Open-access A concepção de ensinar para professores de uma academia de ginástica de Santos - SP

The concept of teaching for Physical Education professionals at a gym in Santos-SP

La concepción de enseñar entre profesionales de Educación Física de un gimnasio en Santos-SP

RESUMO

O objetivo do estudo é compreender a concepção de ensinar para profissionais de Educação Física de uma academia de Santos-SP. A pesquisa, de natureza qualitativa, baseou-se em observação participante e entrevistas semiestruturadas com quatro professores. Os dados foram analisados por meio de categorias não apriorísticas, e o resultado foi a identificação de três concepções principais de ensino: ensinar como sociabilidade, processo formativo e produtividade. Nelas, embora predomine uma visão mais hierárquica do ensinar, coexistem perspectivas dialógicas - frequentemente limitadas pelas demandas mercadológicas. Esse cenário reforça a necessidade de transformações estruturais que priorizem a educação sobre a mercantilização.

Palavras-chave:
Educação Física; Docência; Academias de ginástica; Prática pedagógica

ABSTRACT

The aim of the study is to understand the conception of teaching for Physical Education professionals at a gym in Santos, São Paulo. The research, of a qualitative nature, was based on participant observation and semi-structured interviews with four teachers. Data were analyzed through non-a priori categories, revealing three main teaching conceptions: teaching as sociability, as a formative process, and as productivity. While a hierarchical view of teaching predominates, dialogical perspectives coexist - though often constrained by market demands. This scenario underscores the need for structural transformations that prioritize education over commodification.

Keywords:
Physical Education; Teaching; Gyms; Pedagogical practice

RESUMEN

El objetivo del estudio es comprender la concepción de enseñar entre profesionales de Educación Física de un gimnasio en Santos-SP. La investigación, de naturaleza cualitativa, se basó en observación participante y entrevistas semiestructuradas con cuatro profesores. Los datos fueron analizados mediante categorías no apriorísticas, y como resultado se identificaron tres concepciones principales de enseñanza: enseñar como sociabilidad, como proceso formativo y como productividad. En estas, aunque predomina una visión más jerárquica de la enseñanza, coexisten perspectivas dialógicas – frecuentemente limitadas por las demandas del mercado –. Este escenario refuerza la necesidad de transformaciones estructurales que prioricen la educación sobre la mercantilización.

Palabras-clave:
Educación Física; Docencia; Gimnasios; Práctica pedagógica

INTRODUÇÃO

Não é inédito e nem deve ser estranho pensar a área da Educação Física caracterizada por seu papel pedagógico, ou mais profundamente – nas palavras de Bracht (2000) – que a área deve ter como foco: “o movimentar-se humano e suas objetivações culturais na perspectiva de sua participação/contribuição para a educação do homem” (p. 61). Em ambientes como academias de ginástica, conforme evidenciam Furtado (2007), Silva (2023) e Silva et al. (2019), os professores de Educação Física podem subordinar o processo educativo às demandas mercadológicas. A partir dos postulados de Paulo Freire (2002), pode-se entender que, nessa circunstância, o professor desempenha sua docência ao encontro de um modelo de educação, que possui as seguintes premissas:

o educador é o que educa; os educandos, os que são educados;

o educador é o que sabe; os educandos, os que não sabem;

o educador é o que pensa; os educandos os pensados;

o educador é o que diz a palavra; os educandos, os escutam docilmente;

o educador é o que disciplina; os educandos, os disciplinados (Freire, 2002, p. 82).

Por outro lado, a Educação Libertadora diz respeito a um modelo que coloca professor e aluno como participantes e importantes no processo educativo. Nela, o conhecimento de ambos é compartilhado durante o processo de ensino-aprendizagem, configurando atos cognoscentes conjuntos. Vale dizer que a edificação dessas categorias obedece a princípios. Para compreensão do manuscrito em questão destacamos o princípio do inacabamento. Neste conceito, Freire (2002) entende os seres humanos como inacabados, ou seja, para ele educando e professor não são tábulas preenchidas ou vazias, e sim, pessoas com possibilidades de agir. Esses agentes possuem repertórios próprios, mas o conhecimento de um não limita o do outro, permitindo que alunos e professores transformem suas concepções de mundo em novas direções (Freire, 2002).

Em síntese, partindo das contribuições de Freire (2002), observa-se que a Educação Bancária e a Educação Transformadora configuram inclinações pedagógicas distintas: a primeira tende a se estruturar em relações hierárquicas de conhecimento, enquanto a segunda prioriza o diálogo como fundamento. Essas perspectivas, compreendidas como matizes teóricos e não modelos estáticos, oferecem subsídios relevantes para a análise das categorias desenvolvidas neste estudo. Além disso, a respeito das performances de um professor no espaço, convém salientar que não ser autoritário não garante que tal prática pedagógica tenha cunho emancipador. Como exemplificado no trabalho de Oliveira e Daolio (2014), é perceptível que posturas docentes não autoritárias, quando complacentes ou muito passivas, podem sufocar a autonomia dos alunos. A falta de diretividade1 no processo de ensino-aprendizagem cria “periferias do conhecimento” - em alusão ao termo “periferia da quadra” de Oliveira e Daolio (2014), utilizado no contexto de aulas de Educação Física Escolar.

Quando transposto para o contexto das academias, esse raciocínio pode se articular com as críticas de Furtado (2007) acerca da mercantilização das práticas corporais. Assim, torna-se plausível que, neste contexto, muitos professores atuem sem grandes questionamentos, adotando a sociabilidade e as promessas estéticas como subterfúgio para se manterem empregados na instituição como “professores-vendedores”. Essa perspectiva se alinha com Gomes et al. (2010), os quais apontam ser possível mercantilizar tanto as práticas corporais quanto o trabalho do professor de Educação Física em escala industrial.

Frente ao exposto, o objetivo deste estudo consiste em compreender a concepção de ensinar para os profissionais de Educação Física atuantes em uma academia de Santos (SP).

MÉTODO

Trata-se de um estudo descritivo, que, para Triviños (2008), tem como proposição descrever questões particulares de determinado contexto que visa explorar aspectos do fenômeno pesquisado. Utilizamos a abordagem qualitativa a partir da perspectiva de Minayo (1994), para a qual responde a questões muito particulares, se preocupando com um nível de realidade que não pode ser quantificado.

Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de São Paulo sob CAAE nº 59384222.6.0000.5505.

A pesquisa foi realizada na academia de ginástica “Boa Forma” (nome fictício) de Santos - SP, com autorização dos proprietários. Participaram do estudo quatro professores de Educação Física da academia que atuavam, à época, especificamente em espaços de ginástica da academia, onde se eram prescritos e realizados treinos individuais a partir dos seguintes critérios de inclusão:

  • Atuar apenas como profissional de Educação Física.

Já os critérios de não inclusão foram:

  • Atuar em outra profissão;

  • Trabalhar em sessão de aulas coletivas.

A não-inclusão de participantes que atuassem em outra profissão foi estabelecida como critério, pois entende-se que a dedicação a outro vínculo empregatício poderia levar o professor a tratar seu trabalho na academia de forma secundária. Paralelamente, optou-se por não considerar voluntários que ministram aulas coletivas na instituição, uma vez que esse ambiente apresenta particularidades significativas em relação ao contexto de atuação dos demais professores, configurando práticas profissionais distintas.2

A produção de dados ocorreu mediante observação participante e entrevistas semiestruturadas. Conforme Minayo (1994), a observação participante não significa apenas observar determinado contexto, exigindo a interpretação de seus significados. A guisa de Geertz (1989), trata-se de capturar o não dito. Já para Triviños (2008), a entrevista semiestruturada é uma conversa com finalidade. Segundo o autor, esse tipo de entrevista é fundamental na pesquisa qualitativa, pois permite explorar tanto questões gerais quanto específicas relacionadas ao estudo. O roteiro de observação esteve circunscrito à dinâmica da aula (conteúdo, método e estratégia dos professores) e às formas de organização do tempo e espaço da mesma. A entrevista possuiu roteiro que incluía questões gerais (idade, sexo e experiência profissional) e uma questão específica sobre a concepção de ensinar dos voluntários.3 Trata-se de um recorte dos principais dados de uma dissertação de mestrado defendida em 2024.

Todas as entrevistas foram gravadas mediante consentimento dos participantes e realizadas em ambiente reservado na universidade, situado a poucos metros da academia. Os áudios foram transcritos para um arquivo eletrônico no computador pessoal dos pesquisadores para posterior análise. As entrevistas foram realizadas nos meses de janeiro e fevereiro de 2023 e tiveram uma duração média de 35 minutos.

A análise das respostas dos professores foi feita a partir de categorias não apriorísticas, emergindo dos dados coletados na observação e na entrevista. Segundo Campos (2004), essas categorias surgem do contexto das respostas, sendo definidas por repetição de conteúdos comuns ou por relevância implícita, quando um tema é importante, mas não se repete com frequência. Após a definição das categorias, foi realizada uma triangulação entre os dados, a literatura sobre o tema e a vivência do pesquisador, conforme Triviños (2008), que destaca a importância da imersão do pesquisador no campo. Alguns trechos do diário de campo e da entrevista, embora não pertencentes a uma categoria específica, foram usados para ilustrar os pormenores da pesquisa.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A academia “Boa Forma” e os profissionais de Educação Física

A academia busca se “diferenciar das demais”, conforme destacado pelo coordenador, oferecendo serviços variados, desde exclusivos até generalistas. Para esta pesquisa, destacam-se o Atendimento Personalizado (AP) e a Musculação Plus (MP). O AP permite ao aluno treinar com um personal trainer subcontratado pela instituição. Silva (2023) associa esse modelo a uma “quaternização” do trabalho docente nas academias, marcada pela precarização. Bossle (2008) ressalta que se espera do personal trainer performances de cuidado e atenção, pressupondo aulas mais estáveis. No entanto, os professores da academia precisam conciliar a exclusividade do serviço com o regime produtivista da instituição, muitas vezes dividindo aparelhos com profissionais até de outros serviços ou ministrando aulas personalizadas para três alunos simultaneamente.

Por outro lado, a MP apresenta características distintas do AP, embora compartilhe possibilidades pedagógicas. Nesse serviço, cada professor acompanha pelo menos sete alunos, diferentemente do AP, que envolve seleção diária de exercícios, regulagem de pesos e monitoramento constante. Na MP, o treino é elaborado no sistema para impressão em papel, com exercícios e repetições fixas, válidas por cerca de dois meses. O professor regula ou entrega pesos apenas em alguns momentos e para alguns alunos, focando mais na orientação da execução, quando solicitada. Os treinos são preparados pelos professores em momentos de menor circulação de alunos ou fora de seu horário de trabalho na academia. Assim, a precarização também se manifesta nesse serviço, mas por vias distintas, aproximando-se do modelo das academias low cost ou academias de rede. Nesse modelo, há um investimento significativo em equipamentos, em detrimento ao número de professores e de sua disponibilidade para os alunos. Em relação aos profissionais de Educação Física participantes do estudo, o Quadro 1 mostra que são jovens (entre 22 e 25 anos) e com experiência na área do fitness.

Quadro 1
Perfil dos participantes.

A faixa etária e a experiência profissional estão em consonância com Broch et al. (2021), que pesquisaram a satisfação e insatisfação de profissionais de Educação Física atuantes em academias de ginástica de Maringá-PR, bem como em Sousa et al. (2020), que investigaram os modos como os profissionais de Educação Física articulam suas experiências profissionais às demais experiências em seu cotidiano.

Concepção de ensinar dos profissionais de Educação Física

O Quadro 2 revela que as respostas foram interpretadas em três categorias: ensinar como sociabilidade, ensinar como processo formativo e ensinar como produtividade. Vale ressaltar que, em quase todas as entrevistas, houve certa surpresa com a pergunta, como algo que não haviam refletido antes.

Quadro 2
Concepções de ensino.

A categoria “Sociabilidade” contemplou perspectivas de professores que atuam nos dois serviços e associaram o ensinar nas academias à coletividade, ou seja, à promoção de maior interação entre aluno e professor, visando ao compartilhamento de vivências. A partir do depoimento dos entrevistados, esse compartilhamento pode ter enfoques mais mercadológicos ou mais orgânicos. O primeiro tem relação com a própria cultura administrativa da academia, ou melhor, das academias, se considerarmos a tendência apontada por Roble et al. (2015). Para os autores, a instituição academia tem se apresentado como um ambiente de entretenimento e conversação. A partir disso, é possível promover sensações como produto por meio dessa sociabilidade entre os frequentadores.

Esse recorte dos autores relaciona-se com o depoimento de Ana, de tal forma que ela considera essa forma de pensar como uma alternativa à perspectiva tradicional.

“Aí você vê que não é só a questão de ensinar e pronto, sabe? Aí você tem aquela questão do social, da conversa, daquele desabafo do dia a dia” (Ana).

Ainda que contestadora em relação aos paradigmas produtivistas adotados na academia, essa visão não necessariamente se relaciona com uma concepção educativa alinhada ao preconizado por Freire (2002). A partir de uma perspectiva mais generalista, pode-se pensar como humanizadora a possibilidade de um aprofundamento das relações interpessoais entre alunos e professores. No entanto, ao pensarmos no referencial freireano, corre-se o risco dessa humanização ser desvinculada de uma prática pedagógica reflexiva e compartilhada entre aluno e professor. Assim, esgotam-se as possibilidades de transformação da realidade e a ação pedagógica pode se reduzir ao entretenimento.

Nathan transfere parte da perspectiva de Ana para a instituição da academia quando considera importante que a relação amigável entre aluno e professor deva ir além da própria aula e se estender para todo o estabelecimento. Ou seja, para ele, é importante fomentar “redes de amizade” no ambiente, para que os alunos interajam, desfrutem da sociabilidade e não continuem ingenuamente matriculados. O ambiente mais despojado, de fato, pode tornar a prática do exercício prazerosa para muitos, mas, por si só, não é capaz de gerar reflexões críticas ou um confronto de conhecimentos, como preconizam Rodrigues e Silva (2008) para uma ação didática em Educação Física. Assim, podemos identificar indícios de que a não diretividade de Snyders (1978), presente nas aulas de Educação Física Escolar estudadas por Oliveira e Daolio (2014) pode existir quando observamos as academias de ginástica a partir de determinados ângulos.

Por outro lado, também foi possível conectar a compreensão de sociabilidade à linha de Daolio (1995), quando enfatiza o fato de professores e alunos compartilharem o mesmo tempo e espaço cultural. Assim, professores de Educação Física têm a potencialidade de ampliar ou limitar a cultura do corpo a partir de sua intervenção e do (re)conhecimento do Outro. Isso é bem nítido no depoimento de Caio. No caso de Ana, ainda que isso não apareça diretamente no discurso, o aguçamento da sociabilidade com determinada aluna a fez conhecer melhor seu repertório corporal, culminando na intensificação e complexificação dos exercícios trabalhados. Ao que parece, certas relações pedagógicas podem ser fortificadas a partir do momento em que se estabelece um vínculo amistoso entre os profissionais e frequentadores, entretanto, não é consenso.

Em relação à categoria “Ensinar como processo formativo”, percebeu-se que os funcionários da academia podem compreender o local como um espaço para “formações”. No caso de Nathan, formar se relaciona a mostrar caminhos relativos à prática corporal e à vida. Para Caio, essa ideia de dualidade também se apresenta quando o profissional forma caminhos dentro e fora da academia. Leandro não menciona diretamente a palavra “caminho”, mas, em seu discurso, fala da importância de mostrar o porquê das coisas e as associa a conhecimentos escolares.

Ainda que apresentem um verniz de horizontalidade, é intrigante que o caminho a ser mostrado se constitui, em grande parte, na aquisição de saberes que têm o potencial de causar mudanças positivas em relação aos marcadores biológicos que envolvem o corpo dos sujeitos. Inclusive, alguns entrevistados pontuam a capacidade desse processo de transformar vidas. Essa concepção parece corroborar a perspectiva do imaginário social sobre o personal trainer identificada por Bossle (2008): um formador de determinadas condutas na seara da saúde – fartamente recheadas por um saber biomédico hegemônico. Assim, de forma similar à primeira categoria, é necessário atentar-se às nuances do discurso, mesmo que a semântica “formações” se associe, de forma geral, a uma perspectiva dialógica.

A partir das respostas dos voluntários, entendemos que as formações também podem ser utilizadas como produto pela academia e pelos próprios professores. No escopo do estudo, foi perceptível certa “saudabilidade da estética”, para usar um termo de Silva e Ferreira (2020), que aparece como um produto alternativo/complementar ao primeiro, conforme os objetivos do aluno, de forma a oferecer um produto mais amplo. Neste trabalho, era notável que o ideal de saúde se sobrepunha aos anseios estéticos para alunos e professores. Como a academia se encontra localizada num bairro de classe média em ascensão no município, esse achado não surpreende, pois já se percebe em Silva e Ferreira (2018) como esse perfil de aluno tende a controlar ao máximo as dores e outras intempéries que podem incidir sobre o corpo.

Adiante, assim como nos casos dos personal trainers estudados por Bossle e Fraga (2011), aqui também há uma iniciativa e necessidade de reforçar o poderio e os impactos de seu produto como uma forma de propaganda para os alunos, comportamento visto tanto em professores do AP quanto do MP. Portanto, mesmo mentalizando um processo formativo, em determinados momentos, o professor pode se ver obrigado a impor certa autoridade pedagógica, convergindo com uma tradição pedagógica hierárquica (Freire, 2002), sendo bem-vista pela academia inclusive.

Agora, argumenta-se em prol de uma formação relacionada a uma concepção dialógica de educação, nos termos de Freire (2002). Tal perspectiva encontra abrigo em outros autores da Educação Física que pensam menos o profissional como um simples “entregador de saúde, esporte e diversão” e mais como um ente pedagógico capaz de mediar a construção de autonomia por meio das práticas corporais, não só fora das academias de ginástica, mas principalmente dentro delas, a exemplo de Baptista (2006), Silva e Ferreira (2020) e Assis et al. (2022).

No depoimento de Caio, é perceptível um diálogo com esse tipo de formação quando, em dado momento da entrevista, ele menciona que o ensinar se dá por meio de “trazer consciência corporal”, mostrando caminhos para que seus alunos conheçam o próprio corpo. Ao invés de impor ou reproduzir os imperativos de saúde e estética trazidos, não raramente, pelos alunos, não seria papel da Educação Física propiciar ferramentas corporais para que os alunos conheçam e escolham se, e de que forma, querem aproximar sua cultura corporal desses imperativos?

A respeito do questionamento acima, Nathan parece gravitar em uma resposta: embora seu discurso, em maior grau, relacione o ensinar à formação de um corpo “saudável”, é plausível compreender que, em algum grau de consciência, ele entenda que essa saúde é passível de produção de sentido. Isso porque, para esse voluntário, o processo de ensino varia conforme o perfil:

“As formas de abordar são diferentes, a didática é diferente, mas o sentido por trás delas é o que importa, que é a parte do ensinar” (Nathan).

Outra possibilidade formativa que vai ao encontro do estudo é percebida no discurso de Leandro. Em sua prática pedagógica era perceptível que ele tinha uma inclinação a trabalhar práticas corporais não tão comuns ao conteúdo das academias de ginástica com os alunos, como fundamentos de esportes coletivos e a dança, em meio aos exercícios de força. Essa abordagem de compartilhar práticas externas em academias remete a função de intermediário cultural do professor de Educação Física proferida por Daolio (1995). No entanto, destaca-se que o profissional parecia ter mais possibilidade de ter essa conduta por estar no AP, onde a pressão mercadológica é menor de forma a aumentar o tempo com o aluno. Ouvi de alguns alunos que, antes dele, nunca haviam chutado uma bola, mas com suas aulas, tiveram uma oportunidade valiosa de aprender. Com que frequência esse desenvolvimento aconteceria se ele atuasse unicamente no serviço mais lotado? Vale lembrar que Ana, em termos de discurso, foi a única professora que se distanciou enfaticamente de um viés formativo horizontal, talvez não coincidentemente a única professora do estudo atuante em MP.

Já na categoria “Produtividade” torna-se fundamental resgatar o depoimento de Ana quando associa de forma pejorativa o “só ensinar” como o ato de “passar treino”, conduta que ela tem discordâncias, mas que é incentivada pela academia. Para ela, a gestão tem uma visão que o serviço do MP atende uma grande quantidade de alunos. Assim, é interessante que eles não ocupem muito espaço na academia. Nesta linha, instruir os alunos para que não tenham problemas em relação a suas práticas corporais e terminar seu treino rapidamente, parece contribuir para rotacionar a engrenagem da academia. Alguns alunos que ela atendia não se adequaram a essa lógica e preferiam permanecer na instituição para desfrutar da sociabilidade oferecida, resistindo assim à mercantilização das relações. Porém, no que pode contemplar a observação, não necessariamente isso culminou em um aprendizado crítico relativo às práticas corporais. Leandro, em sua resposta, conseguiu relacionar seu discurso à categoria, seguindo uma linha argumentativa similar à apresentada por Ana. Na perspectiva do voluntário, o ensinar torna-se produtivista quando segue à risca a recomendação da academia de “rodar” a sala para se mostrar prestativo aos alunos.

A criticidade de Ana diverge do referencial do estudo por motivos já descritos na primeira categoria. No caso de Leandro, é curioso que o voluntário vê como positivo os esforços da administração da academia - e dos professores em certa medida - para incitar uma performance mais próxima de um “personal” do que de um “instrutor”. Considerando a saúde ocupacional dos professores, essa perspectiva é incoerente, já que o serviço de AP exige muito mais atenção do profissional e exclusividade ao aluno, o que não é favorável ao serviço no qual Ana trabalha.

Não se sabe ao certo se Leandro fez um discurso mais contido sobre esse tópico por ser seu local de trabalho ou se para ele essa perspectiva significou um amadurecimento profissional, haja vista que ele comenta a importância dos treinamentos profissionais fornecidos para sua carreira em outro momento da entrevista. De qualquer forma, consideramos que não questionar essa situação faz com que se repense uma amplitude total na concepção de ensinar – se é que existe uma concepção de ensinar plenamente virtuosa. Por fim, percebemos que a possibilidade de concepção dialógica do ensinar nas academias de ginástica possui entrelinhas complexas, com enlaces com a formação, condições de trabalho e experiência profissional.

CONCLUSÃO

O ensinar para os voluntários do estudo está vinculado aos conceitos de formação, sociabilidade e produtividade. Embora a semântica dos termos, essas categorias não remetem necessariamente a performances docentes dialógicas, observou-se que elas podem, eventualmente, esbarrar em contradições.

Vale ponderar que parte significativa das contradições identificadas se associa à demanda produtivista da academia - quando não às próprias dinâmicas mercantis do capitalismo. Contudo, “entre o formar e o passar treino”, foi possível perceber discursos e ações que se aproximam do idealizado pelos professores e possibilitaram construções alinhadas ao referencial teórico do estudo. Formação e relações amigáveis entre alunos e professores podem mobilizar percepções mais dialógicas do ensinar no cenário das academias, mas não as garantem por si só. Diante do exposto, é pertinente prosseguir com as reflexões sobre as condições de trabalho docente nas academias, as quais, conforme os dados indicam, não parecem acompanhar as transformações contemporâneas do universo fitness. Não obstante, mais estudos que ponderem a temática estudada, juntamente com os elementos mostrados acima, parecem ser caminhos para compreendê-la de forma prudente, o que pode desobstruir lacunas e abrir espaço para futuras proposições.

  • 1
    Segundo Snyders (1978), a abordagem não diretiva trouxe contribuições importantes para questionar o caráter autoritário presente na pedagogia tradicional. Contudo, a redução do papel do professor pode, de maneira paradoxal, prejudicar a autonomia e a liberdade dos alunos. Isso ocorre porque a falta de orientação frente às diversidades e capacidades de um grupo específico tende a torná-lo difuso, permitindo que as individualidades prevaleçam de forma excessiva. Essa dinâmica pode, por sua vez, reforçar padrões excludentes já consolidados pelo sistema capitalista.
  • 2
    A discussão sobre tipologias das ginásticas de academia é pertinente, como mostra Flores (2015). Aqui, constatamos que os professores sintetizam elementos ligados a diversas práticas/modalidades (step, musculação, aeróbica) em sua atuação individual, ainda que em proporções distintas nos serviços da academia. Por ora, optamos por não investir neste debate, mas sim priorizar como os professores compreendem a circulação desses saberes — eixo central de nossa investigação.
  • 3
    A entrevista ainda continha mais uma questão específica relacionada às possibilidades de ensino dos voluntários. Entretanto, por limites impostos a um texto dessa natureza, não foi possível maiores acréscimos.
  • FINANCIAMENTO
    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
  • DISPONIBILIDADE DE DADOS
    Não se aplica.

REFERÊNCIAS

  • Assis MDP, Modesto GC, Marques DAP, Ayoub E, Toledo E. Educação somática em academias de ginástica: por uma concepção sensível de corpo e práticas corporais. In: Silva AC, editor. Corpo e práticas corporais em academias de ginástica. Curitiba: Bagai; 2022. p. 176-91.
  • Baptista TJR. A autoconsciência do corpo na academia de ginástica. EVS. 2006;33(5):773-7.
  • Bossle CB, Fraga AB. O personal trainer na perspectiva do marketing. Rev Bras Ciênc Esporte. 2011;33(1):149-62. http://doi.org/10.1590/S0101-32892011000100010
    » http://doi.org/10.1590/S0101-32892011000100010
  • Bossle CB. O personal trainer e o cuidado de si: uma perspectiva de mediação profissional. Movimento. 2008;14(1):187-98. http://doi.org/10.22456/1982-8918.3764
    » http://doi.org/10.22456/1982-8918.3764
  • Bracht V. Educação física & ciência: cenas de um casamento (in)feliz. Rev Bras Ciênc Esporte. 2000;22(1):53-63.
  • Broch C, Backes AF, Lopes RG, Fiori ACF, Breschiliare FCT. Satisfação e insatisfação no trabalho de profissionais em Educação Física que atuam em academias de ginástica. Rev Bras Ciênc Esporte. 2021;43:e006421. http://doi.org/10.1590/rbce.43.e006421
    » http://doi.org/10.1590/rbce.43.e006421
  • Campos CJG. Método de análise de conteúdo: ferramenta para a análise de dados qualitativos no campo da saúde. Rev Bras Enferm. 2004;57(5):611-4. http://doi.org/10.1590/S0034-71672004000500019 PMid:15997809.
    » http://doi.org/10.1590/S0034-71672004000500019
  • Daolio J. Da cultura do corpo. Campinas: Papirus Editora; 1995.
  • Flores AA. Ginástica em academia: compreensões sobre o planejamento de aulas em Salvador [dissertação]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2015.
  • Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2002.
  • Furtado RP. O não lugar do professor de Educação Física em academias de ginástica [dissertação]. Goiânia: Universidade Federal de Goiás; 2007. 187 p.
  • Geertz C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; 1989.
  • Gomes IR, Chagas RDA, Mascarenhas F. A indústria do Fitness, a mercantilização das práticas corporais e o trabalho do professor de Educação Física: o caso Body Systems. Movimento. 2010;16(4):169-89. http://doi.org/10.22456/1982-8918.14561
    » http://doi.org/10.22456/1982-8918.14561
  • Minayo MCS, editor. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes; 1994.
  • Oliveira RC, Daolio J. Educação física, prática pedagógica e não-diretividade: a produção de uma periferia da quadra. Educ Rev. 2014;30(2):71-94. http://doi.org/10.1590/S0102-46982014000200004
    » http://doi.org/10.1590/S0102-46982014000200004
  • Roble OJ, Rodrigues LS, Lima KA. Lógica das sensações na atividade física: uma análise dos discursos de academias de ginástica brasileiras e suas projeções na sociedade contemporânea. Saude Soc. 2015;24(1):337-49. http://doi.org/10.1590/S0104-12902015000100026
    » http://doi.org/10.1590/S0104-12902015000100026
  • Rodrigues Jr JC, Silva CL. A significação nas aulas de Educação Física: encontro e confronto dos diferentes “subúrbios” de conhecimento. Pro-Posições. 2008;19(1):159-72. http://doi.org/10.1590/S0103-73072008000100017
    » http://doi.org/10.1590/S0103-73072008000100017
  • Silva AC, Ferreira J. Corpo “educado”: atuação pedagógica de professores de Educação Física em academias de ginástica. Motrivivência. 2020;32(63):1-16. http://doi.org/10.5007/2175-8042.2020e76554
    » http://doi.org/10.5007/2175-8042.2020e76554
  • Silva AC, Ferreira J. Entre remediar e prevenir: uma etnografia sobre o manejo da dor e dos “limites” corporais em academias de ginástica do Rio de Janeiro. Pensar Prát. 2018;21(1):107-18. http://doi.org/10.5216/rpp.v21i1.39631
    » http://doi.org/10.5216/rpp.v21i1.39631
  • Silva AC, Freitas DC, Lüdorf SMA. Profissionais de Educação Física de academias de ginástica do Rio de Janeiro e a pluralidade de concepções de corpo. Rev Bras Ciênc Esporte. 2019;41(1):102-8. http://doi.org/10.1016/j.rbce.2018.04.002
    » http://doi.org/10.1016/j.rbce.2018.04.002
  • Silva NCM. Transformações na indústria do fitness e o trabalho de professores de educação física [dissertação]. Goiânia: Universidade Federal de Goiás; 2023. 100 p.
  • Snyders G. Para onde vão as pedagogias não-directivas? 2. ed. Lisboa: Moraes Editores; 1978.
  • Sousa SR, Macedo CG, Mélo RDS. Competências ostensivas: o cotidiano de professores de educação física atuantes em academias de musculação. Movimento. 2020;26:e26057. http://doi.org/10.22456/1982-8918.100297
    » http://doi.org/10.22456/1982-8918.100297
  • Triviños ANS. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas; 2008.

Editado por

  • Editores:
    Christiane Garcia Macedo, Fernando Resende Cavalcante, Jhennifer Luiza Machado Pimenta.

Disponibilidade de dados

Não se aplica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    27 Mar 2025
  • Aceito
    03 Ago 2025
Creative Common - by 4.0
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/), que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.
location_on
Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte (CBCE) Rua Benjamin Constant, 1286, Bairro Aparecida, CEP: 38400-678 - Uberlândia - MG - Brazil
E-mail: rbceonline@gmail.com
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Reportar erro