Open-access Cultura fitness digital no léxico da cultura corporal de movimento: temas emergentes para a educação física escolar

Digital fitness culture in the lexicon of body culture: emerging themes for physical education at school

La cultura digital del fitness en el léxico de la cultura del movimiento corporal: temas emergentes para la educación física escolar

RESUMO

O presente texto tem por objetivo discutir possibilidades de incorporação de temas emergentes da cultura fitness digital ao léxico da educação física escola. Estas derivam de interações relacionadas a um aplicativo fitness que faz uso da inteligência artificial. Com base na Teoria Ator-Rede, identificou-se quatro temáticas: espetacularização fitness, que envolve a intensa exibição de si; a bolha fitness, fruto da ação de algoritmos; a culpabilização fitness, sob a égide do sujeito empreendedor de si; e o biohacking, que transita pela autoexperimentação para uma auto otimização. Conclui-se que a cultura fitness digital possui elementos pouco explorados, embora relevantes à escola.

Palavras-chave:  Educação física e treinamento; Monitores de aptidão física; Aplicativos móveis; Ensino

ABSTRACT

This paper aims to discuss possibilities to add emerging themes of digital fitness culture in physical education at school. These themes were collected from interactions related to a fitness app based on artificial intelligence. Through the Actor-Network Theory, four themes were identified: fitness spectacularization, a process of strong self-exhibition; the fitness bubble, the result of the action of algorithms; fitness blame, which produces the self-entrepreneur; and biohacking, which ranges from self-experimentation to self-optimization. It is concluded that the digital fitness culture has little explored elements, although relevant to the school.

Keywords:  Physical education and training; Fitness trackers; Mobile applications; Teaching

RESUMEN

Este texto tiene como objetivo discutir las posibilidades de incorporar temas de la cultura del fitness digital en la educación física escolar. Estos temas derivan de interacciones relacionadas con una aplicación de fitness basada en inteligencia artificial. Basado en la Teoría del Actor-Red, se identificaron cuatro temas: la espectacularización fitness, que implica la exhibición intensa de uno mismo; la burbuja fitness, fruto de la acción de los algoritmos; culpabilización fitness, que produz o auto-empreendedor; y biohacking, que pasa de la autoexperimentación a la autooptimización. Se concluye que la cultura del fitness digital tiene elementos poco explorados, aunque relevantes para la escuela.

Palabras-clave:  Educación y entrenamiento físico; Monitores de ejercicio; Aplicaciones móviles; Enseñanza

INTRODUÇÃO

Na contemporaneidade novas tecnologias têm sido incorporadas tanto em políticas de governo quanto de estado. No âmbito da Educação, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento que apresenta as aprendizagens essenciais a serem trabalhadas no Ensino Básico brasileiro, indica ser “imprescindível” considerar a cultura digital (Brasil, 2018, p. 61). Aponta ser preciso trabalhar tanto no que se refere ao seu uso racional, quanto aprimorar suas potencialidades, com uma atitude crítica em relação ao conteúdo; entender que professores e estudantes, no caso da escola, não são somente consumidores, mas também protagonistas (Brasil, 2018).

Na particularidade da Educação Física, algumas tecnologias nos obrigam a repensar a postura preconceituosa a respeito da cultura digital de que ela estaria intrinsicamente ligada ao sedentarismo. Com o processo de incorporação da movimentação corporal aos consoles o jovem jogador de videogame sedentário paulatinamente começou a ser relativizada, como é o caso dos adeptos dos Jogos Eletrônicos de Movimento, tal como o Wii Fit da Nintendo, cujo objetivo era incentivar o desenvolvimento de estilos de vida ativos (Finco e Fraga, 2012). Além disso, os Jogos de Realidade Aumentada, como o Pokémon GO, fizeram com que seus praticantes saíssem do conforto de jogar em casa para confrontar um cenário híbrido: o jogo no contexto de sua rotina.

Na esteira dessas alterações em tela, outro nicho dentro desse cenário eminentemente imbricado com a cultura digital é a cultura fitness. Todo esse movimento se intensificou com a necessidade de isolamento social como medida de enfrentamento à pandemia mundial há mais de dois anos. A casa das pessoas passou a ser locus para, dentre outras coisas, trabalho, lazer, escola e até mesmo academia de musculação. Nessa relação intercultural, aqui chamada de cultura fitness digital, as pessoas seguem e realizam exercícios sugeridos/prescritos por influenciadores digitais, aplicativos fitness ou mesmo uma simples busca na internet, o que para alguns pode pôr em xeque a figura do professor de educação física, ou até mesmo da área (Oliveira e Fraga, 2021).

Diante desse cenário, torna-se oportuno a incorporação de temas da cultura fitness digital ao conjunto de saberes da educação física escolar1. A discussão aqui empreendida tem como mote um aplicativo fitness que, hipoteticamente, poderia exercer a função do professor de Educação Física, especialmente nos casos em que as aulas de educação física se limitam a prescrição de exercícios físicos com base em variáveis biológicas e de treinamento. Trata-se do aplicativo Freeletics que, baseado em inteligência artificial, personaliza sequências de exercícios aos seus usuários, o que rende notícias com títulos como: “Aplicativo de exercícios Freeletics ganha meio milhão de usuários na pandemia: Alimentado pela tecnologia de Inteligência Artificial (IA), o Freeletics sugere uma gama de treinos que são montados especificamente para o usuário” (Pancini, 2021).

Nesse sentido, em um projeto mais amplo, analisamos os frutos de uma complexa rede de interações relacionadas ao aplicativo Freeletics (Oliveira, 2021). Em síntese, foram identificadas quatro temáticas emergentes: espetacularização fitness, que envolve a intensa exibição de si; a bolha fitness, fruto da ação de algoritmos; a culpabilização fitness, sob a égide do sujeito empreendedor de si; e o biohacking, que transita pela autoexperimentação para uma auto otimização. Nesse texto, contudo, nosso objetivo não é replicar as análises daquele projeto, e sim discutir possibilidades de incorporação de temas emergentes da cultura fitness digital ao léxico da educação física escolar.

METODOLOGIA

Os temas emergentes abordados nesse texto foram desenvolvidos à luz da Teoria Ator-Rede (Latour, 2012) em um projeto de longo curso. Partimos da premissa de que as interações relacionadas a um aplicativo fitness que prescreve exercícios físicos personalizados, baseado em inteligência artificial, bem como na rede sociotécnica a qual este integra, produzem ações e comportamentos que não somente a prática de exercícios físicos. Além disso, que atores, humanos e não-humanos, fazem com que as pessoas (também atores), façam coisas, ainda que não de modo determinista. Assim, foram analisadas ações derivadas do uso do aplicativo Freeletics Bodyweight & Mindset, especialmente aquelas resultantes de interações entre diversos atores (humanos e não-humanos). Logo, foram considerados atores: 1) a manifestações de usuários nas mídias sociais; 2) conteúdos publicados tanto por usuários, quanto pela empresa Freeletics, em diversas mídias sociais; e 3) affordances, principalmente o design intuitivo do próprio aplicativo fitness. Os dados foram coletados de maio de 2018 até julho de 2020, com anuência da empresa e aprovação por comitê de ética em pesquisa da UFRGS (parecer 2.809.287).

Em síntese, procuramos identificar pontos de confluência representativas de conjunto de ações derivadas das interações relacionadas ao uso do aplicativo fitness. Em face ao caráter transmídia do aplicativo, que possui características como uma rede social própria, site oficial, perfil oficial em distintas mídias sociais, redes que articulam distintos praticantes como grupos em paralelo criados pelos próprios usuários, prescrição baseada em inteligência artificial, entre outras peculiaridades, identificamos temas emergentes da cultura fitness para abordagem na Educação Física escolar. Estas temáticas serviram como baliza para estruturar os resultados e a discussão do presente texto, cujo conteúdo apresentamos no Quadro 1.

Quadro 1
Temáticas emergentes e síntese da problematização propostas para abordar aspectos da cultura fitness digital no âmbito da cultura corporal de movimento.

(Sis)tematizar determinados conteúdos para problematização no currículo escolar pressupõe uma organização didática que venha a possibilitar seu trato. Na particularidade da Educação Física, e de sua inserção na área de linguagens, uma indissociabilidade entre teoria e prática, com multiplicidade de metodologias (preponderantemente práticas ou teóricas) e de olhares (questões sociais, culturais, históricas). Nesse sentido, o esforço analítico aqui empreendido segue em oposição a uma eventual literatura cinza, em que buscamos realocar os resultados de um estudo que aborda a cultura fitness digital em diálogo com a cultura corporal de movimento abrindo, assim, possibilidades de novos graus de proficiência para área.

ESPETACULARIZAÇÃO FITNESS

No contexto da espetacularização fitness cabe evidenciar a cultura da intensa exibição. De certo modo, nas mídias sociais, parece que todo mundo é feliz, o tempo todo. Logo, torna-se oportuno, no âmbito escolar, que nem tudo que se mostra corresponde à realidade, bem como o problema em “julgar o livro pela capa”. Discutir acerca dos padrões de beleza no sentido de pensar outros possíveis, valorizando o quão significativo determinado momento foi para si, em detrimento da quantidade de “likes” que o gerou. Em outros termos, não depender do reconhecimento do outro.

Na particularidade do aplicativo fitness em questão, identificamos diversos modos pelos quais os usuários são incentivados a “mostrar sua transformação”, sob a égide de “ser inspiração” para os demais. Notadamente, assumir o lugar de inspiração demanda diversas ações. Quanto à exibição de aspectos da própria vida nas mídias sociais, como aqueles vinculados a uma vida fitness, Abreu (2015), ao apresentar um debate já existente, evidencia o conceito de self-disclosure (ou autorrevelação), em articulação com a hipervisibilidade. Uma espécie de relato autobiográfico, caracterizado pela exposição imagética. Para a autora, “trata-se de narrar e compartilhar emoções, estados emocionais íntimos e situações do dia a dia com outras pessoas, não necessariamente conhecidas” (Abreu, 2015, p. 199).

Nessa mesma direção, Paula Sibilia (2008) destaca o “show do eu”. Consiste na incorporação de elementos midiáticos, incluindo características de celebridade, a “pessoas comuns”. A autora faz uso do termo “show” porque implica um espetáculo, uma performance e não necessariamente corresponde à realidade. Ocorre uma espécie de fabricação da própria imagem, uma curadoria de si.

Nesse contexto, o olhar do outro é requisito, considerando que não existe show sem plateia. Já o termo “eu” implica a centralidade em si mesmo, aspecto potencializado com a facilidade de acesso a câmeras digitais e à recorrente produção de selfies. Logo, o que outrora integrava o escopo da esfera privada, passa a ser público, exposto. Vale reiterar, exposto, mas não de qualquer modo, e sim como forma de espetáculo, midiatizado. Compreendemos que a exibição de elementos rotineiros integra a vida fitness.

Esse debate permeia ainda a nova conformação da corpolatria. Corpolatria é um neologismo criado por Wanderley Codo e Wilson Alves Senne, e exposto no livro O que é corpolatria? (1985), que combina culto ao corpo com incorporação de elementos religiosos (um caráter moral - exige sacrifício, assim como a religião; possui templos, vestimenta, adeptos...). Originalmente, os estudos vinculados à corpolatria analisam a alienação no que concerne ao consumo: O corpo como mercadoria e religião (Codo e Senne, 2014). Em síntese, pode ser entendida como o culto exagerado ao corpo, particularmente o esforço demasiado em atingir um padrão estético “fitness” (magro, forte...). Na espetacularização fitness, tudo deve ser exibido, não somente aquele que já se aproximou de determinado padrão de beleza, fomentando uma veneração acrítica de um “corpo-mercado” moldado por uma espécie de analfabetismo contemporâneo (Ribeiro e Mezzaroba, 2019, p. 178). Esse debate transita ainda por outros temas, como o transtorno dismórfico corporal e os transtornos alimentares.

Na intensa exibição, é preciso ainda evidenciar a figura dos influenciadores digitais. Nesse sentido, é oportuno tematizar bases que permitam aos alunos diferenciar treinamentos e dietas que podem vir a comprometer sua integridade física. Compreender também que, o engajamento com determinada marca, ou mesmo de algum influenciador digital, especialmente quando o educando produz conteúdos, seja na forma de comentários, divulgação ou outros, se está exercendo uma espécie de trabalho livre (free labour), ou seja, fomenta a marca sem uma remuneração. Trata-se de uma categoria que envolve relações de trabalho não remuneradas, e ao mesmo tempo não coagidas (Sciortino e Wright, 2017).

Trabalhar o fato de que, ao participar ativamente nas mídias sociais, outros algoritmos são acionados e, aos adeptos da espetacularização fitness, uma bolha fitness pode ser criada. Nesse âmbito, é oportuno vislumbrar aspectos que a bolha não mostra, bem como sua existência para além da vida fitness, como em questões culturais e políticas.

BOLHA FITNESS

O recurso tecnológico da inteligência artificial é um dos fatores de destaque no marketing do aplicativo fitness. O termo “algoritmo” pode ser compreendido como “um procedimento passo a passo para solução de um problema”, ou “uma sequência detalhada de ações a serem executadas para realizar alguma tarefa” (Medina e Ferting, 2006, p. 13). Uma receita de bolo, por exemplo, é um algoritmo. Possui o passo a passo, a tarefa a ser realizada, o input/entrada (os ingredientes) e o output/saída (o bolo). No campo da computação, os algoritmos são constituídos por meio das linguagens de programação (Medina e Ferting, 2006, p. 13).

Logo, como o aplicativo fitness é baseado em inteligência artificial, depende dos dados do usuário para que possa operar. Além disso, o principal aspecto a ser aqui explorado é que, além dos dados necessários para o funcionamento do aplicativo fitness, quando o usuário realiza determinada postagem, ou mesmo durante a simples navegação pela internet, também há captura de dados. A propósito, o aplicativo fitness possui conectividade direta com mídias sociais como Facebook e Instagram. Em certa medida, alguns comportamentos são fabricados em consequência da análise algorítmica dos dados gerados pelo usuário. Isso produz um valor especial para esses dados, tidos como commodities, portanto, adquirindo valor.

No que se refere ao direcionamento de conteúdo a partir dessa captação de dados, evidenciamos os argumentos de Eli Pariser (2012), ao tratar da “bolha de filtros” ou “filtro-bolhas” (filter bubble) – que representa, em parte, o que chamamos, no Brasil, de bolha social, porém restrita à cultura digital. Pode ser entendida como:

[...] espaço de bem-estar digital constituído por mecanismos de previsão que criam e refinam constantemente uma teoria sobre quem somos e sobre o que vamos fazer ou desejar seguir. Juntos, esses mecanismos criam um universo de informações exclusivo para cada um de nós (Pariser, 2012, p. 14).

Em síntese, a bolha de filtros é a personalização da rede, onde praticamente só o que nos agrada aparece. Uma das consequências dessa personalização, por exemplo, ocorre quando realizamos busca por determinado produto, em um site de compras qualquer e, ao visitarmos outros sites (que não esse de compras), algumas propagandas desse mesmo produto são mostradas. Os algoritmos entendem que há interesse no referido produto.

Na particularidade da cultura fitness digital, denominamos essa característica de bolha fitness. Ela é consequência do engajamento dos usuários na internet de modo geral, em mídias como Facebook, Instagram, YouTube, com interesse por conteúdo fitness (independentemente de serem usuários do aplicativo Freeletics). Grosso modo, o enclausuramento na bolha fitness se dá em adeptos de uma dada cultura self-tracking: um autorrastreamento, a exemplo dos smartwatchs que monitoram dados como a frequência cardíaca dos usuários. Já existem campanhas do tipo “medida certa”, nas quais empresas com uso de recurso do self-tracking monitoram os trabalhadores. Em artigo de notícias publicado no The Guardian (Datoo, 2014), em 2014, já havia empresas que faziam uso do self-tracking para acompanhar o sono e a prática de atividade física por seus trabalhadores – uma forma de aumentar a produtividade. Assim como há empresas de saúde e de seguro de vida que fazem uso de informações das tecnologias de self-tracking para a tomada de decisões (Tuzovic, 2019). Já no aplicativo Mova Mais – Heartbit, os pontos conquistados mediante registro do exercício físico eram convertidos em produtos e serviços2.

Por fim, a bolha fitness pode vir a fomentar um certo “padrão de beleza. No momento em que apenas o corpo que se enquadra a uma “pessoa fitness” é apresentado, se cria um ambiente favorável para produção de intolerantes com o diferente. Se aceitar como é, e aceitar o diferente, portanto, se torna pertinente. Assim, é oportuno discutir situações as quais os indivíduos não contemplam uma vida fitness, para que estas não venham a se colocarem (ou serem colocadas) numa dada culpabilização fitness.

CULPABILIZAÇÃO FITNESS

Fazer com que as pessoas incorporem o exercício físico em suas rotinas, ou, em outros termos, fazer com que as pessoas levem uma vida fitness, é central na proposta do aplicativo analisado. Nesse sentido, uma peculiaridade encontrada é que a pressão por desempenho se exerce preponderantemente de si para consigo mesmo, embora conte com atores que façam com que esse sentimento de cobrança aflore. No escopo da hashtag #treineemcasa, com o argumento de que, com o aplicativo fitness, o usuário pode treinar em “qualquer hora” e em “qualquer lugar”, essa pressão se intensifica ainda mais: em tese, basta querer. Trata-se, portanto, de uma pressão de si para consigo, de modo ubíquo.

Na particularidade do aplicativo fitness, essa nova configuração implica um apagamento temporal (“treine qualquer hora”), e espacial (“treine em qualquer lugar”). Portanto, um apagamento espaço-temporal, no âmbito da cultura fitness digital. Byung-Chul Han, ao tratar do que intitula sociedade do desempenho, também diferencia a contemporaneidade da sociedade disciplinar proposta por Foucault (Han, 2015). Na sociedade disciplinar, representada pela metáfora do Panóptico, o indivíduo é constantemente vigiado, submisso a normas e passível de punições, portanto, desse modo, é um sujeito de obediência.

A rigor, com o advento da pandemia por Covid 19, que forçou várias pessoas a trabalharem de modo remoto, alguns empregadores se deram conta de que o “olhar do chefe” poderia ser menos produtivo do que a cobrança que ocorre o que o próprio trabalhador faz sobre si mesmo. Em vários casos, o trabalho remoto passou a ser mais produtivo, ao mesmo tempo em que os trabalhadores se passaram a se sentir mais sobrecarregados, dado o caráter ubíquo das tarefas laborais. Chamamos atenção, portanto, para fenômeno semelhante na vida fitness. Diante da cultura self-tracking, a quantidade de passos, ou de água que se bebe, passa a integrar, também, parte da rotina. Assim, constitui-se o sujeito empreendedor de si, cuja cobrança não depende de um ente externo, mas da dobradura externa que o habita e que o põe em movimento.

Nesse sentido, Han (2015) chama atenção para uma hiperaceleração da sociedade, com excessivos estímulos e informações. Além da metáfora, que pode ser lida na cultura fitness digital, temos sua manifestação literal, como a possibilidade de aceleração da velocidade de reprodução de vídeos do YouTube e, mais recentemente, de áudios do WhatsApp. Outro aspecto relevante que fomenta a cobrança de si para consigo é o implemento da gamificação, que consiste no uso de elementos de jogos em outros contextos que não de jogos. É um recurso presente em diversos aplicativos fitness (Cotton e Patel, 2019; Edwards et al., 2016; Lister et al., 2014). É o caso do aplicativo Movimento 21 Dias, estudado por Abib (2019), envolve uma “disputa saudável” em que a atividade física, foco da análise do autor, é apenas um dos três eixos, e constituída ainda pela alimentação saudável e pelo convívio familiar. Logo, a gamificação não abrange somente práticas específicas, mas a vida, de modo geral, na medida em que a alimentação e o convívio também integram o “jogo”. Nesse âmbito, o respeito aos próprios limites precisa ser trabalhado. Muitas vezes, para cumprir com determinado desafio, os discentes se expõem a riscos desnecessários, com volumes demasiados de treino.

Essa racionalidade competitiva, que envolve um refinamento no comprometimento de si para consigo mesmo, seguindo a lógica de hashatags como a #NoPainNoGain, inclui em seu escopo outro componente relevante: a glorificação do sofrimento. Em um léxico da cultura do empreendedorismo, bem como na ubiquidade da culpabilização fitness, é que o usuário relata que não deixa de treinar, independentemente do clima, horário ou de outras questões. Nesse sentido, não basta somente “suportar” os treinamentos que envolvem situações extremas, mas também “enfrentar” e “vencer”, podendo assim comemorar a glória do sucesso (glorificar).

O argumento de que “basta querer”, que reforça a culpabilização fitness aqui problematizada, contrasta com a realidade de profundas desigualdades sociais presentes no Brasil. Em amplo estudo realizado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) (PNUD, 2017), foram identificadas iniquidades relevantes no que se refere a prática de exercícios físicos, em que as pessoas mais ativas são aquelas com maior renda per capita, pessoas que declararam não ter deficiência, homens, de maior grau educacional, de menor idade, e brancas. Há, portanto, outros determinantes sociais para a prática de exercícios físicos, não sendo exclusivamente uma decisão individual e pessoal. Por outro lado, os usuários, enquanto empreendedores de si, realizam investimentos diversos, muitos deles com base numa autoexperimentação: podem ser considerados biohackers.

BIOHACKING

Os resultados sugerem uma valorização dos próprios dados pelos usuários. O próprio aplicativo fitness emite relatórios sobre o desempenho fitness. Além disso, alguns usuários utilizam outros softwares para captar dados diferentes, bem como constroem planilhas que reúnem diferentes dados. A rigor, parte destes usuários, assim como algumas empresas, adotam comportamentos data-driven. Logo, aproxima ainda mais estes sujeitos como empreendedores de si. Evidentemente, os dados mais utilizados são números, o que nos levou a compreender sua relação com o movimento quantified self. Basicamente, consiste em transformar fenômenos individuais e sociais em dados quantificados, o que vem a possibilitar um acompanhamento comportamental e, em tese, um autoconhecimento através dos números (Ruckenstein e Pantzar, 2017).

O quantified self foi idealizado por Gary Wolf e Kevin Kelly e conta com vários de seus pressupostos publicados em artigos da revista Wired, que conta com Wolf em sua equipe. Nesse sentido, Ruckenstein e Pantzar (2017) analisaram 41 de seus artigos, publicados entre 2008 e 2012, com ênfase em extrair deles as principais concepções da quantified self. Dentre as concepções elencadas, destacamos aqui as descobertas de biohacking (biohacking discoveries).

Grosso modo, o biohacking envolve uma self-experimentation (autoexperimentação), com objetivo de uma auto-otimização, nas mais distintas áreas (apesar de o foco nesse artigo ser a vida fitness). Em outros termos, envolve estratégias/truques (hack), derivados de autoexperimentação, do “biológico”, com uso de recursos como exercícios físicos, nutricionais e/ou da tecnologia. No site mybiohacker.com, o termo biohacking é definido como “[...] uma abordagem científica, holística e individualizada para otimizar sua mente, corpo, ambiente e estilo de vida” (Mybiohacker, 2022). Nesse âmbito, a dimensão biológica humana corresponde a “mente, corpo, ambiente e estilo de vida”, portanto, vai além dos aspectos anatomofisiológicos.

Nesse sentido, os biohackers repercutem também nas funções do próprio aplicativo, como no caso de quando um dos usuários solicitou apoio acerca de uma limitação pessoal: seu pai possuía uma prótese articular no joelho. Com base na autoexperimentação, um usuário, aqui considerado biohacker, sugeriu ativar a função “treino silencioso”, que serve originalmente para pessoas que moram em apartamento não incomodarem os vizinhos durante o treino, adaptação essa que exclui exercícios que demandam saltar, por exemplo.

Cabe destacar que a quantified self, ainda que com base em metodologias eminentemente empíricas, possui método e fóruns de discussão institucionalizados. Gary Wolf e Martijn de Groot explicam o que intitularam Personal Science: O uso de métodos empíricos para investigar questões de saúde pessoal. Basicamente, propõem uma organização em cinco etapas: Questionar, projetar, observar, racionalizar e descobrir (Wolf e De Groot, 2020). Importante também destacar que há biohackers que não se vinculam diretamente a quantified self.

No âmbito escolar, torna-se oportuno tematizar métodos de autoexperimentação que podem vir a ser problemáticos, como a adoção de treinamentos ou dietas milagrosas, ou até mesmo recursos ergogênicos, como os anabolizantes. No caso dos usuários do aplicativo fitness analisado, os fóruns de discussão de caráter mais científico não são utilizados, mas sim grupos de Facebook e WhatsApp – o que distancia essa prática de um autoestudo, aproximando de um autoempreendimento.

Outro aspecto relevante é analisar as prescrições, seja de treinamento ou de outras questões, por parte de biohackers, especialmente aqueles que assumem posição de influenciadores digitais. O cenário mostra desde aqueles que pedem cuidado com certos exageros, contemplando, inclusive, limitações do próprio aplicativo (ele é ativado todas as vezes que o usuário desejar, não necessariamente respeitando intervalo de descanso), como também aqueles que praticam exageros, muitas vezes vinculados a gamificação da vida fitness, discutido no tópico anterior. Portanto, pode ser oportuno refletir com os alunos, ainda que de modo superficial, os princípios do treinamento e noções básicas de nutrição e recursos ergogênicos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo tem por objetivo discutir possibilidades de abordagens de temas da cultura fitness digital que possam ser incorporadas no léxico da educação física escolar. Tais possibilidades derivam de temáticas emergentes de um estudo mais amplo, no qual investigou-se as interações no seio de uma rede sociotécnica a qual um aplicativo fitness, baseado em inteligência artificial, integra, quais sejam: espetacularização fitness; bolha fitness; culpabilização fitness; e biohacking.

Nessa linha, sintetizamos a sugestão de alguns possíveis tópicos de discussão, trabalhados ao longo deste artigo, para que se possa abordar a cultura fitness digital na escolar (Quadro 2).

Quadro 2
Síntese das possibilidades de abordagem de temas da cultura fitness digital em subtemas.

Na medida em que a Educação Física escolar compõe a área de linguagens códigos e suas tecnologias, torna-se oportuno abordar em aula a pujante cultura fitness digital por outras disciplinas, ou até mesmo de modo interdisciplinar. Esta que, por sua vez, coloca professores e alunos diante do dilema entre a prática autônoma de exercícios físicos conforme a prescrição de um software ou as orientações analógicas de um professor de Educação Física.

Outra ponderação relevante é que a carga horária destinada ao ensino da Educação Física, pelo menos desde a promulgação da BNCC, vem sendo diminuída, sobretudo no ensino médio. Nesse sentido, paralelamente à luta pela manutenção de carga horária, os professores se veem obrigados a selecionar de forma mais criteriosa o que pode ser abordado, com ênfase no que faz parte do universo cultural dos estudantes. Na medida em que a cultura fitness digital faz parte da cultura das crianças e adolescentes, sua inclusão agregaria conhecimento significativo na formação dos alunos da Educação Básica e, por essa razão, reforçaria ainda mais a defesa e a manutenção da carga horária da disciplina de Educação Física.

Diante do exposto, conclui-se que a cultura fitness digital possui elementos que podem vir a ampliar o léxico da cultura corporal de movimento e, nesse sentido, a proficiência dos educandos da Educação Física escolar. Compreender, ler e produzir essa cultura é também função dessa disciplina curricular.

FINANCIAMENTO

  • 1
    Cabe destacar que a cultura digital fitness se alinha ao debate mais geral acerca do uso crítico, da produção e da ressignificação da mídia no campo da educação, especialmente os trabalhos que discutem a inserção das Tecnologias da Informação e Comunicação no contexto escolar (Bianchi, 2009; Oliveira e Hack, 2020).
  • 2
    Aplicativo Mova Mais – Heartbit parou de funcionar em janeiro de 2020.
  • O presente trabalho contou com uma bolsa de doutorado Capes.

REFERÊNCIAS

  • Abib LT. O governo de si e dos outros em dispositivos de saúde móvel: reflexões sobre o movimento 21 dias por uma vida mais saudável [tese] Vitória: Universidade Federal do Espírito Santo; 2019.
  • Abreu CL. Hipervisibilidade e self-disclosure: novas texturas da experiência social nas redes digitais. Visualidades. 2015;13(2):194-219.
  • Bianchi P. Relato de experiência em mídia-educação (física) com professores da rede municipal de ensino de Florianópolis/SC. In: Anais do XVI CONBRACE; 2009; Salvador. Salvador: Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte; 2009.
  • Brasil. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: Ministério da Educação; 2018.
  • Codo W, Senne WA. Corpolatria. In: González FJ, Fensterseifer PE, orgs. Dicionário crítico da educação física, Ijuí: Unijuí; 2014, p. 151-3.
  • Cotton V, Patel MS. Gamification use and design in popular health and fitness mobile applications. Am J Health Promot. 2019;33(3):448-51. http://dx.doi.org/10.1177/0890117118790394
    » http://dx.doi.org/10.1177/0890117118790394
  • Datoo S. These companies are tracking the fitness of their employees. Revista The Guardian [Internet]. 2014 [citado 2020 Abr 11]. Disponível em: https://www.theguardian.com/technology/2014/mar/17/why-companies-are-tracking-the-fitness-of-their-employees
    » https://www.theguardian.com/technology/2014/mar/17/why-companies-are-tracking-the-fitness-of-their-employees
  • Edwards EA, Lumsden J, Rivas C, Steed L, Edwards LA, Thiyagarajan A, et al. Gamification for health promotion: systematic review of behaviour change techniques in smartphone apps. BMJ Open. 2016;6(10):e012447. http://dx.doi.org/10.1136/bmjopen-2016-012447
    » http://dx.doi.org/10.1136/bmjopen-2016-012447
  • Finco MD, Fraga AB. Rompendo fronteiras na Educação Física através dos videogames com interação corporal. Mot Rev Educ Física. 2012;18(3):533-41. http://dx.doi.org/10.1590/S1980-65742012000300014
    » http://dx.doi.org/10.1590/S1980-65742012000300014
  • Han B-C. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes; 2015.
  • Latour B. Reagregando o Social. Salvador: Edufba; 2012.
  • Lister C, West JH, Cannon B, Sax T, Brodegard D. Just a fad? Gamification in health and fitness apps. J Med Internet Res. 2014;2(2):e9.
  • Medina M, Ferting C. Algoritmos e programação: teoria e prática. São Paulo: Novatec Editora; 2006.
  • Mybiohacker [Internet]. [citado 2022 Mar 29]. 2022. Disponível em: https://mybiohacker.com/
    » https://mybiohacker.com/
  • Oliveira BN, Fraga AB. Prescrição de exercícios físicos por inteligência artificial: a educação física vai acabar? Rev Bras Ciênc Esporte. 2021;43:e002921. http://dx.doi.org/10.1590/rbce.43.e002921
    » http://dx.doi.org/10.1590/rbce.43.e002921
  • Oliveira BN. Personal trainer de bolso: uma tecnologia disruptiva na produção de imperativos para uma vida fitness [tese] Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2021.
  • Oliveira MRR, Hack C. Mídia e Educação Física Escolar: panoramas mídia-educativos no contemporâneo. In: Dorenski S, Lara L, Athayde P, orgs. Comunicação e mídia: história, tensões e perspectivas. Natal: EDUFRN; 2020. p. 43-56.
  • Pancini L. Aplicativo de exercícios Freeletics ganha meio milhão de usuários na pandemia. Revista Exame [Internet]. 2021 [citado 2022 Jan 2]. Disponível em: https://exame.com/tecnologia/aplicativo-de-exercicios-freeletics-ganha-meio-milhao-de-usuarios-na-pandemia/
    » https://exame.com/tecnologia/aplicativo-de-exercicios-freeletics-ganha-meio-milhao-de-usuarios-na-pandemia/
  • Pariser E. O filtro invisível: o que a internet está escondendo de você. Rio de Janeiro: Zahar; 2012.
  • Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD. Movimento é vida: atividades físicas e esportivas para todas as pessoas. Relatório de Desenvolvimento Humano Nacional. Atividades Físicas e Esportivas para Todas as Pessoas. Brasília: PNUD; 2017.
  • Ribeiro SDD, Mezzaroba C. Mídia, corpo e mercado: (im)possibilidades formativas diante do poder simbólico. Revista do Centro de Ciências da Educação. 2019;37(1):160-83. http://dx.doi.org/10.5007/2175-795X.2019.e52240
    » http://dx.doi.org/10.5007/2175-795X.2019.e52240
  • Ruckenstein M, Pantzar M. Beyond the quantified self: thematic exploration of a dataistic paradigm. New Media Soc. 2017;19(3):401-18. http://dx.doi.org/10.1177/1461444815609081
    » http://dx.doi.org/10.1177/1461444815609081
  • Sciortino R, Wright S. The spectacle of new media: addressing the conceptual nexus between user content and valorization. In: Briziarelli M, Armano E, orgs. The spectacle 2.0: reading Debord in the context of digital capitalism. London: University of Westminster Press; 2017. p. 81-94. http://dx.doi.org/10.16997/book11.e
    » http://dx.doi.org/10.16997/book11.e
  • Sibilia P. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 2008.
  • Tuzovic S. Treat or trick: we asked people how they feel about sharing fitness data with insurance companies. Revista The Conversation [Internet]. 2019 [citado 2022 Mar 29]. Disponível em: https://theconversation.com/treat-or-trick-we-asked-people-how-they-feel-about-sharing-fitness-data-with-insurance-companies-119806
    » https://theconversation.com/treat-or-trick-we-asked-people-how-they-feel-about-sharing-fitness-data-with-insurance-companies-119806
  • Wolf GI, De Groot M. A conceptual framework for personal science. Front Comput Sci. 2020;2(21):1-5. https://doi.org/10.3389/fcomp.2020.00021
    » https://doi.org/10.3389/fcomp.2020.00021

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    26 Mar 2022
  • Aceito
    13 Maio 2022
location_on
Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte Avenida Esperança s/n, Câmpus Samambaia, CEP: 74690-900, Telefone: +55 (62) 3521-1513 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: rbceonline@gmail.com
rss_feed Stay informed of issues for this journal through your RSS reader
Acessibilidade / Reportar erro