RESUMO
Trata-se de uma pesquisa teórica de orientação reflexiva que objetiva discutir sobre os aspectos e características que constituem as dimensões tradicional e moderna na Luta Marajoara. Os resultados indicam que a tradição e a modernidade perfazem a história da Luta Marajoara como manifestação cultural do povo da Ilha de Marajó, e que existe um conjunto de caracterizações que dizem respeito a tais modalidades de experiência presentes nesta luta brasileira. Na tradição, destacam-se os contextos tradicionais de prática da Luta Marajoara, e seu caráter ritualístico. Conectados com a expressão moderna, são observados desafios, tensões e tendências de avanço em direção à sua esportivização e escolarização.
Palavras-chave: Luta Marajoara; Marajó; Tradição; Modernidade
ABSTRACT
This is a theoretical search of reflective orientation aimed at discussing the aspects and characteristics that constitute the traditional and modern dimensions of Marajoara Wrestling. The results indicate that tradition and modernity are integral to the history of Marajoara Wrestling as a cultural manifestation of the people of Marajó Island, and that there is a set of characterizations related to these types of experiences present in this Brazilian fight. In tradition, the traditional contexts of practicing Marajoara Wrestling and its ritualistic nature are highlighted. Connected with the modern expression, challenges, tensions, and trends towards its sportification and formalization in schools are observed.
Keywords: Marajoara Wrestling; Marajó; Tradition; Modernity
RESUMEN
Se trata de una investigación teórica de orientación reflexiva que tiene como objetivo discutir los aspectos y características que constituyen las dimensiones tradicional y moderna de la Lucha Marajoara. Los resultados indican que la tradición y la modernidad son parte integral de la historia de la Lucha Marajoara como manifestación cultural del pueblo de la Isla de Marajó, y que existe un conjunto de caracterizaciones relacionadas con estos tipos de experiencias presentes en esta lucha brasileña. En la tradición, se destacan los contextos tradicionales de práctica de la Lucha Marajoara y su carácter ritualístico. Conectados con la expresión moderna, se observan desafíos, tensiones y tendencias hacia su deportivización y escolarización.
Palabras-clave: Lucha Marajoara; Marajó; Tradición; Modernidad
INTRODUÇÃO
A Luta Marajoara é uma modalidade de luta corporal de origem brasileira, caracterizada por particularidades culturais desenvolvidas na ambientação geográfica da Ilha de Marajó. Localizada na região Norte do Brasil, a Ilha de Marajó, banhada pela foz do rio Amazonas e pelo Oceano Atlântico, é considerada a maior ilha fluviomarítima do mundo, com 16 municípios e mais de 50 mil quilômetros quadrados. Ela é conformada, em termos geográficos e culturais, pelo Marajó dos Campos, na região oriental, e o Marajó das Florestas, na parte ocidental (Pacheco, 2009).
Do ponto de vista conceitual, a Luta Marajoara pode ser concebida como uma prática corporal de domínio, caracterizada como um confronto de curta distância, pois, existe um intenso contato corpo-a-corpo que pode ocorrer, tradicionalmente, nas paisagens de argila, areia e grama da ilha. Destaca-se que o combate ocorre nesses espaços por ser uma característica da própria região do Marajó dos Campos. Como objetivo principal do confronto, busca-se desequilibrar o oponente para a sua projeção de costas no solo.
Compreender o processo de constituição e desenvolvimento da Luta Marajoara envolve refletir sobre as diversas modalidades de experiência associadas à prática da luta, permitindo a observação dos aspectos de tradição e modernidade que a constituem. Em diálogo com Rodrigues (1996), podemos considerar que, à medida que uma manifestação cultural se desenvolve, surgem características que, por vezes, estão ligadas aos saberes tradicionais, transmitidos implicitamente através da observação das atitudes, posturas e regras da prática. Em outras ocasiões, essas características manifestam uma tendência de ruptura, buscando incorporar elementos provenientes tanto de uma ancestralidade perdida quanto de experiências voltadas ao porvir.
Nessa perspectiva, buscamos refletir, neste estudo, sobre os aspectos e características associados às dimensões tradicional e moderna que constituem a Luta Marajoara. Consideramos esse debate pertinente devido aos dilemas que permeiam as duas modalidades de experiência ligadas à prática da luta na região da Amazônia Marajoara. Esses dilemas se traduzem em tensões que, por um lado, tendem a retomar e reafirmar os valores tradicionais e históricos da Luta Marajoara e, por outro, buscam desenvolvê-la nos moldes do esporte moderno (processo de esportivização) e conduzi-la, na forma de conteúdo de ensino, para os âmbitos de atuação e formação do professor de Educação Física (processo de escolarização). Sendo assim, temos a seguinte questão problema: quais características a Luta Marajoara apresenta quando associada com elementos tradicionais e modernos?
Em termos metodológicos, o texto se trata de uma pesquisa teórica de orientação reflexiva, em que os seus autores visam através de uma literatura especializada sobre a Luta Marajoara e aportes conceituais provenientes de estudos antropológicos e sociológicos, expor suas posições acerca da caracterização de elementos tradicionais e modernos que constituem a Luta marajoara. Para desenvolvê-lo, optamos pela perspectiva metodológica do trabalho intelectual como artesanato (Mills, 2009), já que nesta orientação epistemológica, a produção intelectual passa a ser concebida como uma forma de artesanato oriunda da imbricação formativa entre experiências de vida, profissionais e teóricas dos pesquisadores. Nessa concepção, a construção de objetos de pesquisa e caminhos que viabilizem as investigações propostas perpassam pela criatividade e imaginação propositiva dos sujeitos (Mills, 2009).
As fontes teóricas utilizadas no esforço reflexivo e analítico deste estudo foram selecionadas inicialmente por meio de uma busca em bases de dados acadêmicas sobre a Luta Marajoara. Posteriormente, foram complementadas pela pesquisa de Jesus e Assis (1997), disponível no acervo pessoal dos autores. Para o aporte conceitual sobre tradição e modernidade relacionados à Luta Marajoara, utilizamos as contribuições teóricas de Halbwachs (1990), Rodrigues (1996), Arendt (2005), Mauss (2003) e Elias (2019). Na linha do trabalho intelectual como artesanato, essas fontes teóricas passam a colaborar com o esforço argumentativo dos autores desta pesquisa, que visam expor uma reflexão singular a respeito do objeto de estudo.
O estudo aponta para um campo de discussão ainda pouco explorado diretamente na literatura acadêmica sobre a Luta Marajoara, visto que as análises teóricas sobre o tema têm se concentrado em pesquisas sobre sua natureza técnica e esportiva (Campos et al., 2022), nas tematizações pedagógicas na escola (Santos et al., 2023b; Lima et al., 2023), nos processos de institucionalização esportiva (Santos et al., 2023a), na formação de professores (Santos et al., 2020) e nas relações entre Luta Marajoara, esporte e saúde (Campos e Antunes, 2021). Essas abordagens se relacionam indiretamente com as dimensões tradicional e moderna da Luta Marajoara, gerando uma produção teórica ainda inicial acerca da sistematização dos aspectos e características associados a essas duas modalidades de experiência ligadas à luta, o que justifica a realização desta pesquisa.
Nesse sentido, o trabalho está estruturado em três tópicos, além desta introdução. O primeiro discute a Luta Marajoara tradicional, destacando aspectos relacionados a essa modalidade de experiência. O segundo tópico explora reflexões sobre a dimensão moderna da luta. Por fim, nas considerações finais, são apresentadas as principais características que compõem a tradição e modernidade na Luta Marajoara.
LUTA MARAJOARA TRADICIONAL
Estudos de observação in loco, como o de Assis et al. (2011), revelam construções discursivas que associam a Agarrada Marajoara1 às práticas e dimensões da vida do caboco2 marajoara, sendo possivelmente originada delas e resistindo até hoje como atividade pertencente a seu cotidiano (vivências diárias, divertimento e religião). De acordo com os pesquisadores, com base em informações não muito bem explicadas, os rituais da luta foram criados por vaqueiros e repassados de geração em geração, pelos nativos da Ilha de Marajó.
Embora possamos nos deparar com certo desconhecimento acerca de um marco que vincule concretamente o surgimento da Luta Marajoara a sua manifestação contemporânea, Santos e Freitas (2018) também são enfáticos em destacar que seus conhecimentos e prática foram repassados de geração em geração na Ilha de Marajó, visto a existência hoje de uma rede tradicional de saberes incidindo em sua preservação histórica e reconhecimento na Amazônia Marajoara.
Nesse contexto, é viável associar a Luta Marajoara tradicional a uma forma de manifestação corporal desenvolvida no contexto social e cultural da Ilha de Marajó, cuja prática e todos os saberes que a constituem têm sido construídos e reconstruídos pelos próprios marajoaras e repassados a si mesmos há mais de um século, tendo a oralidade e a observação como principais mediadoras. Dentre os aspectos que caracterizam a Luta Marajoara tradicional, serão destacados, nesta pesquisa, os lugares e eventos comunitários da ilha que são historicamente usufruídos para praticá-la, além do caráter ritualístico que a permeia, formado pela influência de símbolos e ações presentes na cultura marajoara.
Inicialmente, como forma de compreender o valor da tradição da Luta Marajoara na região Norte do Brasil, é importante destacar seu reconhecimento legislativo recente. Em 2021, a Assembleia Legislativa do Pará (ALEPA) a reconheceu como Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial do Estado, afirmando sua identidade tradicional no Pará. Isso influenciou eventos importantes, como sua inserção no calendário oficial do Estado pela lei nº. 9.989/2023, que instituiu o 08 de abril como o “Dia Estadual da Luta Marajoara” (Pará, 2023). Esses eventos reafirmam as tradições culturais da Luta Marajoara, legitimando as vastas experiências construídas ao longo de séculos, as quais serão discutidas a partir deste momento.
Em um combate tradicional de Luta Marajoara, os lutadores são marajoaras natos que buscam se confrontar para medir habilidades como agilidade e força e para se entreter no tempo livre. Esses lutadores geralmente possuem porte atlético, são ágeis, corajosos e muito fortes, devido ao trabalho árduo nos campos do Marajó, lidando com bichos selvagens e outros desafios, principalmente a figura do vaqueiro, possuidor de tais características, conforme observado por Neto (2005). Inclusive, as paisagens campesinas e lacustres das fazendas do Marajó dos Campos, lugar em que os vaqueiros são confiados aos serviços de criação bubalina, estão entre os lugares mais tradicionais de prática da Luta Marajoara, assim como comunidades quilombolas, as praias da região e as festas populares, a exemplo da festa de corte dos mastros – evento preparatório da Festividade do Glorioso São Sebastião de Cachoeira do Arari –, realizada anualmente, constituída por combates de Luta Marajoara que a atravessam em diversos momentos e se entrelaçam com outros elementos festivos (Andrade e Carvalho, 2024). São em eventos comunitários como esse e em outros lugares naturais da ilha que a Luta Marajoara tradicional tem sido (re)construída pelos seus principais agentes, os lutadores.
Nesses espaços de prática, a Luta Marajoara é valorizada como uma atividade cercada por um tipo ritualístico singular que demarca as várias fases de seu desenvolvimento. Além disso, as ações corporais na Luta Marajoara revelam elementos ritualísticos que definem os padrões de uso do corpo que a caracterizam. Nesse sentido, aproxima-se da compreensão das técnicas do corpo como atos tradicionais e eficazes, que representam aspectos mais gerais da educação e do modo de vida de cada sociedade (Mauss, 2003). O elemento social na constituição das técnicas do corpo é fundamental, já que, na teoria de Mauss, existe uma especificidade em cada técnica do corpo. No entanto, elas em geral são legitimadas como parte da tradição a partir da sua eficácia, isto é, da sua utilização exitosa, que é quase sempre reproduzida por via da imitação prestigiosa de sujeitos ou grupos sociais que manifestam efetividade e beleza na realização de alguma técnica.
Nos contextos tradicionais de prática da Luta Marajoara, as técnicas que a constituem são ensinadas pelos próprios cabocos lutadores, sem livros e sem escola, geralmente do mais experiente para o iniciante. Não por acaso, o estudo de Campos et al., (2022), ao buscar compreender os padrões técnicos e táticos utilizados nas ações de ataque e defesa nos confrontos de Luta Marajoara, utilizou como metodologia a filmagem de combates simulados por três atletas reconhecidos e indicados pela comunidade organizadora de competições nas cidades de Soure e Salvaterra da Ilha do Marajó. Tal realidade reforça a ideia de que, no âmbito da constituição das tradições no uso de técnicas do corpo, a transmissão oral destas e o padrão técnico a ser aprendido será sempre aquele ensinado por sujeitos que apresentam maior domínio técnico de cada movimento para aqueles que possuem menos.
Neste ponto, cabe destacar que como estamos tratando de uma manifestação cultural que se expressa na forma de uma prática corporal, é interessante observar a esfera da tradição no âmbito do uso e construção do acervo das técnicas do corpo. O que o trabalho de Mauss (2003) sugere é que as formas tradicionais que os seres humanos fazem uso do seu corpo acabam sendo influenciadas pelos padrões colocados por cada sociedade. Sendo assim, uma técnica se efetiva e passa a fazer parte de uma dada tradição na medida em que se comprova como eficaz para a realização de uma dada atividade humana. No caso da Luta Marajoara, deve-se reconhecer que grande parte da sua atratividade se refere às peculiaridades em que as formas de uso de corpo desta luta se imbricam com elementos mais amplos da cultura do povo marajoara, como é o caso da nomeação de certos golpes e alguns de seus aspectos ritualísticos.
A nomeação de alguns golpes da Luta Marajoara e seu comportamento técnico se relaciona fortemente com símbolos, ações e termos do cotidiano marajoara. É o caso da técnica “boi laranjeira”, denominada pela presença da pecuária na região. Em alguns municípios do Marajó, essa técnica é também chamada de “boi vaca”. Podemos depreender que o gesto técnico de certos golpes, além de fazer referência a termos populares usados no Marajó e no interior do Pará, como a “lambada” – ato de açoitar –, possui padrões de movimentos característicos da Ilha. Um exemplo é o golpe “calçada”, que consiste em um gesto corporal que se assemelha ao ato de “laçar” e derrubar búfalos nos campos marajoaras.
No que concerne ao caráter ritualístico presente na luta, observa-se uma forte inspiração na fauna local, especialmente no búfalo, frequentemente descrito na tradição oral local como um símbolo de força. Essa associação se reflete na gestualidade dos movimentos da luta, que incorporam elementos da postura e dos movimentos desse animal. Um exemplo é a posição inicial tradicional postura semiagachada para iniciar os combates e a posição inicial denominada Pés-Casados que, somadas, aproximam os lutadores e evocam um confronto olho-no-olho, característico das disputas entre búfalos, que também se enfrentam olhando no olho.
De acordo com Jesus e Assis (1997), outra a explicação para a inspiração na fauna local ocorreu quando os cabocos do Marajó começaram a imitar um confronto entre búfalos conhecido como “marrada” (ação de abaixar a cabeça e emaranhar os chifres). Os autores destacam que esses sujeitos praticavam uma imitação que ficou conhecida como “agarrada”, na qual usavam os braços para derrubar o oponente. Inclusive, existe uma versão bem aceita na tradição oral acerca da origem da Luta Marajoara, que a relaciona com a imitação dos embates entre búfalos, confronto denominado de “marrada” (Jesus e Assis, 1997). A partir da observação da “marrada”, pontuam os autores, os cabocos locais tentaram imitá-la, usando seus braços para derrubar o adversário, uma imitação que ficou conhecida como “agarrada”.
Os elementos da Luta Marajoara tradicional até aqui tratados reforçam a posição de Rodrigues (1996) sobre a tendência de certas manifestações culturais, na medida em que se desenvolvem, acabarem construindo um conjunto de símbolos, regras e práticas que formam a sua tradição. No caso da Luta Marajoara, tais aspectos se conectam com expressões mais características do modo de vida contemporâneo, tal como será exposto a seguir.
Sendo assim, cremos que os aspectos sobre a dimensão tradicional da Luta Marajoara reforçam o entendimento de que não estamos pensando a tradição como algo que diz respeito somente ao passado e a memória coletiva de certo grupo social, mas sim como um conjunto de práticas e representações que na medida em que explicam elementos históricos e da ancestralidade de sujeitos e manifestações culturais (como é o caso da Luta Marajoara), colaboram ao mesmo tempo na compreensão e continuidade dessas práticas no tempo presente. Nesse ponto, aproximamo-nos do pensamento de Arendt (2005) sobre o necessário vínculo entre passado e futuro que precisa ser estabelecido através da adequada preservação de elementos da tradição.
Segundo Arendt (2005), a tradição é como um fio condutor que deriva do passado, formando uma cadeia à qual cada nova geração se conecta para conhecer e apropriar-se das experiências históricas de um grupo social ou prática específica. Essa conexão permite que os indivíduos compreendam os elementos da tradição e assegurem a continuidade das experiências construídas ao longo do tempo. O pensamento da filósofa corrobora as observações de Rodrigues (1996), que compreende a tradição como uma sabedoria que reúne um conjunto de experiências de mundo e é transmitida através das gerações. De acordo com a compreensão do autor, o processo de transmissão de saberes tradicionais garante a continuidade ininterrupta de uma prática, preservando sua identidade no território de pertencimento.
Os elementos da tradição que definem a dimensão tradicional da Luta Marajoara ressaltam a necessidade de reafirmar continuamente os valores construídos em torno das experiências corporais, culturais e históricas na Ilha de Marajó, visando legitimar seus saberes. Isso implica em alguns atos individuais e coletivos, como a perpetuação das bases ligadas à história da luta e a constituição de uma memória coletiva sobre seus aspectos particulares, que tanto formam a tradição em torno de sua prática quanto a associam com experiências modernas.
A memória coletiva, sendo uma memória histórica, de acordo com Halbwachs (1990), preserva os acontecimentos e os traços fundamentais que constituem determinada atividade humana construída no interior de um grupo social. Nesse cenário, a evocação frequente de fatos, lembranças e narrativas pelos indivíduos que produziram e desenvolveram a Luta Marajoara em seu processo histórico compreende uma ação significativa para a consolidação de sua tradição, afinal a “memória é o centro vivo da tradição, é o pressuposto de cultura no sentido de trabalho produzido, acumulado e refeito através da História” (Bosi, 1997, p. 53).
Esse movimento abrangente permite à Luta Marajoara estabelecer-se como prática que convive com um passado repleto de vivências que lhe possibilitaram consolidar-se no conjunto geográfico-cultural do Marajó, mas que também dialoga com manifestações contemporâneas criadas por novos e diversos sujeitos em distintos e complexos territórios de produção social, o que resulta na construção de diferentes significados para sua prática, fortemente expressos na dimensão moderna da luta.
LUTA MARAJOARA MODERNA
Os traços que caracterizam a experiência moderna da Luta Marajoara têm como base o entendimento de que essa manifestação cultural atravessa, atualmente, um processo de esportivização, que busca acelerar o desenvolvimento da sua prática em direção ao alto rendimento (Santos et al., 2023a). De acordo com os autores, a criação da Federação Paraense de Luta Marajoara (FPLM) tem sido um impulsionador decisivo desse processo. A entidade tem como finalidade regular a prática da luta e implementar ações que reforçam sua identidade como esporte de combate. Tais ações, segundo os autores, incluem certificação, realização de eventos competitivos, sistema de graduação e padronização das regras, movimentos que, na visão da atual gestão da federação, podem contribuir para sua difusão e consolidação como prática esportiva.
O estudo de Elias (2019) detalha o modo como determinadas práticas e manifestações de movimento lúdicas, tradicionais, populares, burguesas, militares e de outras ordens, ao passo em que se vinculam com o espírito moderno de desenvolvimento, racionalidade, controle das emoções, restrição da violência, padronização do espaço, tempo e dos usos do corpo, assumem paulatinamente a forma esportiva de confrontos físicos altamente regulamentados. No caso da Luta Marajoara, com base na teoria elisiana, é possível dizer que o seu processo de esportivização encontra-se embrionário, uma vez que, junto à criação da FPLM, vários desafios ainda persistem e por vezes se afloram no âmbito das discussões internas do campo, tais como: questões de unificação e padronização das técnicas, estabelecimento de processos de treinamento, técnicas corporais proibidas ou permitidas nos combates, estabelecimento de um calendário unificado de competições, organização da prática em outros estados e regiões do Brasil, legitimidade e credibilidade da federação etc.
O processo de esportivização da Luta Marajoara tem seguido a lógica de outras manifestações estudadas por Elias (2019), em que inicialmente se estabelecem uma série de conflitos locais em torno de definições sobre os elementos básicos que constituem uma modalidade esportiva. A criação da FPLM pode ser interpretada como um dos movimentos no sentido da esportivização da luta, no entanto, a história dos processos de esportivização de outras manifestações corporais, demonstra que é comum que ocorram rupturas, criação de grupos alternativos, de outras federações e entidades representativas.
A Luta Marajoara, no contexto de sua esportivização, enfrenta um cenário complexo de desacordos entre a FPLM e outras entidades representativas, com destaque para a Liga Brasil de Luta Marajoara (LBLM), sediada no município de Ponta de Pedras, no Marajó. Este fenômeno, relativamente recente, requer mais estudos para uma compreensão aprofundada. Porém, é possível dizer que as atividades desenvolvidas pela LBLM parecem ter gerado um campo de disputas em torno da legitimação esportiva da Luta Marajoara, evidenciado em desconexões quanto a falta de coesão e alinhamento na realização de eventos esportivos; as políticas de filiação e formação de atletas, criando dificuldades para o desenvolvimento uniforme da prática da luta; aos critérios diferenciados para a graduação e formação de lutadores; e a universalização das regras, culminando, consequentemente, na falta de padronização e organização do esporte, segundo seus próprios interesses.
A despeito da existência desse episódio, neste momento queremos destacar um aspecto que parece sinalizar para a tendência de avanço da esportivização da Luta Marajoara. Segundo a formulação sociológica de Elias (2019), a questão da diminuição da violência explícita e a criação de uma gama de normas e procedimentos para que ela possa ser controlada, é um elemento fundamental para que qualquer prática adquira a condição de esporte. Ou seja, um esporte, que pretende alcançar certa legitimidade e reconhecimento para além do seu local de origem e se estabelecer como modalidade nacional e internacional, necessita passar por uma série de ajustamentos nas suas formas de funcionamento.
A sociedade moderna, dentre várias características, pode ser reconhecida pela sua tendência de aumento da sensibilidade dos sujeitos em relação à violência em comparação com outras épocas históricas. Não por acaso, os processos de esportivização modernos foram/são antes de qualquer coisa, uma intervenção intencional no controle das emoções e usos excessivos da violência física que se manifestava nos antecedentes históricos de cada esporte. Por essa razão, surgem árbitros, equipamentos de proteção, delimitação de tempo e espaço de cada modalidade, regras unificadas, estabelecimento de categorias de peso no caso de lutas corporais como o boxe e vários outros procedimentos que visam tornar os esportes sintonizados com a prerrogativa moderna de recusa de presença da violência física em níveis elevados.
Na esfera da Luta Marajoara, é possível observar um movimento no sentido de restrição de certos golpes, que outrora foram tratados como pertencentes a prática da Agarrada Marajoara. Neste momento, tradição e modernidade entram em tensão nos processos de esportivização, já que, se a teoria de Elias (2019) ainda tiver alguma validade para a interpretação do campo esportivo, podemos dizer que o avanço do processo de esportivização da Luta Marajoara passará necessariamente pela constante regulamentação e adequação das técnicas desta luta no sentido da preservação da integridade física dos lutadores, ao mesmo tempo em que buscará manter um elevado grau de excitação necessária para que os confrontos se tornem atrativos para o grande público e desafiadores para os atletas. Esse é certamente um dos grandes dilemas dos processos de esportivização, isto é, a necessidade de justa medida entre o alto grau de excitação e os níveis de violência tolerável em cada sociedade.
A Luta Marajoara no âmbito da escola básica constitui outro polo de desenvolvimento da sua prática na modernidade. Na perspectiva de Carvalho (2015), competem ao ensino escolar e à docência a mediação tendo em vista a familiarização dos novos acerca do universo cultural e simbólico envolvido nas práticas humanas. De acordo com essa visão, a escola oferece um espaço para o desenvolvimento de novas perspectivas acerca do mundo e das práticas sociais construídas por homens e mulheres na sociedade.
Baseado nessa compreensão, a Luta Marajoara corresponde a uma prática da cultura corporal brasileira vinculada a determinados campos teóricos e suscetível a múltiplas interpretações relacionadas à sua constituição, sua manifestação sociocultural, sua tradição, expressão esportiva, entre outros aspectos. Nessa perspectiva, ela vem sendo reconhecida no ambiente escolar como um acontecimento social significativo para a formação educacional contemporânea. Em termos pedagógicos, experiências recentes desenvolvidas no Brasil destacam o potencial do ensino da Luta Marajoara na educação básica (Santos et al., 2023b; Lima et al., 2023), alinhando-se a projetos emancipatórios de formação.
Nesse sentido, é instigante pensar que a tematização pedagógica da Luta Marajoara na escola é uma expressão da sua manifestação moderna/contemporânea. Neste ponto, esportivização e escolarização se imbricam, dado que certamente a presença de lutadores marajoaras em competições internacionais de Artes Marciais Mistas (MMA) e sua divulgação na mídia esportiva local e nacional através de reportagens e produção de documentários, despertou certo interesse em muitos educadores a respeito da necessidade de a escola assumir a Luta Marajoara como objeto de estudo das aulas de Educação Física.
É importante frisar que pensamos o trato pedagógico com a Luta Marajoara nas aulas de Educação Física a partir do próprio sentido formativo e códigos da instituição escolar. Isto é, a escola não pode ter a pretensão de “rivalizar” com o processo de esportivização da luta, bem como, o sentido da Luta Marajoara como esporte de alto rendimento que tem sido difundido por vários sujeitos do campo não nos parece ser o mais adequado para a sua tematização educativa na educação básica. Podemos dizer, então, que a escola necessita compreender e analisar aquilo que ocorre no âmbito da vida social para enriquecer a formação humana dos estudantes, mas, neste processo, não deve sucumbir aos desejos e lógicas de outras instituições sociais.
Entretanto, convém reconhecer que os diferentes contextos de intervenção pedagógica com a Luta Marajoara na escola trazem diversas possibilidades relacionadas principalmente à sua forma cultural e esportiva. Assim como outras práticas, a Luta Marajoara reflete as diferentes dimensões que envolvem as lutas, demonstrando que a escola acompanha o movimento imbricado nos diversos sentidos – cultural, social, motor, cognitivo, afetivo, de rendimento, entre outros – atrelados a sua vivência.
Nesse sentido, é impreterível refletir sobre os objetivos formativos conectados às funções da escola no cenário educacional contemporâneo, para que a abordagem moderna da Luta Marajoara, especialmente ao tratar aspectos do esporte de combate regulado, possa explorar saberes significativos para a formação estudantil. Esses saberes devem possibilitar a reflexão crítica dos processos intrínsecos ao movimento de institucionalização e consequente “envenenamento” da Luta Marajoara, isto é, um esvaziamento de sua forma tradicional e histórica (Santos et al., 2023a), além da construção de formulações visando a melhor organização de sua vivência no contexto escolar.
Em diálogo com a caracterização de Rodrigues (1996), tais possibilidades se conectam com o ideal de experiência na modernidade, que visa um retorno pendular de práticas esquecidas ou recusadas. Considerando o cenário de possível descaracterização da Luta Marajoara tradicional devido ao processo de esportivização (Santos et al., 2023a), uma chave para a tematização dessa luta brasileira no contexto escolar reside na realização contínua de experiências que ressaltem aspectos culturais e a autonomia dos sujeitos escolares na valorização de elementos ancestrais da Luta Marajoara, sem perder de vista os múltiplos sentidos relacionados a sua manifestação social no tempo presente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este ensaio teve como objetivo discutir os aspectos e características que constituem as dimensões tradicional e moderna na Luta Marajoara. Com base nas reflexões elaboradas, apontamos que tradição e modernidade perfazem a história da Luta Marajoara como manifestação cultural do povo do Marajó. Partindo desse ponto, uma síntese de seus resultados evidencia um conjunto de caracterizações que vinculam sua identidade a aspectos mais amplos da tradição e modernidade, como modalidades de experiência que conferem reconhecimento a essa luta brasileira.
Na tradição, os resultados teóricos alcançados revelam elementos que se explicam a partir de um conjunto de características que associam a Luta Marajoara com as dimensões da vida e cultura da Ilha de Marajó, dentre as quais: o processo de aquisição de habilidades como expressão das vivências de trabalho nos campos, os lugares tradicionais de prática da luta, sua associação com festividades religiosas, os padrões de uso do corpo a partir de elementos amplos da cultura do Marajó, o protagonismo do caboco marajoara na transmissão das técnicas da Luta Marajoara e as diversas fontes de inspiração para os gestuais e técnicas que compõem essa luta brasileira
No âmbito da modernidade, observam-se desafios, tensões e tendências de avanço em torno da esportivização e escolarização da Luta Marajoara. Os resultados indicam que essa manifestação cultural vem sendo conduzida pelos seus agentes na lógica do esporte moderno, emergindo nesse processo, ainda embrionário, uma série de regulações e normas com o objetivo de legitimar sua condição esportiva. Quanto ao seu desenvolvimento no âmbito escolar, destacamos uma abordagem educativa que valorize saberes significativos para a formação estudantil, permitindo uma compreensão crítica dos múltiplos sentidos da Luta Marajoara no contexto contemporâneo.
Por fim, ressaltamos que, embora neste estudo procuramos caracterizar certos elementos concebidos como tradicionais e modernos na Luta Marajoara, é evidente que na dinâmica da realidade social vários deles se conectam constantemente nos contextos em que essa luta se manifesta. Nesse sentido, o modo como praticantes e instituições cotidianamente dialogam com esses elementos passa a ser fundamental para a afirmação e desenvolvimento da Luta Marajoara no cenário regional e nacional.
-
1
A Luta Marajoara é também conhecida como Agarrada Marajoara.
-
2
Entre “caboco” e “caboclo”, os pesquisadores preferem utilizar o vocábulo mais próximo da fala popular na Amazônia Marajoara, assim como fez Varela (2020). O termo, nessa região, geralmente é usado para descrever pessoas que mantém um estilo de vida simples e tradicional em seu cotidiano.
-
FINANCIAMENTO
O presente trabalho não contou com apoio financeiro de nenhuma natureza para sua realização.
REFERÊNCIAS
-
Andrade WAG, Carvalho NC. Entre Machados, Leite de Onça e Ombros Devotos: a Luta Marajoara na festa de corte dos mastros de São Sebastião em Cachoeira do Arari. Revista Mosaico. 2024;15(Especial):40-50. http://doi.org/10.21727/rm.v15iEspecial.4339
» http://doi.org/10.21727/rm.v15iEspecial.4339 - Arendt H. Entre o passado e o futuro. 5. ed. São Paulo: Perspectiva; 2005. A tradição e a época moderna; p. 43-68
-
Assis JWP, Pinto RF, Santos CAS. A Agarrada Marajoara como manifestação de identidade cultural da Ilha do Marajó, Pará. Lecturas. Educ Fis Deporte. 2011 [citado em 2024 Sept 22];16:157. Disponível em: https://www.efdeportes.com/efd157/a-agarrada-marajoara-como-manifestacao-de-identidade-cultural.htm
» https://www.efdeportes.com/efd157/a-agarrada-marajoara-como-manifestacao-de-identidade-cultural.htm - Bosi A. Cultura como tradição. In: Bornheim G, editor. Cultura Brasileira: tradição/contradição. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor/Funarte; 1997.
- Campos ISL, Antunes MM. Luta marajoara: diálogos com o esporte, saúde e educação. Cenas Educacionais. 2021;4:e11870-11870.
- Campos ISL, Júnior AG, Antunes MM, Torres M S. Análise do comportamento técnico da luta marajoara. Motricidade. 2022;18(2):282-7.
-
Carvalho JSFD. Autoridade e educação: o desafio em face do ocaso da tradição. Rev Bras Educ. 2015;20(63):975-93. http://doi.org/10.1590/S1413-24782015206309
» http://doi.org/10.1590/S1413-24782015206309 - Elias N. Introdução. In: Elias N, Dunning E, editores. A Busca da Excitação. 2. ed. Lisboa: Edições 70; 2019.
- Halbwachs M. A memória coletiva. São Paulo: Vértice; 1990.
- Jesus FP, Assis JWP. Agarrada Marajoara. Belém-PA; 1997.
-
Lima GA, Jucá LG, Ferreira HS, Maldonado DT. Tematização da Luta Marajoara nas aulas de educação física escolar: indícios de uma pedagogia crítica. Cadernos do Aplicação. 2023;36:1-9. http://doi.org/10.22456/2595-4377.130740
» http://doi.org/10.22456/2595-4377.130740 - Mauss M. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify; 2003. As técnicas do corpo; p. 399-422.
- Mills CW. Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2009.
- Neto M. Marajó: desafio da Amazônia: aspectos da reação à modelos exógenos de desenvolvimento. Belém: EDUFPA; 2005.
- Pacheco A. Em elcorazón de la Amazônia: identidades, saberes e religiosidades do regime das águas marajoaras [tese]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica; 2009.
-
Pará. Lei n.º 9.989, de 10 de julho de 2023. Institui o Dia Estadual da Luta Marajoara no dia 08 de abril [Internet]. Diário Oficial do Estado do Pará, 11 jul. 2023 [citado em 2024 Sept 22]. Disponível em: http://lex.pge.pa.gov.br/atos/view/14330
» http://lex.pge.pa.gov.br/atos/view/14330 - Rodrigues AD. Tradição e Modernidade. Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. 1996;9:301-8.
- Santos CAF, Andrade WAG, a Freitas RG. Itinerários de combate da Federação Paraense de Luta Marajoara. J Phys Educ (Maringá). 2023a;34:e3415.
-
Santos CAF, Andrade WAG, Freitas RG. Luta Marajoara na escola: relatos de uma sequência pedagógica para o 3o ano do ensino fundamental. Cadernos do Aplicação. 2023b;36:1-9. http://doi.org/10.22456/2595-4377.128914
» http://doi.org/10.22456/2595-4377.128914 -
Santos CAF, Freitas RG. Luta marajoara e memória: práticas “esquecidas” na educação física escolar em Soure-Marajó. Caderno de Educação Física e Esporte. 2018;16(1):57-67. http://doi.org/10.36453/2318-5104.2018.v16.n1.p57
» http://doi.org/10.36453/2318-5104.2018.v16.n1.p57 -
Santos CAF, Gomes ICR, Freitas RG. Luta marajoara: lugar ou não lugar no currículo de uma IES pública do estado do Pará. Motrivivência. 2020;32(61):1-24. http://doi.org/10.5007/2175-8042.2020e65668
» http://doi.org/10.5007/2175-8042.2020e65668 - Varela JM. Breve história da amazônia marajoara: ensaio decolonial acerca da amazonidade. Belém: Amazônica Bookshelf; 2020. 432 p.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
06 Dez 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
26 Jul 2024 -
Aceito
16 Out 2024