressalta que a cultura não se estende a tudo, pois a “[...] natureza não é apenas argila nas mãos da cultura, e, se fosse, as consequências políticas bem poderiam ser catastróficas” (Eagleton, 2011, pEagleton T. A ideia de cultura. São Paulo: Unesp; 2011.. 144). A cultura é uma necessidade, como um complexo social humano. Ela não deve suprimir as necessidades que nos fazem estarmos vivos para fazer história. Eagleton evoca Marx e Engels ao afirmar que “[...] se a natureza é moldada pela cultura, também é resistente a ela, e poder-se-ia esperar uma forte resistência política a um tal regime de negação de necessidades” (Eagleton, 2011, pEagleton T. A ideia de cultura. São Paulo: Unesp; 2011.. 144), nos alertando para o fato de que essas necessidades naturais, como o alimento, sono, abrigo, integridade física, satisfação sexual, ausência de dor, de sofrimento e de opressão, entre outras, “[...] são necessidades que temos apenas em virtude do tipo de corpo que somos, não importando a miríade de formas culturais que eles podem assumir – são critérios de bem-estar político, no sentido de que as sociedades que as frustram deveriam ser politicamente rechaçadas” (Eagleton, 2011, pEagleton T. A ideia de cultura. São Paulo: Unesp; 2011.. 144).

Como somos uma parte da natureza, Márkus (2015)Márkus G. Marxismo e Antropologia: o conceito de “essência humana” na filosofia de Marx. São Paulo: Expressão Popular; 2015., nos ajuda a entender que o ser humano é um ser sensorial, físico, natural, que surge por processos de natureza causais e não conscientes, o qual para sobreviver é preciso que esteja em constante metabolismo com a natureza através de sua atividade vital, o trabalho. Assentimos com o fato de que o corpo não deve se reduzir as suas esferas inorgânica e orgânica, nem tampouco aos entendimentos descolados da realidade objetiva e muito menos reduzir esta realidade aos “jogos de linguagem”, nem substituir sua história universal por histórias fragmentadas e demarcadas por um multiculturalismo (Frederico, 2016Frederico C. O multiculturalismo e a dialética do universal e do particular. Estud Av 2016;30(87):237-54. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142016.30870014.
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142016...
).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Procuramos neste trabalho identificar o corpo no campo de uma tradição que se apresenta como um rascunho que atua de modo complexo no mundo, ao tempo em que por ele é modificado. Destarte, uma “corporeidade” é notada no mundo dos homens, e por uma contradição nos parece que o corpo é o que menos se mostra. Esta foi nossa maior questão neste estudo.

A “sociologia do corpo” de Le Breton estabelece uma relação com a agenda pós-moderna ao fundamentá-la em “zonas de ruptura” que implicam o fim de antigas legitimidades que sustentam a estrutura social, influenciado pela ideia de cancelamento da totalidade social, negação do sujeito histórico e declínio das grandes narrativas, o que se reflete nos projetos corporais como expressões individuais.

Por fim, é importante destacar que a relação entre Le Breton e a agenda pós-moderna pode ser encarada como um objeto de debate e críticas, visto que alguns argumentam que sua abordagem não é completamente pós-moderna por manter elementos da modernidade, como a ênfase na individualidade e na subjetividade.

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    Ao proclamar em meados de 1960, a morte do homem e do sujeito, Michel Foucault anuncia a era do estruturalismo, um pensamento que nega o sujeito em detrimento da racionalidade burocrática. Assumindo, assim, que “[...] o homem é um puro ‘dado’ passivo de estruturas apriorísticas, que a liberdade é apenas uma ‘ilusão’, que o humanismo (os problemas da construção do homem por si mesmo) são um ‘falso problema’, uma mera ‘doxologia’” (Coutinho, 2010, pCoutinho CN. Estruturalismo e a miséria da razão. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular; 2010.. 74). Portanto, ao proclamar a “morte da ideologia”, decreta como irracionais, diz Carlos Nelson Coutinho, as questões do sentido da vida, da luta por uma nova sociedade, da liberdade humana real. Acompanha esse pensamento, o “homem estrutural” de Roland Barthes, o “os fins do homem” de Jacques Derrida, dentre outros. Coutinho (2010)Coutinho CN. Estruturalismo e a miséria da razão. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular; 2010. vai demonstrar, a partir de Marx e Lukács, o quanto de resquício há do problema da razão na filosofia burguesa ao se ater nos flancos da decadência ideológica burguesa.
  • FINANCIAMENTO

    O presente trabalho não contou com apoio financeiro de nenhuma natureza para sua realização.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    31 Ago 2023
  • Aceito
    23 Out 2023
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