RESUMO
O presente trabalho discute a relação entre coeducação e antirracismo na educação física escolar. O objetivo é transitar em análise teórico-empírica sobre educação física escolar e interseccionalidade ao situar a experiência mimética de tematização das relações raciais nas aulas de educação física por meio de um relato autobiográfico docente, cujo investimento metodológico permeia saberes-fazeres autorreferenciados na construção de artefatos narrativos em situação de ensino com os (as) discentes. Afirmamos, portanto, a necessidade de conceber a interseccionalidade como paradigma para a análise e compreensão dos fenômenos sociais na educação física escolar estabelecendo nexos de reflexividade crítica em consonância de conscientização pela relação da dodiscência.
Palavras-chave: Feminismo negro; Justiça social; Educação antirracista; Juventude
ABSTRACT
The present work discusses the relationship between coeducation and anti-racism in school physical education. The objective is to navigate a theoretical-empirical analysis of school physical education and intersectionality by situating the mimetic experience of thematizing racial relations in physical education classes through an autobiographical account by a teacher. The methodological approach intertwines self-referential knowledge-practices in the construction of narrative artifacts within the teaching context with the students. We therefore affirm the necessity of conceiving intersectionality as a paradigm for the analysis and understanding of social phenomena in school physical education, establishing critical reflexivity links in alignment with the awareness fostered through the teacher-student relationship.
Keywords: Black feminism; Social justice; Anti-racist education; Youth
RESUMEN
El presente trabajo discute la relación entre la coeducación y el antirracismo en la educación física escolar. El objetivo es transitar en un análisis teórico-empírico sobre la educación física escolar y la interseccionalidad, situando la experiencia mimética de la tematización de las relaciones raciales en las clases de educación física a través de un relato autobiográfico docente. El enfoque metodológico entrelaza saberes y prácticas autorreferenciales en la construcción de artefactos narrativos dentro del contexto de enseñanza con los estudiantes. Afirmamos, por tanto, la necesidad de concebir la interseccionalidad como un paradigma para el análisis y la comprensión de los fenómenos sociales en la educación física escolar, estableciendo vínculos de reflexividad crítica en consonancia con la toma de conciencia promovida por la relación docente-estudiante.
Palabras clave: Feminismo negro; Justicia social; Educación antirracista; Juventud
INTRODUÇÃO
O debate proposto no presente trabalho pretende discutir a educação física escolar como campo de estudos capaz de incorporar uma reflexão amplamente realizada no campo das ciências sociais em que raça, gênero e classe são analisados de forma conectada. As reflexões propostas podem potencializar e ampliar as interseccionalidade como ferramenta analítica nas pesquisas que buscam desenvolver formulações em que temas como a justiça social adquire centralidade nas análises.
Trata-se de uma reflexão que tem a interseccionalidade como paradigma para a análise e compreensão dos fenômenos sociais (Collins, 1989, 2020; Collins e Bilge, 2020) e, mais precisamente, das práticas curriculares na educação física escolar (Auad e Corsino, 2016; 2018; Bruno, et al., 2022), sem perder de vista a diferenciação entre o seu uso como ferramenta analítica e como práxis (Collins e Bilge, 2020). Para isso, este trabalho ancora dois enunciados principais, o primeiro é a reflexão sobre os princípios da coeducação e o antirracismo na educação física escolar na perspectiva da interseccionalidade e o segundo remete à análise desses princípios na e pela situação de ensino pedagógica e experiencial realizada por uma professora-pesquisadora com jovens estudantes do ensino médio nas aulas de educação física em um campus do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), apresentada como relato autobiográfico em experiência autoformadora.
O primeiro enunciado percorre por dois principais caminhos, o campo da educação física escolar e suas relações com os estudos feministas e os estudos de gênero no que se refere à coeducação e o antirracismo e a incorporação das epistemologias feministas e antirracistas nas práticas curriculares em educação física. Estes são percebidos como elementos centrais para o pensamento acerca da educação física escolar e suas relações com as questões raciais, de gênero e classe em conexão.
Já no ano de 2004, Daniela Auad (2004) chamava a atenção, na introdução de sua tese de doutorado Relações de gênero nas práticas escolas: da escola mista ao ideal de co- educação, para uma tradição no âmbito das pesquisas na área da educação em que categorias de análise como gênero, raça, etnia e geração eram menos consideradas do que as pesquisas que abordam as “relações de classe, de dominação e exploração socioeconômica” (Auad, 2004, p. 17).
A afirmação da autora é tida neste trabalho como uma forma de alertar que o campo da educação física escolar também reflete os estudos sobre educação e que há de se considerar a necessidade de análises aprofundadas sobre como essa tradição se reproduz e, para além disso, reforçar a necessidade de que os estudos sobre interseccionalidade na educação física escolar, não deixem de abranger as categorias raça e gênero e, ao mesmo tempo não invisibilizem a forma como a questão de classe atravessa essas categorias e potencializa as múltiplas formas de desigualdade, assumindo a justiça social como objetivo a ser alcançado (Sanches et al., 2023, 2024).
A questão levantada por Auad (2004) em sua tese e reforçada por Auad (2021) é a distinção que a autora faz entre escola mista e coeducação. Com forte inspiração nas pesquisas realizadas pela pesquisadora francesa Claude Zaidman, Auad chama a atenção para o fato de que aula mista não é sinônimo de coeducação, essa constatação apresenta relevante peso para o campo da educação física, tendo em vista que um dos grandes debates oriundos dos estudos sobre educação física e relações de gênero apresenta as aulas mistas e separadas por sexo como objeto de análise e, nas palavras de Auad (2004) e Corsino e Auad (2012) “misturas e separações”.
Para além e juntamente com o debate sobre a coeducação na educação física escolar (Saraiva, 2005; Corsino e Auad, 2012; Devide et al., 2020), há de se questionar como as relações raciais se inserem neste contexto no sentido de perceber algumas especificidades que estão no cerne da relação entre o feminino e o masculino e sua vinculação com a raça. É crucial destacar que a interseccionalidade se configura como uma ferramenta analítica robusta, capaz de revelar e aprofundar conexões variadas, inclusive, no que tange às complexas inter-relações entre gênero e sexualidade (Dornelles e Pocahy, 2014).
Neste sentido, o debate realizado é conduzido pelas perguntas: é possível uma educação física coeducativa que não seja antirracista? Qual é a função do antirracismo na consolidação de uma educação física coeducativa e, ao mesmo tempo, qual é a função da coeducação na construção de uma educação física antirracista?
Portanto, este trabalho tem como lócus de inspiração o artigo Feminismos, interseccionalidades e consubstancialidades na educação física escolar (Auad e Corsino, 2018) e o livro Educação física escolar e relações étnico-raciais: subsídios para a implantação das leis 10.639/03 e 11.645/08 (Corsino e Conceição, 2016), ambos considerados potentes condutores no percurso reflexivo sobre as primeiras perguntas e está relacionado à educação física escolar enquanto área em que classe, gênero e raça devem ser percebidos em conexão.
Neste sentido, nos permitimos conduzir uma reflexão sobre como o conceito de interseccionalidade enquanto potente ferramenta analítica que pode contribuir tanto com a compreensão das relações sociais constituídas por raça, gênero e classe, quanto para a construção de uma práxis que remete a uma intencionalidade pedagógica no campo e nas práticas curriculares da educação física escolar rumo a uma (co)educação física antirracista, considerando, o fato de que a interseccionalidade ainda é pouco trabalhada no campo da educação física escolar, sobretudo no que se refere à sua abordagem na práxis pedagógica (Cortes e Pereira, 2024)
E com essa intencionalidade pedagógica acostada numa (co)educação física antirracista, lançamo-nos ao segundo enunciado como investimento empírico, a partir de um relato autobiográfico cujo investimento metodológico permeia saberes-fazeres autorreferenciados na construção de artefatos narrativos em situação de ensino com os (as) discentes.
Nesse contexto é relevante destacar o entendimento que o relato biográfico está situado, a partir do indivíduo (professora-pesquisadora), na apreensão dos saberes-fazeres constituídos em reflexão sobre os artefatos narrativos geradores e expressos nos diários de aula. Dito isto, o trabalho com material narrativo, é resgatado das recordações a partir de suas experiências mais significativas, no que diz respeito às suas aprendizagens ou experiências vividas (Ferreira, 2020) na e pela dodiscência em contexto didático
POR UMA (CO)EDUCAÇÃO FÍSICA ANTIRRACISTA
A escrita deste trabalho, bem como as nossas trajetórias de estudos e pesquisas sobre educação física escolar e relações étnico-raciais e de gênero permite-nos reafirmar que assim como as mulheres trans e lésbicas,
As mulheres negras, ao lado dos homens negros, aparecem no processo histórico da educação física esporadicamente, como exceções. Ora para justificar o desempenho em determinada modalidade esportiva, ora para reforçar situações de superação e de esforço individual fora do contexto das conquistas coletivas e da representatividade da mulher negra na educação física brasileira. (Venâncio e Nobrega, 2020, p. 9).
O trecho assinalado por Venâncio e Nobrega (2020) é representativo de como ao mesmo tempo em que o acesso ao esporte e as demais manifestações da cultura corporal de movimento são historicamente negados às mulheres e homens negros, eles e elas aparecem nos discursos produzidos acerca da educação física em condição de destaque apenas numa perspectiva individualista e, portanto, como forma de reforçar a ideologia da meritocracia e exaltar os valores capitalistas. Desconsiderando, portanto, o processo histórico de lutas e conquistas dos movimentos sociais.
Ao apresentar o debate internacional sobre a escola mista, fundamentando-se, principalmente, nos estudos da socióloga francesa Claude Zaidman, Auad (2004) mostra que a introdução da escola mista, apesar de ser um avanço, não foi suficiente para eliminar as diferenças hierarquizadas estabelecidas na escola. Auad chama a atenção para o fato de que as “misturas” de meninas e meninos na escola e fora dela são permeadas por relações de gênero e dependendo da forma como são conduzidas, podem potencializar ou combater as hierarquizações. A autora também sinaliza que o avanço rumo à coeducação depende do desenvolvimento de ações orientadas, como políticas públicas de coeducação.
Na educação física escolar, a maioria dos estudos que se apropriam da perspectiva de gênero defende as “misturas”, partindo da ideia de que é o melhor caminho para a coeducação (Corsino e Auad, 2012). Parece que o debate ainda necessita de aprofundamento, tendo em vista que, apesar de hoje a maioria das escolas serem mistas, as aulas de educação física ainda são fortemente influenciadas por sua trajetória marcada por uma lógica colonialista em que o corpo é fragmentado e docilizado (Grando e Pinho, 2016) e pela esportivização, que por muito contribuiu para as “separações” durante as aulas (Corsino e Auad, 2012; Altmann, 2015).
Muitas vezes, apesar de compreender a importância das misturas para que a educação física se constitua como um espaço de aprendizagem mais democrático, muitos professores e professoras acabam por separar meninos e meninas para fugir dos conflitos os quais são inevitáveis devido às múltiplas formas de resistência exercidas pelas meninas nas relações de poder que surgem durante as aulas. Trata-se, portanto da aprendizagem da separação, como é possível verificar
Assim, ocorria a separação em grupos de meninos e meninas nos jogos na escola, como se os próprios jogos agissem como práticas que ensinassem meninas e meninos que há jogos barulhentos e agitados a serem realizados pelos meninos, e jogos discretos e limitados no espaço a serem realizados pelas meninas, denomino esse tipo de prática como a ‘aprendizagem da separação’. (Auad, 2004, p.105).
A aprendizagem da separação se dá, dentre diversos motivos, pelo fato de que o professor e a professora, mesmo com boas intenções, não sabem como lidar com os conflitos que ocorrem durante as “misturas” (Corsino e Auad, 2012), que além de estarem relacionados à concepção sexista que se tem do feminino nas práticas corporais, há uma racialização responsável por potencializar as hierarquizações produzidas em alguns conflitos, sobretudo quando se trata da participação de meninas negras nas aulas misturadas, como é possível verificar no relato de um professor em uma escola municipal da região metropolitana de São Paulo
Sim, um chama o outro de preto, macaco, mulherzinha, falam que as meninas não sabem fazer nada, são fracas, etc. [...]. Vejo essa questão como sendo um pouco complicada de fazer os alunos entenderem, na maioria das vezes eu paro a aula, faço uma roda de conversa, pergunto se é certo tal atitude, porque, faço eles dialogarem e discutirem a respeito, mas mesmo assim às vezes parece que isso não adianta. (Corsino, 2015, p. 255).
A intervenção realizada diante da situação relatada pelo professor se coaduna com alguns dos princípios da coeducação discutidos por Saraiva (2005), que reforça a importância das ações dos professores e professoras chamando a atenção para o fato de que eles(as) devem oferecer um tratamento igual em relação a meninas e meninos, assim como fazer as mesmas exigências para ambos e aproveitar os problemas ocorridos durante as aulas para sua problematização.
Dessa forma, apesar de muitos se mostrarem a favor das “misturas”, a educação física escolar ainda não superou totalmente a característica histórica marcada pela racialização e mesmo depois da introdução das escolas mistas, as relações de gênero em que meninas são subalternizadas por meio de diversos mecanismos (Sousa, 1994), ora por serem impedidas de praticar esportes, ora por serem separadas dos meninos nas aulas de educação física e também pela ocupação masculina dos espaços (Corsino e Auad, 2012; Altmann, 2015).
Por outro lado, é de suma importância o reconhecimento de que apenas com aulas “misturadas” em que mulheres trans, lésbicas, indígenas, de classe trabalhadora e seus saberes diversos, sejam inseridos nas aulas em que as manifestações da cultura corporal de movimento estão presentes a partir do reconhecimento das conquistas coletivas históricas dos movimentos sociais é que poderemos lutar por uma educação física coeducativa e que também deve ser antirracista.
RELATO AUTOBIOGRÁFICO DA EXPERIÊNCIA DIDÁTICA MIMÉTICA E O DESENHO TEÓRICO-METODOLÓGICO
Caminhamos por um relato autobiográfico da experiência mimética (Ricouer, 1994) em contexto didático com jovens estudantes de ensino médio, evidenciando a interseccionalidade como ferramenta analítica elaborada do Collins e Bilge (2020). A ação didática foi inspirada pelos ateliês biográficos (Delory-Momberger, 2006) e matizada pela teoria da ação revolucionária (Freire, 2018) no contexto das aulas de Educação Física no Ensino Médio Integrado no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) campus Fortaleza, lócus da nossa investigação. Realizada na primeira etapa do semestre 2023.2, na turma do Curso Técnico de Informática, unidade temática de esportes com tema gerador - educação antirracista, totalizando a carga horária de 12 horas.
A teoria da ação revolucionária funda-se na relação dialógica pela intersubjetividade que precede o diálogo sobre os sujeitos-atores (líderes revolucionários) e atores sujeitos (oprimidos), produzindo uma interação social cujo objeto que intermedia é a realidade educativa transformada para a conscientização (Freire, 2018).
Enfatizamos que a análise interpretativa-compreensiva (Ricouer, 1996) do corpus teórico-empírico desse artigo, toma como centralidade os diários de aula da professora do IFCE na mediação pedagógica junto a uma turma de ensino médio integrado no semestre 2023.2, em movimento de fundação da experiência didática mimética e produção de ateliês biográficos. A atenção aos diários de aula como dispositivo de mediação pedagógica se relaciona com os estudos de Almeida (2007), Broner (2007), Freitas (2008), Liberali (1999), Zabalza (1994), Abreu et al (2021) e Abreu (2023), pois em conjunto reconhecemos os construtos de implicação (auto) reflexiva pela intersubjetividade e intercriticidade na ação didática pedagógica.
Dito isto, produzimos ateliês biográficos a fim de recrudescer a dimensão socializadora da atividade narrativa, em que se harmoniza o nosso espaço tempo individual com o espaço tempo social (Delory-Momberger, 2006), configurando portanto, um movimento dialógico em que os sujeitos-autores(as), ao narrarem, ressignificam sua experiência e uma vez ressignificada incide na reinvenção de si, em contexto de alteridade, refletindo sobre uma educação antirracista, temática geradora em mediação pedagógica na relação da dodiscência (Freire, 2018). Acerca disso, Venâncio (2014) colabora com os estudos freireanos, dizendo que o processo educativo deveria, além de valorizar as formas de aprender existentes, enaltecer também as formas criadas pelos(as) educandos(as) de aprender e apreender o mundo, através das relações e das experiências que vivem.
A mediação pedagógica tomada pela experiência mimética refere-se a esse movimento que articula uma tríplice dimensionalidade da narrativa (Quadro 1): Mimese I, entendida como prefiguração, momento de pré-compreensão do mundo posto e da ação narrativa da personagem; Mimese II, posta como configuração da ação, momento interpretativo da narrativa; Mimese III, afeta à reconfiguração da ação narrativa, momento da reflexão do narrado que se desdobra em novas configurações e reconfigurações narrativas, possibilitadas por diversificadas leituras em processos de fala/escuta/interpretação/compreensão entre narrador, ouvinte e leitor (Ricouer, 1994).
Deste modo, o corpus teórico-empírico apreendeu às intersubjetividades das relações entre o vivido e o narrado nos diários de aula docente como expressão do conhecimento em análise hermenêutica cujo enfoque narrativo priorizou a tematização sobre educação antirracista cuja apresentação é descortinada na próxima seção por meio de sínteses miméticas que desvelam uma didática coeducativa em análise interseccional.
SÍNTESES MIMÉTICAS QUE DESVELAM UMA DIDÁTICA COEDUCATIVA EM ANÁLISE INTERSECCIONAL
As sínteses miméticas produzidas por meio dos diários de aula na análise compreensiva interpretativa dos ateliês biográficos são construções narrativas no âmbito da mediação pedagógica em que os dialogantes tem possibilidade de exercitar práticas analíticas cuja acepção da experiência com sentido é pautada pelo diálogo interior consigo mesmo e com os outros (Delory-Momberger, 2016), em atos de biografização, pois estes “constroem as próprias narrativas com um outro das narrativas do outro como si, tramas que organizem o vivido com sentido, embora idiossincrático às possibilidades compreensivas de cada si mesmo” (Abrahão, 2018, p. 46).
A seguir, apresentamos duas sínteses miméticas que desvelam uma didática coeducativa em análise interseccional que intitulamos: 1 - um sonho olímpico distante; 2- Racismo do Futebol e Cultura da paz.
Na síntese mimética um sonho olímpico distante (Figura 1) as afetações em transitividade entre a mimese 1 e mimese 3 se desdobraram nas reflexividades em ação reconfigurações narrativas: 1- as pessoas negras não tem acesso a direitos básicos; 2- é um drama o cotidiano de pessoas negras; 3- a política de cotas se coloca importante para acesso aos direitos humanos.
É interessante notarmos a elaboração da estudante 5 que ao analisar a imagem apresentada pela estudante 1 e corroborar com a estudante 2, que enxergou uma praticante de ginástica rítmica num contexto urbano ocupado por pessoas oriundas da classe trabalhadora, parece questionar a ideologia da meritocracia no esporte ao dizer que “nas Olimpíadas poderia ter cotas para atletas negros”. O comentário remete ao que assinalou Venâncio e Nobrega (2020, p. 9), “as mulheres negras, ao lado dos homens negros, aparecem no processo histórico da educação física esporadicamente, como exceções”.
Ao corroborar com Lélia Gonzalez (2020) que a população negra faz parte da massa marginal crescente e isso implica em piores condições de educação, saúde, habitação, emprego e outras, a estudante 3 reforça as dificuldades pelas quais a menina parece enfrentar, mulher, negra, moradora da periferia, três condições as quais suas conexões são responsáveis por potencializar as dificuldades de acesso ao esporte e impor à menina a necessidade de “muitas piruetas para sobreviver” (estudante 3), mas que segundo a estudante 1, seriam amenizadas se existissem cotas no esporte, reivindicando uma perspectiva de justiça social. Apreendemos a justiça social em diálogo com Bell Hooks (2021) em evidência combativa de qualquer forma de segregação, marginalização, e opressão engendrada numa ética amorosa. A inferiorização da mulher é explicitada por Oyěwùmí (2021) como uma ação fortemente presente no processo de colonização que provocou alterações acerca da história, dos costumes e dos valores africanos a partir da reconceitualização destes frente aos europeus, consistindo numa relação entrelaçada entre desvantagem socioeconômica e subordinação de gênero.
A estudante 4 ao lembrar da música Nego Drama, dos Racionais, enfatizando o excerto “Nego drama. Entre o sucesso e a lama. Dinheiro, problemas, invejas, luxo, fama. Nego drama. Cabelo crespo e a pele escura. A ferida, a chaga, à procura da cura”, reporta o drama sobre os modos de viver da negritude que operam muitas vezes sobre dualidades e antagonismos que revelam a inferioridade dos corpos negros. Como nos diz Nascimento (2022, p. 139): “[...] você como preto se anula, passa viver outra vida, flutua sem nenhuma base onde pousar, sem referência e sem parâmetro do que deveria ser a sua forma peculiar” (Nascimento, 2022, p. 139).
Em apreciação da síntese mimética racismo no futebol e cultura da paz (Figura 2) as afetações em transitividade entre a mimese 1 e mimese 3 se desdobraram nas reflexividades em reconfigurações narrativas: 1- racismo e religião são guerras históricas presentes na nossa realidade social; 2- racismo e cultura da paz são temas que atravessam o debate esportivo; 3- é preciso que isso se torne pauta nas reuniões junto aos líderes nacionais e internacionais.
Síntese mimética – Racismo do Futebol e Cultura da paz. Fonte: Elaborado pelos autores(as).
A estudante 10 ao trazer como leitura imagética a participação do Pelé, jogador brasileiro negro reconhecido mundialmente, na Conferência da Organização das Nações Unidas, chama atenção para a pauta do racismo e cultura de paz no esporte, despertada pela estudante 9, lembrando dos casos de racismo contra o jogador Vinicius Júnior nos últimos anos.
Em concordância com Nobrega (2020, p. 35) “há muitas batalhas na (re)invenção da participação negra na educação, no próprio entendimento de educação, educação física que não nos respeita como seres humanos e outros grupos condenados”, e que se fazem como uma tessitura de sonho coletivo sobre as enunciações de resistências/reviravoltas na educação brasileira.
No que tange a discussão sobre racismo e futebol, Santana (2023) elucida que desenvolveu junto a sua turma de estudantes de educação física escolar no ensino fundamental, uma pesquisa sobre quantos negros eram dirigentes de clubes ou técnicos dos clubes da série A do campeonato brasileiro com o objetivo de estabelecer um olhar crítico para as relações raciais que se constituem no esporte profissional.
De outro modo, a estudante 13 em torno da discussão sobre cultura de paz apreende uma relação temática com a guerra política, econômica e religiosa em acontecimento histórico nos territórios de Palestina e Israel, sugerindo que a imagem construída pela estudante 7 refizesse a bandeira caracterizando os dois países em guerra.
Nessa tematização Coelho e Bossle (2023) apontam uma crescente evangelização das periferias das grandes capitais brasileiras como um fenômeno recorrente no contexto escolar enfatizando a intolerância religiosa e aspectos ligados à antinegritude. Como proposta utilizam jogos e brincadeiras para problematizar a intolerância religiosa como um ponto de resistência e cultivo da negritude na promoção de uma Educação Física escolar crítica pautada numa pedagogia problematizadora.
Portanto, enfatizam em diálogo com Vargas (2017, 2020) a emergente necessidade de trazer à tona a antinegritude e o antagonismo estrutural. Nesse contexto, a estudante 15 também em elucidação reflexiva com a professora afirma o racismo e a intolerância religiosa como marcadores históricos cuja realidade presente é inadmissível.
Com base na reflexividade produzida nas sínteses miméticas e com os autores(as) que dialogamos, reconhecemos a necessária transformação educativa na direção de mudanças nas políticas educacionais e na didática, o que pra nós se apresenta como uma dimensão coeducativa no que tange as assunções para uma educação antirracista, esperança de um devir temporal que queremos fazer recrudescer.
CONSIDERAÇÕES
A educação física precisa ser tão coeducativa e antirracista a ponto de se tornar redundante utilizar estes adjetivos para ela, ou seja, enquanto coeducação e antirracismo não for inerente à educação física, há de se insistir nestes termos como forma de tornar vivo aquilo que tem sido negligenciado neste campo de estudos.
Não há coeducação sem antirracismo assim como não há antirracismo sem coeducação, a percepção de que os masculinos negros e brancos, assim como os femininos negros e brancos são tratados de modos distintos, requer perceber as conexões entre as identidades de gênero, orientação sexual, étnicas, raciais e de classe, de modo a ter o reconhecimento das diferenças como objetivo a ser alcançado.
Uma perspectiva interseccional (Collins, 1989, 2020; Collins e Bilge, 2020) na educação física escolar pode contribuir, por exemplo, tanto para a negritude não ser desconsiderada numa análise sobre a coeducação, quanto para que as relações de gênero e sexualidade não sejam desconsideradas numa pesquisa sobre antirracismo na educação física escolar. Há de se perguntar qual seria a influência da identidade racial na construção de uma aula/didática coeducativa e, ao mesmo tempo qual seria a contribuição das relações de gênero na construção de uma aula/didática ou programa de ensino que se denomine antirracista.
Em aproximação a uma didática coeducativa, pudemos enaltecer que a experiência mimética desvelada por ateliês biográficos fez emergir os elementos da realidade e as possibilidades sobre as situações-limites em contexto de desvelamento crítico nas aulas de educação física no ensino médio tendo como dispositivo pedagógico a construção de narrativas extraindo às linguagens e identidades das juventudes na perspectiva analítica da interseccionalidade.
Devemos considerar também que a profissionalidade docente perpassa a consciência de autonomia, que, como se percebe, não se apresenta como um produto, acessível e delimitado em documentos político-educacionais que negam o debate da coeducação e do antirracismo, mas sim reconstruída no cotidiano da práxis, pois transgressora e insubordinada, cujo investimento autobiográfico por sínteses miméticas se revela potente a construção de uma didática coeducativa em análise interseccional. Ademais, a tomada de consciência sobre as experiências autoformadoras desvela o potencial do sujeito que emerge como um referente experiencial (Abreu, 2020).
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FINANCIAMENTO
Sem financiamento
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
13 Dez 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
15 Maio 2024 -
Aceito
29 Set 2024