Open-access Crítica e renovação da Educação Física: possíveis interseções com a educação infantil de Brasil e Chile

Criticism and renewal of Physical Education: possible intersections with early childhood education in Brazil and Chile

Crítica y renovación de la Educación Física: posibles interseccciones con la educación infantil de Brasil y Chile

RESUMO

Este artigo analisa movimentos de crítica e renovação da Educação Física e suas repercussões sobre a educação infantil no Brasil e no Chile. Realiza um estudo comparado pautado em uma pesquisa bibliográfica e documental. No Brasil, destaca a inserção da Educação Física no currículo da educação infantil e o debate que a área acumulou sobre a temática. No Chile, sobressai a produção de materiais didáticos e os programas para combater a obesidade e o sedentarismo. A despeito das diferenças, esses países também convergem em muitos pontos nas discussões sobre corpo, movimento e infância. As interfaces entre Educação Física e educação infantil refletem as transformações e evoluções nos debates acadêmicos e nas práticas pedagógicas construídas.

Palavras-chave:  Educação Física; Educação infantil; Chile; Escola

ABSTRACT

This article analyzes movements of criticism and renewal of Physical Education and its repercussions on early childhood education in Brazil and Chile. Conducts a comparative study based on bibliographic and documentary research.In Brazil, it highlights the inclusion of Physical Education in the early childhood education curriculum and the debate that the area has accumulated on the subject. In Chile, the production of teaching materials and programs to combat obesity and a sedentary lifestyle stand out. Despite their differences, these countries also converge on many points in discussions about the body, movement and childhood. The interfaces between Physical Education and early childhood education reflect the transformations and evolutions in academic debates and constructed pedagogical practices.

Keywords:  Physical Education; Child education; Chile; School

RESUMEN

Este artículo analiza movimientos de crítica y renovación de la Educación Física y sus repercusiones en la educacion infantil de Brasil y Chile. Realiza un estudio comparativo basado en una investigación bibliográfica y documental. En Brasil, destaca la inclusión de la Educación Física en el currículo de educación infantil y el debate que el área ha acumulado sobre el tema. En Chile se destaca la producción de materiales didácticos y programas para combatir la obesidad y el sedentarismo. A pesar de sus diferencias, estos países también convergen en muchos puntos en los debates sobre el cuerpo, el movimiento y la infancia. Las interfaces entre Educación Física y educación infantil reflejan las transformaciones y evoluciones en los debates académicos y las prácticas pedagógicas construidas.

Palabras-clave:  Educación Física; Educación parvulária; Chile; Escuela

INTRODUÇÃO

Este artigo integra uma pesquisa que busca compreender os movimentos de crítica e renovação na área da Educação Física em países sul-americanos. Especificamente, ele analisa as relações que podem ser estabelecidas entre aqueles e os debates sobre educação infantil no Brasil e no Chile. A discussão apresentada deriva da conclusão da tese de doutorado “[informação retirada para garantir anonimato]” (Rocha, 2023). Assim, ao investigar o lugar em que os temas “infância”, “corpo” e “movimento” ocupam nas políticas educacionais e nas prescrições curriculares para a educação infantil desses países, este estudo evidenciou algumas interseções com a área da Educação Física que merecem destaque.

Metodologicamente, a investigação realizou um estudo comparado (Ferreira, 2008; Schriewer, 2018) pautado em uma pesquisa bibliográfica e documental. A perspectiva de comparação adotada não teve a pretensão de estabelecer fronteiras rígidas entre as diferentes operações teórico-metodológicas inerentes a essa atividade investigativa. Pelo contrário, ancorados naquilo que vem sendo denominado de abordagem compreensiva da Educação Comparada e na noção de ciclo de investigação, apresentada por Schneider e Schimitt (1998), compreendemos que o método comparativo pode ser utilizado dentro de um campo teórico-metodológico abrangente. Nas palavras de Ferreira (2008, p. 136):

A Educação Comparada pode, assim, constituir-se como campo de estudo simultaneamente analítico e sintético, tanto mais interessante quanto mobilizar disciplinas e técnicas diversificadas para sustentar uma compreensão da realidade educacional complexa a partir da elucidação de dinâmicas externas e internas que a determinam ou condicionam. A Educação Comparada tem de assumir-se como um saber que resulta da interpelação, através da comparação, da educação em seus múltiplos aspectos, situados em contextos diferentes, captados e analisados com recurso a técnicas e metodologias providenciadas por outras ciências quando para tal forem consideradas as mais adequadas pelos comparatistas.

A partir desse entendimento, os procedimentos metodológicos desta investigação foram estruturados levando em consideração as etapas de descrição dos fenômenos, de compreensão e de comparação propriamente dita. Para tanto, utilizou-se a entrevista semiestruturada como técnica de coleta de dados; uma pesquisa documental-bibliográfica; e uma visita técnica no país “vizinho” para descrever e analisar os documentos pedagógicos e curriculares de âmbito nacional produzidos para orientar as práticas educativas com foco na educação infantil de Brasil e Chile.

As entrevistas foram realizadas em abril de 2020, pela plataforma Zoom, com 03 docentes chilenos. O critério de escolha desses sujeitos se pautou na importância que suas produções têm para as discussões sobre Educação Física e sobre Educação Infantil no Chile. A visita técnica1 ao Chile ocorreu em janeiro de 2022. Assim, além de permitir vivenciar um pouco da cultura chilena, conhecer algumas instituições educativas da primeira infância, ela também possibilitou discutir com professores e professoras, pesquisadores/as e intelectuais chilenos/as nossas primeiras análises e impressões dos documentos curriculares e políticas educacionais para a educação infantil. A partir das categorias de análise estabelecidas, ressaltam-se as semelhanças e as diferenças identificadas entre os países considerados. O artigo está organizado em uma única sessão, que é seguida das considerações finais.

TRABALHO PEDAGÓGICO COM O CORPO E MOVIMENTO NA EDUCAÇÃO INFANTIL DE BRASIL E CHILE: O (NÃO) LUGAR DA EDUCAÇÃO FÍSICA

Ainda que diferenças significativas existam entre Brasil e Chile no que diz respeito ao lugar da Educação Física na educação infantil, é possível identificar que, dada sua articulação com o contexto sociopolítico, um padrão comum observado é a negação da infância e da corporalidade nos temas da educação infantil (Buss-Simão, 2016; Moreno Doña, 2018). Diante disso, tornou-se relevante compreender, em perspectiva comparada, as possibilidades construídas e os caminhos trilhados por Brasil e Chile no enfrentamento dessas problemáticas em comum.

Antes de prosseguir, é importante mencionar que a educação infantil no Brasil se configura como a primeira etapa da educação básica e atende crianças de zero a cinco anos, sendo subdividida em creche (0 a 3 anos) e Pré-escola (3 a 5 anos). No Chile, denominada de “educación parvularia”, a educação infantil se constitui como um dos níveis do sistema educacional chileno com o atendimento direcionado às crianças de zero a seis anos. Sua subdivisão é estruturada em berçário (0 a 2 anos), nível médio (2 a 4 anos) e nível de transição (4 a 6 anos) (Chile, 2011).

Isto posto, convém destacar que, neste exercício investigativo, Rocha (2023) identificou que alguns atravessamentos curriculares da educação infantil, ainda que indiretamente, são perpassados pela Educação Física. De maneira mais direta, no caso brasileiro, destaca-se a presença da Educação Física como componente curricular das propostas pedagógicas de muitos municípios, a inserção de professores de Educação Física na educação infantil e o acúmulo de um debate acadêmico sobre essa temática (Rocha, 2023; Farias et al., 2019, 2021; Rocha et al., 2021; Martins, 2018). Por outro lado, no contexto chileno, sobressaem programas desenvolvidos com finalidades de implementar uma “cultura” de movimento no combate à obesidade e ao sedentarismo, assim como a produção de materiais/cadernos didático-pedagógicos com finalidades de orientar os professores para o desenvolvimento de atividades corporais e de movimento com as crianças. Nesse último caso, ainda que não tenha relação direta com a Educação Física e seu profissional, algumas discussões presentes no campo chileno da disciplina acabam influenciando elementos desses programas que chegam até a educação infantil.

No contexto brasileiro, a presença da Educação Física se constitui como um componente curricular da educação infantil, o que implica uma atuação docente pautada pela articulação aos princípios educacionais dessa etapa educativa. Apesar de não haver um modo único de pensar a inserção da disciplina nesses currículos, fato é que eles coadunam com o entendimento desse componente curricular como um elemento integrado às propostas educacionais para a primeira infância e as especificidades das crianças de zero a cinco anos (Rocha, 2023). Outra observação importante diz respeito à perspectiva de Educação Física com a qual dialogam. Seja de maneira explícita, seja de maneira indireta, os documentos brasileiros têm dialogado com perspectivas críticas de Educação Física, bem como reconhecem que o corpo da criança precisa ser percebido na sua totalidade, ou seja, como estrutura biológica conectada à cultura, às práticas sociais e ao conhecimento, como exemplo podemos citar o documento curricular da Educação Infantil de Florianópolis.

Já no âmbito chileno, historicamente, o currículo da educação infantil é atravessado por alguns programas, como “Jardín Activo”, “Crecer en Movimiento”, “Julgar y Aprender” e “Corporalidad y Movimiento” (CYM). Poderíamos dizer que tal atravessamento ocorre sem o estabelecimento de um diálogo com a proposta curricular, configurando-se muito mais como atividades extracurriculares, haja vista que esses programas, em sua maioria, têm perspectivado práticas de atividades físicas e de movimento na educação parvulária, resultantes da implementação de planos e políticas voltadas para ações preventivas que visam ao desenvolvimento da saúde, à promoção de hábitos saudáveis e à melhoria da qualidade de vida.

No que se refere aos materiais didáticos e pedagógicos, destacam-se as publicações dos dois volumes do livro didático “Experiencias de aprendizaje sobre corporalidad y movimiento” (2011), bem como as publicações das “Orientaciones para el desarrollo de actividades motrices, pre-deportivas, deportivas y recreativas, y su importancia en los aprendizajes escolares: Corporalidad y Movimiento en los aprendizajes” (2013); do “Cuaderno Docente Nº 3 - La motricidad y la corporalidad” (2015); das “Orientaciones teóricas y técnicas para el manejo de sala de psicomotricidad: Cuaderno de Psicomotricidad Educativa nº 1” (2017); dos “Guías Didácticos: Taller Corporalidad y movimiento” (2018); e das “Fichas pedagógicas para la priorización curricular. Educación Parvularia - Corporalidad y Movimiento” (2020).

Em síntese, a leitura desses materiais indica que suas elaborações advêm do reconhecimento da importância do desenvolvimento da motricidade das crianças e visam servir como ferramenta de apoio para o trabalho desenvolvido pelas professoras no dia a dia da educação parvulária de todo o país. No que se refere à fundamentação teórica, as propostas apresentadas estão ancoradas, majoritariamente, na psicomotricidade e nas teorias do desenvolvimento motor, particularmente a partir do diálogo com Le Boulch, Aucouturier, Wallon e Piaget. Contudo, também observamos um diálogo com perspectivas mais críticas e holísticas sobre o corpo, como, por exemplo, a produção de Toro (2006) e Fullat (2000).

O reconhecimento da importância do corpo e do movimento na educação infantil, presente nos discursos desses materiais, não se expressa sem algumas ambiguidades. Se, por um lado, apontam o reconhecimento do movimento como o fio condutor do desenvolvimento integral da criança, não o considerando como meio complementar, mas sim como elemento central da educação, em torno do qual se constrói a unidade corporal, mental, afetiva e intelectual (Chile, 2011), por outro, vinculam a atenção dada ao corpo e ao movimento como meio de superar os altos níveis de sedentarismo e obesidade infantil, bem como de potencializar aprendizagens de cunho cognitivo (Chile, 2011, 2013).

Outro dado curioso acerca desses materiais didáticos se refere ao fato de que, apesar da participação/autoria de professores de Educação Física, não há menção direta à disciplina. Contudo, a despeito dessa falta de referências explícitas, as perspectivas presentes neles, como a psicomotricidade e a atividade física e saúde, são temas comumente abordados no campo da Educação Física chilena e nos documentos curriculares da Educação Básica (Moreno Doña et al., 2014; Moreno Doña, 2018). Assim, mesmo que as produções do campo da Educação Física não sejam explicitamente reconhecidas ou mencionadas, é possível perceber suas influências.

Este quadro é distinto no caso brasileiro, no qual é notável a influência do debate acadêmico acumulado em torno da discussão da Educação Física na educação infantil nos documentos curriculares, bem como se evidencia, no próprio campo, um aumento considerável da publicação e divulgação de relatos de experiências dos professores de Educação Física que atuam nessas instituições.

O debate acadêmico sobre corpo, movimento e infância no campo chileno da Educação Física é pouco expressivo quando comparado com as produções brasileiras. De acordo com Gamboa Jiménez et al. (2020) e Toro (2006), as discussões que tematizam corpo e movimento das crianças são realizadas, em sua maioria, no próprio campo da educação infantil em diálogo com os campos da Neurociência Educacional, da Psicologia Cultural, da Psicomotricidade e da Biologia Cultural (Toro, 2012).

Já no Brasil, a produção do conhecimento em Educação Física sobre educação infantil intensificou-se nas últimas duas décadas (Martins, 2018; Farias et al., 2019). Detalhe importante a considerar sobre essa produção é que, até o final da década de 1990, as discussões sobre educação infantil estavam fortemente ancoradas nos referenciais teóricos do campo da Psicologia e do Desenvolvimento/Comportamento Motor (Martins, 2018; Rocha et al., 2021). E, em virtude dessas perspectivas teóricas, prevaleciam, na área, visões predominantemente biológicas e instrumentais do corpo infantil, bem como concepções naturalistas e idealistas sobre a criança e a infância. Além disso, conforme Sayão (1999), observava-se uma abordagem na educação infantil que buscava compensar alegadas deficiências cognitivas e de desenvolvimento infantil, preparando a criança para as fases subsequentes da escolarização. No caso das concepções de Educação Física infantil presentes no campo até esse período, Martins (2018) e Rocha et al. (2021) identificaram que o que predominava era uma visão fragmentária entre Educação Física, infância e educação infantil e uma articulação entre distintas abordagens como psicomotricidade, recreação e desenvolvimento motor.

Contudo, a partir dos anos 2000, começou a ganhar força nas produções uma aproximação e diálogo com outros referenciais advindos das Ciências Humanas e Sociais, com destaque para os referenciais e perspectivas da Sociologia da Infância, Teoria Crítica, perspectiva Histórico-Cultural e as abordagens críticas elaboradas pelo próprio campo da Educação Física (Mezzari et al., 2007; Moura et al., 2016; Martins, 2018; Farias et al., 2019). Com isso, observa-se uma ampliação de trabalhos que reconhecem a criança como sujeito de direitos, histórico e social, ou ainda, como produtora de cultura e protagonista de seus processos de socialização.

Na esteira desse movimento, Farias et al. (2019, 2021) identificam um aumento de trabalhos que tomam como referência a perspectiva da cultura corporal de movimento para pensar as discussões sobre Educação Física na educação infantil, assim como um movimento de ampliação dessas discussões, como: o trabalho pedagógico inter e multidisciplinar; as questões de gênero na infância; as questões étnico-raciais na infância; discussões sobre o se-movimentar e sobre emancipação; perspectiva cultural; multiculturalismo crítico; e currículo transdisciplinar; discussões que envolvem o brincar, o jogo, as crianças com deficiência, entre outras.

Este movimento na produção do conhecimento do campo da Educação Física demonstra relações estreitas com o trabalho pedagógico que vem sendo desenvolvido com o corpo e movimento na educação infantil brasileira. Nesse sentido, Richter et al. (2015) argumentam que, grosso modo, na trajetória da Educação Física na educação infantil, é possível evidenciar três modelos que têm orientado sua prática. O primeiro se fundamenta nas perspectivas do desenvolvimento motor e da psicomotricidade, com ênfase uma intervenção pautada no desenvolvimento de habilidades básicas, eficiência dos gestos e correção de distúrbios no âmbito da dimensão motriz. Já o segundo está baseado em concepções ligadas à recreação, ocupação produtiva do tempo e reprodução de jogos e brincadeiras presentes em manuais pedagógicos. Por fim, Richter et al. (2015) afirmam que, diferentemente dos modelos anteriores, o terceiro é caracterizado por pesquisas e projetos que, em diálogo com a Sociologia da Infância, enfatizam os direitos das crianças, o respeito aos seus interesses e desejos, bem como sua autonomia e capacidade de decisão, abrangendo, assim, as brincadeiras espontâneas das crianças e a diversão como elementos centrais.

Entretanto, de acordo com Rocha (2023), apesar da crescente importância que a Sociologia da Infância vem ganhando nos debates sobre Educação Física, seja integrando os estudos como perspectiva principal ou dialogando com outros referenciais, como De Certeau, Merleau-Ponty e Charles Pierce, outras abordagens teóricas também têm embasado algumas proposições. Nesse contexto, os autores mencionam que intelectuais do campo da Educação Física desempenham um papel significativo como referências para a reflexão sobre a Educação Física na educação infantil.

O próprio conhecimento que a área já acumulou, como as abordagens críticas e, mais especificamente, os conceitos de cultura corporal, cultura corporal de movimento e a teoria do se-movimentar, têm se tornado referências importantes para a elaboração de algumas propostas na educação infantil. É possível citar os próprios documentos curriculares e alguns relatos de experiências que dialogam com tal perspectiva (Rocha et al., 2021).

Dentre as interfaces observadas entre o debate acumulado no campo da Educação Física e a educação infantil no contexto brasileiro, destacam-se: os impactos nos cursos de formação dos professores; a incorporação de bibliografias sugeridas nos concursos públicos, bem como a base conceitual que fundamenta a elaboração de algumas políticas públicas e documentos curriculares municipais. Assim, observa-se que as discussões sobre educação infantil, corpo e movimento na infância não têm ocorrido alheias aos movimentos que se observam no campo da Educação Física.

No contexto chileno, observam-se dois movimentos distintos. Um se refere às aproximações, ainda que indiretas, entre a educação infantil e as produções da Educação Física. Nesse caso, estamos nos referindo ao alinhamento de algumas orientações didáticas às perspectivas da psicomotricidade e da atividade física e saúde. Já o outro movimento observado indica um distanciamento entre as discussões. Autores da Educação Física que pesquisam sobre a infância e atuam como educadores nos cursos de formação de professoras de educação infantil, ao tematizarem corpo e movimento na infância, buscam romper com o que tradicionalmente tem se configurado como perspectivas dominantes no campo acadêmico da Educação Física chilena. Segundo Almeida e Moreno Doña (2020) e Moreno Doña et al. (2020), a perspectiva competitivista do esporte e a perspectiva biomédica do movimento têm feito da condição física e da luta contra a obesidade sua razão de ser. Ao identificar essas perspectivas dominantes no campo da Educação Física chilena, alguns autores reconhecem a dificuldade de se pensar a educação da infância a partir dessas perspectivas.

Em outras palavras, em tensionamento à perspectiva desportiva de Educação Física e à sua vinculação direta com os princípios de atividade física e saúde, desenvolvimento e desempenho motor, autores chilenos como Moreno, Toro, Jimenez e Gamboa problematizam as interfaces com a Educação Física Chilena com a educação infantil e apontam a incoerência entre o que se pretende com a educação da pequena infância e essas perspectivas dentro no âmbito desta disciplina.

No que diz respeito aos referenciais teóricos que têm fundamentado as discussões sobre corpo, movimento, infância e educação infantil, Brasil e Chile se assemelham no diálogo que estabelecem com as teorias da Psicomotricidade, Desenvolvimento Motor, Psicologia e Fenomenologia. Porém, distanciam-se à medida em que, no Brasil, identificam-se outras referências, como: Pedagogia da Infância; Sociologia da Infância; Teoria Crítica; Teoria Histórico-Cultural; Teoria do Se-movimentar Humano; Teorias pedagógicas elaboradas pelo campo da Educação Física brasileira; Semiótica de Peirce; perspectiva cultural de Educação Física, entre outras. Já no Chile, as articulações entre corpo, movimento, infância e educação infantil também advêm dos referenciais das Teorias do Desenvolvimento Humano, Neurociência da Educação, Psicologia Cultural, Biologia Cultural, Estudos Decoloniais, Teoria da Motricidade Humana, entre outros (Rocha, 2023).

Apesar de alguns referenciais semelhantes, as diferenças se acentuam no peso que elas representam no campo das proposições didáticas e curriculares e no âmbito da atuação pedagógica. Particularmente, sobre esses aspectos, é notório que, no contexto brasileiro, os referenciais da Psicomotricidade, Neurociência da Educação e Psicologia do Desenvolvimento Motor já foram duramente criticadas no campo e atualmente não têm tanta representatividade no âmbito acadêmico do debate. Por outro lado, elas ainda parecem orientar as reflexões sobre educação infantil no contexto chileno.

Mesmo operando com alguns referenciais distintos, o debate empreendido sobre corpo, movimento e educação infantil no Brasil e no Chile encontra similaridade nos seguintes entendimentos: a criança é concebida pelas suas potencialidades e reconhecida como um sujeito de direitos; corpo e movimento devem adquirir centralidade no processo formativo vivenciado pelas crianças na educação infantil; o corpo é concebido não somente pelo seus aspectos biofisiológicos, mas também como produto e produtor da cultura. Além disso, deixa de ser visto apenas como objeto; as aprendizagens na educação infantil resultam das interações e brincadeiras; o trabalho com o corpo e movimento deve superar as perspectivas que visavam somente ao desenvolvimento motor da criança e organizam as vivências corporais a partir de circuitos motores; as propostas educativas de trabalho com o corpo e movimento das crianças devem contemplar oportunidades de experiências corporais nas quais as crianças possam: observar, explorar, sentir, descobrir, criar e praticar movimentos e expressar-se corporalmente; o corpo, o movimento e as brincadeiras são as principais linguagens que as crianças dispõem em seus primeiros anos de vida; as vivências com o movimento acabam configurando uma parte privilegiada da experiência infantil, uma vez que, por meio de seus corpos em movimento, interagem, constroem conhecimentos, afirmam suas identidades, internalizam e produzem cultura.

Mediante o exposto, uma interpretação plausível para esse cenário pode estar ancorada tanto no fato das elaborações das referidas compreensões advirem do entrecruzamento de distintos referenciais, quanto nas interpretações e apropriações que cada contexto faz das teorias com as quais dialoga. Especificamente no caso da Psicomotricidade, se no contexto brasileiro ela foi duramente criticada e esteve mais vinculada às Ciências Naturais e Biológicas, no Chile, fica evidente sua relação mais próxima com os estudos da Psicologia Cultural e Biologia Cultural (Rocha, 2023).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao refletir sobre as relações entre os movimentos de crítica e renovação da Educação Física e as discussões sobre educação infantil no Brasil e no Chile, este estudo evidenciou algumas interseções importantes. Ainda que as bases nacionais curriculares da educação Infantil chilena e brasileira não façam referência à presença da Educação Física, observou-se que o trabalho pedagógico realizado com o corpo e movimento das crianças e, mais especificamente, o currículo que vem sendo materializado nas instituições educativas, são atravessados por perspectivas e discussões presentes nesse campo disciplinar.

Como visto, a análise desses atravessamentos evidenciou diferenças significativas entre Brasil e Chile. Se no Brasil a inserção da Educação Física em algumas propostas curriculares municipais para a educação infantil é perceptível, sendo acompanhada por um debate acadêmico robusto e por relatos de experiências de práticas pedagógicas que dialogam com as abordagens produzidas pelo próprio campo disciplinar, no Chile, a presença da Educação Física na educação infantil é bem mais sutil. Na verdade, sua aproximação desse contexto evidencia-se indiretamente nos objetivos dos programas de atividade física e movimento implementados e nas perspectivas que fundamentam os materiais didáticos produzidos pelo governo chileno.

Considerando as particularidades observadas em cada país, destacamos que, no Brasil, as relações entre Educação Física e educação infantil ocorrem a partir de uma valorização de construções curriculares locais e contextualizadas, em que as perspectivas críticas e socioculturais desempenham um papel central. Por outro lado, há de se considerar o risco de uma compreensão fragmentada de corpo e movimento na infância que pode restringir à disciplina de Educação Física a responsabilidade por pensar e atuar com a dimensão corporal na educação infantil. Em contrapartida, tais relações, no contexto chileno, destacam-se pela predominância de orientações biomédicas e pelo risco de padronização de práticas, já que tanto os programas quanto os materiais didáticos são proposições de âmbito nacional. Com isso, tendem a deixar pouco espaço para que as especificidades das diferentes realidades e contextos da educação infantil local sejam contempladas em suas implantações. Por outro lado, é essencial reconhecer que a discussão e o trabalho com a dimensão corporal na educação infantil não correm o risco de se limitar à disciplina de Educação Física.

Por fim, destacamos que, a despeito das diferenças notáveis, Brasil e Chile também convergem em muitos pontos nas discussões sobre corpo, movimento e infância. As interfaces entre Educação Física e educação infantil nos dois países refletem as transformações e evoluções nos debates acadêmicos e práticas pedagógicas ao longo do tempo. A compreensão da criança como sujeito de direitos, a centralidade do corpo e movimento no processo formativo e a importância das interações e brincadeiras são concepções compartilhadas que transcendem fronteiras.

  • 1
    Visita realizada com apoio da FAPES por meio de aprovação de projeto no Edital FAPES Nº 12/2020 - Auxílio a estágio e visita técnico-científica.
  • FINANCIAMENTO
    Este trabalho é uma ação vinculada aos projetos de pesquisa “A constituição de um pensamento renovador da Educação Física na América do Sul: uma análise comparada entre Brasil, Uruguai, Argentina, Chile e Colômbia” e “Formação de professores de Educação Física no Espírito-Santo e na América do Sul”. As investigações são financiadas pela Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (FAPES), a quem agradecemos pelo apoio (Edital Profix 15/2022. Processo 2022-Z3971; Edital Universal 03/2021. Processo 2021-B3GXG; Bolsa Pesquisador Capixaba 06/2021. Processo 2022-D93DK. Edital Universal 28/2022. Processo 2023-DL91F).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Out 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    06 Jun 2024
  • Aceito
    14 Ago 2024
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