Acessibilidade / Reportar erro

As práticas corporais e a educação do corpo indígena: a contribuição do esporte nos jogos dos povos indígenas

Body practices and education of the indian body: the contribution of sport to indian games

Las prácticas corporales y la educación del cuerpo indígena: la contribución del deporte en los juegos de los pueblos indígenas

Resumos

No presente estudo procurou-se analisar a relação entre o esporte e a educação do corpo indígena no contexto dos Jogos dos Povos Indígenas. O objetivo foi o de entender o significado do evento em relação ao sentido de educação do corpo indígena. Para tanto, realizou-se uma investigação com base nos pressupostos metodológicos das Ciências Sociais, combinando-se consulta a documentos com a o trabalho de campo, que ocorreu durante a IX edição dos Jogos dos Povos Indígenas. Nesse ínterim, a reflexão e a interpretação mostraram que o evento adquire conotação de espetáculo e que práticas corporais tradicionais assumem características do esporte de alto rendimento, podendo contribuir para o surgimento de outro habitus e modificar a relação dos indígenas com o uso de seu corpo.

Corpo; jogos; indígenas


This paper analyzes the relation between sports and the education of the Indian body in the context of the Indian games. The aim of the paper was to understand the meaning of this event in relation to the sense of education of the Indian body. For that matter, it was done an investigation based in the tenet methodological of the Social Science, combining the research in documents with the accomplishment of the work field, which happened during the 9th edition of the Indian games. In this case, the analysis and the comprehension show that the game turns out to be a show and the traditional body practice, a sport performance that can also contribute to the outbreak of another habitus and change the relation between the Indians and the use of their bodies.

Body; games; indians


El trabajo presenta un análisis sobre la relación del deporte con la educación del cuerpo indígena en los Juegos de los Pueblos Indígenas. El objetivo fue comprender el sentido del evento en relación a la educación del cuerpo indígena. La investigación tuvo por base los presupuestos metodológicos de las Ciencias Sociales, con la consulta a documentos y la realización de trabajo de campo durante la novena Edición de los Juegos de los Pueblos Indígenas. La reflexión e la interpretación muestran que el evento tiene una connotación de espectáculo y que las prácticas corporales tradicionales son cambiadas, produciendo otro habitus y modificando la relación de los indígenas con sus cuerpos.

Cuerpo; juegos; indígenas


ARTIGOS ORIGINAIS

As práticas corporais e a educação do corpo indígena: a contribuição do esporte nos jogos dos povos indígenas* Endereço para correspondência: Arthur José Medeiros de Almeida SQN 303, Bloco F, apt. 315, Asa Norte Brasília-DF CEP: 70.735-060

Body practices and education of the indian body: the contribution of sport to indian games

Las prácticas corporales y la educación del cuerpo indígena: la contribución del deporte en los juegos de los pueblos indígenas

Ms. Arthur José Medeiros de AlmeidaI; Dra. Dulce Maria Filgueira de AlmeidaII; Dra. Beleni Salete GrandoIII

IMestre em Educação Física pela UnB e Doutorando em Sociologia pela Universidade de Brasília. (Distrito Federal - Brasil). E-mail: arthurjma@ig.com.br

IIDoutora em Sociologia pela UnB e Pós-doutorado em Sociologia pela Universidade de Salamanca-Espanha. Professora Associada da Universidade de Brasília. (Distrito Federal - Brasil). E-mail: dulce@unb.br

IIIDoutora em Educação pela UFSC e Docente do Mestrado em Educação e do Departamento de Educação Física da Universidade do Estado de Mato Grosso (Mato Grosso - Brasil). E-mail: beleni.grando@gmail.com

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Arthur José Medeiros de Almeida SQN 303, Bloco F, apt. 315, Asa Norte Brasília-DF CEP: 70.735-060

RESUMO

No presente estudo procurou-se analisar a relação entre o esporte e a educação do corpo indígena no contexto dos Jogos dos Povos Indígenas. O objetivo foi o de entender o significado do evento em relação ao sentido de educação do corpo indígena. Para tanto, realizou-se uma investigação com base nos pressupostos metodológicos das Ciências Sociais, combinando-se consulta a documentos com a o trabalho de campo, que ocorreu durante a IX edição dos Jogos dos Povos Indígenas. Nesse ínterim, a reflexão e a interpretação mostraram que o evento adquire conotação de espetáculo e que práticas corporais tradicionais assumem características do esporte de alto rendimento, podendo contribuir para o surgimento de outro habitus e modificar a relação dos indígenas com o uso de seu corpo.

Palavras-chave: Corpo; jogos; indígenas.

ABSTRACT

This paper analyzes the relation between sports and the education of the Indian body in the context of the Indian games. The aim of the paper was to understand the meaning of this event in relation to the sense of education of the Indian body. For that matter, it was done an investigation based in the tenet methodological of the Social Science, combining the research in documents with the accomplishment of the work field, which happened during the 9th edition of the Indian games. In this case, the analysis and the comprehension show that the game turns out to be a show and the traditional body practice, a sport performance that can also contribute to the outbreak of another habitus and change the relation between the Indians and the use of their bodies.

Keywords: Body; games; indians.

RESUMEN

El trabajo presenta un análisis sobre la relación del deporte con la educación del cuerpo indígena en los Juegos de los Pueblos Indígenas. El objetivo fue comprender el sentido del evento en relación a la educación del cuerpo indígena. La investigación tuvo por base los presupuestos metodológicos de las Ciencias Sociales, con la consulta a documentos y la realización de trabajo de campo durante la novena Edición de los Juegos de los Pueblos Indígenas. La reflexión e la interpretación muestran que el evento tiene una connotación de espectáculo y que las prácticas corporales tradicionales son cambiadas, produciendo otro habitus y modificando la relación de los indígenas con sus cuerpos.

Palabras clave: Cuerpo; juegos; indígenas.

INTRODUÇÃO

O corpo, no processo histórico de constituição da ciência, vem adquirindo lugar de destaque como objeto de investigação de distintos campos disciplinares. Dentre estes se destacam, particularmente, a Educação Física, onde o corpo se constitui elemento central da área e as Ciências Sociais, por ser considerado um objeto tradicional de investigação. Na contemporaneidade, o corpo vem sendo estudado de modo interdisciplinar, porém vale ressaltar que esses campos ao compartilharem o corpo e as práticas a ele relacionadas, como objeto de estudo, apresentam distintas perspectivas de análise. Observa-se a fundamentação em diferentes métodos e técnicas de pesquisa, além de categorias e modelos explicativos, com base em conceitos que emanam de tradições teóricas distintas e, em algum aspecto, complementares.

No sentido de contribuir com a discussão em tela apresenta-se uma análise sobre a relação esporte e a educação do corpo indígena tendo a compreensão de que o objeto de estudo perpassa por diferentes campos disciplinares. Pensar a corporalidade traz o entendimento de que as semelhanças ou diferenças físicas são frutos de um conjunto de significados que cada sociedade inscreve no corpo, ao longo do tempo, "por ser ele o meio de contato primário do indivíduo com o ambiente que o cerca" (DAÓLIO, 1995, p. 39). Na medida em que as diferentes sociedades se expressam por meio dos corpos de seus membros, esses são vistos como uma construção cultural, pois onde se manifestam as regras das relações humanas, pode-se reconhecer uma cultura. Os indivíduos, desde o nascimento, apreendem valores, normas e costumes sociais por meio dos seus corpos, ou seja, um conteúdo cultural é incorporado ao seu conjunto de expressões. A cultura ordena o meio a partir de regras; no caso do corpo, seu controle torna-se basilar para o desenvolvimento de padrões culturais específicos.

As práticas corporais - jogos e brincadeiras - são entendidas como elementos da cultura corporal de cada etnia indígena, portanto assumem sentidos e significados de acordo com o contexto social no qual são vivenciadas. A análise que se segue parte do cruzamento das práticas corporais indígenas, em seu conjunto - as quais foram apresentadas na IX edição dos Jogos dos Povos Indígenas - com elementos que caracterizam o esporte em sua dimensão de alto rendimento, procurando observar sua influência para a educação do corpo indígena.

Para tanto, realizou-se uma investigação, com base nos pressupostos metodológicos das Ciências Sociais, por meio de estratégias de pesquisa definidas por fases distintas. Nessa perspectiva, a análise é dimensionada no contexto de uma teia de significados onde as pessoas participantes deste evento são sujeitos sociais que estão imersos em uma dinâmica cultural da qual faz parte um conjunto de representações. As ações destes indivíduos devem ser analisadas em relação a essas representações que, por sua vez, são em parte determinadas por um contexto macrossocial. Essas práticas, por serem expressões ou derivações de valores coletivos, possuem uma lógica que orienta seu funcionamento e produz comportamentos, aos quais cabe à ciência desvelar.

Com esse intuito, foi realizado inicialmente um levantamento de bibliografia, com a finalidade de verificar o estado da arte do tema, identificando pesquisadores e pesquisas a ele pertinente. Nesse momento, que serve de pressuposto para elaboração da metodologia, foi consultado um referencial teórico que abarca, em seu conjunto, autores das Ciências Sociais que permitem um diálogo com a área da Educação Física. Essa fase consistiu em fazer um levantamento detalhado de livros, artigos e publicações que fornecessem subsídios teóricos em relação ao objeto. Portanto, o primeiro momento do estudo consistiu em tematizar e situar as práticas corporais apresentadas nos Jogos dos Povos Indígenas, como objeto de estudo num quadro conceitual.

No momento seguinte uma consulta a documentos se fez pertinente e foi realizada em Brasília/DF, durante o período compreendido entre abril de 2007 e maio de 2008. Nessa etapa, foram pesquisados os bancos de dados da Fundação Nacional do Índio (Funai), na Secretaria Nacional de Desenvolvimento do Esporte e Lazer (SNDEL), na Secretaria Nacional de Esporte Educacional (SNEED) e na Assessoria de Comunicação (Ascon), estas últimas do Ministério do Esporte e, por fim, na Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) do Ministério da Educação.

O trabalho de campo1 1 Participamos dos trabalhos da Subcomissão de Avaliação e Documentação, realizando entrevistas com autoridades presentes, entre elas: o Ministro do Esporte, o Secretário Nacional de Identidade e Diversidade Cultural e os idealizadores do evento. A subcomissão, da qual faziam parte pouco mais de 25 pessoas, elaborou um questionário com catorze perguntas relacionadas com as características de cada etnia, com as práticas corporais tradicionais, com os esportes praticados por elas e com a organização do evento. As entrevistas foram concedidas por lideranças, esportiva e cultural, das etnias participantes, "atletas" masculinos e femininos e voluntários. O conteúdo dessas entrevistas foi registrado no diário de campo. propriamente dito ocorreu durante a IX edição dos Jogos dos Povos Indígenas, realizada em Pernambuco, nas cidades de Recife e Olinda, no período de 23 de novembro a 1º de dezembro de 2007. Vivenciar o momento de realização do evento intercultural possibilitou ao pesquisador inscrever o discurso social a partir do contato direto com o objeto estudado. "Ao fazê-lo, ele o transforma de acontecimento passado, que existe apenas em seu próprio momento de ocorrência, em um relato, que existe em sua inscrição e que pode ser consultado novamente" (GEERTZ, 1989, p. 29).

Na ocasião foram utilizadas as seguintes técnicas de pesquisa: observação; entrevistas2 2 Realizadas com uma Liderança do povo Bororo, um indígena dessa etnia que participou do Futebol e do Arco e Flecha, um antropólogo convidado para uma palestra no Fórum Social Indígena, o voluntário da etnia Kayapó e o voluntário da etnia Xerente, com duração de 44 min.43s. ; coleta de registros fotográficos, de áudio e de vídeo, além de anotações em diário de campo referentes às práticas corporais, ao cotidiano dos jogos e às redes de relações estabelecidas. Os procedimentos listados foram trabalhados para responder ao problema que norteou a pesquisa: em que medida as práticas corporais nos Jogos dos Povos Indígenas contribuem para a educação do corpo dos indígenas participantes do evento? Com essa questão pretendeu-se entender o significado das práticas corporais realizadas na IX edição dos Jogos dos Povos Indígenas e sua relação quanto ao sentido de educação do corpo, sua apropriação e as mudanças comportamentais proporcionadas.

O CORPO NAS DIFERENTES CULTURAS INDÍGENAS: UMA BREVE INTRODUÇÃO

Atores protagonistas dos Jogos dos Povos Indígenas, os índios brasileiros ainda hoje são vistos, de modo geral, como pertencentes a uma única cultura, resultando, portanto, numa visão uniforme sobre esses povos. Essa visão uniformizadora se ancora na existência da 'cultura indígena'. No entanto no território brasileiro existem atualmente 225 etnias indígenas, segundo o Instituto Socioambiental (ISA), apresentando uma grande diversidade cultural (ISA, 2006, p. 7). Compreende-se que cada uma dessas culturas possui uma lógica que rege seu funcionamento e encontra coerência dentro do próprio sistema cultural. "Cada cultura ordenou a seu modo o mundo que circunscreve e que esta ordenação dá um sentido cultural à aparente confusão das coisas naturais" (LARAIA, 2002, p. 92). Contudo esta lógica consiste em uma forma de classificação distinta da ciência moderna; enfim, proporciona uma determinada concepção de mundo aos indivíduos.

A vida na humanidade não se desenvolveu de forma unívoca, mas sim por meios bastante diversificados de sociedades e civilizações, gerando uma diversidade intelectual, estética, social e de práticas e técnicas corporais que não têm relação direta com o plano biológico. Portanto, deve-se compreender que se trata de culturas de diferentes povos indígenas, elaboradas em contextos diferenciados, de acordo com sua localização no território brasileiro, e seu grau de contato com outras culturas em determinados momentos históricos, conforme reforça o autor a seguir:

A originalidade de cada uma delas reside antes na maneira particular como resolvem os seus problemas e perspectivam valores que são aproximadamente os mesmos para os homens, porque todos os homens sem exceção possuem linguagem, técnicas, arte, conhecimentos de tipo científico, crenças religiosas, organização social, econômica e política. Ora, esta dosagem não é nunca exatamente a mesma em cada cultura (LÉVI-STRAUSS, 1976, p. 75).

Com efeito, cada povo, cada etnia indígena tem uma cultura própria, com organização social e econômica e práticas corporais particulares. As práticas corporais das sociedades tradicionais colaboram para que valores, costumes, normas sociais e comportamentos desejados sejam assimilados por meio dos corpos dos indivíduos, tendo como base suas tradições. No plano simbólico, constituem-se em vivências lúdicas, expressões e linguagens com sentidos e significados que emergem dos contextos nos quais são realizadas.

Em sua obra A fabricação do corpo na sociedade xinguana, Viveiros de Castro (1987) assinala que em determinadas sociedades - como as que vivem em aldeias do Alto Xingu - o corpo humano é "fabricado" a partir de processos intencionais e periódicos. Essas mudanças produzidas no corpo proporcionam outras de posição social e, por conseguinte, de identidade social. A "fabricação do corpo" é intervenção consciente da cultura sobre o corpo humano, construindo a pessoa, modificando sua essência e se manifestando desde a gestualidade, até alterações da forma desse corpo. As modificações corporais são realizadas entre os xinguanos por meio de rituais que a encenação da criação do humano faz referência à morte e à vida. Concebendo os homens como uma produção cultural, sua fabricação presume uma reclusão, porquanto é durante a reclusão que há uma mudança significativa no corpo e onde os papéis sociais são assumidos. Entre os Xinguanos "a personificação do homem ideal depende de uma adesão correta às regras ditadas pela tecnologia do corpo na reclusão" (VIVEIROS DE CASTRO, 1987, p. 35). Todavia nota-se o corpo desempenhando um papel central na construção da identidade da pessoa xinguana.

Entre os Bororo do Mato Grosso, fato semelhante ocorre. Nos rituais, as danças são utilizadas como um instrumento de educação do corpo, em que os jovens ao 'fabricarem seus corpos' constituem uma identidade específica. A dança representa uma "prática educativa significativa para a transmissão de valores, de técnicas corporais e dos sentidos e significados que compõem os patrimônios clânicos e as relações entre os clãs na cosmologia Bororo" (GRANDO, 2005, p. 173). A dança acompanha os adornos e pinturas corporais que expressam uma simbologia. Durante a dança, são expressas as histórias e as relações sociais que constituem o grupo e, ao dançar, as pessoas constroem sua identidade e assumem seu lugar na sociedade.

O corpo humano nas sociedades indígenas brasileiras é construído socialmente para se tornar coletivo. A corporalidade é uma dimensão fundamental para o processo de ensino de conhecimentos, habilidades e técnicas da pessoa indígena.

Fica evidente, portanto, que o conjunto de posturas e movimentos corporais representa valores e princípios culturais. Consequentemente, atuar no corpo implica atuar sobre a sociedade na qual esse corpo está inserido. Todas as práticas institucionais que envolvem o corpo humano [...], sejam elas educativas, recreativas, reabilitadoras ou expressivas, devem ser pensadas nesse contexto, a fim de que não se conceba sua realização de forma reducionista, mas se considere o homem como sujeito da vida social (DAÓLIO, 1995, p. 42).

Nas sociedades indígenas, a transmissão de técnicas corporais é necessária para assumir da melhor maneira os papéis sociais conquistados; portanto, "reconhece-se a capacidade de a criança aprender a partir dos jogos e brincadeiras" (GRANDO, 2006, p. 231). Nesse momento, a criança está se apropriando de sua cultura, construindo sua identificação com seus pares e tornando-se únicas nesse contexto. Por outro lado, não se pode esquecer que as práticas corporais tradicionais, bem como os rituais ocorridos nas aldeias, têm um valor simbólico importante e se inscrevem como parte da construção sociocultural.

As práticas corporais estão relacionadas à cosmologia que orienta o modus vivendi e a visão de mundo das sociedades indígenas. Sendo compartilhadas nas aldeias, as práticas corporais se conformam no cotidiano, por exemplo, por meio de jogos e brincadeiras, podendo consistir na apreensão da realidade, que forma uma identidade fundamentada nos sentidos e significados específicos de cada cultura.

Na constituição dos sentidos e significados culturalmente construídos, as sociedades indígenas estão, em maior ou em menor grau, em contato com a sociedade nacional apresentando maior possibilidade de trocas simbólicas. Assim, levando-se em consideração que o corpo é o elemento central nas interações sociais, pois "emotion, mood, cognition, bodily orientation, and muscular effort are intrinsically involved, introducing an inevitable psychobiological element" (GOFFMAN, 1982, p.3), tem-se como pressuposto que as relações sociais nestas sociedades estão suscetíveis a alterações, sendo perpassadas por apropriações diferenciadas das práticas corporais. Deste modo, nesse recente contexto global, ao passo que um fenômeno cultural é desencadeado, possibilitando que aspectos da cultura ocidental se difundam pelo mundo, pode-se ter, concomitantemente, a existência de movimentos étnicos que criem e recriem outras formas de resistência, de modo a construir uma subjetividade distinta. O contato com outros povos pode promover mudanças mais ou menos bruscas em relação à apropriação das práticas corporais, bem como no que se refere à educação dos corpos dos indígenas, ao passo em que ocorrem interações interétnicas.

AS PRÁTICAS CORPORAIS NOS JOGOS DOS POVOS INDÍGENAS

Os Jogos dos Povos Indígenas - evento interétnico - é considerado um dos maiores encontros esportivos e culturais das Américas, na medida em que visa a promover o desenvolvimento do patrimônio cultural destes povos, por meio do esporte e das práticas corporais tradicionais. Esse evento foi idealizado por dois irmãos da etnia Terena, com o propósito de os povos indígenas trocarem informações a respeito de suas práticas culturais, econômicas e sociais. De acordo com o Regulamento Geral (BRASIL,1999) que orienta os Jogos, tem-se como objetivo promover a cidadania indígena, a integração e o intercâmbio de valores tradicionais, com vistas a incentivar e valorizar as manifestações culturais próprias desses povos.

Conforme dados obtidos por meio de observações e relatos orais, destacam-se em torno desse evento questões políticas e sociais - como o Fórum Social Indígena; questões econômicas - como a Feira de Artesanato e questões culturais - como as Demonstrações e as Competições que abarcam as práticas corporais. O esporte aparece, no escopo dos documentos oficiais, como um instrumento que tem como pressuposto a interação entre distintas etnias; entretanto, outras manifestações culturais se fazem presentes nesse evento, como os jogos e brincadeiras tradicionais, os ritos, as danças, as pinturas e os adornos corporais.

Na IX edição dos Jogos dos Povos Indígenas foram apresentadas práticas culturais de diversas etnias participantes, que são parte do cotidiano e de seus repertórios da cultura corporal, realizando-se a sistematização dessas práticas por meio de um processo de construção técnica. Esse processo de construção técnica recebe o nome de congresso técnico e foi anteriormente estudado por Vinha e Rocha Ferreira (2005). O objetivo do congresso técnico é o de promover uma discussão e tomar decisões sobre as atividades a serem praticadas. Na análise apresentada, (VINHA; ROCHA FERREIRA, 2005) apontam que o intuito do congresso técnico é o de definir e retificar os regulamentos finais dos jogos, além de estabelecer normas comuns, considerando as diferentes organizações indígenas.

Conforme se observou, na IX edição dos Jogos a realização do congresso técnico seguiu a estruturação do evento e das práticas corporais apresentadas durante as edições anteriores (VINHA; ROCHA FERREIRA, 2005), assim: "percebeu-se que não houve modificações significativas no documento que orienta as atividades ou 'modalidades'. Esse procedimento serviu apenas como uma apresentação da estrutura regulamentada das práticas corporais que seriam realizadas de maneira competitiva, de acordo com edições anteriores" (cf. NOTAS DE DIÁRIO DE CAMPO, 2007).

Todavia outras práticas em que não há condições de normatização, por serem restritas a determinados grupos, desenvolveram-se sob forma de demonstração, isto é, neste caso o que foi proporcionado ao público presente foi a apresentação em forma de espetáculo de determinadas práticas corporais dos povos indígenas - vistas e muitas vezes interpretadas como o inusitado e exótico no contato intercultural (cf. NOTAS DE DIÁRIO DE CAMPO, 2007). Deve-se pontuar, contudo, que a espetacularização de determinadas práticas culturais pode ter uma dupla significação. Pode, por um lado, engendrar formas de aproximação e apropriação da cultura indígena por parte dos presentes, e, pode, por outro, contribuir para promover o deslocamento do sentido de determinada prática da cultura corporal desses povos, tornando-se - assim como ocorre com o futebol - uma prática corporal secularizada.

O Futebol é o único esporte praticado nos Jogos dos Povos Indígenas agregando um grande número de indígenas em sua realização. Tendo em vista que a cada jogo uma etnia é eliminada da competição, foi observado um acirramento da disputa em busca da vitória, gerando, em alguns casos, conflitos. Assim, à medida que se passavam os jogos, notava-se que os comportamentos das diferentes etnias eram similares, ou seja, o elemento cultural da sociedade nacional - o futebol - foi apropriado pelas diferentes sociedades indígenas e adaptado à diversidade cultural de cada uma das sociedades tradicionais.

A compreensão dessa prática corporal no âmbito dos Jogos pode suscitar uma dupla interpretação. De um lado, a apropriação do fenômeno esportivo - futebol - tem um caráter de assimilação de um elemento da cultura nacional, visto que o futebol tem para todos os brasileiros esse sentido. Por outro, tem-se que ao reproduzirem condutas que vão de encontro ao fair play, gerando conflitos e animosidades, as etnias indígenas participantes reproduzem no contexto desses jogos as condutas tipificadas como pertencentes ao universo do esporte de alto rendimento. De acordo com Kunz (2006, p. 22), um dos princípios básicos do esporte de alto rendimento é "sobrepujança", isto é, uma busca constante pela superação, seja de uma marca, seja de um adversário e que se expressa na vitória. Nesse sentido, o futebol é um elemento intercultural que contribui para que determinados valores, atitudes e comportamentos sejam assimilados.

"Ao passo que a competição ocorria, percebia-se que o caráter de espetáculo esportivo assumido pelo evento influenciava a configuração das práticas corporais indígenas, que ultrapassava o futebol atingindo outros elementos constituintes da cultura corporal daqueles povos" (cf. NOTAS DE DIÁRIO DE CAMPO, 2007). Vale salientar, neste âmbito, que a configuração das práticas corporais ocorria conforme normas definidas estabelecidas durante o congresso técnico. Tal ênfase nos elementos normativos pode ter como significado uma espécie de organização burocrática característica da sociedade moderna para as práticas corporais nos Jogos dos Povos Indígenas.

"As práticas corporais tradicionais passíveis de regulamentação foram realizadas de maneira competitiva. Por meio dela foi garantida a participação de todos os inscritos, sob normas unificadas, com o intuito de se obter a quantificação dos resultados" (cf. NOTAS DE DIÁRIO DE CAMPO, 2007). O que se percebe, de acordo com o registro de campo, é que a organização burocrática foi levada a cabo no ensejo dos Jogos dos Povos Indígenas, corroborando com a compreensão de que, segundo Guttmann (2004), o esporte moderno para que seja realizado necessita de um sistema de organização, com hierarquia e funções. Esse autor ainda afirma que a quantificação, aqui entendida como mensuração do desempenho atlético no esporte moderno, é coerente com o modo de racionalizar da sociedade ocidental moderna, sendo uma compreensão sociológica demarcada pela sociologia weberiana. Caracteriza-se por transformar as atividades esportivas em algo que possa ser quantificado e medido, em número de pontos, marcas ou gols, medidas de tempo e distância ou notas.

Todavia, ao passo que a competição levada a efeito pelo princípio da sobrepujança pôde ser encontrada na realização dos Jogos, a dimensão lúdica também se fazia presente. Os jogos e as brincadeiras tradicionais constituem importantes referentes para essa dimensão, podendo ser compreendidos como um conjunto de hábitos e práticas que têm como significado uma relação simbiótica entre corpo e espírito, posto que algumas lutas corporais, as corridas e alguns jogos tradicionais presumem uma explicação mitológica para sua realização; são meios de interação entre o mundo dos espíritos e o mundo real que ocorre durante os rituais indígenas.

Neste âmbito, pode-se destacar a ressignificação de determinadas práticas que como o arco e flecha podem ser redimensionados e passar a assumir outro sentido. Durante muitos anos o uso do arco-e-flecha tinha como objetivo prover alimentos, por meio da caça, e dar proteção às sociedades, sendo utilizados como armas em conflitos com outros povos. Sua apropriação se dá desde o conhecimento dos materiais necessários à sua fabricação até às técnicas corporais necessárias para sua utilização. Destarte, esta prática corporal possui um simbolismo particular nas diferentes culturas indígenas. Porém, na IX edição dos Jogos Indígenas, a prática que envolve o arco e a flecha foi realizada de maneira competitiva e seguiu a lógica do tiro com flecha praticado nos eventos esportivos. Com isso, percebe-se a ressignificação da técnica e do uso dos instrumentos (arco e flecha), propiciando à pessoa indígena o desenvolvimento de outras atitudes, ao passo que se tem outro sentido e significado distinto daquele que os indígenas se apropriavam em contextos particulares.

No arremesso de lança a padronização do instrumento se fez necessária para garantir que o vencedor fosse conhecido pelo seu desempenho, isto é, "pela maior distância arremessada" (BRASIL, 1999, s/p). Portanto, nota-se que a lança - outro instrumento das sociedades indígenas que possui relação com o plano simbólico - também sofre um processo de regulamentação, assim como o arco-e-flecha, com o intuito de torná-lo uma modalidade esportiva. A padronização do instrumento, com efeito, altera a técnica corporal dos indígenas, porquanto cada instrumento determina a especificidade da técnica corporal, entendidas como as "maneiras pelas quais os homens, de sociedade a sociedade, de forma tradicional sabem servir-se de seu corpo" (MAUSS, 2003, p. 401).

Com efeito, técnicas corporais específicas como o arco-e-flecha e a lança têm seus sentidos alterados durante dos Jogos, proporcionando a competitividade entre os povos indígenas, contudo, tal fato pode contribuir para a constituição de rupturas dos sentidos anteriormente adotados pelas distintas etnias, alterando o horizonte semântico das populações indígenas. Toda técnica ou atitude corporal tem sua especificidade, são apreendidas lentamente por meio de práticas culturais lúdicas vivenciadas em cada contexto social e, também pela transmissão oral que é parte da educação própria de cada sociedade.

Por seu turno, as corridas entre os indígenas no Brasil são praticadas com ou sem instrumentos. Trata-se de um elemento da cultura corporal muito valorizado por esses povos (ROCHA FERREIRA, 2002). Sendo transmitidas dos mais velhos aos mais novos, as corridas transmitem a noção de elo entre os mundos físico e espiritual, posto que fazem parte da cosmologia das sociedades indígenas. A capacidade por elas exigida, como velocidade e resistência, estão relacionadas com mitos de diversas culturas, nas quais os dons que são recebidos pelas pessoas indígenas constituem sua identidade de acordo com as representações sociais.

Na IX edição dos Jogos dos Povos Indígenas as corridas foram disputadas competitivamente. Na Corrida de 'Cem Metros Rasos', por exemplo, a exigência é sobre a capacidade de se deslocar de um ponto a outro com velocidade, tendo o propósito de comparar o desempenho dos indivíduos e se consagrar um vencedor. Já "na 'Corrida de Fundo' realizada no último dia dos Jogos, fechando as atividades competitivas o requisito foi a resistência" (cf. NOTAS DE DIÁRIO DE CAMPO, 2007). Seguindo essa lógica, pode-se constatar a similaridade entre a adoção da 'Corrida de Fundo' durante o evento com a prova mais tradicional do maior espetáculo esportivo: a maratona - que possui um simbolismo dentro das olimpíadas e possibilita ao público manter um contato mais próximo com os competidores. O que se observou em Recife, foi a adoção de outro peso simbólico a esta técnica corporal, isto é, a corrida tornou-se um espetáculo observado por um público já acostumado com essa estrutura, o que propiciou maior aproximação entre os espectadores presentes e os indígenas (competidores).

Nesse sentido, vale ressaltar que o esporte de alto rendimento condizente com os interesses dominantes na sociedade capitalista, influencia o estado atual de ofertas esportivas. A oferta, segundo Bourdieu (1990), é caracterizada pelas propriedades técnicas e relacionais de cada prática e interfere de modo determinante no habitus de uma coletividade. É reconhecida uma variedade de práticas esportivas totalmente diferentes e muitas vezes com sentidos opostos; porém, apesar de os esportes permitirem uma gama de usos, prevalece na atualidade o sentido dominante que lhes é atribuído. No momento atual, o sentido do esporte-espetáculo predomina. Desse modo, nota-se que as práticas corporais tradicionais, assim como o futebol, são oferecidas aos protagonistas dos Jogos dos Povos Indígenas também sob a lógica do esporte de alto rendimento. Por assim dizer, as escolhas por determinadas práticas corporais demonstram o modo de pensar de um grupo, o que acaba por constituir um espaço-tempo pedagógico e reafirmando seu habitus. Portanto, as influências dos princípios e das categorias do jogo se manifestam fora desse espaço delimitado por um tempo próprio, penetra na vida ordinária das sociedades, colaborando para definir o estilo de diferentes culturas (CAILLOIS, 1994).

A corrida de toras nesta edição dos Jogos dos Povos Indígenas demonstrou que a lógica do esporte de alto rendimento penetrou nas práticas corporais indígenas. Após oito edições desse evento nacional essa prática foi realizada tanto de maneira demonstrativa, quanto competitiva. Melatti (1976), em estudo realizado entre os Krahô, constatou que essa prática está sempre associada a um rito. Conforme os ritos variam as formas das toras, os grupos que disputam a corrida, bem como o percurso. Estruturada de forma ímpar, a corrida de toras assume como característica essencial a competitividade, atributo que segundo Melatti (1976) não se faz presente no cotidiano das aldeias. Portanto, verifica-se que a corrida de toras no contexto dos Jogos dos Povos Indígenas passou por um processo de alteração dos sentidos.

A fim de possibilitar a competição e a comparação do desempenho dos indígenas, a corrida de toras (bem como outras práticas corporais tradicionais) foi estruturada por meio de uma regulamentação baseada no sentido dominante do fenômeno esportivo. Ao passo que foram assim concebidas, tais práticas foram ressignificadas, evidenciando os princípios da sobrepujança e da comparação objetiva e assumindo, desse modo, a lógica do esporte de alto rendimento, tornando-se esportivizadas.

O ESPORTE, AS TÉCNICAS CORPORAIS E A EDUCAÇÃO DO CORPO INDÍGENA

No contexto desta edição dos Jogos, o esporte foi apresentado como meio de interação entre diferentes povos. No entanto, o sentido de esporte que se evidencia é o do esporte de alto rendimento, elemento cultural das sociedades complexas que se tornou uma prática corporal hegemônica de tais sociedades, tendo seu sentido inserido em outras práticas sociais de lazer, a exemplo dos jogos e as brincadeiras tradicionais. Os elementos culturais das sociedades tradicionais nesse processo de ressignificação das práticas corporais não são necessariamente perdidos, mas sofrem a incorporação de valores modernos.

De acordo com Guttmann (2004), o esporte moderno é marcado pela lógica da competição e da especialização de papéis. Com a divisão do trabalho na sociedade capitalista foi proporcionada uma especialização de profissões, no caso do esporte, o profissionalismo. A lógica da competição faz com que sejam utilizados diferentes métodos de treinamento que servem para adaptação do corpo exclusivamente à atividade física. Com a mesma compreensão, diz (BOURDIEU, 1990, p. 220): "talvez seja refletindo sobre o que o esporte tem mais específico, isto é, a manipulação regrada do corpo, sobre o fato de que o esporte, [...], ser uma maneira de se obter do corpo uma adesão que o espírito poderia recusar".

Nesta direção, compreende-se o treinamento como uma forma de manipulação regrada ou intencional sobre o corpo que tem como fundamento a ciência moderna, processo de produção de conhecimento que se contrapõe aos saberes tradicionais. Em campo observou-se que este procedimento faz parte da preparação dos indígenas para a participação em eventos esportivos como os Jogos dos Povos Indígenas. Ao ser questionado se treinavam as modalidades na aldeia para participar desse evento, o indígena respondeu:

"Temos treinamento sim. Inclusive pra vir pra cá, depois que foi feita a seleção, todos os dias, três e meia, quatro horas da manhã, a gente treinava. Aquecimento, alongamento, tudo isso. Faz uma preparação de maneira geral. Aí, pratica também o futebol, corridas e natação" (Entrevista, Indígena Bororo, Recife, 2007).

No decorrer das observações, presenciou-se um integrante da "delegação" da etnia Xerente comandando um treino de corrida nos Jogos dos Povos Indígenas. Naquela oportunidade, indagou-se sobre o fato e a resposta foi a seguinte:

"Nós treinamos lá três vezes, duas vezes na aldeia e uma vez na cidade, em Tocantins, mas é muito pouco. O tempo todo nós estamos com eles lá, como voluntário, anos e anos já. Lá ensinamos as meninas a jogar futebol também. Até os índios também tinham muita força, mas não tinham técnica, agora sim, eles já tocam a bolam certinho. Já tem alguns índios lá que nós estamos profissionalizando. Dos nossos Xerente aqui, eu profissionalizei um deles e outros também já estão na eminência de profissionalizar" (Entrevista, Voluntário Xerente, Recife, 2007).

Contudo, verifica-se que o treinamento é uma demanda dos próprios indígenas e vem sendo desenvolvido em algumas aldeias. Nota-se que este modo de intervir no corpo está relacionado à forma como as práticas corporais, tais como o esporte, são oportunizadas a esses povos, uma vez que muitos deles participam de competições, sendo uma das poucas maneiras de vivenciar a prática esportiva. Com efeito, tem-se uma mudança na "fabricação" do corpo indígena, devido à assimilação de técnicas corporais esportivas por meio do treinamento, com o objetivo de proceder a um aumento gradual do rendimento para a participação nessas competições. Entende-se que, para que haja o aprimoramento da tática e principalmente da técnica esportiva como demonstra o indígena, é necessário que sejam realizados treinamentos específicos de cada "modalidade".

De acordo com Kunz (2006), que analisa o treinamento especializado para crianças, as técnicas corporais são alteradas por um treinamento planejado com a perspectiva de um aumento do rendimento em competições esportivas. Essa especialização do indivíduo em determinada atividade ou função impede um desenvolvimento plural do indivíduo, principalmente se for iniciado "antes da fase pubertária" (KUNZ, 2006, p. 49). Por conseguinte, percebe-se a possibilidade de o esporte contribuir para a educação do indígena ao tornar seus corpos especializados com o treinamento sistematizado, sendo iniciados precocemente.

Nesse âmbito, "não se trata de transmitir apenas uma maneira de fazer. Trata-se de transmitir outra visão de mundo, outra realidade, que se estende a todos os domínios da vida" (GRANDO; HASSE, 2001, p. 109) . Ao assimilar esse procedimento em sua rotina diária, o indígena pode reduzir sua participação em atividades corriqueiras de suas culturas, imprescindíveis para a construção de sua identidade, por ter que dedicar grande período de tempo aos treinos e às competições. Atentando para o treinamento precoce vê-se como "um problema social muito complexo e que obedece às regras e princípios da competição e da concorrência próprias das sociedades industriais" (KUNZ, 2006, p. 53). Desse modo, da mesma forma que o treinamento esportivo parece ser considerado problemático para uma criança não-índigena também pode o ser para uma criança indígena, especialmente porque o treinamento traz consigo um conjunto de valores que, ao serem apropriados, possibilitam a constituição de outro habitus calcado numa educação especializada do corpo e que ressignifica papéis sociais, não se tendo mais a percepção da criança (indígena ou não) e, sim, de um "atleta".

As técnicas esportivas correspondem à visão de mundo ocidental, fundamentada na ciência positivista e em uma organização social capitalista. São construídas e reconstruídas historicamente, com o intuito de aumentar sua eficácia em eventos esportivos. Essa noção de técnica do corpo proveniente da racionalidade moderna exigiu que outras atitudes, comportamentos e maneiras de fazer fossem abandonadas ou adaptadas ao modo de pensar e de sentir das sociedades industriais avançadas, pois a adaptação das técnicas corporais "é efetuada numa série de atos montados, e remontados no indivíduo não simplesmente por ele próprio, mas por toda a sua educação, por toda a sociedade da qual faz parte, conforme o lugar que ocupa" (MAUSS, 2003, p. 408).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para concluir, acredita-se que algumas observações são cabíveis.

Conforme se analisou nos Jogos dos Povos Indígenas as práticas corporais são ressignificadas, adotando-se um sentido de hibridação de práticas ou técnicas corporais, como se pôde perceber por meio das competições com arco-e-flecha, as corridas e mesmo a adoção do futebol como modalidade a ser praticada durante os Jogos. A ressignificação das práticas tem, por seu turno, uma implicação crucial, ela pode contribuir para o surgimento de outro habitus e modificar a relação dos indígenas com o uso de seu corpo, particularmente, pensando-se na noção do treinamento esportivo.

Por outro lado, tem-se, clareza de que as mudanças culturais são e estão suscetíveis de ocorrer, que fluxos e refluxos entre concepções, ideias, perspectivas e valores existem e perpassam as relações interculturais por meio das relações interétnicas, como parece ser o caso dos Jogos dos Povos Indígenas. Todavia, a burocratização do processo de construção dos Jogos com base na adoção de normas e, como se viu, com o congresso técnico, à medida que foram estabelecidas medidas a serem utilizadas por todos os indígenas para tornar as práticas corporais uniformizadas engendram um significado contextual para os sentidos de práticas corporais das distintas etnias indígenas.

Por fim, com base na interpretação realizada sobre a IX edição dos Jogos dos Povos Indígenas, ao invés de propor soluções, lança-se mão de alguns questionamentos que não foram possíveis de ser respondidos, mas que poderão subsidiar outros estudos. São eles: qual é o significado das mudanças empreendidas nas práticas corporais das etnias indígenas participantes durante os Jogos? O que, efetivamente, essas mudanças representam? Tendo em vista que os Jogos dos Povos Indígenas faz parte de uma política governamental, qual é o papel do Estado na constituição dos Jogos?

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, P. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990.

BRACHT, V. Sociologia crítica do esporte: uma introdução. 2. ed. Ijuí: Editora Ijuí, 2003.

BRASIL. Ministério do Esporte. Regulamento geral. Brasília: Secretaria Nacional de Desenvolvimiento do Esporte e do Lazer, 1999.

CAILLOIS, R. Los juegos y los hombres: la máscara y el vértigo. México: Fondo de Cultura Econômica, 1994.

DAÓLIO, J. Da cultura do corpo. Campinas: Papirus, 1995.

GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989.

GOFFMAN, E. Interaction ritual: essays on face-to-face behavior. New York: Pantheon Books, 1982.

GRANDO, B; HASSE, M. Índio brasileiro: integração e preservação. In: FLEURI, R. M. (Org.). Intercultura: estudos emergentes. Ijuí: Unijuí, p. 101-116, 2001.

GRANDO, B. Corpo e cultura: a educação do corpo em relações de fronteiras étnicas e culturais e a constituição da identidade Bororo em Meruri-MT. Pensar a prática, Goiânia v. 8, n. 2, p. 163-179, jul./dez. 2005.

________. A educação do corpo nas sociedades indígenas. In: RODRIGUES MULLER, M. L; PAIXÃO, L. P. (Orgs.). Educação: diferenças e desigualdades. Cuiabá: UFMT, p. 227-252, 2006.

GUTTMANN, A. From ritual to record: the nature of modern sports. New York: Columbia University, 2004.

INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Povos indígenas no Brasil: 2001-2005. Beto Ricardo; Fany Ricardo. São Paulo, 2006.

KUNZ, E. Transformação ditádico-pedagógica do Esporte. 7. ed. Ijuí: Unijuí, 2006.

LARAIA, R. B. Cultura: um conceito antropológico. 15. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.

LÉVI-STRAUSS, C. Seleção de textos. São Paulo: abr. 1976. (Os Pensadores: História das grandes idéias do mundo ocidental).

MAGNANI, J. G. C. Antropologia e Educação Física. In: CARVALHO, Y; RÚBIO, K. (Orgs.). Educação física e ciências humanas. São Paulo: Hucitec, p. 17-26, 2001. MAUSS, M. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

MELLATI, J. C. Corrida de toras. Revista de Atualidade Indígena, Brasília ano I, n. 1, p. 38-45, FUNAI, 1976.

ROCHA FERREIRA, M. B. Cultura corporal: jogos tradicionais e esporte em terras indígenas In: Anais do VIII Congresso Brasileiro de História da Educação Física, Esporte, Lazer e Dança, Ponta Grossa. v. 1, p. 1-7, 2002. VINHA, M. & ROCHA FERREIRA, M. B. "Evento Nacional: jogos dos povos indígenas, jogos tradicionais e processo de esportivização" In: Anais do XXIII Simpósio Nacional de História: história e paz. CD Room. Londrina: Editorial Mídia, 2005.

VINHA, M; ROCHA FERREIRA, M. B. Evento Nacional: jogos dos povos indígenas, jogos tradicionais e processo de esportivização In: Anais do XXIII simpósio nacional de história: história e paz. CD Room. Londrina: Editorial Mídia, p. 1-8, 2005.

VIVEIROS DE CASTRO, E. A Fabricação do corpo na sociedade xinguana. In: OLIVEIRA FILHO, J. P. (Org.). Sociedades indígenas e indigenismo no Brasil. São Paulo: Marco Zero; Rio de Janeiro: UFRJ, p. 31-41, 1987.

Recebido: 12 mar. 2010

Aprovado: 17 set. 2010

* O presente trabalho é um recorte da dissertação de mestrado apresentada ao PPG/FEF da Universidade de Brasília, cujo pesquisador contou com o auxílio de bolsa de estudos do CNPq.

  • BOURDIEU, P. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990.
  • BRACHT, V. Sociologia crítica do esporte: uma introdução. 2. ed. Ijuí: Editora Ijuí, 2003.
  • BRASIL. Ministério do Esporte. Regulamento geral Brasília: Secretaria Nacional de Desenvolvimiento do Esporte e do Lazer, 1999.
  • CAILLOIS, R. Los juegos y los hombres: la máscara y el vértigo. México: Fondo de Cultura Econômica, 1994.
  • DAÓLIO, J. Da cultura do corpo. Campinas: Papirus, 1995.
  • GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989.
  • GOFFMAN, E. Interaction ritual: essays on face-to-face behavior. New York: Pantheon Books, 1982.
  • GRANDO, B; HASSE, M. Índio brasileiro: integração e preservação. In: FLEURI, R. M. (Org.). Intercultura: estudos emergentes. Ijuí: Unijuí, p. 101-116, 2001.
  • GRANDO, B. Corpo e cultura: a educação do corpo em relações de fronteiras étnicas e culturais e a constituição da identidade Bororo em Meruri-MT. Pensar a prática, Goiânia v. 8, n. 2, p. 163-179, jul./dez. 2005.
  • ________. A educação do corpo nas sociedades indígenas. In: RODRIGUES MULLER, M. L; PAIXÃO, L. P. (Orgs.). Educação: diferenças e desigualdades. Cuiabá: UFMT, p. 227-252, 2006.
  • GUTTMANN, A. From ritual to record: the nature of modern sports. New York: Columbia University, 2004.
  • INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Povos indígenas no Brasil: 2001-2005. Beto Ricardo; Fany Ricardo. São Paulo, 2006.
  • KUNZ, E. Transformação ditádico-pedagógica do Esporte. 7. ed. Ijuí: Unijuí, 2006.
  • LARAIA, R. B. Cultura: um conceito antropológico. 15. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.
  • LÉVI-STRAUSS, C. Seleção de textos. São Paulo: abr. 1976. (Os Pensadores: História das grandes idéias do mundo ocidental).
  • MAGNANI, J. G. C. Antropologia e Educação Física. In: CARVALHO, Y; RÚBIO, K. (Orgs.). Educação física e ciências humanas. São Paulo: Hucitec, p. 17-26, 2001.
  • MAUSS, M. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
  • MELLATI, J. C. Corrida de toras. Revista de Atualidade Indígena, Brasília ano I, n. 1, p. 38-45, FUNAI, 1976.
  • ROCHA FERREIRA, M. B. Cultura corporal: jogos tradicionais e esporte em terras indígenas In: Anais do VIII Congresso Brasileiro de História da Educação Física, Esporte, Lazer e Dança, Ponta Grossa. v. 1, p. 1-7, 2002.
  • VINHA, M. & ROCHA FERREIRA, M. B. "Evento Nacional: jogos dos povos indígenas, jogos tradicionais e processo de esportivização" In: Anais do XXIII Simpósio Nacional de História: história e paz. CD Room. Londrina: Editorial Mídia, 2005.
  • VINHA, M; ROCHA FERREIRA, M. B. Evento Nacional: jogos dos povos indígenas, jogos tradicionais e processo de esportivização In: Anais do XXIII simpósio nacional de história: história e paz. CD Room. Londrina: Editorial Mídia, p. 1-8, 2005.
  • VIVEIROS DE CASTRO, E. A Fabricação do corpo na sociedade xinguana. In: OLIVEIRA FILHO, J. P. (Org.). Sociedades indígenas e indigenismo no Brasil. São Paulo: Marco Zero; Rio de Janeiro: UFRJ, p. 31-41, 1987.
  • Endereço para correspondência:
    Arthur José Medeiros de Almeida
    SQN 303, Bloco F, apt. 315, Asa Norte
    Brasília-DF
    CEP: 70.735-060
  • 1
    Participamos dos trabalhos da Subcomissão de Avaliação e Documentação, realizando entrevistas com autoridades presentes, entre elas: o Ministro do Esporte, o Secretário Nacional de Identidade e Diversidade Cultural e os idealizadores do evento. A subcomissão, da qual faziam parte pouco mais de 25 pessoas, elaborou um questionário com catorze perguntas relacionadas com as características de cada etnia, com as práticas corporais tradicionais, com os esportes praticados por elas e com a organização do evento. As entrevistas foram concedidas por lideranças, esportiva e cultural, das etnias participantes, "atletas" masculinos e femininos e voluntários. O conteúdo dessas entrevistas foi registrado no diário de campo.
  • 2
    Realizadas com uma Liderança do povo Bororo, um indígena dessa etnia que participou do Futebol e do Arco e Flecha, um antropólogo convidado para uma palestra no Fórum Social Indígena, o voluntário da etnia Kayapó e o voluntário da etnia Xerente, com duração de 44 min.43s.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Jul 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010

    Histórico

    • Recebido
      12 Mar 2010
    • Aceito
      17 Set 2010
    Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte Universidade de Brasilia - Campus Universitário Darcy Ribeiro, Faculdade de Educação Física, Asa Norte - CEP 70910-970 - Brasilia, DF - Brasil, Telefone: +55 (61) 3107-2542 - Brasília - DF - Brazil
    E-mail: rbceonline@gmail.com