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Idosos praticantes de hidroginástica: significados atribuídos à atividade física

Elderly and old adults practice of aquatic-based exercises: the meanings given to physical activity

Ancianos practicantes de aeróbic acuático: significados atribuidos a la actividad física

RESUMO

Esta investigação teve por objetivo analisar a compreensão que idosos, praticantes de hidroginástica, atribuem à atividade física. A metodologia utilizada foi de natureza qualitativa de viés etnográfico, de cunhos descritivo e exploratório. Para a coleta dos dados, foram empregados recursos, tais como: entrevistas em profundidade, a observação participante e o diário de campo. O material coletado foi examinado por meio da análise do relato etnográfico. Pôde-se notar que os discursos dos idosos estavam perpassados por aspectos do viés epidemiológico da atividade física. Concluiu-se que a compreensão dos idosos sobre a atividade física estava associada à saúde, enquanto componente biomédico.

Palavras-chave:
Etnografia; Desenvolvimento humano; Atividade física; Idoso

ABSTRACT

The present investigation aimed at analyzing the understanding by hydrogymnastics practicing elderly people in relation to physical activity. The scientific method of choice was qualitative with an ethnographic research approach, of a descriptive and exploratory type. For data collection, we have made use of means such as in-depth interviews, participant observation and field notes. The collected material has been examined through the ethnographic report analysis. It has been possible to notice that the discourse of the elderly partipants was about about the aspects of the epidemiologic perspective of physical activity. In conclusion, the elderly people understanding regarding physical activity was related to health as a biomedical component.

Keywords:
Ethnography; Human development; Physical activity; Elderly people

RESUMEN

Esta investigación tuvo como objetivo analizar la comprensión que los ancianos, practicantes de aeróbicos acuáticos, atribuyen a la actividad física. La metodología utilizada fue de característica cualitativa con carácter etnográfico, descriptivo y exploratorio. Para la recolección de datos se utilizaron recursos como: entrevistas en profundidad, observación participante y diario de campo. El material recolectado fue analizado a través del análisis del informe etnográfico. Se señaló que los discursos de los ancianos estaban impregnados de aspectos epidemiológicos de la actividad física. Se concluyó que la comprensión de la actividad física por parte de los ancianos se asoció con la salud, como componente biomédico.

Palabras-clave:
Etnografía; Desarrollo humano; Actividad física; Anciano

INTRODUÇÃO

No atual estágio civilizatório, o número de idosos cresce de forma galopante em todo o globo, bem como no Brasil (Minayo, 2019Minayo MCS. The imperative of caring for the dependent elderly person. Cien Saude Colet. 2019;24(1):247-52. http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018241.29912018. PMid:30698257.
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; Veras e Cordeiro, 2019Veras R, Cordeiro R. A contemporary care model for older adults should seek coordinated care, greater quality and the reduction of costs. Int J Fam Community Med. 2019;3(5):210-4. http://dx.doi.org/10.15406/ijfcm.2019.03.00159.
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). Faz-necessário destacar que cada nação adere a critérios peculiares para definir o que seja uma pessoa idosa. Adotou-se, para esta investigação, o referencial estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS, 2005OMS: Organização Mundial da Saúde. Envelhecimento ativo: uma política de saúde [Internet]. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2005 [citado 2020 Jul 7]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/envelhecimento_ativo.pdf
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), que reconhece como idoso o sujeito com idade igual ou superior a 60 anos nos países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil.

Dados da Organização das Nações Unidas (ONU, 2019ONU: Organização das Nações Unidas. ONU diz que número de pessoas com mais de 60 anos deve subir 46% até 2030 [Internet]. Brasil: ONU; 2019 [citado 2020 Out 5]. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2019/10/1689152
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) assinalam que essa população, em nível mundial, tende, entre os anos de 2017 e 2030, a aumentar 46%. Tal fato se deve, em grande medida, a uma ampliação da expectativa de vida, em face de melhoras substanciais nos parâmetros de saúde das populações (Oliveira et al., 2019Oliveira DV, Franco MF, Antunes MD. A prática de atividade física como fator de promoção da saúde de idosos. Rev Interdiscip Promoç Saúde. 2019;2(1):70-7.).

Nessa contextura, um dos hábitos mais recomendados para se ter uma vida salutar é a atividade física (Rai et al., 2020Rai R, Jongenelis MI, Jackson B, Newton RU, Pettigrew S. Factors influencing physical activity participation among older people with low activity levels. Ageing Soc. 2020;40(12):2593-613. http://dx.doi.org/10.1017/S0144686X1900076X.
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; Warburton e Bredin, 2017Warburton DER, Bredin SSD. Health benefits of physical activity: a systematic review of current systematic reviews. Curr Opin Cardiol. 2017;32(5):541-56. http://dx.doi.org/10.1097/HCO.0000000000000437. PMid:28708630.
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). Siedler et al. (2021)Siedler MR, Lamadrid P, Humphries MN, Mustafa RA, Falck-Ytter Y, Dahm P, et al. The quality of physical activity guidelines, but not the specificity of their recommendations, has improved over time: a systematic review and critical appraisal. Appl Physiol Nutr Metab. 2021;46(1):34-45. http://dx.doi.org/10.1139/apnm-2020-0378. PMid:32991821.
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apontam algumas contribuições à saúde, advindas da prática regular de atividade física, tais como: redução do risco cardiovascular, derrames, diabetes tipo II, sobrepeso e obesidade. Em contrapartida, um estilo de vida fisicamente inativo, aumenta a incidência do acometimento concernente a essas e tantas outras enfermidades (Fonte et al., 2016Fonte E, Feitosa PH, Oliveira LT No, Araújo CL, Figueiroa JN, Alves JG. Effects of a physical activity program on the quality of life among elderly people in Brazil. J Family Med Prim Care. 2016;5(1):139-42. http://dx.doi.org/10.4103/2249-4863.184639. PMid:27453859.
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; Oliveira et al., 2019Oliveira DV, Franco MF, Antunes MD. A prática de atividade física como fator de promoção da saúde de idosos. Rev Interdiscip Promoç Saúde. 2019;2(1):70-7.).

Haja vista os diversos benefícios, a atividade física passou a ser objeto de distintos estudos, sobretudo tendo como arrimo a abordagem epidemiológica (Antunes et al., 2020Antunes DSH, Knuth AG, Damico JGS. Educação Física e promoção da saúde: uma revisão de perspectivas teórico-metodológicas no Brasil. Educ Fís Cienc. 2020;22(1):e116. http://dx.doi.org/10.24215/23142561e116.
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; Damico e Knuth, 2014Damico JGS, Knuth AG. O des(encontro) das práticas corporais e atividade física: hibridizações e borramentos no campo da saúde. Movimento. 2014;20(1):329-50. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.39474.
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; Ramires et al., 2014Ramires V, Becker L, Sadovsky A, Zago A, Bielemann R, Guerra P. Evolução da pesquisa epidemiológica em atividade física e comportamento sedentário no Brasil: atualização de uma revisão sistemática. Rev Bras Atividade Física Saúde. 2014;19(4):529-47. http://dx.doi.org/10.12820/rbafs.v.19n5p529.
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). Para Carvalho e Nogueira (2016)Carvalho FFB, Nogueira JAD. Práticas corporais e atividades físicas na perspectiva da promoção da saúde na atenção básica. Cien Saude Colet. 2016;21(6):1829-38. http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015216.07482016. PMid:27276539.
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, a ciência moderna vale-se da tessitura teórico-metodológica da Epidemiologia, visando a estabelecer convergências entre a atividade física e a saúde. Tal modelo é ostensivamente propalado em programas comunitários, intervenções populacionais, bem como pela mídia (Damico e Knuth, 2014Damico JGS, Knuth AG. O des(encontro) das práticas corporais e atividade física: hibridizações e borramentos no campo da saúde. Movimento. 2014;20(1):329-50. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.39474.
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; Leitzke et al., 2020Leitzke ATS, Rigo LC, Knuth AG. Estratégias biopolíticas de construção do corpo e vigilância da saúde: o caso “Medida Certa”. Rev Bras Ciênc Esporte. 2020;42:e2014. http://dx.doi.org/10.1016/j.rbce.2018.12.001.
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; Maciel e Couto, 2018Maciel MG, Couto ACP. Programas governamentais de atividade física: uma proposta de política pública. Perspect em Políticas Públicas. 2018;11:55-79.), reforçando o discurso biomédico.

Sob a égide de tal discurso, legitimado pelo saber científico, o movimento humano foi sistematizado e mecanizado. Noutras palavras, a atividade física foi associada de maneira linear e casuística à saúde, criando um discurso hegemônico. Para além dessa vertente, há outras proposições que buscam explorar os distintos significados e sentidos que podem ser atribuídos à atividade física como, por exemplo, a perspectiva fenomenológica (Maciel, 2018Maciel MG. Atividade física humanizada: uma perspectiva a partir das experiências de ócio. Riga Latvia: Novas Edições Acadêmicas; 2018.; Surdi, 2019Surdi AC. A Educação Física e o movimento humano significativo: uma possibilidade fenomenológica. Curitiba: Appris Editora; 2019.), cultural e crítica — práticas corporais (Carvalho e Nogueira, 2016Carvalho FFB, Nogueira JAD. Práticas corporais e atividades físicas na perspectiva da promoção da saúde na atenção básica. Cien Saude Colet. 2016;21(6):1829-38. http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015216.07482016. PMid:27276539.
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). Entende-se que todas as abordagens são legitimas em suas manifestações, cabendo a cada sujeito, assim como aos pesquisadores, escolherem qual perspectiva melhor lhes convêm.

Neste trabalho, adotou-se como suporte teórico a vertente fenomenológica. Segundo Maciel (2018)Maciel MG. Atividade física humanizada: uma perspectiva a partir das experiências de ócio. Riga Latvia: Novas Edições Acadêmicas; 2018., é preciso refletir, amiúde, sobre a atividade física. Esta última, conforme o autor supracitado, precisa ser investigada enquanto componente ontológico, perpassada pelas subjetividades e atrelada ao sentido da vida. Desse modo, o estudioso defende a humanização da atividade física, conferindo-lhe sentido similar ao proposto nas experiências de ócio.

Conquanto o termo “ócio” guarde relação, no senso comum, com a vadiagem, com a preguiça e com a indolência, investigadores caracterizam-no como uma experiência humana psicossocial livre, satisfatória e com um fim em si mesma, ou seja, autotélica (Cuenca, 2014Cuenca MC. Aproximación al ocio valioso. Rev Bras Estud do Lazer. 2014;1(1):21-41.; Maciel et al., 2019aMaciel MG, Saraiva LAS, Martins JCO, Junior PRV, Romera LA. Lazer e ócio nos discursos de atores sociais de um programa governamental de atividade física. J Phys Educ (Maringá). 2019a;30(1):e3036. http://dx.doi.org/10.4025/jphyseduc.v30i13036.
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; Martins, 2015Martins JCO. Ócio e promoção da saúde. Rev Bras em Promoção da Saúde. 2015;28(3):297-300. http://dx.doi.org/10.5020/18061230.2015.p297.
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). O ócio, em seu traço autotélico, não reside na atividade concreta, mas nos sentidos que os sujeitos atribuem a determinadas vivências, como, por exemplo, a atividade física.

Desde já, impende advertir que, ao longo de todo este texto, o termo ócio será abordado a partir do traço autotélico, tido por determinados autores como o verdadeiro ócio. Segundo esse viés, o termo volta-se ao desenvolvimento humano e ao sentido da vida. É na esteira dessa perspectiva de ócio que Maciel (2018)Maciel MG. Atividade física humanizada: uma perspectiva a partir das experiências de ócio. Riga Latvia: Novas Edições Acadêmicas; 2018. fundamenta a proposta da atividade física humanizada, a qual valoriza as subjetividades, ou seja, está perpassada pela esfera psicológica e autotélica. Ao propor a humanização da atividade física, o referido autor, evidentemente, não almeja negligenciar a abordagem epidemiológica, mas procura ampliar o debate no que concerne à temática.

Cumpre sublinhar que, de modo geral, as investigações relativas à recente propositura encontram-se em estágio embrionário, mormente, no tocante ao público idoso. É de todo desejável, portanto, empreender novas investigações, visando a abordar reflexões sobre o assunto. Agregue-se, ainda, o fato de os estudos acerca do ócio autotélico serem, segundo Maciel et al. (2019a)Maciel MG, Saraiva LAS, Martins JCO, Junior PRV, Romera LA. Lazer e ócio nos discursos de atores sociais de um programa governamental de atividade física. J Phys Educ (Maringá). 2019a;30(1):e3036. http://dx.doi.org/10.4025/jphyseduc.v30i13036.
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, modestos em âmbito brasileiro. Para ampliar o arcabouço teórico dessa proposta, decidiu-se pesquisar um grupo de idosos, praticantes de hidroginástica, na cidade de Fortaleza-CE. Optou-se pela modalidade, em virtude de ser uma das mais praticadas por esse universo populacional (Teixeira et al., 2018Teixeira RV, Lima WDS, Andrade LN, Clineu F, França Q. Fatores que levam os idosos a prática da hidroginástica. Motricidade. 2018;14(1):175-8.).

Mercê das variantes aqui expostas, faz-se inescapável refletir sobre a questão norteadora deste texto: qual a compreensão que os idosos, praticantes de hidroginástica, atribuem à atividade física? Assim, este trabalho objetiva analisar a compreensão que idosos, praticantes de hidroginástica, atribuem à atividade física. Ademais, pretende-se descrever a dinâmica das aulas da modalidade numa agremiação da cidade de Fortaleza-CE.

MÉTODO

Natureza e abordagem da pesquisa

Este trabalho fundamentou-se numa abordagem do tipo qualitativa (Richardson, 2017Richardson RJ. Pesquisa social: métodos e técnicas. São Paulo: Atlas; 2017.) de viés etnográfico (Aguirre e Martins, 2014Aguirre ÁB, Martins JCO. A pesquisa qualitativa de enfoque etnográfico. Coimbra: Grácio Editor; 2014.; Hammersley, 2018Hammersley M. What is ethnography? Can it survive? Should it? Ethnogr Educ. 2018;13(1):1-17. http://dx.doi.org/10.1080/17457823.2017.1298458.
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), de cunhos descritivo e exploratório (Richardson, 2017Richardson RJ. Pesquisa social: métodos e técnicas. São Paulo: Atlas; 2017.). Frise-se, por oportuno, que a pesquisa qualitativa apresenta diferentes abordagens, dentre elas a etnografia. A adoção do viés etnográfico possibilitou maior aproximação com os idosos e com os locais destinados à prática de hidroginástica. Ademais, pôde ser capaz de oferecer, in loco, conhecimentos relativos aos aspectos por eles destacados ao participarem de tal modalidade.

Participantes e lócus

Esta pesquisa contou com a participação de nove idosos, sendo quatro do sexo masculino e cinco do sexo feminino, com média de idade de 69,5 anos. Como critérios de inclusão estipularam-se que os participantes tivessem idade igual ou superior a 60 anos; praticassem hidroginástica por, pelo menos, um ano com frequência de, pelo menos, dois dias na semana; e que residissem em Fortaleza-CE. Ressalte-se que a quantidade de participantes foi definida a partir do critério de saturação de dados (Saunders et al., 2018Saunders B, Sim J, Kingstone T, Baker S, Waterfield J, Bartlam B, et al. Saturation in qualitative research: exploring its conceptualization and operationalization. Qual Quant. 2018;52(4):1893-907. http://dx.doi.org/10.1007/s11135-017-0574-8. PMid:29937585.
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). A Tabela 1 apresenta, de forma concisa, particularidades sobre os participantes adeptos da hidroginástica.

Tabela 1
Informações sobre os participantes da pesquisa.

A pesquisa foi realizada numa agremiação, localizada num bairro nobre da cidade de Fortaleza-CE. O critério para a definição do lócus foi o da conveniência, em virtude de abrigar quantidade significativa de idosos praticantes de hidroginástica. As aulas da modalidade eram realizadas nos seguintes horários, a saber: 6h, 6h50, 8h30, 9h20, 18h30 e 20h. Optou-se por observar a turma das 6h50 nos dias de terça-feira e quinta-feira, uma vez que, em conversas com o professor — anterior à entrada em campo —, o profissional reforçou que o referido horário dispunha de um efetivo maior de idosos. A turma em que as observações foram realizadas era composta por 25 alunos matriculados, no entanto, somente 12 frequentavam as aulas regularmente, em face de problemas de saúde, que os impossibilitavam de comparecer com maior frequência, como constatado nas entrevistas.

A investigação foi empreendida em 2018, por período acumulado de um ano. Conforme Aguirre e Martins (2014)Aguirre ÁB, Martins JCO. A pesquisa qualitativa de enfoque etnográfico. Coimbra: Grácio Editor; 2014., os trabalhos de natureza etnográfica iniciam-se desde a demarcação do campo de pesquisa e estendem-se até a elaboração do relatório final. Durante a inserção no campo de pesquisa, foram realizadas duas visitas semanais ao campo por um dos autores deste trabalho.

Instrumentos e procedimentos

Para este trabalho, empregou-se, no que tange à coleta de dados, prioritariamente duas técnicas, consideradas fundamentais na pesquisa etnográfica: observação participante e entrevistas. A observação participante favoreceu à elucidação dos significados e do modo como são realizadas as práticas de atividade física com idosos, não se limitando a uma postura passiva, de observação parca do contexto grupal. Pretendeu-se, assim, interagir com o fenômeno estudado, a fim de obter informações pertinentes sobre o tema em questão. Adicionalmente, a observação participante preconiza o emprego do diário de campo, ferramenta necessária às anotações pelo pesquisador daquilo que é visto e ouvido dos participantes em relação a situações relevantes para a investigação.

No que concerne às entrevistas, empregou-se a entrevista em profundidade (Aguirre e Martins, 2014Aguirre ÁB, Martins JCO. A pesquisa qualitativa de enfoque etnográfico. Coimbra: Grácio Editor; 2014.), a partir da pergunta disparadora “O que significa para o(a) senhor(a) praticar atividade física?”. As entrevistas, com duração média de uma hora, foram previamente agendadas e realizadas individualmente entre os meses de outubro e dezembro de 2018, em local reservado e escolhido pelos participantes. Elas foram gravadas por meio de áudio e posteriormente transcritas.

É válido salientar que, no transcurso da investigação, foram considerados os aspectos éticos preconizados na resolução nº 466/12 e nº 510/16, do Ministério da Saúde, que orienta pesquisas com seres humanos. Assim, a pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética (parecer 2.871.718.). Ressalte-se, por oportuno, que todos os participantes foram devidamente informados sobre os reais propósitos da investigação e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), de modo que suas identidades foram mantidas em sigilo. Em adição, os responsáveis pela agremiação consentiram que a pesquisa fosse realizada no local, conforme pontuado na Carta de Anuência.

Análise dos dados

Com o propósito de analisar as informações advindas da pesquisa de campo, a observação participante viabilizou o relato etnográfico, que teve por escopo descrever o campo de investigação em sua totalidade. Para tanto, as impressões e a experiência do pesquisador no campo etnográfico serviram de aporte para interpretação do material coligido (Aguirre e Martins, 2014Aguirre ÁB, Martins JCO. A pesquisa qualitativa de enfoque etnográfico. Coimbra: Grácio Editor; 2014.; Hammersley, 2018Hammersley M. What is ethnography? Can it survive? Should it? Ethnogr Educ. 2018;13(1):1-17. http://dx.doi.org/10.1080/17457823.2017.1298458.
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). Conforme Spradley (1980)Spradley JP. Participant observation. Nova Iorque: Holt, Rinehart and Winston; 1980., uma das formas para a compreender as informações advindas do diário de campo é a análise temática, em que o etnógrafo identifica padrões de significados — presentes nos discursos dos participantes — e os organiza em categorias. Ao fim e ao cabo, a categoria que mais se destacou foi: “ênfase no viés biomédico”. Em face das limitações de espaço, os resultados e as discussões cingiram-se a essa categoria.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Ao longo de seis meses, um dos autores desta investigação participou, na condição de aluno, das aulas de hidroginástica. Após demarcar o campo de pesquisa, o pesquisador entrou em contato com o professor de hidroginástica, que, com o passar do tempo, tornou-se a principal informante do etnógrafo. Ele dispunha de informações sobre a dinâmica das aulas bem como conhecia peculiaridades da história de vida dos futuros participantes do estudo. No início do mês de setembro de 2018, o professor informou aos idosos que, durante alguns meses, a turma contaria com um novo aluno, que faria uma pesquisa naquele ambiente. No primeiro contanto com o grupo, os alunos apresentaram-se, falavam de suas vidas e perguntavam especificidades da pesquisa. A relação entre o investigador e os idosos foi, paulatinamente, plasmada por laços de união e confiança.

Além de todas as atividades realizadas na piscina, o etnógrafo frequentou as confraternizações e aniversários dos alunos da turma bem como participou do grupo no WhatsApp — que reunia o professor e os colegas da hidroginástica. Ao estabelecer contatos mais sólidos com os idosos, o pesquisador passou, então, a convidá-los para participar da investigação. A seguir, serão apresentadas descrições sobre a dinâmica das aulas de hidroginástica na agremiação. Por fim, analisar-se-á a compreensão que os praticantes atribuíram à atividade física.

Descrição das aulas de hidroginástica

À medida que os idosos se aproximavam da piscina, o professor convocava o grupo com um efusivo “Bora, turma da hidro!” Após uma chuveirada, os alunos começavam a entrar na piscina, cercada por uma pequena grade. As águas agitavam-se, ao passo que o grupo se posicionava para as orientações iniciais. Com os alunos já prontos, o professor iniciava a sessão com palavras de incentivo: “Bora, juventude!” e “Estou gostando de ver!” Para criar uma atmosfera mais lúdica, não faltava a trilha sonora, especialmente selecionada para a atividade. As músicas eram variadas: forró, rock e pop dos anos 1980.

Os primeiros exercícios destinavam-se a alongar a musculatura dos membros superiores e inferiores. A partir desse momento, conversas e brincadeiras já começavam a se fazer ouvir. Terminado o alongamento, que ocupava de 10 a 15 minutos do tempo total, tinha início uma rápida sequência, marcada por movimentos estacionários e ritmados.

Notou-se que o professor permanecia fora do ambiente aquático, orientando os exercícios e, não raro, participando das conversas com os alunos, o que reforçava o clima de companheirismo. Na borda da piscina, equipamentos, ainda não utilizados durante a aula, coloriam o piso. Eram halteres de borrachas ou espaguetes, equipamento à base de polietileno, utilizado como flutuador para as aulas. De repente, os idosos eram instruídos a correr ou caminhar em sentido horário. Posteriormente, o professor expressava: “Agora é em sentido anti-horário!”. A turma respondia em uníssono: “Ah, agora, vai ficar puxado”. Todos sorriam. A mudança na direção provocava resistência na água, o que dificultava a execução dos movimentos. Observou-se que, nesse instante, o grupo começava a se fragmentar. Surgiam, assim, pequenas “tribos”. Os homens conversavam e realizam, em sua maioria, a atividade conjuntamente.

Em dado momento, era solicitado que os idosos apanhassem os equipamentos localizados na beirada da piscina. Caso eles não conseguissem executar tal tarefa, o professor passava às mãos dos alunos os equipamentos necessários para o restante das atividades. Segurando os materiais, o grupo realizava os movimentos. Uns conversavam, outros relaxavam e outros realizavam os exercícios de forma espontânea, buscando seguir as orientações dadas pelo professor, mas sem muita preocupação com a execução correta da técnica. Cada aluno tinha a liberdade, assim, de realizar e se exercitar da forma como conseguia, uma vez que a grande maioria apresentava problemas de saúde, tais como: obesidade, doenças cardiorrespiratórias, hipertensão arterial, dores de coluna/musculares e diabetes, conforme pontuado ao longo das entrevistas.

Já no fim da sessão, a turma era convidada a descansar e se desfazer dos equipamentos. Para esse momento específico, a piscina dispunha de dois degraus, que permitiam ao praticante deitar-se ou sentar-se e movimentar os membros inferiores. Ao final da aula, a música que estimulava os idosos tornava-se mais suave quando se iniciavam os exercícios de relaxamento. Os gestos e movimentos adquiriam expressões mais leves. “Até mais, turma!”, despedia-se o professor. Vale lembrar que às quintas-feiras, o profissional lia uma mensagem para o grupo — geralmente, um adágio —, com o propósito de finalizar as atividades da semana e estimular reflexões sobre os mais diferentes temas da vida. O silêncio e a atenção faziam-se presentes nesse momento singular. Nada de prosas e celeumas. Após o término do comunicado, os idosos aplaudiam e teciam comentários sobre a mensagem. Basicamente, era essa a dinâmica das aulas.

Análise do relato etnográfico

Após a imersão no campo de pesquisa, paulatinamente, o pesquisador distanciou-se da realidade investigada, com o intuito de examinar os dados provenientes do campo de pesquisa (Aguirre e Martins, 2014Aguirre ÁB, Martins JCO. A pesquisa qualitativa de enfoque etnográfico. Coimbra: Grácio Editor; 2014.). Era preciso afastar-se da posição de “praticante de hidroginástica” para o papel de pesquisador. Era chegado o momento de interpretar os dados oriundos do ambiente investigativo.

Constatou-se, por meio da vivência na agremiação, assim como pelas análises dos discursos dos participantes, a predominância da perspectiva biomédica. Os principais significados atribuídos à atividade física foram: melhora nos padrões de saúde, prevenção de determinadas doenças e redução dos efeitos provenientes do envelhecimento. Tais resultados corroboram aos encontrados em outros estudos (Fonte et al., 2016Fonte E, Feitosa PH, Oliveira LT No, Araújo CL, Figueiroa JN, Alves JG. Effects of a physical activity program on the quality of life among elderly people in Brazil. J Family Med Prim Care. 2016;5(1):139-42. http://dx.doi.org/10.4103/2249-4863.184639. PMid:27453859.
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; Rai et al., 2020Rai R, Jongenelis MI, Jackson B, Newton RU, Pettigrew S. Factors influencing physical activity participation among older people with low activity levels. Ageing Soc. 2020;40(12):2593-613. http://dx.doi.org/10.1017/S0144686X1900076X.
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; Siedler et al., 2021Siedler MR, Lamadrid P, Humphries MN, Mustafa RA, Falck-Ytter Y, Dahm P, et al. The quality of physical activity guidelines, but not the specificity of their recommendations, has improved over time: a systematic review and critical appraisal. Appl Physiol Nutr Metab. 2021;46(1):34-45. http://dx.doi.org/10.1139/apnm-2020-0378. PMid:32991821.
http://dx.doi.org/10.1139/apnm-2020-0378...
; Warburton e Bredin, 2017Warburton DER, Bredin SSD. Health benefits of physical activity: a systematic review of current systematic reviews. Curr Opin Cardiol. 2017;32(5):541-56. http://dx.doi.org/10.1097/HCO.0000000000000437. PMid:28708630.
http://dx.doi.org/10.1097/HCO.0000000000...
). Destacam-se os seguintes excertos:

O benefício da saúde. A gente vê que algumas taxas... já aconteceu de eu tirar exames, quando estava nas atividades, e as taxas baixarem. Taxas altas como colesterol, ácido úrico, colesterol, essas taxas baixam. (Senhora Cuidadora).

Tem um significado enorme. O maior significado da prática de exercício é a saúde. Então, é algo, assim, indispensável, o movimento. O nosso corpo não foi feito para ficar parado. Ele foi feito para se movimentar. Se a gente para, ele sente. Tudo nosso tem que estar em movimento, em movimento diário, sistemático. (Senhor Personal).

Significa, incialmente, a manutenção da boa forma física. A manutenção dos padrões de saúde. Ela auxilia muito no tratamento de doenças que sejam ligadas ao sedentarismo. Evita esse tipo de doença ligada ao sedentarismo. (Senhor Líder).

Tendo por base tais discursos, notou-se que a atividade física foi associada, de forma inconcussa, à saúde física, tendo como referência os aspectos clínicos e normatizações estabelecidas a partir de padronizações da área biomédica (Canguilhem, 2009Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2009). Calha destacar que os benefícios de tal vivência são ressaltados na literatura nacional e internacional, bem como nas diretrizes de saúde (Oliveira et al. 2019Oliveira DV, Franco MF, Antunes MD. A prática de atividade física como fator de promoção da saúde de idosos. Rev Interdiscip Promoç Saúde. 2019;2(1):70-7.; Rai et al., 2020Rai R, Jongenelis MI, Jackson B, Newton RU, Pettigrew S. Factors influencing physical activity participation among older people with low activity levels. Ageing Soc. 2020;40(12):2593-613. http://dx.doi.org/10.1017/S0144686X1900076X.
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), disseminadas pela mídia (Leitzke et al., 2020Leitzke ATS, Rigo LC, Knuth AG. Estratégias biopolíticas de construção do corpo e vigilância da saúde: o caso “Medida Certa”. Rev Bras Ciênc Esporte. 2020;42:e2014. http://dx.doi.org/10.1016/j.rbce.2018.12.001.
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) e pelo saber biomédico (Canguilhem, 2009Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2009; Damico e Knuth, 2014Damico JGS, Knuth AG. O des(encontro) das práticas corporais e atividade física: hibridizações e borramentos no campo da saúde. Movimento. 2014;20(1):329-50. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.39474.
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).

É prevalecente, assim, o discurso hegemônico biomédico no seio da sociedade contemporânea. Tal perspectiva defende que os efeitos deletérios dos agravos à saúde podem ser minimizados por intermédio da prática regular de atividade física. Como é notório, os idosos apresentam mais fragilidades clínico-funcionais bem como mais doenças crônico-degenerativas que o restante da população (Oliveira et al., 2019Oliveira DV, Franco MF, Antunes MD. A prática de atividade física como fator de promoção da saúde de idosos. Rev Interdiscip Promoç Saúde. 2019;2(1):70-7.). Nesse sentido, a atividade física é considerada a pedra angular para reduzir os efeitos deletérios dos agravos à saúde que acometem a população, como identificado nos seguintes discursos:

Acho que melhora demais, principalmente, na minha idade. Se parar, a máquina enferruja mesmo. Quando a gente é mais jovem é bem diferente. (Senhora Solidária).

A gente chega uma certa idade, que deixar de fazer algum tipo de exercício, você vai definhando. Vai perdendo a flexibilidade, vai perdendo o vigor. Como sempre fiz esporte, é uma continuidade. (Senhor Surfista).

Eu sempre digo isso aqui é um remédio. Eu venho como um remédio. Quando falto, tem uma amiga que diz: “olha, vou reclamar com os seus filhos que você não tomou o remédio”. (Senhora Trabalhadora).

Cita-se, a propósito, que a atividade física é associada ao estado de saúde dos sujeitos desde a Idade Antiga. Todavia, somente a partir da segunda metade do século XX, por meio do trabalho seminal de Jeremy Morris e colaboradores, foi possível evidenciar, de forma mais contundente e científica, tal relação (Ramires et al. 2014Ramires V, Becker L, Sadovsky A, Zago A, Bielemann R, Guerra P. Evolução da pesquisa epidemiológica em atividade física e comportamento sedentário no Brasil: atualização de uma revisão sistemática. Rev Bras Atividade Física Saúde. 2014;19(4):529-47. http://dx.doi.org/10.12820/rbafs.v.19n5p529.
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). Com o passar do tempo, o binômio atividade física-saúde foi cada vez mais disseminado no tecido social (Damico e Knuth, 2014Damico JGS, Knuth AG. O des(encontro) das práticas corporais e atividade física: hibridizações e borramentos no campo da saúde. Movimento. 2014;20(1):329-50. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.39474.
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). Nessa linha de raciocínio, Leitzke et al. (2020)Leitzke ATS, Rigo LC, Knuth AG. Estratégias biopolíticas de construção do corpo e vigilância da saúde: o caso “Medida Certa”. Rev Bras Ciênc Esporte. 2020;42:e2014. http://dx.doi.org/10.1016/j.rbce.2018.12.001.
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salienta que o discurso midiático evidencia a relação direta entre a prática de atividade física com melhorias nos parâmetros de saúde. Com efeito, o ativismo físico configura-se como “meio de reduzir as mazelas sociais ou como “remédio” (Maciel e Couto, 2018Maciel MG, Couto ACP. Programas governamentais de atividade física: uma proposta de política pública. Perspect em Políticas Públicas. 2018;11:55-79., p. 71).

Assim sendo, identificou-se, ao longo das entrevistas, influências do discurso biomédico, muito provavelmente disseminado pela mídia e por profissionais de saúde. Estes, segundo Maciel et al. (2019b)Maciel MG, Saraiva LAS, Martins JCO, Meurer ST. Análise discursiva sobre promoção da saúde no programa academia da cidade de Belo Horizonte. Rev Bras Ciênc Esporte. 2019b;41(2):163-8. http://dx.doi.org/10.1016/j.rbce.2018.03.007.
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, constituem-se formadores de opinião e podem exercer influência sobre a população. Os referidos estudiosos asseveram que o saber biomédico acaba por naturalizar a proposta de um estilo de vida idealizado como saudável, como enfatizado no discurso de determinados participantes.

Os médicos já diziam, naquela época, que era bom a gente praticar atividade física. Tinha uns 40 e poucos anos, estava na época da menopausa e diziam que eu precisava fazer esse tipo de atividade. (Senhora Cuidadora).

Os médicos, que me acompanham, eles não dispensam a atividade física. Então, o meu ortopedista falou você tem 2 exercícios que você pode fazer o tempo que puder, que é a hidroginástica e a caminhada. (Senhora Viajante).

Alternativamente a essa vertente, Maciel (2018)Maciel MG. Atividade física humanizada: uma perspectiva a partir das experiências de ócio. Riga Latvia: Novas Edições Acadêmicas; 2018. argumenta que é necessária a humanização da atividade física, conferindo-lhe sentido semelhante ao proposto pelas experiências de ócio. Em termos gerais, o referido autor considera que, raramente, os sujeitos desfrutam da atividade física enquanto fim, isto é, pautando-se no autotelismo. O foco incide, em grande medida, nos resultados obtidos, como pode ser visto no discurso dos participantes. Neste ponto, compete advertir que, conforme Martins (2015)Martins JCO. Ócio e promoção da saúde. Rev Bras em Promoção da Saúde. 2015;28(3):297-300. http://dx.doi.org/10.5020/18061230.2015.p297.
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, os benefícios à saúde são uma das principais consequências associadas às experiências de ócio, na medida em que os sujeitos gozam de maior autonomia e satisfação. Não obstante tais benesses, o fenômeno do ócio não visa à saúde como fim, mas, sim, à experiência subjetiva, livre, satisfatória e autônoma. Em outras palavras, a melhora da saúde é uma consequência a partir da experiência de ócio pela vivência da atividade física. Todavia, não deve ser considerado o único, uma vez que reduziria as múltiplas possibilidades desse tipo de experiência.

A proposta de humanizar a atividade física não nega, evidentemente, a perspectiva epidemiológica, mas procura ampliar as possibilidades de como compreender e incentivar a vivência da atividade física. Maciel (2018)Maciel MG. Atividade física humanizada: uma perspectiva a partir das experiências de ócio. Riga Latvia: Novas Edições Acadêmicas; 2018. assevera ser a atividade física humanizada uma vivência qualificada subjetivamente, ou seja, atenta-se ao sentido atribuído pelo participante. O autor supracitado evidencia a diferença dos termos “vivência” e “experiência”. Enquanto o primeiro diz respeito a viver uma ação com significado social, o segundo decorre de uma vivência de caráter subjetivo e qualificada individualmente pelos sujeitos. Destarte, a atividade em si não determina uma experiência de ócio, mas sim a percepção de quem realiza a ação de acordo com os atributos que caracterizam a vivência (Cuenca, 2014Cuenca MC. Aproximación al ocio valioso. Rev Bras Estud do Lazer. 2014;1(1):21-41.).

Por derradeiro, a atividade física para os idosos pesquisados constituiu-se como prática com significado social concernente à saúde, aproximando-se do viés epidemiológico (Antunes et al., 2020Antunes DSH, Knuth AG, Damico JGS. Educação Física e promoção da saúde: uma revisão de perspectivas teórico-metodológicas no Brasil. Educ Fís Cienc. 2020;22(1):e116. http://dx.doi.org/10.24215/23142561e116.
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; Damico e Knuth, 2014Damico JGS, Knuth AG. O des(encontro) das práticas corporais e atividade física: hibridizações e borramentos no campo da saúde. Movimento. 2014;20(1):329-50. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.39474.
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; Ramires et al., 2014Ramires V, Becker L, Sadovsky A, Zago A, Bielemann R, Guerra P. Evolução da pesquisa epidemiológica em atividade física e comportamento sedentário no Brasil: atualização de uma revisão sistemática. Rev Bras Atividade Física Saúde. 2014;19(4):529-47. http://dx.doi.org/10.12820/rbafs.v.19n5p529.
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), pois em geral, apontou-se, sobretudo, apenas os benefícios físicos/clínicos decorrentes dessa prática. Em síntese, ao longo das entrevistas não se identificou elementos que poderiam justificar a atividade física humanizada (Maciel, 2018Maciel MG. Atividade física humanizada: uma perspectiva a partir das experiências de ócio. Riga Latvia: Novas Edições Acadêmicas; 2018.; Maciel et al., 2018Maciel MG, Saraiva LAS, Martins JCO, Vieira PR Jr. A humanização da atividade física em um programa governamental. Interface - Comun saúde e Educ. 2018;22(67):1235-46. http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622017.0238.
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).

CONCLUSÃO

Este trabalho teve por objetivo analisar a compreensão que idosos, praticantes de hidroginástica, atribuem à atividade física. Além disso, pretendeu-se descrever a dinâmica das aulas da modalidade numa agremiação da cidade de Fortaleza-CE. Constatou-se que os discursos dos idosos estavam perpassados pela abordagem epidemiológica, o que reforça a necessidade de se refletir, amiúde, sobre a perspectiva hegemônica da atividade física. Esta não deve ser analisada prescindindo-se da esfera subjetiva, ou seja, como um ato puramente procedimental e associado à saúde.

Embora as vertentes discutidas neste estudo, biomédica e fenomenológica, apresentem peculiaridades na forma de compreender e promover a atividade física, reconhece-se a legitimidade e a possibilidade de diálogo entre ambas. Assim, um sujeito pode iniciar praticando uma atividade física imbuído pelo viés biomédico, e posteriormente desfrutar dessa mesma vivência segundo a perspectiva das experiências de ócio. No caso de investigadores, por exemplo, eles podem buscar sinergias entre as distintas propostas, visando a contribuir para o desenvolvimento do conhecimento e para a formação do ser humano pelo meio da atividade física.

Impõe-se aqui reconhecer limitações decorrentes neste estudo, a fim de nortear futuras investigações. Destacam-se, pois, o número reduzido de participantes e o perfil da amostra — idosos aposentados e de classe média alta —, uma única atividade investigada, assim como um determinado horário, o que restringiu a coleta das informações. Ademais, os resultados encontrados não podem ser generalizados, haja vista a abordagem etnográfica adotada. Apesar de tais aspectos, entende-se que este estudo apresenta contribuições para se refletir acerca da atividade física humanizada, explorada, ainda, de forma modesta na literatura científica. Acredita-se que quanto mais intensas e profundas forem as pesquisas sobre a humanização da atividade física com idosos, mais disseminada será a sua vivência, a qual está relacionada ao sentido da vida.

  • FINANCIAMENTO

    Este trabalho contou com auxílio financeiro da PROSUP/Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior/Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (processo número 88887.176129/2018-00, Edital CAPES/ FUNCAP n° 04/2017).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    16 Mar 2020
  • Aceito
    31 Mar 2021
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