RESUMO
A partir da análise da participação popular na Assembleia Nacional Constituinte, através do Projeto Constituição, tentamos perceber o que a população brasileira pensava e desejava no que se refere ao lazer, e quem eram os brasileiros que se preocuparam com tal temática. Foram analisadas as 674 sugestões populares que tiveram como tema o lazer. Concluímos que o lazer era compreendido como direito e como necessidade básica. Os cidadãos proponentes do lazer possuíam perfil socioeconômico que se afastava do perfil da população brasileira.
Palavras-chave: História; Lazer; Direito social; Constituição Federal
ABSTRACT
From the analysis of popular participation in the National Constituent Assembly, through the Projeto Constituição, we tried to understand what the Brazilian population thought and wanted with regard to leisure, and who were the Brazilians who were concerned about this issue. We analyzed the 674 popular suggestions that had as theme leisure. We concluded that leisure was understood as right and as a basic need. Citizens proposing leisure had a socioeconomic profile that departed from the profile of the Brazilian population.
Keywords: History; Leisure; Social right; Federal Constitution
RESUMEN
A partir del análisis de la participación popular en la Asamblea Nacional Constituyente, a través del Projeto Constituição, intentamos percibir lo que la población brasileña pensaba y deseaba en lo que se refiere al ocio, y quiénes eran los brasileños que se preocuparon con tal temática. Se analizaron las 674 sugerencias populares que tuvieron como tema el ocio. Concluimos que el ocio era entendido como derecho y como necesidad básica. Los ciudadanos proponentes del ocio poseían perfil socioeconómico que se alejaba del perfil de la población brasileña.
Palabras clave: Historia; Ocio; Derecho social; Constitución Federal
INTRODUÇÃO
O fato de o lazer, enquanto direito social, estar mal definido na Constituição Federal (CF) de 1988, carecendo de diretrizes e normas que apontem as formas para a sua efetivação, somado à ausência de legislação infraconstitucional que o faça, tem se constituído em empecilho à sua materialização. Apesar de ser tratado pelo Estado Brasileiro desde, pelo menos, o início do século XX, através de leis, campanhas e programas (Santos e Amaral, 2010), não há no Brasil, uma política pública de lazer, em seu sentido strictu1. Os projetos e programas que existem, são ações de governo que, a cada nova gestão são extintas ou, quando possuem alguma continuidade, ganham nova “roupagem”.
Para melhor compreendermos a forma tomada pelo lazer na CF, e o tratamento que ele, enquanto direito social, vem recebendo do Estado e dos governos, é importante compreendermos os modos através dos quais ele se tornou um direito social no Brasil. Essa tarefa já foi iniciada por Flávia Santos (2014), e teve continuidade no trabalho de Ana Carolina Lopes (2017). Trata-se de um processo histórico, que é parte da trajetória política do lazer no Brasil.
A proposta desse estudo é investigar mais uma faceta desse processo. A partir da análise da participação popular na Assembleia Nacional Constituinte (ANC), tentamos perceber o que a população brasileira pensava e desejava no que se refere ao lazer. Nos ateremos a um dos mecanismos de participação popular da ANC: as sugestões populares enviadas através do “Projeto Constituição”, cujo objetivo era subsidiar os debates do processo de construção da nova Constituição (Monclaire et al., 1991). Tendo em vista o lugar ocupado pelo povo nesse processo e no parlamento brasileiro daquele momento, esse projeto se reveste de importância.
A sociedade civil estava invertida na ANC, pois a minoria dominante era a maioria parlamentar, ao passo que a maioria social era a minoria no parlamento. Isso se deu, pois enquanto o Partido Democrático Brasileiro (PMDB) e o Partido da Frente Liberal (PFL), que eram partidos de direita – apesar da falta de coesão presente no interior do PMDB que ora se aliava à direita ora à esquerda –, possuíam juntos quase 80% das cadeiras da ANC, os partidos de esquerda (PDT, PT, PC do B, PSB, PCB)2 não possuíam sequer 10% dessas cadeiras – possuíam 9,8% (Freitas et al., 2009, p. 7).
Além disso, empresários e constituintes se uniram contra a luta dos trabalhadores por melhores condições de trabalho e de vida, principalmente quando a pauta dos trabalhos da ANC era o capítulo “Dos Direitos Sociais” da Constituição, pois tais direitos eram tidos por eles como uma ameaça à iniciativa privada, ao desenvolvimento das empresas e à reprodução do capital (Fernandes, 2006). Houve, portanto, jogos de poder e de interesse na eleição dos constituintes (Chauí, 1987).
Diante da composição partidária da ANC, e dos interesses em torno dela articulados, evidencia-se a relevância da participação política direta dos cidadãos brasileiros no processo de construção da nova Constituição, que seria o marco legal do fim do sistema ditatorial civil militar. Apesar de a democracia brasileira se organizar a partir do sistema de participação indireta, naquele momento a participação política direta da população se revestia de significados outros e de grande valor simbólico. Era o momento de rompimento com o longo período de repressão a qualquer forma de expressão e participação na vida política. Como, porém, a história não é linear, não é feita apenas de avanços, recentemente e ainda hoje, a democracia brasileira tem sido novamente ameaçada, com o avanço da extrema direita e suas práticas antidemocráticas.
Houve três diferentes mecanismos de participação de “entidades representativas de segmentos da sociedade”, nos trabalhos da ANC: o envio de sugestões por “entidades representativas de segmentos da sociedade”, a apresentação de propostas de emenda e a destinação, por cada subcomissão temática, de cinco a oito reuniões para audiências de entidades representativas de segmentos da sociedade (Brasil, 1987).
Além dessas formas de participação na construção da nova Constituição, houve uma outra, que se deu antes mesmo da instalação da ANC: o “Projeto Constituição”. Entre março de 1986 e julho de 1987 foram distribuídos pelo país, proporcionalmente à população de cada município, cinco milhões de formulários nas agências dos correios, nas prefeituras, nas casas legislativas e nos partidos políticos. Desse total de formulários, 72.719 foram recebidos pelo Senado Federal com sugestões (Monclaire et al., 1991), dos quais, após análise, identificamos que 674 formulários tratam do lazer e são objeto desse estudo.
A partir da análise de tais sugestões, nosso objetivo é compreender o que os cidadãos participantes do projeto pensavam e desejavam, no que se refere ao lazer. Quais as suas necessidades quanto a esse tema? Quem eram os brasileiros que se preocuparam com tal temática? Do ponto de vista do perfil, os autores das sugestões são representativos da população brasileira daquele momento histórico? Essas, são algumas das questões às quais nos dedicaremos a seguir.
PERCURSO METODOLÓGICO
Foram objeto de estudo desta pesquisa, os formulários “Faça, você também, a nova Constituição”, que se encontram disponíveis no banco de dados do Sistema de Apoio Informático à Constituinte (SAIC). Os formulários passaram por uma primeira análise, tendo sido selecionados somente aqueles que abordavam o tema lazer, e que mobilizavam essa palavra. Deste modo, de um total de 72.719 formulários, foram encontrados 674 contendo sugestões que versavam sobre a temática do lazer. Esses documentos constituem a base empírica deste estudo.
Todo o conteúdo dos formulários selecionados foi transcrito e analisado, tendo como suporte os programas ACCESS® e EXCEL®. O conteúdo das sugestões foi analisado a partir da categoria proposta central, e obteve com resultado quatro outras categorias que foram separadamente analisadas: reivindicações por lazer, por equipamentos de lazer, por salário capaz de atender as necessidades de lazer e por lazer como um direito.
Posteriormente, foi realizada a análise de dados socioeconômicos informados no formulário pelo próprio proponente: sexo, zoneamento residencial3, grau de instrução, estado civil, faixa etária, faixa de renda e atividade profissional. Desse modo, foi possível obter o perfil socioeconômico dos participantes.
PERFIL SOCIOECONÔMICO DOS CIDADÃOS PROPONENTES DO LAZER
Quem foram os cidadãos proponentes das sugestões que têm como tema o lazer, é elemento relevante para compreendermos o teor das mesmas. O primeiro elemento analisado é o sexo dos proponentes. O preenchimento deste item contou com duas opções de resposta, feminino ou masculino, além da possibilidade de não responder. Houve preponderância de participação masculina (57,6%) em relação à participação feminina (37,8%), enquanto 4,6% dos proponentes não forneceram tal informação. Segundo pesquisa (IBGE, 1988), a maioria da população brasileira era comporta por mulheres (51,18%). Deste modo, os homens estão super-representados entre os proponentes do lazer, em relação à população brasileira.
Houve uma distribuição equilibrada dos proponentes, entre os intervalos de idade (Gráfico 1). Nenhuma das opções extrapolou o percentual de 20% do total. No entanto, a maioria deles pode ser classificada como jovem, pois a soma das sugestões enviadas por pessoas entre 15 e 19 anos, 20 e 24 anos e 25 e 29 anos corresponde a 44,6% do total. Quando comparamos esses dados, com os dados da população brasileira, evidencia-se uma sub-representação da população jovem, que no Brasil correspondia a 52% da população (IBGE, 1988; Monclaire et al., 1991).
O grau de instrução é o próximo aspecto apresentado. Antes de expor os resultados, no entanto, faz-se necessária uma explicação quanto à terminologia presente nos documentos analisados. Os 1º, 2º e 3º graus, que aparecem nos documentos equivalem, respectivamente, aos atuais Ensino Fundamental, Ensino Médio e Ensino Superior. Adotaremos a nomenclatura atual na análise, para facilitar a compreensão.
Aproximadamente um terço dos autores das propostas sobre o lazer (34%), possuíam o Ensino Fundamental completo ou incompleto. Enquanto o percentual da população brasileira com 10 anos ou mais de idade, que possuía primeiro grau completo ou incompleto somados, correspondia a 63,7%4 (IBGE, 1988). Deste modo, a população com esse grau de instrução estava sub-representada entre os proponentes do lazer.
Também chama a atenção as 223 sugestões (33,1%) remetidas por proponentes com Ensino Médio completo ou incompleto. Enquanto na população brasileira de 10 anos ou mais de idade, esse nível de ensino completo e incompleto somados correspondiam a apenas 11,5%, o que demonstra uma discrepância em relação à população proponente do lazer, na qual esse nível de ensino era aproximadamente três vezes maior.
Por outro lado, 158 sugestões (23,5%) foram encaminhadas por pessoas com Ensino Superior completo ou incompleto. Nos níveis de escolaridade limite, analfabetos e pós-graduados, a distribuição percentual das sugestões contou com valores bem inferiores, quando comparados aos demais níveis de escolaridade. Apenas 3 sugestões (0,4%) foram encaminhas por pessoas que se declararam analfabetas, enquanto 12 sugestões (1,8%) foram remetidas por pessoas com pós-graduação. Os autores de 49 sugestões (7,3%) não informaram o grau de escolaridade.
O Anuário Estatístico do Brasil 1987/1988 (IBGE, 1988), não nos permite conhecer os dados para ensino superior e pós-graduação separadamente, assim como também não nos informa do número de analfabetos presentes na população brasileira. No entanto, somadas as populações que possuem ensino superior e pós-graduação completos e incompletos equivalem a 5,4% da população brasileira, enquanto entre os proponentes do lazer as pessoas com esses níveis de ensino correspondem a 25,3%. Assim, o percentual das pessoas com maior nível de ensino é 4,6 vezes maior entre os cidadãos proponentes do lazer, do que na população brasileira.
No que se refere à zona de residência, houve um notável predomínio de sugestões oriundas de pessoas residentes na zona urbana (554), perfazendo um percentual de 82,2% da totalidade. Por outro lado, 56 sugestões foram enviadas por pessoas residentes na zona rural, o que representa 8,3% do número de sugestões. Apesar de a maior parte da população brasileira (74,2%) viver na zona urbana (IBGE, 1988), tal população estava super-representada entre os proponentes do lazer, ao passo que a população residente na zona rural estava sub-representada, pois o percentual dessa população no Brasil correspondia a 25,8%5 (IBGE, 1988).
Não é possível sabermos se os estados civis dos proponentes e da população brasileira coincidem ou não, pois não temos dados que nos permitam realizar essa comparação. No entanto, consideramos relevante saber que a maior parte daqueles que reivindicaram o lazer não possuíam relação conjugal formal (57% do total, equivalente a 384 pessoas). O que pode ser um indício de que tais pessoas eram as que mais se preocupavam com essa dimensão da vida.
Quanto à renda, as pessoas sem rendimentos e com as menores faixas de rendimentos estavam sub-representadas entre os proponentes do lazer, quando comparadas à população brasileira. O contrário se verifica em todas as faixas mais altas de rendimentos, conforme Tabela 1:
Deste modo, temos o perfil socioeconômico dos cidadãos proponentes do lazer através do “Projeto Constituição”: maioria masculina, solteira, residente na zona urbana, com idade, grau de instrução e rendimentos mais altos do que os da população do país. Perfil esse que se afasta do perfil da população brasileira, o que não é uma especificidade dos proponentes do lazer, mas sim o perfil de toda a população participante do projeto, conforme estudo de Monclaire et al. (1991).
O LAZER NO “PROJETO CONSTITUIÇÃO”
A fim de avaliar a presença do lazer nas sugestões populares, elas foram analisadas a partir do parâmetro proposta central, que sintetiza a sugestão e nos permite conhecer a principal demanda do proponente, conforme Gráfico 1.
As sugestões concentraram-se em três categorias de proposta central: reivindicações por lazer, por equipamentos de lazer e por salário capaz de atender as necessidades de lazer. Somadas, elas perfazem 509 sugestões, o que equivale a mais de dois terços (75,5%) do total de propostas. As reivindicações por lazer como um direito, também estiveram presentes em um número significativo de formulários (59), equivalentes a 8,7% do total. Tendo em vista essa concentração das sugestões em quatro propostas centrais, analisaremos cada uma delas, de forma mais detalhada.
As sugestões que tiveram como proposta central a reivindicação por lazer, o fizeram de modo genérico ou se referiram a algum público ou espaço específico. As reivindicações genéricas foram majoritárias (24,5%), conforme Gráfico 3:
Vejamos dois exemplos de reivindicações genéricas. Um morador da zona urbana de Aracruz/ES, reivindicou: “Criar comissões com moradores de centros mais afastados para ajudar na manutenção e progresso do lugar em que residem, criando novas opções de lazer, trabalho e ajuda mútua.” (Form. 383)6. Reivindicar a criação de “novas opções de lazer”, sem indicar que opções seriam essas ou especificar a que lazer se refere, dificulta a compreensão da demanda. Ao mesmo tempo, ao demandar a criação de comissões de moradores que trabalhariam em tal tarefa, “para ajudar na manutenção e progresso do lugar”, revela uma compreensão da especificidade local dos gostos e preferências de lazer, e de sua potencialidade em contribuir para o progresso.
Um morador da zona urbana de Santa Maria/RS, reivindicou: “O governo deve ser obrigado a proporcionar: emprego, saúde, educação, lazer, transporte e outras necessidades básicas do cidadão.” (Form. 153). A obrigatoriedade da ação governamental na garantia do lazer, demandada pelo autor da sugestão, corrobora sua compreensão de que o lazer é uma necessidade básica do cidadão. Além disso, é da natureza dos direitos sociais ser uma necessidade básica e, portanto, um elemento necessário à garantia de uma vida digna (Marshall, 1967; Carvalho, 2007). Apesar de não ter mobilizado a expressão direito ou direito social, o teor da reivindicação indica que era assim que seu autor compreendia o lazer.
Embora tenham sido classificadas como reivindicações genéricas por lazer, tais sugestões são significativas e reveladoras das compreensões de tal fenômeno, em voga na sociedade brasileira da década de 1980. Não se tratam de exceções ou de casualidades, mas de compreensões recorrentes, como veremos ao longo desse artigo.
As reivindicações por lazer na escola, estão presentes em 41 sugestões, elas ocupam a segunda colocação em número de indicações. Tais sugestões variaram entre as simples indicações da presença do lazer na escola, e a realização da associação entre lazer e formação:
“Faz-se necessário uma escola onde o aluno realmente possa desenvolver suas potencialidades. Mais horas de estudo, esporte, alimentação, lazer, preparação para o trabalho, cuidados de higiene e saúde.” (Form. 123). O que vai de encontro ao proposto por diversos autores, que compreendem o lazer como parte de uma formação cultural ampla que deve se dar na escola (Bracht, 2003; Pinto, 2008).
Os cidadãos proponentes das sugestões, se preocuparam com alguns públicos específicos, como demonstra o Gráfico 2. Destacam-se as preocupações com o “menor carente” e com a “população de baixa renda”, que juntas perfazem o total de 34 sugestões e correspondem a 14,6% do total das reivindicações por lazer. Tendo em vista o contexto brasileiro no momento do envio das sugestões, é possível melhor compreendê-las.
Nos primeiros anos da década de 1970, a violência do governo do general Garrastazu Médici foi combinada a altos índices de crescimento econômico, foi o denominado “milagre econômico”. No entanto, esse crescimento beneficiou de maneira desigual a população, fazendo com que as desigualdades sociais e a pobreza aumentassem. Em 1982 a inflação rompeu a marca simbólica dos 100% ao ano, e mais que dobrou nos anos 1983-85, ultrapassando 1000% ao ano em 1988 (Munhoz, 1997, p. 64). Os índices de pobreza no período também eram altos, superando 50% da população em 1983 (51,1%).
No ano da instalação da ANC esse percentual vai a 40,8%, e no ano da promulgação da CF, 45,3% da população brasileira eram pobres (Barros et al., 2000). Deste modo, as reivindicações por lazer para o “menor carente’ e para a “população de baixa renda” estavam profundamente articuladas ao contexto no qual foram produzidas, expressavam uma das necessidades de grande parcela da população brasileira aos olhos daqueles que reivindicaram.
Tais reivindicações, assim como todas aquelas que focalizaram um público específico, indicam a compreensão de que tal público deveria ter prioridade nas ações do Estado, garantidoras do lazer. A criança, focalizada em 14 sugestões, encontrou lugar na Constituição Federal, que garantiu a elas e também aos adolescentes e jovens, com absoluta prioridade, o direito ao lazer (Brasil, 1988, artigo 227).
Tendo em vista uma certa compreensão, amplamente difundida, de que o lazer é um fenômeno urbano, chama a atenção as reivindicações por lazer para a zona rural. Elas demonstram que o lazer era tido como uma necessidade e um bem garantidor de uma vida digna, independentemente da zona de moradia das pessoas. “A minha sugestão é que na zona rural deveria ter colégios, centro médico e odontológico e área de lazer, onde os agricultores rurais, pudessem viver sem ter que vir para cidade. Porque viver na zona rural sem essas coisas importantes na vida de qualquer pessoa, não dá certo.” (Form. 393), escreveu uma moradora da zona urbana de Campos/RJ.
A pergunta colocada por um morador da zona urbana de Dom Macedo Costa/BA, é um exemplo da compreensão dominante, presente em tais sugestões, de que o morador do campo não vinha tendo direito ao lazer: “O homem do campo vai continuar nesta situação de só trabalhar e sem lazer?” (Form. 215).
Retomando o parâmetro de análise “proposta central”, focalizaremos agora as reivindicações por equipamentos de lazer, que ocupam a segunda colocação em número de sugestões (188), conforme o Gráfico 1. Cada uma delas, no entanto, por vezes reivindicou mais de um ou até mesmo vários equipamentos de lazer, como é o caso das sugestões abaixo:
O acesso à cultura e incentivos para o nosso cinema e teatro, dando acessibilidade para o lazer a todas as camadas da população. (Form. 375).
LAZER: que o governo decrete uma lei para que haja construção de praças públicas, teatros no interior, etc. (Form. 539).
Lazer: Criação e ampliação de praças, parques; O trabalhador tem o direito de um dia por semana para o lazer planejado, acompanhado e avaliado. (Form. 289).
“Área de lazer na escola” e “praça esportiva” foram reivindicadas 21 vezes, cada. Enquanto não houve qualquer especificação, nas sugestões, quanto à área de lazer que deveria haver na escola, se um parque, uma biblioteca ou um jardim, por exemplo, as reivindicações por “praça esportiva”, por vezes foram bem precisas em suas solicitações. Houve a reivindicação por quadras, piscinas, ginásios e campos de futebol. Mas houve também, reivindicações menos específicas por centros esportivos e praças de esporte sem indicar, objetivamente, o que deveria haver nesses equipamentos.
Algumas das sugestões por equipamentos de lazer foram bem específicas, como as que reivindicaram teatro, cinema, biblioteca, parque e praças esportivas, enquanto a maioria das sugestões reivindicou apenas “área de lazer”, de modo genérico. Esse foi o caso de 125 sugestões (57,8% do total), o que pode indicar que a escassez de equipamentos de lazer nos municípios era tamanha, que qualquer conquista seria bem-vinda.
O Gráfico 4 demonstra a distribuição das reivindicações por equipamentos de lazer:
Tendo em vista a força do fenômeno esportivo e sua associação histórica às políticas públicas de lazer, chama a atenção o pequeno número de reivindicações por equipamentos esportivos (21). Essa situação demonstra que a população brasileira pratica esportes como uma vivencia de lazer, não porque esse seja o seu desejo, mas porque essa tem sido a possibilidade disponível, tendo em vista o investimento público que tem sido feito em tal conteúdo cultural ao longo do tempo no Brasil, através da implementação de projetos e programas de governos, que possuem o esporte como conteúdo central.
Tal compreensão é corroborada por recente pesquisa que investigou o que efetivamente a população brasileira faz em seu tempo de lazer, e o que ela gostaria de fazer. Enquanto 64% dos homens e 20,6% das mulheres disseram fazer atividade físico-esportiva em seu tempo livre, apenas 25,4% dos homens e 19,2% das mulheres manifestaram o desejo de fazê-lo (Mayor e Isayama, 2017). Percebemos, deste modo, que as ações governamentais têm, ao longo do tempo, determinado as vivências de lazer das pessoas, sem considerar suas aspirações e necessidades. Surge, então, a questão: a que interesses e necessidades, as políticas públicas de lazer têm atendido no Brasil?
Retomando o parâmetro “proposta central”, as reivindicações por salário capaz de atender as necessidades de lazer, ocupam a terceira colocação em número de sugestões. Elas se referem ao salário mínimo, de maneira específica, ou ao salário do trabalhador de maneira mais geral. Mas todas reivindicam a garantia de um salário que seja “digno” e/ou que seja suficiente para suprir as “necessidades básicas”, dentre as quais o lazer é considerado:
Que o salário dê para as necessidades prioritárias como saúde, alimentação e prestação, vestuário, esporte e lazer. (Form. 902).
O trabalhador deve receber um salário que seja compatível às necessidades básicas: alimentação, saúde, habitação, educação, transporte, lazer e futuro assegurado. (Form. 634).
Salário mínimo que atenda às necessidades reais do trabalhador (alimentação, saúde, escolar, lazer). (Form. 670).
O menor salário ou básico, deverá propiciar a quem recebe condições de vida que atenda: segurança, moradia, alimentação, vestimenta, lazer, educação, saúde, transporte para si e sua família. (Form. 643).
Que na nova constituição seja assegurado ao trabalhador (todos) salários condignos, que lhe proporcionem uma vida com direito à realização das principais aspirações do ser humano: habitação, alimentação e lazer. (Form. 110).
É muito relevante o lazer ter sido considerado de modo explícito nessas sugestões, por cidadãos brasileiros, como uma necessidade básica ou uma condição necessária à garantia de uma vida digna, pois evidencia o lugar de importância por eles conferido a essa dimensão da vida. Entre setores acadêmicos, no entanto, a compreensão de lazer estava em sentido justamente oposto: ele era tido como algo supérfluo e, portanto, não era digno de ser objeto de investigações e estudos (Requixa, 1977; Magnani, 1996; Bruhns, 2002).
Na esteira de tais manifestações, estão as reivindicações por lazer como direito, que constituem a quarta demanda mais recorrente no critério “proposta central”. A indicação, por cidadãos brasileiros, de que o lazer deveria ser definido como direito na nova Constituição, evidencia a compreensão de tais sujeitos de que o lazer não era algo supérfluo ou secundário, mas sim algo fundamental à vida da população brasileira e que, portanto, deveria ser garantido pelo Estado. Esse conjunto de manifestações faz coro às reivindicações por salário capaz de atender as necessidades de lazer, já analisadas, na medida em que elas também explicitaram o lugar de importância que o mesmo ocupava na vida dos brasileiros, autores de tais documentos.
Do conjunto das reivindicações por lazer como direito, treze se referiram a grupos específicos: trabalhador (5 sugestões), família (4 sugestões) e crianças (4 sugestões). As demais sugestões desse conjunto, se preocuparam com a totalidade da população, sem qualquer distinção ou indicativo de prioridades.
CONCLUSÃO
Conhecendo a Constituição promulgada em 1988, sabemos que reivindicações por lazer expressas no “Projeto Constituinte” por cidadãos brasileiros, foram contempladas no texto constitucional. O lazer figura no artigo 6º, como direito social, ao lado de outros bens tidos como fundamentais à garantia de uma vida digna, exatamente como está colocado nas sugestões populares. O lazer também figura no artigo 218, como um dos elementos que o salário mínimo deve ser capaz de atender, como foi reivindicado nas sugestões populares.
O perfil socioeconômico dos cidadãos proponentes de tais sugestões se afasta do perfil predominante na sociedade brasileira daquele momento, não sendo tais cidadãos, representativos da população brasileira daquele momento. O que pode ser explicado, em alguma medida, pelos locais de distribuição dos formulários e pelo modo como essa distribuição se deu. Os trabalhadores dos Correios, empresa pública brasileira, por exemplo, se destacam entre os autores das reivindicações, pois as agências dos Correios foram locais de distribuição do formulário, logo, tais cidadãos tiveram acesso facilitado ao documento. Assim, qual a importância dessas sugestões? Elas nos permitem conhecer, em alguma medida, as necessidades do povo brasileiro daquele momento?
Há algumas possibilidades que não se excluem umas às outras, para pensarmos sobre essas questões. Há nas sociedades, um ideário e os sentimentos de um tempo, que expressam o que se é e o que se deseja ser, eles são partilhados pelo conjunto, senão total, expressivo da população. Esse ideário e esses sentimentos, são informados por valores e percepções de mundo. O Brasil vivia um momento de reconstrução, em que melhores condições de vida eram almejadas para todos, pela população e por parte da classe política. Certamente o lazer compunha esse ideário, partilhado pela sociedade brasileira em alguma medida.
Havia ainda, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada em dezembro de 1948 pela Organização das Nações Unidas (ONU), que tem o lazer como um dos direitos de todo ser humano (ONU, 1948, artigo 24). Tal documento, ainda que não citado pelos trabalhos da ANC, certamente influenciou a construção da Constituição Brasileira de 1988, assim como influenciou o ordenamento jurídico de outros países, pois se constituía em referência transnacional. Aprovado logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, quando se fazia necessária a reconstrução dos direitos humanos como paradigma ético, tal documento indica a existência de direitos e valores comuns a todos os seres humanos, que antecedem até mesmo os Estados Nacionais. No caso do Brasil, especificamente, esse documento se revestia de importância devido ao nosso recente passado de violação dos direitos humanos, durante o período ditatorial.
Deste modo, as reivindicações por lazer que figuram no “Projeto Constituição”, estão estreitamente articuladas ao contexto em que foram produzidas e dizem das necessidades e anseios de brasileiros daquele tempo. O período recente de violação dos direitos humanos, de grande pobreza e desigualdade social e de elevados índices de inflação vividos pela população daquele momento, explica em grande medida as reivindicações por lazer como direito de todos, por equipamentos de lazer, por salário capaz de atender também as necessidades por lazer, e as reivindicações que tem como alvo públicos vulneráveis, como crianças e pobres.
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1
Nos termos colocados por Rua (1997).
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2
Os significados das siglas são, respectivamente: Partido Democrático Trabalhista, Partido dos Trabalhadores, Partido Comunista do Brasil, Partido Socialista Brasileira, Partido Comunista Brasileiro.
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3
A questão 2 do formulário se referiu a “Morador”, e ofereceu duas opções de resposta, “rural” e “urbano”. Optamos por usar a denominação “zoneamento residencial”, em substituição a “Morador”, por compreendermos que tal denominação melhor expressa a ideia da questão.
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4
Excluída a população rural da região norte do país, que não foi investigada pelo IBGE em tal ano.
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5
Excluída a população rural da região norte do país, que não foi investigada pelo IBGE em tal ano.
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7
Dados obtidos a partir do Anuário Estatístico do Brasil (IBGE, 1988).
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6
A identificação das sugestões aqui adotada, é a mesma da base de dados do Senado Federal. Usaremos a sigla “Form.” para indicar formulário.
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FINANCIAMENTO
O presente trabalho não contou com apoio financeiro de nenhuma natureza para sua realização.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
20 Dez 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
18 Abr 2024 -
Aceito
02 Out 2024