RESUMO
O texto apresenta reflexões acerca das práticas corporais promovidas pelos congadeiros da Vila João Vaz, Goiânia – GO. Tem como propósito identificar aspectos simbólicos decorrentes dos processos de transformação e permanência que interferem nas práticas corporais, considerando-se as danças e os cantos realizados pelos congadeiros. Utilizando-se da pesquisa etnográfica foram realizadas observações, entrevistas e o uso de caderno de campo. Identificou-se que os congadeiros vivenciam suas tradições, por meio de experiências corporificadas que valorizam determinados aspectos criativos, assim como mantém vivas suas referências com a ancestralidade africana e afro-brasileira.
Palavras-chave: Cultura afro-brasileira; Tradição; Congada; Performances culturais
ABSTRACT
The text presents reflections on the bodily practices promoted by the congadeiros of Vila João Vaz, Goiânia - GO. Its purpose is to identify symbolic aspects resulting from the processes of transformation and permanence that interfere in bodily practices, considering the dances and songs performed by the congadeiros. Using ethnographic research, observations, interviews and a field notebook were carried out. It was identified that the congadeiros live their traditions through embodied experiences that value certain creative aspects, as well as keeping alive their references to African and Afro-Brazilian ancestry.
Keywords: Afro-Brazilian culture; Tradition; Congada; Cultural performances
RESUMEN
El texto presenta reflexiones sobre las prácticas corporales promovidas por los congadeiros de Vila João Vaz, Goiânia - GO. Su objetivo es identificar aspectos simbólicos resultantes de los procesos de transformación y permanencia que interfieren en las prácticas corporales, considerando las danzas y cantos interpretados por los congadeiros. A partir de una investigación etnográfica, se realizaron observaciones, entrevistas y un cuaderno de campo. Se identificó que los congadeiros viven sus tradiciones a través de experiencias corporales que valorizan ciertos aspectos creativos, además de mantener vivas sus referencias a la ascendencia africana y afrobrasileña.
Palabras-clave: Cultura afrobrasileña; Tradición; Congada; Espectáculos culturales
INTRODUÇÃO
A “congada” ou “congado”1 trata-se de uma performance afro-brasileira que revela conteúdos polissêmicos que expressam saberes da religiosidade do catolicismo e da ancestralidade africana bantu2. Constituída a partir de processos interculturais promovidos pela diáspora negra nas américas, a congada é permeada por tensionamentos, resistências, concessões e ressignificações que ocorreram a partir das condições de sociabilidade, surgidas na era moderna. Estes contatos foram estabelecidos, inicialmente, por relações comerciais e religiosas que começam com a expansão marítima de Portugal ao Reino do Congo, chegando posteriormente ao Brasil. A congada também pode ser compreendida como uma manifestação da cultura popular que surge nas áreas mineradoras da América portuguesa, associando referências culturais portuguesas, congolesas e indígenas no Brasil. Sua presença no Estado de Goiás, inicialmente, deve-se também às trajetórias e migrações decorrentes do ciclo da mineração, assim como pelos desdobramentos do desenvolvimento econômico da agricultura.
Diversos autores discutem sobre as origens da congada, destacando suas especificidades quanto ao contato entre aspectos religiosos do catolicismo europeu e elementos das religiosidades e cosmovisões africanas.
Leda Martins (1997), Marina Souza (2006), Glaura Lucas (2014), Núbia Gomes e Edimilson Pereira (Gomes e Pereira, 2000), José Tinhorão (2000, 2012), Talita Viana (2018), Cleber Carvalho (2019) analisam os cruzamentos de aspectos culturais e religiosos europeus e africanos que são manifestados na congada, a partir da realização de rituais e cerimônias festivas de coroação de reis e rainhas negros.
A respeito das primeiras manifestações destas cerimônias, sabe-se que a reza do rosário e a devoção dos pretos à Nossa Senhora do Rosário e alguns santos pretos como São Benedito e Santa Efigênia, foram introduzidas pelos dominicanos antes do processo de escravização, ainda no continente africano. Esta foi uma estratégia de catequização que se configurava como forma de controle dos africanos escravizados.
Sendo realizadas no Brasil desde a colonização, na forma de agrupamento em irmandades, estas cerimônias eram realizadas pelos negros escravos e forros que compunham as Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, ou as de santos negros, por exemplo, São Benedito, Santa Efigênia e São Elesbão. As irmandades delineavam a separação entre grupos sociais, a partir de aspectos étnicos, classe social e categorias profissionais, e sempre se vinculavam a algum santo que se configurava como patrono da irmandade.
Lucas (2014, p. 47) destaca que
[...] nas Confrarias e Irmandades, os negros incluíam, nas celebrações de devoção a Nossa Senhora do Rosário e aos santos pretos, certos rituais africanos como a coroação de reis e rainhas, e faziam uso de seus instrumentos de percussão na execução de suas músicas e danças.
Na atualidade, é comum nos festejos da congada a realização de visitas, que são feitas pelas diferentes guardas3 da congada, além da realização de cerimônias de entrega de coroa e dos cortejos das guardas, sempre com a presença de um reinado negro. A autora comenta ainda que a realização de eleições de novos reis fazia parte de antigos costumes congoleses, assim como também, entre reis de outros povos pertencentes ao tronco linguístico bantu, que nestas ocasiões promoviam a realização de excursões, geralmente acompanhados por sua corte e soldados que executavam cantos e danças guerreiras.
O eixo de análise que perpassa o trabalho tem como perspectiva identificar aspectos simbólicos decorrentes dos processos de transformação e permanência que interferem nas práticas corporais, considerando-se as danças e os cantos realizados pelos congadeiros. Leda Martins (1997), destaca que tradicional é o que se mantém, o que permanece, e tem como característica a sua capacidade de ser adaptado e ressignificado às necessidades dos sujeitos que o vivem. Nesta linha de pensamento, a tradição não pode ser considerada apenas como as formas e procedimentos nos quais certos grupos expressam sua cultura. O saudosismo relativo às tradições da cultura popular pode anunciar formas e procedimentos peculiares de determinados grupos, contudo, o mesmo não poderia ser aplicado à noção de tradição, uma vez que a noção de cultura tradicional carece do entendimento de seus processos de transformação.
O estudo apresenta reflexões desenvolvidas no âmbito do curso de doutorado, realizado no Programa de Pós-Graduação em Performances Culturais, na Universidade Federal de Goiás. A pesquisa foi realizada na Festa em Louvor a Nossa Senhora do Rosário e São Benedito da Vila João Vaz, bairro situado na região noroeste da cidade de Goiânia – GO. A festa é promovida por sua comunidade há mais de meio século, sempre em meados do mês de setembro, e constitui-se em um dos momentos bastante significativos para a manifestação da congada na cidade de Goiânia.
Além da festa da Vila João Vaz, outras festividades, por exemplo, a realizada no mês de maio na Igreja Matriz de Campinas, que converge as Festas da Vila Santa Helena e Vila Mutirão, ambas em Goiânia, além da congada realizada na cidade de Goianira – GO, têm promovido a manifestação de procedimentos e rituais que são realizados anualmente pelos ternos de congada, hoje instalados na região metropolitana de Goiânia.
Quanto aos aspectos metodológicos, foi realizado estudo etnográfico, por meio da utilização de caderno de campo, observações e realização de entrevistas. Foram realizadas visitas nas festividades da Vila João Vaz, entre os anos 2018 e 2023. O foco das análises estabeleceu-se junto ao terno de congo4 verde e preto, uma vez que este grupo manifestou o interesse em participar do estudo.
O campo teórico utilizado perpassou pelos estudos das performances culturais. Suzane Langdon (2006) discute a respeito de possibilidades de análise nos estudos das performances culturais, apresentando cinco qualidades que permitem a percepção de um eixo que tangencia suas várias vertentes e contribuições. As cinco qualidades são identificadas nos seguintes aspectos: os estudos da performance colocam a experiência em relevo; envolvem a participação de expectadores; configura-se em uma experiência multissensorial; têm como características o engajamento corporal, sensorial e emocional; apresenta um significado emergente.
Neste sentido, entende-se que as performances culturais se configuram em uma experiência ressaltada, momentânea, que envolve a participação do performer, seja ele um ator profissional, ou um participante da cultura popular. Apresenta uma forma artística e um contexto de experiência emergente. Possui característica de espontaneidade, ainda que exaustivamente ensaiado, além de sentidos estéticos que se apresentam como aspectos importantes a serem considerados. Também possui a característica de se constituir em uma manifestação pública, que implica na interação dos participantes na experiência, criando um sentido indissociavelmente ligado ao contexto. Este contexto pode produzir uma força que transforma a experiência dos participantes, inclusive a do público.
Nos dizeres de Langdon (2006, p. 175), as performances culturais se apresentam como uma experiência sensorial e se localizam “[...] na sinestesia, na experiência simultânea dos vários receptores sensoriais, recebendo os ritmos, as luzes, os cheiros, a música, os sons em geral e o movimento corporal. A recepção simultânea de vários recursos cria uma experiência unificada”.
O engajamento corporal é uma das qualidades que mais se verticalizam neste estudo, uma vez que o corpo e a corporeidade são considerados foco principal das análises. A transformação fenomenológica do sujeito no nível imediato das sensações promovidas pelo espetáculo, assim como no nível terapêutico dos rituais são levados em consideração. Rejeita-se uma visão cartesiana de corpo, desconfigurando, assim, a separação racional entre emocional e corporal.
O significado emergente, também destacado pela autora, implica no entendimento do processo contínuo de produção de novos significados. O modo de expressão ganha centralidade nas análises, valorizando a experiência imediata, emergente e estética. A emergência da experiência indica que a estrutura social, assim como os próprios sistemas simbólicos e culturais podem receber modificações, conforme as especificidades e necessidades dos agentes envolvidos.
AS DANÇAS E OS CANTOS NA CONGADA DA VILA JOÃO VAZ5
Com relação às danças na congada, pela complexidade e variedade de elementos e significados, a coreografia denominada como meia-lua é uma das que mais atrai a atenção das pessoas que assistem aos cortejos na Vila João Vaz.
Conforme argumenta o segundo capitão6, André Lucio, do terno de congo verde e preto, a meia-lua é realizada ao comando do Capitão, quando este, intuitivamente, “pressente” algum tipo de perigo, seja de caráter físico ou material, que possa afetar o grupo ou algum de seus participantes. Ao falar sobre a meia-lua, capitão André Lúcio ressalta que a congada,
[...] começou com os mais velhos, com os escravos, começou com os pretos velhos. Então, uma dança de congo é uma dança, é uma festa de preto velho. A gente que é capitão, geralmente, tem muita intuição, às vezes quando você está com o terno na rua, há ainda pessoas que gostam de brincar, ou jogam uma inveja, jogam uma coisa, e geralmente a meia-lua ela é dada quando você vai atravessar uma encruzilhada. Porque a encruzilhada é uma ponta que vem muitos caminhos. Então, quando você atravessa uma encruzilhada você dá a meia-lua ou você pede licença, aí você passa. Existe o lado também de ser uma hora que precisar de cantar alguma coisa pra desembaraçar, aí você tem que cantar (Entrevista realizada em setembro/2019).
A meia-lua trata-se de uma dança que é realizada por vários tipos de guarda, possuindo uma função simbólica bastante importante que se vincula à proteção espiritual dos congadeiros dos ternos.
O comando para a realização da meia-lua é feito pelos capitães, quando um deles se posiciona à frente do grupo, no centro da guia e ergue seu bastão realizando movimentos circulares, com a ponta do objeto direcionada ao céu. Este movimento é acompanhado por um silvo longo de apito, que anuncia que o terno deve parar. A realização da dança dá-se com uma sucessão de movimentos lineares e circulares que geralmente ocorre em algum cruzamento de ruas. Após a realização da meia-lua o terno continua seu percurso na festa.
Outro movimento que possui função ritual, consiste em virar as costas ao atravessar alguma ponte sobre um curso d’agua ou trilhos de linha férrea. Os capitães de congada afirmam que esse movimento é realizado com um significado semelhante ao da meia-lua, ou seja, o de se proteger contra forças espirituais negativas.
Ao ser perguntado sobre o “virar as costas” nestas ocasiões, o presidente da irmandade Nossa Senhora do Rosário de Vila João Vaz, Wilson Lima, afirma que isso seria uma crendice dos antigos que acreditavam em feitiçaria, embora seus significados permaneçam na atualidade.
O posicionamento dos capitães quanto a essa questão é bem menos cético, uma vez que ambos afirmam a existência de forças espirituais positivas e negativas, além de ressaltarem que a congada pode interferir na mediação dessas forças. A congada se apresentaria, sob este aspecto, como uma estratégia para se fortalecer enquanto indivíduo e grupo, municiando os participantes de forças positivas ao mesmo tempo em que os defendem das negativas.
Outro aspecto importante nas danças realizadas pelos congadeiros refere-se ao processo de criação de novas coreografias. Os capitães do terno de congo verde e preto destacam o potencial criativo do grupo na elaboração de novas coreografias.
Vale destacar que no âmbito da cultura popular é comum a interação entre elementos tradicionais e processos de inovação que ressignificam os procedimentos e valores constituídos nos grupos. Algumas dessas interações podem ser reconhecidas pelos participantes como benéficas para a ritualística da tradição, enquanto outras são questionadas, devido ao seu potencial desagregador que pode comprometer a excelência da performance.
Zeca Ligiéro (2011) afirma que nas tradições afro-ameríndias a noção de tradição manifesta-se por meio de sua ressignificação, condição esta que nos permite compreendê-la como pertencente ao conjunto de saberes que compõem o patrimônio histórico imaterial da humanidade.
Segundo o capitão André Lúcio, a criação de novos passos de dança ocorre de forma espontânea, dependendo da ocasião, da letra da música entoada e dos ritmos tocados. Desta forma, esse processo criativo é fruto das interações dos indivíduos com os diversos contextos em que atuam.
Existe uma coreografia que é realizada apenas pelo terno de congo verde preto e que compõe o acervo de inovações elaboradas pelo grupo. Embora os participantes ainda não tenham atribuído uma denominação, neste trabalho iremos mencioná-la como o passo da cruz.
O passo da cruz trata-se de uma sequência de movimentos que realiza o sinal da cruz com os pés. A priori os movimentos apresentam um significado bastante comum na gestualidade dos congadeiros, contudo, a sua realização com os pés constitui-se em uma forma de inovação que recentemente foi incluída nas performances do terno de congo verde e preto. Embora os participantes mais velhos do grupo ainda não estejam completamente familiarizados com a nova coreografia, a sua realização revela a aprovação do grupo.
Durante a coreografia, as caixas executam o ritmo denominado rojão de 3 batidas, enquanto entoam o canto abaixo:
Eu sou da congregação
Coro - Oi da virgem Maria
Da congregação eu sou
Coro - Oi da virgem Maria.
A cada apresentação os participantes demonstram maior domínio da coreografia que fora criada pelas bandeirinhas do grupo. Esta coreografia revela os vínculos que os congadeiros estabelecem com elementos da religiosidade católica. Estes saberes manifestam-se por meio de uma fé que que possuiu atributos estéticos e ritualísticos que são revelados em suas práticas corporais.
Outra coreografia realizada pelo terno de congo verde e preto será aqui denominada como Ciranda Cirandinha. Em um dos ensaios do grupo7 o capitão do congo verde e preto, André Lúcio, introduzira um novo canto com o refrão adaptado de um conhecido brinquedo cantado. Com a primeira e a segunda estrofe sendo entoada por uma das filas, enquanto a terceira e a quarta são cantadas pela outra fila. Com a adaptação o canto ficou com a seguinte letra:
Ciranda cirandinha / vamos todos cirandar
Vamos dar a meia-volta / volta e meia vamos dar
Olha que Festa boa / é dia de virar
Oi que Festa bonita / é a Festa da João Vaz
Durante os ensaios foi observado como as bandeirinhas e dançadores tentavam aprender a nova coreografia. Neste caso, a partir de algumas falas de André Lúcio, a dança e o canto foram sendo criados juntos, um em sintonia com o outro.
Na execução da nova dança, sempre que cantada a primeira metade da segunda estrofe, os dançadores e as bandeirinhas realizam um giro de 180º em torno do próprio eixo do corpo. Estes, então, imediatamente, enquanto cantam a segunda metade da mesma estrofe, realizam um giro inverso, retornando de costas para a posição inicial. Estes movimentos são feitos de forma ininterrupta e em tom de brincadeira pelos participantes. Também foi observado que entre os congadeiros há um sutil caráter de desafio, durante a realização desta dança, devido a dificuldade da execução de toda a sequência, que é seguida da volta do corpo no tempo certo para a continuação do cortejo.
As formas que os congadeiros lidam com os processos criativos revelam que as inovações são percebidas como algo positivo ao grupo quando promovem a interação entre os seus participantes, bem como quando são parcialmente ou totalmente assimiladas por outros grupos. Os capitães do verde e preto destacam que é comum que algumas inovações nas coreografias passem a ser realizadas por outros grupos. Este processo assume uma caráter de consagração da coreografia, que passa a produzir sentidos entre os participantes do verde e preto e entre os participantes de outras guardas de congada.
Com relação aos cantos entoados pelos grupos, também podem ocorrer processos de inovação. Por exemplo, os cantos dos grupos de congada da Vila João Vaz seguem, em alguns aspectos, a mesma estrutura de algumas guardas no congado dos Arturos e do Jatobá, na região metropolitana de Belo Horizonte – MG.
Os cantos compõem eventos musicais/textuais curtos nos quais a alternância solo/coro é intensamente repetida. Esse desenvolvimento espiralar também possui graus diferenciados de variação. A resposta coral tende a ser mais padronizada e é da responsabilidade de todos os integrantes da guarda. Já o solista, um dos capitães, personaliza a execução imprimindo pequenas variações melódicas e textuais, ou mesmo recorrendo ao improviso (Lucas, 2014, p. 90).
No terno verde e preto, o refrão e o coro geralmente são alternados entre as duas filas. Em alguns casos, o capitão executa a primeira parte do canto direcionando a atenção aos dançadores da fila à direta e, em seguida, canta a segunda parte voltando para a fila à esquerda. Assim, o cortejo segue com a alternância de partes do canto entre as duas filas. Os cantos são intensamente e constantemente repetidos pelos dançadores.
Em diversos momentos os capitães executam cantos que são considerados tradicionais. Todos eles se referem aos cantos aprendidos com os seus antepassados da congada. Assim como os cantos, outras práticas corporais – como as danças – são consideradas ancestrais, pois exercem poderes durante as festas, bem como na vida dos congadeiros. Contudo, é comum a criação de novos cantos, sem o receio do desaparecimento dos antigos. Para o entendimento deste aspecto é importante considerar as características da concepção filosófica africana bantu, que tem a sua força atribuída pela estreita relação entre o presente e o passado. Nos dizeres de Glaura Lucas (2014, p. 52):
A importância dos ancestrais para o banto, cuja vida é uma extensão da vida dos antepassados, e deve ser preparada para que ela se perpetue em seus descendentes. Para o banto, a força vital se recria no movimento que mantém ligados o presente e o passado, o descendente e seus antepassados.
A autora também comenta acerca do processo de atualização cultural que ocorre nas tradições bantu, tal como ocorre na congada.
[...] alguns cantos caem no esquecimento, enquanto outros vão sendo incorporados. Dentre esses últimos, estão as criações e transcrições, os cantos aprendidos em festas de outras comunidades congadeiras, e também aqueles provenientes de outras manifestações religiosas, principalmente da Igreja católica e da umbanda, os quais, por vezes sofrem alterações em suas letras e são adaptados aos ritmos e à dinâmica própria do desenvolvimento musical do congado (Lucas, 2014, p. 84).
Ocorre também na congada da Vila João Vaz um processo de reatualização da tradição, onde antigos cantos podem ser renovados em algumas situações. Além desse processo de reatualização dos cantos, ocorre também a criação de cantos que surgem em situações de improviso, sendo que em alguns casos estes podem passar a fazer parte do repertório do grupo, como ocorre, por exemplo, com o canto executado durante a coreografia ciranda cirandinha, mencionada acima.
Ao conduzirem a execução de um canto, os congadeiros imprimem sua personalidade à sua forma de expressão como uma maneira particular de interpretação da tradição. Cada execução é influenciada pela experiência pessoal e pelo modo de ser congadeiro de sua época. Alguns acrescentam contribuições ao repertório, num processo que continuamente coloca em avaliação os limites de aceitação do grupo.
Mesmo compreendendo esses processos de renovação como inerentes à tradição, e que contribuem para o fortalecimento do ritual, observa-se que, em alguns casos, a inovação pode acarretar um descompasso na performance. Um exemplo desta situação foi observado durante uma das cerimônias da festa.
Em certa ocasião, o segundo capitão do terno verde e preto, André Lúcio, recebeu o consentimento do primeiro capitão, Osório Alves (in memorian), para executar o canto ciranda cirandinha. Um pouco mais adiante um dos organizadores da festa entregou um microfone para o terceiro capitão, José Mário, assumir o comando do terno durante a execução do mesmo canto. Contudo, o terceiro capitão não havia participado dos ensaios onde o canto foi apresentado ao grupo pela primeira vez. Desta forma, o terceiro capitão ainda não dominava a letra a ser entoada, deixando de pronunciar alguns trechos, ou o fazendo de forma diferente ao que o grupo realizava. Nesta situação ocorreu um descompasso entre o que o capitão executava e o que o restante do grupo respondia.
Neste caso, foi observado como os processos de renovação e criação dos cantos, apesar de compor o dinamismo das tradições populares, podem interferir na realização da performance, uma vez que o capitão responsável por conduzir o terno, em alguns momentos, pode apresentar dificuldades para manter a uniformidade, caso não esteja devidamente atualizado nas inovações.
Alguns processos de renovação podem ocorrer de forma tão rápida que impossibilita que todos o assimilem em tempo de manifestá-lo durante as cerimônias da congada.
Ao comentar sobre o processo criativo relacionado aos cantos, André Lúcio destacou que as novas composições geralmente surgem por meio da intuição, às vezes mesclada com músicas que aprendeu com outros capitães. O capitão menciona também que, em algumas situações a sua intuição está vinculada à espiritualidade, ocasião em que seres de outros planos manifestam-se por meio de seus gestos e cantos.
Lucas (2014) também observou a presença desse aspecto espiritual no processo criativo da capitã Edith Ferreira Mota e do capitão João Lopes, ambos pertencentes ao congado mineiro nos Arturos.
Tem um canto meu, que é uma marcha. Eu não sei se eu já vi alguém cantar, ou se sonhei, só sei que ninguém nunca cantou. Música de Congado acontece assim, casualmente, quando você tá no auge da espiritualidade, que tá puro, a gente escuta cantar no ouvido da gente as coisa bonita, você escuta e aprende a cantar aquilo. Eu invento, mas não é através do meu potencial, não, é através da força divina, da iluminação do espírito santo sobre a gente (Lucas, 2014, p. 88).
Outro aspecto a ser destacado nos cantos da congada refere-se aos momentos em que ocorrem a menção a entidades espirituais que são recorrentes no candomblé, na umbanda e em outras referências religiosas, constituídas a partir das interações entre elementos do catolicismo e das religiões afro-brasileiras e afro-indígenas, por exemplo, iemanjás, sereias, marinheiros, entre outros.
Um dos cantos que mencionam aspectos da ancestralidade e da cosmovisão africana é geralmente executado em momentos mais solenes da festa e apresenta como conteúdo os versos abaixo:
Santo Antônio é o pai da linha
São Benedito é o cambone
E na linha meus irmãos
Aaôôô, ôuaaa
Deixa o Rei Congo chegar
Santo Antônio é o pai da linha
São Benedito é o cambone
E na linha meus irmãos
Aaôôô, ôôô
O Rei Congo já chegou
Segundo afirmou o capitão Osório Alves, este canto foi ensinado por seu pai, que o teria aprendido com outras pessoas, há muitos anos, e que sempre que o canta homenageia seus antepassados. O dançador Cidinho, do terno de congo verde e preto comenta que a letra da música fala de coisas da religiosidade dos pretos-velhos, devido às expressões “pai da linha” e “cambone”, ressaltando, que Osório sempre o cantava em homenagem a seu pai. O primeiro termo refere-se às linhas espirituais que existem na umbanda e na congada, que são representadas por algumas entidades que possuem diversas acepções e podem ser compreendidas individualmente, além de serem identificadas como pertencentes a uma mesma família, a uma mesma falange (Concone, 2011, p. 281).
O termo cambone diz respeito a um cargo na umbanda e no congado, na qual uma pessoa, não incorporada, atua na mediação entre as entidades espirituais e as pessoas que recebem seu atendimento.
Quanto à presença de elementos das religiosidades afro-brasileiras durante a execução deste canto é importante destacar a forte emoção que paira sobre o grupo, parecendo ser possível, por alguns instantes, sentir a densidade do ar sobre a pele, além da grande comoção dos participantes.
Apesar de não compartilharem a mesma profundidade de entendimento quanto aos significados deste canto, os dançadores mais novos afirmam que se trata de um dos mais antigos cantadas pelo terno verde e preto, e que quando o capitão canta é comum os olhos ficarem marejados. Diante do potencial criativo e inovador do terno verde e preto, um conjunto de práticas ancestrais se intercala a novos elementos dando movimento às tradições do terno.
Leda Martins (1997) comenta a respeito de como nas celebrações do reinado de nossa senhora do rosário acontecem relações entre os congados e outras manifestações como o candomblé e a umbanda. Ao analisar estes cruzamentos simbólicos, a autora destaca os limites dos termos sincretismo, junção, mistura, paralelismo e justaposição. Segundo a autora, o termo contiguidade seria mais adequado para o entendimento destes processos interculturais e inter-religiosos.
No processo de contiguidade não se vislumbraria, como predominantes, a operação de analogia totêmica [do candomblé] nem a de fusão sistêmica [a aglutinação umbandista], mas sim um deslocamento sígnico que possibilitaria traduzir, no caso religioso, a devoção de determinados santos católicos por meio de uma gnosis ritual acentuadamente africana em sua concepção, em sua forma de organização e estruturação simbólicas e na própria visão de mundo que nos apresenta. Nesse processo incluir-se-iam as cerimônias do Reinado de Nossa Senhora do Rosário, popularmente conhecidas como Congados, nos quais santos católicos são festejados africanamente (Martins, 1997, p. 31).
A realização do canto mencionado acima expressa elementos que em alguns aspectos se assemelham aos sentidos que compõem o candombe, uma cerimônia realizada pelos congadeiros dos Arturos, que antecede o início dos cortejos das guardas de moçambiques e dos congos.
Os candombes dos Arturos são antigos, do tempo da escravidão. Utiliza-se três tambores, que são amarrados à cintura daqueles que os tocam. Diante deles, alternam-se os capitães e demais participantes, homens e mulheres, que após reverenciá-los dançam e cantam os pontos enigmáticos. Os tambores do Candombe chamam os antepassados e funcionam como corpos intermediários no trato entre vivos e mortos – embora não ocorra incorporação visível. Os antepassados fazem-se presentes durante toda a festa. Nos dizeres de alguns participantes, “eles vêm todos”, “ficam aí”, são frases ouvidas, e não faltam os relatos daqueles que escutam os tambores baterem sozinhos. São lembrados e homenageados, e essa presença religa os descendentes à raiz, tornando-os simultâneos, coabitantes de um tempo sagrado, único (Lucas, 2014).
Outro exemplo dos processos interculturais e inter-religiosos revelados nas performances dos congadeiros da Vila João Vaz diz respeito a execução de outro canto entoado. Nele, pode ser observado como a interpretação dos versos reflete aspectos da cosmovisão de cada capitão de congada. Em certa ocasião da festa da Vila João Vaz o segundo capitão do verde e preto, André Lúcio, entoou os versos abaixo.
Eu tenho uma barquinha
Eu vou navegar
Quero ver Nossa Senhora
E a santa Iemanjá!
Enquanto os congadeiros repetiam os versos do capitão de forma entusiasmada, o primeiro capitão, Osório Alves interpelou alguns participantes, afirmando que o canto estava errado, destacando que a forma correta seria conforme os versos abaixo.
Eu tenho uma barquinha
Eu vou navegar
Quero ver Nossa Senhora
E a santa me beijar!
Devido à intensidade dos ruídos emitidos pelo terno e por outros grupos que estavam próximos, os congadeiros não conseguiam entender a versão cantada pelo capitão mais antigo, e continuaram acompanhando os versos do segundo capitão.
Foi observado que o primeiro capitão não se dirigiu ao segundo para promover a correção solicitada, contudo, após a performance, ele reforçou a sua afirmação para alguns participantes.
O capitão André Lúcio, mais jovem que o primeiro capitão, Osório Alves, é líder espiritual na umbanda e no candomblé. Já Osório Alves, era reconhecido por seu comprometimento com a religiosidade católica. Embora tenha ocorrido de forma não conflituosa, as diferenças decorrentes da vivência religiosa de cada um deles refletem as condutas e cosmovisões que são reveladas nas performances do grupo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo apresentou reflexões a respeito de como os congadeiros vivenciam alguns processos de permanência e transformação, presentes na configuração das tradições da congada, tendo estabelecido como lócus de pesquisa, a Festa em Louvor a Nossa Senhora do Rosário e São Benedito da Vila João Vaz e a experiência corporificada do terno de congo verde e preto.
O conceito de tradição desenvolvido na pesquisa se vincula à ideia de movimento, ao que sobrepõe temporalidades, destacando que por esta ótica, uma de suas características é a de se constituir, a partir do tensionamento entre saberes do passado que são ressignificados no presente a partir das condições particulares de existência dos grupos sociais.
Considerando os fluxos de transformação e permanência característicos das culturas populares, estas dificuldades revelam situações que expressam como as comunidades negras historicamente elaboram formas de enfrentar o sistema opressor escravista e seus desdobramentos e reflexos na atualidade, assumindo uma postura de resistência como condição de existência.
Os rituais e cerimônias da Congada acontecem de forma corporificada, além de existirem outros aspectos que permitem a aproximação de alguns conceitos e noções de autores que tangenciam os estudos das performances culturais, tendo em vista a observação dessa experiência multissensorial, que se dá em relevo, assim como a sua constante condição de emergência de significados.
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1
O termo congado, no masculino, é mais recorrente no Estado de Minas Gerais, enquanto o termo congada, no feminino é geralmente utilizado em outras regiões do país.
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2
Neste estudo foi feita a opção por esta forma de grafia do termo, embora alguns autores também utilizem a grafia “banto”, que possui o mesmo significado.
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3
É comum o uso dos termos guarda, terno ou batalhão para se referir aos grupos de congada.
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4
Na congada existem diversos tipos de grupos, dentre eles: moçambiques, congos, catopés, vilões, marinheiros, penachos entre outros.
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5
O estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética, por meio da Plataforma Brasil, apresentando o Certificado de Apresentação de Apreciação Ética: 95236418.2.0000.5083 e Número do Parecer: 2.921.285.
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6
Dentre as funções desempenhadas na congada, existem os capitães, os dançadores e as bandeirinhas. Por ordem hierárquica, os capitães geralmente são organizados em primeiro, segundo e terceiro capitão.
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7
É comum os ternos de congada realizarem ensaios no mês anterior ao de seus festejos. Estes momentos acontecem em caráter de celebração dos encontros que promovem a socialização dos participantes do grupo.
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FINANCIAMENTO
O presente trabalho não recebeu apoio financeiro de qualquer natureza para a sua realização.
REFERÊNCIAS
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Nov 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
15 Maio 2024 -
Aceito
04 Set 2024