RESUMO
Este estudo mostra, pela fala de crianças, como o brincar se apresenta em experiências de iniciação esportiva. A Sociologia da Infância e estudos da Educação Física deram suporte teórico e, da roda de conversa como instrumento metodológico, emergiram os seguintes temas para Análise Temática: a polissemia do esporte na infância; eixos que estruturam o brincar da criança; brincar para aprender esporte. A análise e interpretação dos dados mostrou que as crianças conceituam o esporte como polissêmico e o interpretam como brincadeira, jogo ou treino. Para elas, a iniciação esportiva é lúdica, as brincadeiras precisam ser reiteradas e a imaginação transcende a realidade na interação com seus pares. Assim, concluímos que, para as crianças da pesquisa, aprende-se esporte brincando.
Palavras-chave: Iniciação esportiva; Brincar; Criança; Esporte
ABSTRACT
This study shows, through the words of children, how play is presented in sports initiation experiences. The Sociology of Childhood and Physical Education studies provided theoretical support and the following themes emerged from the conversation circle as a methodological tool for Thematic Analysis: the polysemy of sport in childhood; the axes that structure children's play; playing to learn sport. The analysis and interpretation of the data showed that the children conceptualize sport as polysemic and interpret it as play, games or training. For them, sports initiation is playful, games need to be repeated and imagination transcends reality in interaction with their peers. We therefore conclude that, for the children in the study, sport is learned through play.
Keywords: Sport initiation; Play; Child; Sport
RESUMEN
Este estudio muestra, a través de las palabras de los niños, cómo se presenta el juego en las experiencias de iniciación deportiva. Los estudios de Sociología de la Infancia y Educación Física proporcionaron el soporte teórico y los siguientes temas surgieron del círculo de conversación como herramienta metodológica para el Análisis Temático: la polisemia del deporte en la infancia; los ejes que estructuran el juego infantil; jugar para aprender deporte. El análisis y la interpretación de los datos mostraron que los niños conceptualizan el deporte como polisémico y lo interpretan como juego o entrenamiento. Para ellos, la iniciación deportiva es lúdica, los juegos necesitan ser repetidos y la imaginación trasciende la realidad en la interacción con sus compañeros. Por lo tanto, concluimos que, para los niños del estudio, el deporte se aprende jugando.
Palabras-clave: Iniciación deportiva; Juego; Niño; Deporte
INTRODUÇÃO
O esporte é um fenômeno que está em constante transformação na sociedade e, por consequência, encontra-se presente de variadas formas na vida das crianças. Um dos espaços que promovem a sua prática de forma sistematizada é a escola, onde o esporte se apresenta como unidade temática da Educação Física escolar e no período extracurricular, caracterizado como atividades culturais e esportivas antes ou depois das aulas.
Marchi (2015) aponta cinco dimensões do esporte, dentre elas a vertente educacional que dialoga com outras variáveis e necessita de uma discussão aprofundada. Assim, podemos considerar que há um princípio formativo no esporte quando ensinado às crianças, sendo que a escola pode promover sua prática nos mais diversos tempos e espaços.
Nesse cenário, o esporte, no contexto de infâncias, precisa ser tratado de modo que não se reproduza o modelo de ensino do esporte do alto rendimento. Esta premissa nos mobilizou a pesquisar o que a criança pensa sobre o esporte, uma vez que a consideramos como um ator social que participa ativamente da sociedade.
Em um levantamento produzido por Tamashiro (2023), o autor identificou que a perspectiva das crianças sobre o esporte é pouco considerada em teses e dissertações brasileiras, especialmente quando se trata das crianças entre 5 e 7 anos. Além disso, o levantamento mostrou que o ensino do esporte para as crianças, em muitos casos, é voltado para o rendimento e/ou reproduzem modelos de ensino para os adultos. Deste modo, discutir o esporte na infância a partir das falas de crianças é emergente, uma vez que não há uma recorrência destes estudos na Educação Física e Coutinho (2015) argumentar que as crianças são competentes em opinar sobre assuntos que lhes dizem respeito, desafiando os adultos a compreendê-las.
Assim, o presente artigo tem como objetivo analisar como o brincar se apresenta em experiências de iniciação esportiva, a partir da fala de crianças sobre suas vivências.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
A pesquisa com crianças, nos estudos sociais da infância, segue uma “pauta ético-metodológica” (Carvalho et al., 2022, p. 26) que visa tornar visível o que as crianças pensam sobre temas relevantes para elas. Assim, este estudo interpretativo com crianças1, utilizou a roda de conversa para gerar dados, sendo um método eficaz para revelar suas ideias e opiniões (Garanhani et al., 2015). Segundo Garanhani et al. (2015), o pesquisador deve conduzir a conversa com um disparador relacionado ao tema investigado, que pode ser um objeto, desenho ou tema que inicie a discussão. Com base nesta orientação, os disparadores da pesquisa foram temas como: o Dia das Crianças, brincadeiras anteriores e questões surgidas nas rodas de conversa.
Na primeira etapa da pesquisa, foi definido que o grupo participante seria composto por crianças de 5 a 7 anos, da Educação Infantil e 1º ano do Ensino Fundamental, de uma escola particular em Curitiba/PR, que frequentavam aulas extracurriculares de iniciação esportiva. A escolha desta idade das crianças e o enfoque na iniciação esportiva extracurricular, na escola, deve-se à escassez de estudos sobre o tema com crianças, dessa faixa etária, neste contexto esportivo.
As etapas seguintes foram: obter autorização da escola; consentimento das crianças, que devem ter informações suficientes para decidirem participar da pesquisa (Coutinho, 2019); e autorização das famílias via Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O estudo incluiu onze crianças: cinco do 1º ano do Ensino Fundamental (6 e 7 anos) e seis do Infantil V (5 anos), sendo duas meninas e nove meninos. Optamos por usar seus nomes, sem sobrenomes, para preservar suas identidades e assegurar os seus protagonismos no estudo, conforme orientação de Kramer (2002) ao afirmar que, quando as crianças são mantidas anônimas nas pesquisas, elas ficam ausentes, não sendo vistas como autoras de suas próprias histórias.
Realizamos três rodas de conversa piloto, que geraram falas conceituais e disparadores para rodas de conversa da pesquisa. Devido à riqueza dos dados gerados, as falas foram incluídas no estudo para análise.
No final, a produção de dados foi composta por nove rodas de conversa, realizadas entre outubro e dezembro de 2021, sendo que, sete ocorreram no início da aula de iniciação esportiva e duas delas ao final.
A ANÁLISE DOS DADOS E SUA INTEPRETAÇÃO
Os dados da pesquisa foram organizados em temas a partir da Análise Temática, que é uma “[...] ferramenta de pesquisa flexível e útil, a qual pode fornecer um conjunto rico e detalhado, ainda que complexo de dados” (Braun e Clarke, 2006, p. 10), sendo que ela pode ser utilizada a partir de diferentes campos teóricos, uma vez que não se vincula a uma única teoria (Braun e Clarke, 2006).
Assim, após a realização das fases que compõe a Análise Temática: familiarização com dados, geração dos códigos iniciais, busca, revisão, definição e denominação dos temas (Braun e Clarke, 2006), foi estruturado três temas de análise. O primeiro foi A polissemia do esporte que revelou como as crianças conceituam iniciação esportiva, uma vez que essa definição não pode ser apenas do adulto, pois as crianças participantes do estudo mostraram competência em significar a prática vivenciada.
Para compreender como elas conceituam iniciação esportiva, apresentamos o trecho:
Pesquisador: o que é a iniciação esportiva?
Théo: é quando inicia alguma coisa que tem a ver com esporte.
Beatriz: é quando a gente inicia alguma coisa esportiva.
Heitor: iniciação esportiva é uma iniciação extra.
Pesquisador: o que é uma iniciação extra?
Heitor: é tipo extra esportes.
Leonardo: é quando a gente está treinando alguns esportes. (Tamashiro, 2023, p. 72).
Chama atenção neste diálogo quatro ideias distintas que as crianças têm sobre o conceito de iniciação esportiva. Para Théo, a iniciação esportiva possui relação com esporte, mas não é esporte em si. Já para a Beatriz, diz respeito ao início do esporte. Segundo o Heitor, ela é mais que esporte, não sendo o começo nem o fim. Por fim, Leonardo traz ideia de que é para aprender, sendo uma vivência para treinar alguns esportes, referindo-se às modalidades específicas.
Interpretamos, na análise das falas, que as crianças conceituam iniciação esportiva, mas apresentam diferentes compreensões, o que nem sempre se configura na mesma ideia que o adulto tem da prática. Sarmento (2002, p. 3) nos orienta a esta conclusão quando diz: “[…] é, portanto, da ordem da diferença e não do déficit que falamos, quando falamos do imaginário infantil, por relação com o dos adultos”.
A mesma pergunta foi retomada, em outra roda de conversa, depois que as crianças haviam vivenciado mais aulas.
Pesquisador: e o que é iniciação esportiva?
Théo: é quando estamos iniciando a fazer alguns esportes ou algumas brincadeiras.
Pesquisador: então o que é esporte?
Théo: é um negócio que tem competição e você corre bastante e sua muito.
Leonardo: isso as vezes né.
Heitor: eu acho que esporte é aprender uma aula de ver quem corre mais.
Pesquisador: e o que é brincadeira?
Théo: é quando a gente faz alguma coisa e se diverte.
Pesquisador: e o que é o brincar?
Heitor: brincar é se divertir para a gente.
Lucas: é se divertir
Laura: divertir
Bernardo: aprender brincadeiras novas.
Pesquisador: e como vocês aprendem o esporte?
Samuel: você vai ensinando e a gente gosta desse esporte e a gente pratica mais.
Murilo: sabe o que é? Tem cabo de guerra, pique-bandeira, mãe-baleia, pega-pega, futebol, futsal
Pesquisador: e isso tudo é esporte?
Théo: não
Todos: sim
Théo: não é esporte
Pesquisador: então por que fazemos o pique-bandeira na iniciação esportiva?
Heitor: para aprender esportes
Théo: então, professor, mãe-baleia é um esporte?
Pesquisador: o que vocês acham?
Todos: não
Victor: a gente pode jogar mãe-baleia hoje?
Pesquisador: por que é importante jogar mãe-baleia para aprender esporte?
Samuel: porque corre bastante
Bernardo: para fazer exercício. (Tamashiro, 2023, p. 73).
Na roda de conversa anterior, Théo dizia que a iniciação esportiva tinha relação com esporte. Porém, neste trecho, falou sobre as brincadeiras e mostrou que ainda está elaborando suas ideias sobre a prática. Aproveitando a sua resposta, perguntou-se: o que é esporte? Théo mencionou o esporte com caráter competitivo e relacionou com esforço, o que foi confirmado pelo Heitor. As falas das crianças se alinham aos critérios de Marchi (2015) para definir esporte sendo: competição, regras universais e esforço físico.
O brincar também foi evidenciado na fala das crianças. Para Spréa e Garanhani (2014), há diferentes ideias sobre o brincar enquanto ação, sendo a brincadeira a atividade lúdica em si, encontrando no brinquedo um suporte para ocorrer. Assim, entendemos que a ação do brincar pode se materializar em um jogo ou brincadeira, como apontaram Leonardo, Théo, Laura e o Heitor.
Além do brincar e o esporte como competição, outros termos foram citados pelas crianças, conforme o diálogo:
Pesquisador: e qual a diferença entre iniciação esportiva e esporte?
Samuel: é a mesma coisa
Théo: esporte é tipo quando a gente já faz muito muito esporte tipo corrida, e aí iniciação esportiva é quando estamos iniciando esportes
Leonardo: a iniciação esportiva é para você treinar e não para jogar
Pesquisador: mas qual a diferença entre os dois?
Leonardo: jogar está valendo alguma coisa e treinar é para valer alguma coisa
Victor: iniciação esportiva é o começo da iniciação que a gente aprende muitos esportes. É o começo do aprendizado de uma criança.
Pesquisador: e o que vocês preferem fazer: esporte ou iniciação esportiva?
Todos: iniciação esportiva
Pesquisador: e como vocês querem fazer iniciação esportiva?
Todos: brincando
Pesquisador: por quê?
Samuel: porque ao mesmo tempo que a gente se diverte estamos aprendendo os esportes. (Tamashiro, 2023, p. 74).
De acordo com esse trecho, Samuel fala que iniciação esportiva e esporte são iguais. Leonardo e Théo apresentam outra ideia, ou seja, o esporte como resultado e esforço, enquanto a iniciação esportiva é o começo das modalidades.
Em outro trecho, as crianças mostram suas ideias sobre os termos jogar e treinar.
Pesquisador: mas a gente estava treinando ou jogando?
Todos: jogando
Leonardo: treinando e jogando Lucas: treinando e jogando
Lucas: brincando, treinando e jogando!
Pesquisador: mas tem diferença entre treinar, jogar e brincar?
Victor: não
Leonardo: sim
Heitor: a diferença de treinar é quando está sabendo como é o jogo
Leonardo: treinar é quando você está jogando para ficar melhor no jogo e jogar é para você ganhar de alguém e brincar não está valendo nada e tipo você se diverte também, um pouco mais. (Tamashiro, 2023, p. 75).
Com esses dados, interpretamos que para as crianças participantes da pesquisa, há uma linha tênue entre os termos brincar, jogar e treinar, em que, às vezes se distanciam e às vezes se aproximam, como exemplo a ideia do Leonardo, ao argumentar que treinar é um caminho para jogar melhor. Já para o Lucas e o Victor, treinar e jogar são sinônimos.
As falas nos mostram que, para as crianças, a iniciação esportiva tem diversas possibilidades de ser vivenciada pelo brincar. Não é o esporte tradicional em si, ou seja, com sua institucionalização e regulamentação universal, mas uma atividade que adapta elementos do esporte como: competição, técnicas, espaços e resultados. E estes podem ser flexibilizados e/ou ressignificados.
Além disso, quando as crianças recorrem às brincadeiras, subvertem o esporte tradicional, pois constroem regras, formas e modos de jogar, mostrando que a iniciação esportiva, a partir do brincar, possui conceito polissêmico, ou seja, diversos significados. Assim, durante a análise dos dados, interpretamos que o brincar, se apresenta na iniciação esportiva, em forma de brincadeira, como produto do brincar, treinar e jogar.
No tema de análise eixos que estruturam o brincar da criança foram identificados, nas falas das crianças sobre a iniciação esportiva, os eixos estruturantes da Cultura Infantil (a fantasia do real, a ludicidade, a interatividade e a reiteração) definidos como “[…] formas especificamente infantis de inteligibilidade, representação e simbolização do mundo” (Sarmento, 2004, p. 8).
No trecho apresentado mostramos como a imaginação mobiliza a criança quando está jogando:
Pesquisador: mas o que é jogar?
Leonardo: é treinar
Heitor: é jogar videogame
Pesquisador: mas o que é treinar e jogar?
Théo: jogar é quando você para tudo e aí não funciona a sua imaginação. Pesquisador: pode repetir, Théo?
Théo: jogar é quando você está jogando alguma coisa e aí você fica com a imaginação parada sem saber o que fazer como nos desenhos.
Leonardo: jogar é quando está valendo alguma coisa e treinar é quando você só está fazendo para depois jogar melhor.
Victor: treinar é uma coisa que você treina muito, muito, muito, até conseguir e aí você pode fazer jogo se você gostou.
Lucas: quando eu estou jogando não percebo que estou treinando algum esporte. (Tamashiro, 2023, p. 77).
Para Scaglia (2003), o jogo é considerado uma suspensão momentânea da realidade, em que o real concede espaço ao simbólico, mas que mantém ponto de fixação na realidade. Assim, ele é um fenômeno complexo que
[…] representa uma forma de suspensão da realidade (sem caracterizar fuga), gerando um ambiente próprio de jogo, onde os jogadores podem extravasar suas vontades e desejos, testar os seus limites, satisfazer suas necessidades, mas sempre tendo consciência de que estão jogando, e assim que se quiser pode o jogo ser interrompido, caracterizando desse modo uma atividade com um fim em si mesma. (Scaglia, 2003, p. 154).
Este conceito se assemelha à fantasia do real, onde o faz de conta ajuda a criança a compreender o mundo e dar significado às coisas (Sarmento, 2004). Assim compreendemos que, ao usar a imaginação no jogo, as crianças podem se apropriar do esporte, criando estratégias para vencer, competir e cooperar, habilidades socialmente construídas, movendo-se entre o real e o imaginário.
Outra ideia trazida por Victor é sobre a repetição, isto é, a necessidade da criança em fazer de novo. Sua fala nos remete ao conceito de reiteração de Sarmento (2004), sendo: um tempo infantil “[...] recursivo, continuamente reinvestido de novas possibilidades” (Sarmento, 2004, p. 17), sem medida, sempre reiniciável e repetido (Sarmento, 2004). Ao brincar reiteradamente, a criança relaciona o que é novo na brincadeira ao que já foi vivenciado e, ao brincar várias vezes, ela constrói uma rede de saberes, negociação e compartilhamento com o outro, num movimento constante de investimento em si (Paula e Garanhani, 2021).
Nesse caminho, o conceito de reiteração é semelhante ao que Santana (2019) apresenta sobre o “repetir sem repetir”, em que o jogo jogado poderá ser sempre o mesmo, mas nunca da mesma forma. Nesse cenário de considerações e pelo que nos disseram as crianças, entendemos que, repetir o jogo, reiterar e começar novamente a brincadeira, traz, para elas, um mundo de novas possibilidades. Ainda que a brincadeira, pelos olhos do adulto, possa parecer a mesma, para as crianças existe sempre um novo significado.
Outro eixo presente na fala das crianças foi a interatividade. A aprendizagem das crianças sobre o mundo é iminentemente interativa (Sarmento, 2002) e quando compartilhada com o outro – criança, possibilita que elas possam se “[...] apropriar, reinventar e reproduzir o mundo que as rodeia, numa relação de convivência que permite exorcizar medos, construir fantasias e representar cenas do quotidiano” (Sarmento, 2002, p. 11). Apresentamos algumas falas que ilustram este eixo.
Pesquisador: por que vocês fazem iniciação esportiva?
Théo: para gente aprender e porque é bem legal
Samuel: e no começo do ano que vem eu também vou continuar fazendo Pesquisador: por quê?
Samuel: porque eu acho legal
Victor: eu também vou
Théo: quando eu tiver no segundo ano eu vou
Leonardo: eu também vou
Samuel: eu vou até não poder mais
Pesquisador: e por que a iniciação esportiva é legal?
Théo: porque a gente joga bastante e a gente brinca. (Tamashiro, 2023, p. 80).
De acordo com o trecho apresentado, as crianças responderam aos questionamentos a partir de uma compreensão apoiada no grupo, que se fez explícita e presente quando usaram palavras como: “a gente” ou “nós”, além de citarem jogos e brincadeiras coletivas vivenciadas no momento anterior à aula.
Para Sarmento (2002, p. 11, grifos do autor),
A interatividade é, deste modo, estratégica, sendo acompanhada de um conjunto de ações tácticas que lhe dão sequência e contorno: a identificação como “amigos” dos companheiros de atividade; a defesa do espaço interativo face a crianças exteriores ao seu grupo de amigos; a partilha de rituais, sobretudo baseados em lendas e mitos culturais; a criação de estratégias para evitar fazer o que não querem; a elaboração de ajustes para contornar as regras dos adultos.
Assim, percebemos uma recorrência, na fala das crianças, em que brincar, jogar e vivenciar iniciação esportiva com amigos, evidencia a interatividade entre pares.
Por fim, foi identificado nas falas das crianças traços sobre o eixo ludicidade. Esses traços estão no trecho da roda de conversa que apresentamos sobre a iniciação esportiva a partir do brincar.
Pesquisador: e o que é ser criança?
Laura: é brincar
Pesquisador: o que mais?
Laura: brincar e divertir, só isso mesmo.
Murilo: e os adultos não brincam igual a gente
Victor: eles trabalham
Leonardo: eles brincam de conversar
Bernardo: e a gente se diverte bem mais que os adultos
Samuel: é ter menos de 18 anos e também brincar bastante e ir pra escola, porque os adultos não vão para a escola, vão para a faculdade.
Lucas: na verdade quando as crianças pedem para os adultos brincarem eles brincam
Murilo: é assim, as crianças podem brincar de fingir e pirata né? Na nossa sala a gente tem um monte de escada de madeira. E também eles vendem pop-it para passar o estresse da criança
Heitor: e a gente diverte muito na nossa vida de crianças.
Victor: as crianças no aniversário delas são legais, no dos adultos não são muito legais.
Pesquisador: por quê?
Victor: porque no das crianças tem coisas diferentes e mais legais.
Pesquisador: a Laura falou que ser criança é brincar. O que é brincar?
Lucas: é se divertir, futebol, basquete. (Tamashiro, 2023, p. 81).
Neste trecho, identificamos características da ludicidade marcada pela ideia de brincar, diversão e prazer entre pares na iniciação esportiva. Sarmento (2004, p. 10) afirma que o brincar é central nas culturas infantis, sendo algo que as crianças levam muito a sério. É uma forma pela qual as crianças se posicionam no mundo (Spréa, 2010), o que se reflete na compreensão delas sobre o brincar e a iniciação esportiva.
Assim, a ludicidade se apresenta como um elemento da iniciação esportiva presente nas falas das crianças pois se relaciona, também, com os outros eixos que estruturam a infância: a reiteração, a fantasia do real e a interatividade. Além disso, a ludicidade é entendida por Scaglia (2003) como liberdade de expressão. Ainda para o autor, “[...] no jogo só se tem prazer se existe o risco, se é estabelecido um ambiente ao mesmo tempo desafiador, desequilibrador, imprevisível e lúdico” (Scaglia, 2021, n.p.). Portanto, as crianças diante dos desafios da iniciação esportiva agem com liberdade e os transformam em práticas lúdicas, reiterativas, fantasiosas e interativas. Por isso, os eixos que estruturam a cultura infantil são interessantes para compreendermos as ações de crianças.
A análise das falas nos mostra que o brincar na iniciação esportiva se apresenta pela ludicidade, imaginação, repetição e fantasia, ou seja, eixos estruturantes da cultura infantil. Isso nos leva a conclusão de que a iniciação esportiva poderá ser parte das práticas culturais infantis.
Por fim, o tema de análise Brincar para aprender esporte, evidencia o que falam as crianças, a partir do brincar, sobre a aprendizagem do esporte nas aulas de iniciação esportiva. Apresentamos falas das crianças sobre a competição nas aulas de iniciação esportiva – característica fundamental do esporte institucional.
Pesquisador: o que é o esporte?
Samuel: tem as ginásticas que se chamam ginásticas gerais que dá para todo mundo fazer, mas tem a ginástica artística que é de competição. E tipo aqui a gente não é de competição, a gente não ganha nada na hora assim.
Théo: Mas bem que podia!
Heitor: bem que podia ganhar um troféu.
Leonardo: mas ganha saúde por estar fazendo um exercício né?
Samuel: é, ganhamos saúde né Léo?
Pesquisador: mas estamos fazendo esporte ou iniciação esportiva?
Todos: iniciação esportiva
Pesquisador: alguém quer falar mais alguma coisa sobre isso?
Heitor: eu quero! Esporte é meio diferente de competição, porque competição ganha um troféu na última coisa e esporte não ganha nada, essa é a diferença do esporte com a competição
Pesquisador: e então vocês não competem?
Todos: não. (Tamashiro, 2023, p. 83).
Ao comparar a Ginástica Geral com a iniciação esportiva, Samuel mostra que, nestas práticas, não há competição – ou a participação é mais relevante que competir. Já na Ginástica Artística existe competição, mas que não é semelhante às aulas de iniciação esportiva.
Deste modo, compreende-se que, para as crianças, a iniciação esportiva possui um fim em si mesma em detrimento à competição, pois acontece a partir de jogos e brincadeiras, diferentemente do esporte tradicional. Nesse sentido, Scaglia (2021) argumenta que o objetivo da brincadeira tende a ser o prazer e a livre expressão em detrimento à performance como recompensa do sucesso do jogo. Contudo, o autor alerta que isso não significa a ausência da performance e competição na brincadeira, porém elas dizem respeito a autossuperação e satisfação pelas crianças (Scaglia, 2021).
Isto nos leva à seguinte compreensão: apesar da ideia de que a finalidade do esporte seja vencer ou quebrar algum recorde, as crianças subvertem este pensamento ao dizerem que se divertir e ter prazer podem ser tão importantes quanto ganhar.
Em outro trecho da roda de conversa as crianças mencionaram a competição:
Leonardo: quando você joga normalmente está valendo alguma coisa. E quando você está treinando você só está ficando melhor para quando for jogar.
Pesquisador: e qual a diferença entre brincar e jogar?
Leonardo: no jogar tem quem ganha e quem perde, e brincar normalmente não.
Pesquisador: então no brincar a gente não perde?
Todos: não
Pesquisador: tem competição quando a gente brinca?
Théo: às vezes
Leonardo: às vezes também, quem ganhou não ganha na verdade. (Tamashiro, 2023, p. 86).
Leonardo, quando se refere ao jogo, diz que: ao brincar, na iniciação esportiva, não tem quem perca. E quando perguntados se concordam com esta ideia, todos confirmam. No entanto, o Théo diz que às vezes tem competição, ao brincar de esporte. Na sequência, Leonardo fala que nas brincadeiras, ao vencer, não ganha de verdade. Isso reafirma que, para as crianças, a participação é mais importante que a competição.
Num trecho da roda de conversa que ocorreu na penúltima aula de iniciação esportiva do ano as crianças comentaram:
Victor: é que eu estou triste, porque é a última aula de iniciação esportiva
Lucas: eu também
Théo: eu vou chegar em casa quarta-feira e vou chorar igual um nenêzinho
Pesquisador: e por que foi tão legal?
Lucas: porque teve vários esportes: futsal, mãe-baleia, pique-bandeira, fut- bandeira, futebol, handebol
Bernardo: cabo-de-guerra
Pesquisador: e como vocês aprenderam isso?
Victor: com você
Pesquisador: mas de que forma?
Heitor: a gente aprendeu brincando e nem percebeu que a gente estava treinando
Pesquisador: por quê?
Heitor: a gente não percebeu que estávamos treinando os jogos
Pesquisador: e aqui vocês aprenderam de que forma?
Théo: brincando. (Tamashiro, 2023, p. 89).
Quando perguntado às crianças o motivo da iniciação esportiva ter sido legal, Bernardo e Leonardo disseram os nomes de jogos, brincadeiras e esportes vivenciados. Ademais, foi questionado como as crianças aprenderam, e o Victor falou que foi a partir do professor, mesmo sendo perguntado “como” e não “com quem”. Esta ideia revela que o brincar, na iniciação esportiva, pode não acontecer de maneira inata, ou seja, não é porque estão brincando sozinhas que necessariamente aprenderão o esporte.
Na última roda de conversa, logo quando nos sentamos em círculo, quem iniciou o diálogo foi o Heitor.
Heitor: eu queria que a gente fizesse mais esportes
Lucas: mas a gente vai fazer
Bernardo: eu queria que a gente fizesse pega-pega, esconde-esconde
Lucas: mas não dá para fazer esconde-esconde, onde vamos esconder no ginásio?
Bernardo: mas no bosque, brincadeiras diferentes
Pesquisador: e essas brincadeiras ajudam a gente nos esportes?
Théo: o pega-pega ajuda a gente a correr mais, na corrida ajuda bem
Lucas: quando a gente corre na corrida na iniciação esportiva é tipo esconde-esconde e pega-pega porque eles também têm que correr rápido
Théo: eu tenho uma sugestão: como hoje é a última aula do ano, a gente podia fazer a aula aqui.
Lucas: não é a última aula do ano, ainda vai ter mais esportes.
Pesquisador: onde terão mais esportes?
Lucas: no primeiro ano
Bernardo: só que vai ser um pouco mais difícil.
Pesquisador: por quê?
Bernardo: porque vai ser do primeiro
Pesquisador: e por que no primeiro é mais difícil?
Heitor: porque a gente vai fazer as coisas que eles estão fazendo
Bernardo: é como se fosse um jogo, porque quando as pessoas estão no Medianeirinha é fácil, quando a gente está no primeiro é médio e quando a gente está no terceiro é difícil.
Heitor: no terceiro deve ser o mais difícil de todos
Pesquisador: e qual a diferença do esporte das crianças da Educação Infantil e das crianças maiores?
Lucas: não é a mesma coisa. Iniciação esportiva e esporte são diferentes porque... (não terminou)
Pesquisador: alguém quer falar?
Heitor: o diferente dos esportes é que tem coisas mais diferentes e a gente não faz as brincadeiras que não são esportes
Pesquisador: entendi. Vocês falaram para mim sobre as brincadeiras, mas o que é o brincar no esporte?
Théo: é se divertir
Pesquisador: e como vocês aprendem o esporte?
Bernardo: (se levanta e corre pela sala) a gente tipo corre desse jeito e aí sabe o que acontece? A gente não percebe que está treinando
Victor: como hoje é a última aula a gente podia fazer votações das brincadeiras
Pesquisador: então ok, mas por que brincadeiras na aula de iniciação esportiva?
Bernardo: aprender
Pesquisador: o que vocês aprenderam com as brincadeiras na iniciação esportiva?
Théo: a gente aprendeu brincadeiras novas
Heitor: e as coisas que ninguém nunca aprendeu, andar skate
Leonardo: aquele que a gente aprendeu como a queimada, futsal
Heitor: e agora a gente pode brincar?
Bernardo: quando a gente está brincando estamos treinando. (Tamashiro, 2023, p. 90).
Como visto, as crianças atribuem à iniciação esportiva como sendo uma brincadeira e se veem como crianças nesta experiência. Além disso, concluíram que, quanto maior a etapa de escolarização, mais difícil é aprender esporte. Outrossim, entendem que, ao brincar, aprendem esporte, mas que essa aprendizagem não é perceptível, como diz o Bernardo: brincaram e não perceberam que estavam aprendendo. Só foi possível compreender que de fato aprenderam quando narraram suas vivências. As crianças tomaram consciência que aprendem esporte brincando quando contaram suas vivências e estas tornaram-se experiências.
CONSIDERAÇÕES FINAIS PARA CONCLUSÕES
Ponderamos que é fundamental pensar a iniciação esportiva a partir do olhar da criança, pois pode qualificar o trabalho docente, deslocando o fazer de uma prática adultocentrada para uma ação compartilhada.
Consideramos que, as crianças, ao falarem que esporte é brincadeira, jogo ou treino e que a iniciação esportiva foi legal porque teve muitos esportes (como exemplo o pique-bandeira, a mãe-baleia e o fut-bandeira), nos conduzem a concluir que o esporte, na infância, é polissêmico, pois cada criança o entende de seu modo, o qual poderá ser jogo, brincadeira ou treino. Porém, o brincar poderá se tornar um princípio metodológico potente para a aprendizagem do esporte, a partir dos eixos estruturantes da cultura infantil. Por exemplo, sabemos que a ludicidade poderá estar presente nas vivências de iniciação esportiva e a imaginação poderá mobilizar a apropriação de elementos do esporte.
A repetição do jogo ou da brincadeira poderá levar ao domínio da prática e a interatividade pela relação com seus pares. Portanto, as crianças participantes da pesquisa mostraram que, ao praticar esporte, estão brincando de esporte. E, quando, brincam de esporte, vivenciam e se apropriam de seus elementos, como: a mudança de regra, a adaptação do espaço, das equipes e a transgressão do tempo cronológico.
Segundo Oliveira (2022) os saberes das crianças são os sentidos que elas constroem a partir de suas experiências. Por isso, concluímos que as vivências das crianças se constituíram experiências quando elas atribuíram sentido à iniciação esportiva, que no contexto do estudo, se deu no brincar.
Por fim, destacamos que, pelo contexto da pandemia, o estudo centrou-se em rodas de conversa com um pequeno grupo, o que abre caminho para futuras pesquisas onde as crianças de outras etapas de ensino e idades possam expressar suas ideias.
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Estudo integrado ao Projeto de Pesquisa Corpo, gestos e movimentos da criança nas propostas inovadoras de Educação Infantil coordenado pela Profª Drª Marynelma Camargo Garanhani, aprovada pelo Comitê Setorial de Pesquisa do Setor de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Paraná.
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FINANCIAMENTO
O presente trabalho contou com apoio financeiro parcial, por meio de bolsa de pesquisa da CAPES do edital nº 15/2021 e processo nº 23075.012021/2021-32.
REFERÊNCIAS
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Nov 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
07 Jun 2024 -
Aceito
26 Set 2024