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Por uma Educação Física revolucionária: a necessidade da ontologia lukacsiana como “arma da crítica”

For a revolutionary Physical Education: the need for Lukacsian ontology as a “weapon of criticism”

Por una Educación Física revolucionaria: la necesidad de la ontología lukácsiana como “arma de crítica”

RESUMO

Este trabalho propõe uma reflexão sobre a intersecção entre a tradição marxista, em particular o pensamento de György Lukács e seu aporte para a Educação Física, a partir de uma pesquisa exploratória bibliográfica qualitativa e fundamentado pelo método materialismo histórico-dialético, apresentando três eixos investigativos. No primeiro, aponta-se pela elucidação da tradição marxista lukacsiana, no segundo, procura-se contextualizar a Educação Física e seu contato com a teoria marxista a partir do seu processo histórico-político, e no terceiro, desenvolve-se um conjunto de notas a respeito das contribuições do marxismo lukacsiano para a Educação Física.

Palavras-chave:
Educação Física; Epistemologia; Lukács; Marxista

ABSTRACT

This work proposes a reflection on the intersection between the marxist tradition, in particular the thought of György Lukács and his contribution to Physical Education, based on qualitative exploratory bibliographical research and based on the historical-dialectical materialism method, presenting three investigative axes. In the first, it aims to elucidate the lukacsian marxist tradition, in the second, it seeks to contextualize Physical Education and its contact with marxist theory based on its historical-political process, and in the third, a set of notes is developed regarding the contributions of lukacsian marxism to Physical Education.

Keywords:
Physical education; Epistemology; Lukács; Marxist

RESUMEN

Este trabajo propone una reflexión sobre la intersección entre la tradición marxista, en particular el pensamiento de György Lukács y su contribución a la Educación Física, a partir de una investigación bibliográfica exploratoria cualitativa y basada en el método del materialismo histórico-dialéctico, presentando tres ejes investigativos. En el primero se pretende dilucidar la tradición marxista lukácsiana, en el segundo se busca contextualizar la Educación Física y su contacto con la teoría marxista a partir de su proceso histórico-político, y en el tercero se desarrolla un conjunto de apuntes respecto de la aportes del marxismo lukácsiano a la educación física.

Palabras-clave:
Educación Física; Epistemología; Lukács; Marxista

INTRODUÇÃO

Este trabalho se propõe a refletir sobre a necessidade da relação entre certa tradição marxista – de György Lukács (1885-1971) – e a Educação Física, com ênfase no potencial dessa tradição tanto para a renovação do marxismo quanto para a recuperação da inspiração crítica postulada pela área, na década de 1980, arrefecida pelas circunstâncias contemporâneas. Busca-se destacar as contribuições do marxismo lukacsiano para a interpretação e transformação social pelo campo da Educação Física.

Sem pretender esgotar as possibilidades trazidas pelo diálogo entre a tradição marxista e a Educação Física, as mediações deste trabalho visam a contribuir essencialmente com três eixos investigativos. Em primeiro lugar, apresentar alguns elementos fundamentais do marxismo lukacsiano que sustentam as proposições aqui apresentadas. Em segundo lugar, contextualizar histórica e politicamente a Educação Física e seu contato com Marx, recuperando algumas influências, causalidades e consequências para a área. E, por fim, apresentar um conjunto de elaborações de certa tradição marxista – de Lukács – a fim de colaborar com o processo de recuperação e renovação do marxismo, enquanto teoria crítica, no campo da Educação Física.

Do ponto de vista dos procedimentos investigativos, trata-se de uma pesquisa bibliográfica de caráter qualitativo e exploratório (Barbosa e Costa, 2015Barbosa E, Costa TCA. Metodologia e Prática de pesquisa em filosofia. Pelotas: NEPFIL; 2015.), que se funda teórico-metodologicamente no materialismo histórico-dialético, legado por Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895) em seus estudos (Marx, 2017bMarx K. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo; 2017b., aMarx K. Miséria da filosofia. São Paulo: Boitempo; 2017a., 2008Marx K. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular; 2008.; Marx e Engels, 2007Marx K, Engels F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo; 2007.). A adoção deste referencial teórico-metodológico se deu por reconhecer seu potencial para uma investigação progressiva e aprofundada das determinações sociais (a saturação de determinações), sustentando rigorosa fidelidade na necessária compreensão do objeto/problemática sob investigação, bem como por sua oposição a assunção de categorias apriorísticas e deterministas comumente utilizadas, entre outras, pela chamada “Ciência Positivista” (Netto, 2011Netto JP. Introdução ao estudo do método de Marx. São Paulo: Expressão Popular; 2011., 2006Netto JP. O que é marxismo. São Paulo: Brasiliense; 2006.).

Ao adotar o materialismo histórico-dialético como fundamento teórico-metodológico, nosso objetivo é o de compreender a Educação Física e suas questões epistemológicas dentro de um contexto mais amplo considerando as determinações sócio-históricas que constituem e são constituídas pela Educação Física. A Educação Física, portanto, é compreendida como um complexo integrante do processo histórico de desenvolvimento da realidade (o complexo de complexos). Vale ressaltar que tal complexo (da Educação Física), à luz desse referencial teórico, é compreendido em sua mútua determinação com o complexo de complexos que é a realidade. Ou seja, a Educação Física é constituída a partir de determinações do real ao mesmo tempo em que determina a realidade. Assim, tanto a Educação Física quanto a realidade são entendidas como movimento, como “vir-a-ser”.

Este fundamento teórico-metodológico investigativo, portanto, fundamenta-se numa compreensão histórica e dialética, por meio da qual analisamos a Educação Física como um fenômeno social e complexo, influenciado pelas relações de classe, estruturas de poder e ideologias (Sousa, 2020Sousa MF. Trabalho e alienação-estranhamento: contribuições da ontologia do ser social para o debate sobre o corpo na Educação Física brasileira [tese]. Brasília: Universidade de Brasília, Faculdade de Educação Física; 2020.). Por esta perspectiva teórica nos é possível examinar criticamente as limitações de alguns paradigmas epistemológicos presentes na Educação Física, tais como aqueles de enfoques: militarista; biologista; higienista; dentre outros, percebendo suas associações ao modo de produção e reprodução da sociedade capitalista (Barros, 2023Barros BL Jr. Crise do capital e a negação da corporalidade: uma contribuição crítico ontológica para os estudos do corpo na Educação Física [tese]. Brasília: Universidade de Brasília, Faculdade de Educação Física; 2023.).

A TRADIÇÃO MARXISTA E A PERSPECTIVA ONTOLÓGICA DE LUKÁCS

Uma diferenciação necessária a partida é aquela entre pensamento marxiano e pensamento marxista. O pensamento marxiano se refere às elaborações efetivadas pelo próprio Marx em suas obras. Já o pensamento marxista se refere à longa tradição dos escritos elaborados por análises feitas a partir de Marx (ou em conjunto com ele, como é o caso de Engels). Nessa tradição, portanto, encontramos grandes pensadores que enriqueceram o acervo crítico analítico sobre a ordem burguesa e suas inúmeras temáticas relevantes, com enfoques absolutamente inovadores, tais como as contribuições, dentre outros, de Engels, Lênin (1870-1924), Antonio Gramsci (1891-1937) e Lukács. Também não é incomum encontrarmos análises que acabaram por distorcer a compreensão de Marx e conduziram a interpretações deterministas, economicistas e, por que não, até positivistas, com características e ênfases que colidem com a herança teórica de Marx. Deste modo, faz-se importante sinalizar que há “marxismos” e não um único e homogêneo “marxismo”. Segundo Netto (2006)Netto JP. O que é marxismo. São Paulo: Brasiliense; 2006., existe uma tradição marxista que engloba diferentes vertentes do pensamento marxiano, as quais frequentemente entram em conflito.

A presente investigação parte de uma determinada tradição marxista: a de Lukács, especialmente, em sua fase tardia na qual se nota uma impostação de caráter ontológico. Para Netto (2011), oNetto JP. Introdução ao estudo do método de Marx. São Paulo: Expressão Popular; 2011. enfoque ontológico é fundamental na compreensão do pensamento de Marx, tendo Lukács como seu principal exponente, com destaque para seus estudos da Ontologia do ser social.

Para Lukács (2013Lukács G. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo; 2013., 2012Lukács G. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo; 2012., 2010bLukács G. Prolegômenos para uma ontologia do ser social: questões de princípios para uma ontologia hoje tornada possível. São Paulo: Boitempo; 2010b.), todo o esforço teórico de Marx se centrou na compreensão sobre a seguinte problemática: como vem sendo os seres humanos numa determinada forma de organização social, no caso o capitalismo? Tal problemática pode ser entendida como uma questão ontológica, uma explicação sobre o que somos (vem sendo) nos marcos históricos de uma determinada e particular forma de organizar a vida em sociedade: o capitalismo. Marx (2004)Marx K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo; 2004. se ocupa em desnudar, em sua crítica da economia política, os limites impostos pelo capitalismo ao desenvolvimento histórico-genérico e, com isso, demonstrar a necessidade da revolução (emancipação humana).

Porém, Marx (2004)Marx K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo; 2004., ao empreender a compreensão do “ser na ordem burguesa” – que foi o seu objetivo –, descobre alguns elementos histórico-universais sobre os seres humanos. Ou seja, os seres humanos se diferenciam dos outros seres por sua capacidade de se objetivar. A objetivação fundamental é o trabalho – a transformação intencional do humano sobre a natureza – e este, necessariamente, implica em um processo de exteriorização/objetivação. Os seres humanos são capazes de objetivar sua consciência e exteriorizar os patamares de individualidade social a que chegaram. Desta forma, quando e onde existir humanidade, haverá sempre objetivação e exteriorização. São determinações ontológicas dos seres sociais. Na ordem burguesa, há uma outra determinação ontológica: a alienação (estranhamento), mas esta não tem caráter histórico-universal. Superadas as relações sociais de produção burguesas, a alienação poderá/deverá ser superada.

Como vimos, então, os estudos da Ontologia do ser social procuram entender esta relação entre a estrutura objetiva da sociedade e a subjetividade dos indivíduos, com a finalidade de superar as contradições e a alienação inerentes ao modo de produção e reprodução da vida no capitalismo (Lukács, 2013Lukács G. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo; 2013., 2012Lukács G. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo; 2012., 2010bLukács G. Prolegômenos para uma ontologia do ser social: questões de princípios para uma ontologia hoje tornada possível. São Paulo: Boitempo; 2010b.).

A ontologia marxiana foi fundamental para estabelecer novos parâmetros na análise da vida humana quando destaca a centralidade ontológica do trabalho. Por meio desta compreensão foi possível, entre outras coisas, à Marx e Engels uma apreensão da dinâmica da história humana. Engels relembra isso em seu discurso por ocasião do enterro de seu amigo Marx em 1883: “[...] descobriu Marx a lei do desenvolvimento da história humana: [...] de que os homens, antes do mais, têm primeiro que comer, beber, abrigar-se e vestir-se, antes de se poderem entregar à política, à ciência, à arte, à religião, etc.” (Marx e Engels, 1985, pMarx K, Engels F. Obras escolhidas. Lisboa: Avante; 1985. (vol. III).. 179).

Tal compreensão de história acompanha Marx e Engels desde a elaboração de A Ideologia alemã – entre 1846 e 1847:

[...] devemos começar por constatar o primeiro pressuposto de toda a existência humana e também, portanto, de toda a história, a saber, o pressuposto de que os homens têm de estar em condições de viver para poder ‘fazer história’. Mas, para viver, precisa-se, antes de tudo, de comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais (Marx e Engels, 2007Marx K, Engels F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo; 2007., pp. 32-33).

Se a essência humana é a objetivação – pela centralidade do trabalho – e a história humana está relacionada à como os seres humanos produzem, vale ressaltar, para não haver confusões, que a ontologia marxiana defende a historicidade da essência humana (Lukács, 2012Lukács G. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo; 2012.). Na obra Manuscritos econômico-filosóficos, Marx (2004)Marx K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo; 2004. traz importantes elementos para indicar uma ontologia materialista, dialética e que estabelece a historicidade como traço essencial de todo o ser. A categoria de substância, em si, reconhece a historicidade como um princípio ontológico fundamental. Deste modo, a substância não se opõe à historicidade ou ao movimento da matéria, mas sim, indica a continuidade, o vir-a-ser como princípio de ser dos complexos categoriais em movimento. Este indício aponta para a tendência ontológica à historicidade como princípio do próprio ser social (Lukács, 2012Lukács G. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo; 2012.).

Ao defender a radical historicidade de todo ser social, Marx (2004)Marx K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo; 2004. justifica que todo e qualquer processo investigativo deve realizar-se a partir de uma perspectiva histórico-genética. Logo, uma análise sobre um fenômeno do ser social é, necessariamente, uma investigação sobre a história humana, pois a desconsideração da história pode nos conduzir a uma interpretação imaginária da realidade. Segundo Lukács (2010b)Lukács G. Prolegômenos para uma ontologia do ser social: questões de princípios para uma ontologia hoje tornada possível. São Paulo: Boitempo; 2010b., não devemos recorrer a um estado primitivo imaginário para buscar explicações, uma vez que isso desloca a questão para uma região nebulosa e cinzenta, exempli gratia, teólogos que explicam a origem do mal pelo nascimento do pecado, supondo-o como uma situação dada e acabada de uma determinação social que sempre requer ser explicada aos seus fiéis religiosos como “verdade absoluta”, negando, distintamente, a ontologia histórico-materialista do ser social.

Uma compreensão teórica emancipadora tem por exigência a análise da realidade social, a fim de desvelar os fenômenos e superar as explicações alienantes e fantasiosas que impedem o livre desenvolvimento consciente do indivíduo em relação à humanidade. Analisar a materialidade do real é absolutamente necessário para compreensão da sociedade de classes, de seus limites a fim de construir estratégias e táticas emancipatórias, afinal os seres humanos são os construtores de sua própria história. Para a teoria marxiana, as questões e perguntas que os humanos fazem sobre si e sobre seu tempo já contém, em suas próprias condições objetivas, as possíveis e indicativas respostas e consequentes superações (Lukács, 2012Lukács G. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo; 2012.).

Neste momento histórico que nos encontramos, as mais significativas barreiras ao livre desenvolvimento humano são aquelas que foram socialmente impostas pelo capitalismo. Por esta razão é importante retomar e renovar a teoria social de Marx, que é a mais profunda crítica efetiva às relações sociais de produção capitalista.

A RELAÇÃO ENTRE A EDUCAÇÃO FÍSICA E A TRADIÇÃO MARXISTA

A Educação Física, desde sua gênese, esteve ligada aos interesses da burguesia já em sua fase conservadora (pós-1848). Para Soares (2004)Soares CL. Educação Física: raízes européias e Brasil. Campinas: Autores Associados; 2004., as “raízes européias” apontam que, na divisão sociotécnica do trabalho, o professor de Educação Física – inicialmente como professor de Ginástica – surge para cumprir três funções necessárias ao funcionamento da sociedade capitalista: preparar mão-de-obra para as longas jornadas de trabalho impostas pelo capitalismo em sua fase industrial; controlar o desenvolvimento das epidemias contribuindo com a formação de “corpos fortes e saudáveis”; e contribuir com a generalização de compreensão naturalista de sociedade e corpos (visão positivista de mundo).

No Brasil, além das funções clássicas cunhadas em sua gênese, a Educação Física ainda serviu, em momentos históricos distintos, ora para promover o eugenismo e o higienismo, ora para garantir o nacionalismo e a ordem, ora para contribuir com o processo de alienação política. Na década de 80 do século passado, em toda a América Latina, em particular o Brasil, surgiram compromissos explícitos com os movimentos sociais, lutas pelo poder popular e processos de libertação da classe trabalhadora, com participação direta de intelectuais, dentre estes, professores de Educação Física, sobretudo de docentes e discentes – com destaque para os programas de pós-graduação na área das humanidades – das instituições públicas de ensino (Castellani, 1988Castellani L Fo. Educação Física no Brasil: a história que não se conta. Campinas: Papirus; 1988.).

Com a mudança do contexto histórico brasileiro, no processo de redemocratização do país, a Educação Física passa por uma autocrítica, por uma “crise” (Medina, 1990Medina JPS. A Educação Física cuida do corpo e “mente”. 9. ed. Campinas: Papirus; 1990.). Tal “crise” aponta, entre outros elementos, a débil formação inicial, a qual comparecia com pouco conteúdo das áreas de humanidades, que poderiam, de certa maneira, conduzir os estudantes de Educação Física a uma formação atenta às determinações sociais, políticas, educacionais, econômicas, culturais e psicológicas da “cultura corporal” (Castellani et al., 2012Castellani L Fo, Soares CL, Taffarel CNZ, Varjal E, Escobar MO, Bracht V. Metodologia do ensino de Educação Física. São Paulo: Cortez; 2012.).

Nesse processo, de busca por uma formação crítica, a Educação Física fez sua primeira aproximação com a tradição marxista. Tal contato foi efetivado de maneira indireta, na grande maioria das vezes pela apropriação dos textos da educação, especialmente, pelos textos de Paulo Freire (1921-1997) e Dermeval Saviani (1943-). Claro que se tratou de um processo extremamente complexo e que não poderia ser reduzido a essas influências, mas, sem dúvidas que o contato com a bibliografia crítica da educação influenciou a produção da Educação Física em sua “tentativa de intenção de ruptura” animada pelo contato com as humanidades e, especialmente, pela tradição marxista da educação (Húngaro, 2011Húngaro EM. A Educação Física e a tentativa de “deixar de mentir”: o projeto de “intenção de ruptura.” In: Medina JPS, editor. A Educação Física cuida do corpo e “mente”. Campinas: Papirus; 2011. p. 135-59.).

Os diálogos com o marxismo possibilitaram novos marcos para criticar e problematizar ideias e práticas dominantes. O enfoque no conhecimento da materialidade da realidade, da qual a Educação Física é constituinte e constituída, possibilitou, entre outras compreensões, a percepção dos processos ideológicos operantes, os fundamentos da reificação, bem como as contradições estruturais da área. Tais possibilidades de conhecimento contribuíram para reflexões e críticas sobre a função social da práxis da Educação Física (Castellani, 2020Castellani L Fo. Às voltas com o futuro: minhas incursões na Educação Física escolar. Poiésis 2020;14(25):19-51. http://dx.doi.org/10.19177/prppge.v14e25202019-51.
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; Húngaro, 2011Húngaro EM. A Educação Física e a tentativa de “deixar de mentir”: o projeto de “intenção de ruptura.” In: Medina JPS, editor. A Educação Física cuida do corpo e “mente”. Campinas: Papirus; 2011. p. 135-59.).

Alguns importantes avanços, resultantes dessa articulação entre a Educação Física e a tradição marxista, puderam ser notados. No âmbito das reflexões educacionais, as interlocuções com o marxismo trouxeram vigorosos aportes teóricos que culminaram numa abordagem pedagógica da Educação Física denominada de “crítico-superadora” e desenvolvida por um grupo de professores intitulado como “Coletivo de Autores” (Castellani et al., 2012Castellani L Fo, Soares CL, Taffarel CNZ, Varjal E, Escobar MO, Bracht V. Metodologia do ensino de Educação Física. São Paulo: Cortez; 2012.).

No âmbito da discussão sobre o corpo (ser humano), a tradição marxista trouxe a compreensão da importância da radical historicidade da essência humana e que nos permitiu a superação de uma visão naturalizada de corpo pela qual não se reconhecem as diferenças históricas e sociais que moldam e são moldadas pelas experiências subjetivas dos indivíduos. Que perdem de vista a essencial relação entre o sujeito (corpo) e o contexto sócio histórico (Baptista, 2013Baptista TJR. A educação do corpo na sociedade do capital. Curitiba: Appris; 2013.; Barros, 2023Barros BL Jr. Crise do capital e a negação da corporalidade: uma contribuição crítico ontológica para os estudos do corpo na Educação Física [tese]. Brasília: Universidade de Brasília, Faculdade de Educação Física; 2023.; Gama, 2019Gama ACV. Implicações sociais da formação profissional do bacharelado em Educação Física sobre a compreensão de corpo, estética e educação [dissertação]. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Educação; 2019.; Silva, 2020Silva HLF. Trabalho, corporalidade e formação humana. Jundiaí: Paco Editorial; 2020.; Sousa, 2020Sousa MF. Trabalho e alienação-estranhamento: contribuições da ontologia do ser social para o debate sobre o corpo na Educação Física brasileira [tese]. Brasília: Universidade de Brasília, Faculdade de Educação Física; 2020.).

No lazer, a tematização a partir da categoria trabalho ampliou nossa compreensão sobre a gênese do lazer e redimensionou nosso entendimento sobre tempo livre e tempo de trabalho, bem como demonstrou o caráter contraditório do lazer na sociedade de classes – emancipação versus alienação – (Marcassa, 2002Marcassa L. A invenção do lazer: educação, cultura e tempo livre na cidade de são Paulo (1888-1935) [dissertação]. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Educação; 2002.; Mascarenhas, 2005Mascarenhas F. Entre o ócio e o negócio: teses acerca da anatomia do lazer [tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação Física; 2005. http://dx.doi.org/10.47749/T/UNICAMP.2005.344704.
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; Oliveira, 2022Oliveira BA. Quando e onde termina o trabalho? Para a crítica do lazer no século XXI [tese]. Brasília: Universidade de Brasília, Faculdade de Educação Física; 2022.).

No âmbito da política, possibilitou a Educação Física discutir as estratégias e táticas na luta pela emancipação humana. Ou seja, proporcionou-nos a percepção de que a luta pela democracia e por direitos – ao esporte e ao lazer – na elaboração de políticas públicas devem estar articulados com a perspectiva revolucionária (Castellani, 2020Castellani L Fo. Às voltas com o futuro: minhas incursões na Educação Física escolar. Poiésis 2020;14(25):19-51. http://dx.doi.org/10.19177/prppge.v14e25202019-51.
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; Mascarenhas, 2005Mascarenhas F. Entre o ócio e o negócio: teses acerca da anatomia do lazer [tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação Física; 2005. http://dx.doi.org/10.47749/T/UNICAMP.2005.344704.
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; Melo, 2011Melo MP. Esporte e dominação burguesa no século XXI: a agenda dos Organismos Internacionais e sua incidência nas políticas de esportes no Brasil de hoje [tese]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Serviço Social; 2011.).

No campo da epistemologia, a articulação entre a importância da análise teórica (científica) e o compromisso com o processo de emancipação humana, feita por Marx e Engels (Marx, 2017aMarx K. Miséria da filosofia. São Paulo: Boitempo; 2017a., 2004Marx K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo; 2004.; Marx e Engels, 2012Marx K, Engels F. Crítica do Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo; 2012., 2010Marx K, Engels F. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo; 2010., 2007Marx K, Engels F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo; 2007.), permitiu-nos refletir sobre a importância da produção científica da Educação Física e o seu compromisso social na superação de uma sociedade que impede os seres humanos de serem tudo aquilo que poderiam ser.

Trouxe-nos, ainda, um “arsenal categorial” que nos demonstrou a importância fundamental das categorias ontológicas: totalidade; contradição; e mediação, bem como das categorias de análise do modo de ser do ser da ordem burguesa: luta de classes; alienação; ideologia; e fetichismo de mercadoria, entre outras (Húngaro, 2014Húngaro EM. A questão do método na constituição da teoria social de Marx. In: Sousa JV, Silva MA, Cunha C, editores. O método dialético na pesquisa em educação. Campinas: Autores Associados; 2014. p. 15-78., 2011Húngaro EM. A Educação Física e a tentativa de “deixar de mentir”: o projeto de “intenção de ruptura.” In: Medina JPS, editor. A Educação Física cuida do corpo e “mente”. Campinas: Papirus; 2011. p. 135-59., 2008Húngaro EM. Trabalho, tempo livre e emancipação humana: os determinantes ontológicos das políticas sociais de lazer [tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação Física; 2008.; Húngaro et al., 2017Húngaro EM, Patriarca AC, Gamboa SS. A decadência ideológica e a produção científica na Educação Física. Rev Pedagóg 2017;19(40):43-67. http://dx.doi.org/10.22196/rp.v19i40.3741.
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).

Apesar das notáveis contribuições, a interlocução da Educação Física com a tradição marxista não foi feita sem problemas. Entre elas, atentemo-nos a duas significativas: o contato inicial por fontes indiretas; e o contexto histórico avesso a Marx da década de 1990. O contato inicial da área com o pensamento de Marx foi feito a partir de intérpretes e não do próprio autor. O contato por fontes secundárias é sempre complexo, pois traz o risco de uma interpretação enviesada. Vale ressaltar que muitos desses diálogos indiretos se deram bem menos pela falta de esforço investigativo e muito mais pelas próprias circunstâncias do momento (Castellani, 2020Castellani L Fo. Às voltas com o futuro: minhas incursões na Educação Física escolar. Poiésis 2020;14(25):19-51. http://dx.doi.org/10.19177/prppge.v14e25202019-51.
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; Húngaro, 2011Húngaro EM. A Educação Física e a tentativa de “deixar de mentir”: o projeto de “intenção de ruptura.” In: Medina JPS, editor. A Educação Física cuida do corpo e “mente”. Campinas: Papirus; 2011. p. 135-59.).

Em suas buscas pelos estudos de pós-graduação stricto sensu, na década de 1980, autores pioneiros do, posteriormente, chamado de “Movimento Renovador” – Medina (1990)Medina JPS. A Educação Física cuida do corpo e “mente”. 9. ed. Campinas: Papirus; 1990. e Castellani et al. (2012)Castellani L Fo, Soares CL, Taffarel CNZ, Varjal E, Escobar MO, Bracht V. Metodologia do ensino de Educação Física. São Paulo: Cortez; 2012., entre outros – buscaram interlocução com a teoria marxista por meio de textos da área pedagógica. Um importante caminho introdutório para a área e que necessitaria de aprofundamento, mas “dificultado” pelas circunstâncias históricas (fim do chamado “Socialismo Real” e avanço do neoliberalismo).

No final da década de 1980, as experiências alternativas ao capitalismo – socialismo realmente existente – entraram em uma crise profunda, onde a decadência ideológica do pensamento burguês, rapidamente associou o colapso do bloco soviético ao fim do marxismo. Segundo Fukuyama (1992), oFukuyama F. O fim da história e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco; 1992. capitalismo havia vencido mediante a hegemonia da democracia liberal. Este contexto incidiu diretamente na interlocução que a Educação Física fazia com a tradição marxista – caminhando cada vez mais para sua interlocução direta com as obras de Marx – de modo a fazer com que a produção da área, tendencialmente, fosse se afastando ao julgar que a tradição marxista estava ultrapassada. Além disso, inicia-se uma busca pelo fortalecimento da interlocução com autores e tradições que compõem a chamada agenda pós-moderna, particularmente: a fenomenologia; o existencialismo; o pós-estruturalismo; o neopragmatismo; e o multiculturalismo. Expressões daquilo que Lukács (2010a)Lukács G. Marxismo e teoria da literatura. São Paulo: Expressão Popular; 2010a. Marx e o problema da decadência ideológica; p. 51-104., depois de Marx, denominará como formulações do período da “decadência ideológica do pensamento burguês”.

As circunstâncias históricas contemporâneas apontam para a necessidade de a Educação Física retomar essa articulação com a tradição marxista. De retomada do “projeto de intenção de ruptura” (Húngaro, 2011Húngaro EM. A Educação Física e a tentativa de “deixar de mentir”: o projeto de “intenção de ruptura.” In: Medina JPS, editor. A Educação Física cuida do corpo e “mente”. Campinas: Papirus; 2011. p. 135-59.). Vale reforçar que tal projeto nunca foi totalmente abandonado – grupos e pesquisadores vinculados à tradição marxista continuaram a produzir e protagonizar articulações entre suas produções e a luta emancipatória –, mas foi, significativamente, pelas circunstâncias históricas, arrefecido.

CONTRIBUIÇÕES DO MARXISMO LUKACSIANO PARA A EDUCAÇÃO FÍSICA

Para a “retomada” dessa necessária interlocução com a teoria social de Marx, há que cuidar para não incorrer em erros passados que, entre outras coisas, fizeram uso de Marx para justificar práticas políticas, por exemplo, o fenômeno do stalinismo. Como dissemos anteriormente, há marxismos e não um único marxismo. Em razão disso, durante toda a exposição de nossa investigação optamos por fazer uso de “tradição marxista”, que engloba os diversos esforços em lidar com as contribuições de Marx, algumas vezes por meio de interpretações marxistas e outras pelas próprias elaborações de Marx.

Lukács (2013Lukács G. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo; 2013., 2012Lukács G. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo; 2012., 2010bLukács G. Prolegômenos para uma ontologia do ser social: questões de princípios para uma ontologia hoje tornada possível. São Paulo: Boitempo; 2010b.), na tradição marxista, com uma visão amadurecida e crítica sobre a experiência do socialismo realmente existente, faz um esforço descomunal a fim de livrar Marx, Engels e Lênin das distorções empreendidas por alguns intérpretes da própria tradição marxista, por um lado, e pelas críticas indevidas do pensamento decadente da burguesia, por outro. Tal esforço estava centrado na correta leitura da necessidade de renovação do marxismo, a fim de poder enfrentar a onda de capitalismo manipulatório que se avizinhava. Vale ressaltar que tal percepção foi gestada na década de 1960, ou seja, muito antes do fenômeno das redes sociais e das chamadas Fake News.

Na Educação Física, no início deste século, destaca-se a tese de Ortigara (2002)Ortigara V. Ausência sentida nos estudos em Educação Física: a determinação ontológica do ser social [tese]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências da Educação; 2002. reclamando da ausência de Lukács nos debates da Educação Física. Tal avaliação é compartilhada por Avila (2008)Avila AB. A pós-graduação em Educação Física e as tendências na produção de conhecimento: o debate entre realismo e anti-realismo [tese]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências da Educação; 2008. em sua tese que tematiza a pós-graduação em Educação Física e denuncia a hipertrofia do antirrealismo na produção da área. Esforços pioneiros que se somaram aos de Húngaro (2001)Húngaro EM. Modernidade e totalidade: em defesa de uma categoria ontológica [dissertação]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2001. que, em sua dissertação, faz a defesa da categoria da totalidade como fundamento central da ontologia lukacsiana e de sua importância na “batalha das ideias” em face a crítica pós-moderna.

No entanto, surgem ataques no âmbito da Educação Física avessos a qualquer impostação ontológica, com destaque a manifestação de Almeida e Vaz (2010)Almeida FQ, Vaz AF. Do giro linguístico ao giro ontológico na atividade epistemológica em Educação Física. Movimento 2010;16(3):11-28. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.12485.
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, ao demonstrar excessivo incômodo com o que chamaram de “virada ontológica”. Vale destacar que a crítica efetivada no artigo não opera com qualquer texto em que Lukács explicite a sua ontologia. Trabalha, apenas, com uma entrevista denominada de Autocrítica do marxismo e concedida por Lukács ao Leandro Konder (1936-2014) em 1969, e com a obra A destruição da razão, elaborada durante a segunda guerra mundial. Como se sabe, os estudos da Ontologia do ser social foram escritos a partir da década de 1960. Portanto, os textos de referência dos autores são insuficientes à compreensão da hipótese de Lukács de que a obra de Marx é expressão de um novo tipo de ontologia. Em vista dessa incompreensão, tratam a ontologia de Lukács, equivocadamente, como se fosse sinônimo de uma nova tentativa de metafísica (Barros et al., 2022Barros BL Jr, Moraes DB, Dias ES, Gama ACV, Húngaro EM. Controversial aspects of an interpretation of the language turn on the ontology of Lukács as a critical reference in Physical Education. Movimento 2022;28:e28034. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.122538.
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).

A tradição marxista lukacsiana coloca novos desafios para a investigação dos problemas epistemológicos da Educação Física, pelo fato de que, anterior ao debate sobre os princípios epistemológicos é fundamental analisar ontologicamente o objeto abordado pela Educação Física, tal qual, as condições histórico-sociais que possibilitem novos diálogos sobre as insuficiências científicas da referida área (Avila, 2008Avila AB. A pós-graduação em Educação Física e as tendências na produção de conhecimento: o debate entre realismo e anti-realismo [tese]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências da Educação; 2008.; Barros et al., 2022Barros BL Jr, Moraes DB, Dias ES, Gama ACV, Húngaro EM. Controversial aspects of an interpretation of the language turn on the ontology of Lukács as a critical reference in Physical Education. Movimento 2022;28:e28034. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.122538.
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; Gamboa, 2007Gamboa SS. Reações ao giro linguístico: o resgate da ontologia ou do real, independente da consciência e da linguagem. In: XV Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte; 2007 Set 16-21; Recife. Anais. Goiânia: CBCE; 2007. p. 1-14.; Húngaro et al., 2017Húngaro EM, Patriarca AC, Gamboa SS. A decadência ideológica e a produção científica na Educação Física. Rev Pedagóg 2017;19(40):43-67. http://dx.doi.org/10.22196/rp.v19i40.3741.
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; Morschbacher, 2015Morschbacher M. O debate epistemológico na área da Educação Física: crítica aos “giros epistemológicos” a partir da ontologia e da gnosiologia. In: V Seminário de Epistemologia e Teorias da Educação; 2015 Dez 14-15; Salvador. Anais. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2015. p. 1-19.; Ortigara, 2002Ortigara V. Ausência sentida nos estudos em Educação Física: a determinação ontológica do ser social [tese]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências da Educação; 2002.; Sacardo e Silva, 2017Sacardo M, Silva RHR. A crítica crítica dos giros epistemológicos e/ou linguísticos no debate político-epistemológico da área da Educação Física. Germinal Marx Educ Debate. 2017;9(2):26-39. http://dx.doi.org/10.9771/gmed.v9i2.15883.
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).

Pela concepção de totalidade, tem-se que o sujeito investigador procura as definições e a concreção ideal do movimento do real dos objetos para a produção do conhecimento. Esse é o elo fundamental e precedente para toda análise do ser social e suas mediações com o mundo natural, o qual intervém em seu metabolismo ineliminável (Húngaro, 2001Húngaro EM. Modernidade e totalidade: em defesa de uma categoria ontológica [dissertação]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2001.).

Apesar da necessária interlocução com a ontologia materialista e histórica de Marx (sob a leitura de Lukács), os estudos de: Avila (2008)Avila AB. A pós-graduação em Educação Física e as tendências na produção de conhecimento: o debate entre realismo e anti-realismo [tese]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências da Educação; 2008.; Barros et al. (2022)Barros BL Jr, Moraes DB, Dias ES, Gama ACV, Húngaro EM. Controversial aspects of an interpretation of the language turn on the ontology of Lukács as a critical reference in Physical Education. Movimento 2022;28:e28034. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.122538.
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; Gamboa (2007)Gamboa SS. Reações ao giro linguístico: o resgate da ontologia ou do real, independente da consciência e da linguagem. In: XV Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte; 2007 Set 16-21; Recife. Anais. Goiânia: CBCE; 2007. p. 1-14.; Húngaro et al. (2017)Húngaro EM, Patriarca AC, Gamboa SS. A decadência ideológica e a produção científica na Educação Física. Rev Pedagóg 2017;19(40):43-67. http://dx.doi.org/10.22196/rp.v19i40.3741.
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; Morschbacher (2015)Morschbacher M. O debate epistemológico na área da Educação Física: crítica aos “giros epistemológicos” a partir da ontologia e da gnosiologia. In: V Seminário de Epistemologia e Teorias da Educação; 2015 Dez 14-15; Salvador. Anais. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2015. p. 1-19.; Ortigara (2002)Ortigara V. Ausência sentida nos estudos em Educação Física: a determinação ontológica do ser social [tese]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências da Educação; 2002.; e Sacardo e Silva (2017)Sacardo M, Silva RHR. A crítica crítica dos giros epistemológicos e/ou linguísticos no debate político-epistemológico da área da Educação Física. Germinal Marx Educ Debate. 2017;9(2):26-39. http://dx.doi.org/10.9771/gmed.v9i2.15883.
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, apontam que a produção filosófica da área tem operado um reducionismo “epistemologista”. Isto é, temos nos centrado muito mais no como os homens conhecem e qual o estatuto desse conhecimento – critério de verdade, limites, etc. – do que em investigar o que são os seres humanos e quais suas possibilidades em face da miséria do mundo capitalista.

Segundo Wood (1996)Wood EM. Em defesa da História: o marxismo e a agenda pós-moderna. Crít Marx 1996;1:118-27., as diversas defesas trazidas pela chamada agenda pós-moderna – tais como: a relativização do conhecimento; o abandono da realidade como critério de verdade; a hipertrofia da linguagem (e dos jogos de linguagem); a defesa do conhecimento verdadeiro como consenso intersubjetivo; e a desconsideração das relações sociais de produção, entre outras temáticas – julgam ser inapropriada uma investigação que tenha por suposto a possibilidade de explicar o que os seres humanos vem sendo e o que eles poderiam ser. Em outras palavras: condenam-nos à uma metafísica do presente!

Em face disso, urge a retomada renovada – pelo debate teórico da Educação Física que se pretende crítica e anticapitalista – da tradição marxista de enfoque ontológico a fim de, na “batalha das ideias” ser uma “arma da crítica” no enfrentamento do decadente pensamento burguês contemporâneo, objetivando compreender a humanidade (e sua corporalidade) na relação com a realidade concreta e desígnio de superar a compreensão unilateral e efêmera que tem se tornada hegemônica no debate epistemológico da área.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A perspectiva teórico-metodológica marxista, em particular a compreensão de Lukács, oferece importantes contribuições para diversos campos do conhecimento, inclusive para a Educação Física. Por meio da tradição marxista lukacsiana, considerada crítica e emancipatória, tem-se potencial para entender a origem e o desenvolvimento do ser social em sua historicidade, viabilizando uma transformação social mais ampla, cujo intuito seja alcançar a tão imprescindível emancipação humana.

Outro ponto relevante é que a tradição marxista nos permite entender a organização científica na sociedade burguesa, o que é crucial para compreendermos o viés epistemológico dominante que busca explicar a realidade de forma unilateral e efêmera, a partir de critérios lógico-gnoseológicos estabelecidos previamente. No entanto, a tradição marxista lukacsiana se oferece como alternativa antagônica a essa visão, em razão dela considerar que o conhecimento não pode ser separado da realidade objetiva e da práxis humana.

  • FINANCIAMENTO

    Esta pesquisa recebeu apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    30 Ago 2023
  • Aceito
    23 Out 2023
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