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A epistemologia da prática na produção acadêmica stricto sensu sobre formação de professores em Educação Física

The epistemology of practice in stricto sensu academic production on teacher training in Physical Education

La epistemología de la práctica en la producción académica estricto sensu sobre la formación docente en Educación Física

RESUMO

Esta pesquisa teve como objetivo compreender como as teorias que sustentam a chamada epistemologia da prática se fazem presentes no debate acadêmico sobre a formação de professores de Educação Física. Trata-se de uma pesquisa do tipo bibliográfica, que buscou investigar as produções acadêmicas stricto sensu, selecionadas no Catálogo de Teses e Dissertações da Capes, produzidas nos últimos dez anos e que versam sobre formação de professores de Educação Física. Apesar de identificarmos produções onde o caráter ideológico de tais teorias é questionado, a análise nos permitiu compreender que as teorias que sustentam a epistemologia da prática se fazem presentes na maior parte das produções acadêmicas, reforçando a finalidade pragmática sobre o trabalho docente.

Palavras-chave:
Epistemologia da prática; Professor; Formação acadêmica; Educação Física

ABSTRACT

This research aimed to understand how the theories that support the so-called epistemology of practice are present in the academic debate on the training of Physical Education teachers. This is a bibliographical research, which sought to investigate stricto sensu academic productions, selected in the Catalog of theses and dissertations of Capes, produced in the last ten years and that deal with the training of Physical Education teachers. Despite identifying productions where the ideological character of such theories is questioned, the analysis allowed us to understand that the theories that support the epistemology of practice are present in most academic productions, reinforcing the pragmatic purpose of teaching work.

Keywords:
Epistemology of practice; Teacher; Academic education; Physical Education

RESUMEN

Esta investigación tuvo como objetivo comprender cómo las teorías que sustentan la llamada epistemología de la práctica están presentes en el debate académico sobre la formación de profesores de Educación Física. Se trata de una investigación bibliográfica, que buscó investigar producciones académicas estricto sensu, seleccionadas en el Catálogo de tesis y disertaciones de la Capes, producidas en los últimos diez años y que versan sobre la formación de profesores de Educación Física. A pesar de identificar producciones donde se cuestiona el carácter ideológico de tales teorías, el análisis permitió comprender que las teorías que sustentan la epistemología de la práctica están presentes en la mayoría de las producciones académicas, reforzando el propósito pragmático del trabajo docente.

Palabras-clave:
Epistemología de la práctica; Maestro; Formación académica; Educación Física

INTRODUÇÃO

As transformações do modo de produção capitalista foram determinantes para que, nas últimas décadas, passasse a ser exigida a aquisição de novos conhecimentos, como forma de investimento profissional, sem o qual torna-se inviável a qualificação almejada pelo mercado, de caráter neoliberal1 1 Conforme explicado por Dourado (2002), o neoliberalismo refere-se a uma concepção ideológica hegemônica da contemporaneidade que introduz novas proposições práticas para gerir a sociedade, o mercado e a economia. E, no que se refere à educação, o neoliberalismo avança para consolidar uma formação frágil teoricamente e aligeirada; com projeções para intensificação e precarização do trabalho docente, com restrição da autonomia do professor para planejar e organizar suas atividades pedagógicas (Oliveira, 2010). , que assumiu como foco formar um trabalhador de “novo tipo” (Kumar, 1997Kumar, K. Da sociedade pós-industrial à pós-moderna: novas teorias sobre o mundo contemporâneo. Tradução R. Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor; 1997.), com perfil empreendedor e instrumentalizado, capacitado pelo acúmulo saberes e habilidade (Antunes, 2014Antunes R. Da pragmática da especialização fragmentada à pragmática da liofilização flexibilizada: as formas da educação no modo de produção capitalista. Germinal Marxismo Educ Deb. 2014;1(1):25-33. http://dx.doi.org/10.9771/gmed.v1i1.9834.
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).

As reformas econômicas e políticas que passaram a ser desenvolvidas, portanto, direcionaram esforços para readequação da educação, com vistas a promover a adequação do país às orientações neoliberais apresentadas por meio de documentos oficiais dos organismos internacionais como o Banco Mundial e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Justamente para contribuir com a difusão de uma nova “pedagogia da hegemonia” (Neves, 2013, pNeves LMW. O professor como intelectual estratégico na disseminação da nova pedagogia da hegemonia. In: 36ª Reunião Anual da ANPEd; 2013; Goiânia. Anais. Rio de Janeiro: ANPEd; 2013.. 2), sustentadas em concepções de educação e de professor neotecnista e neoescolanovista2 2 O neotecnisismo e neoescolanovismo, segundo Saviani (2010), representam a recolocações “[...] das concepções escolanovista e tecnicista, com o acréscimo do prefixo ‘neo’, portanto, neoescolanovista e neotecnicista” (Anes, 2017, p. 44). (Saviani, 2010Saviani D. História das ideias pedagógicas no Brasil. 3ª ed. rev. São Paulo: Autores Associados; 2010.), cuja prática pedagógica é orientada pela epistemologia da prática.

A epistemologia da prática refere-se ao movimento teórico cuja base epistemológica é o positivismo e que, na área das ciências da educação, impôs a racionalidade técnica, promovendo “[...] forte impacto na formação, quer seja no plano de suas expressões teóricas [...], ou na forma como estrutura [...] e domina [...] os processos formativos” (Magalhães, 2014, pMagalhães SMO. Profissionalização docente no contexto da universidade pública: condução do professor à expertise. In: Souza RCCR, Magalhães SMO, editores. Poiésis e Práxis II: formação, profissionalização, práticas pedagógicas. Goiânia: Kelps; 2014.. 113-114).

Conforme exposto por Magalhães e Souza (2018)Magalhães SMO, Souza RCCR. Análise epistemológica do método. In: Magalhães SMO, Souza RCCR, editores. Epistemologia da práxis e epistemologia da prática: repercussões na produção de conhecimentos sobre professores. 1ª ed. Campinas: Mercado de Letras; 2018., no contexto histórico educacional brasileiro a epistemologia da prática é representada por ideias pedagógicas tradicionais, pragmáticas e conservadoras destinadas a atender, especialmente, aos processos de reestruturação do capitalismo, programadas para agirem como mecanismos ideológicos na propagação de valores correspondentes aos interesses da burguesia. Reduz a formação de professores a lógica do “aprender a aprender” (Duarte, 2004Duarte N. Vigotski e o “aprender a aprender”: crítica às apropriações neoliberais e pósmodernas da teoria vigotskiana. 3ª ed. Campinas: Autores Associados; 2004.), contribuindo para promover a valorização de conhecimentos práticos, revestidos de sentido utilitário, em detrimento da teoria, valorizando um posicionamento epistemológico voltado à acentuação das diferenças e das desigualdades sociais, justamente para garantir os interesses que beneficiam a supremacia burguesa.

Apoiados em Rodrigues e Kuenzer (2007)Rodrigues MF, Kuenzer AZ. As diretrizes curriculares para o curso de pedagogia: uma expressão da epistemologia da prática. Olhar de Professor. 2007;10:35-62. destacamos, inclusive, que os estudos e conhecimentos científicos que decorrem da epistemologia da prática se limitam a defender uma concepção de educação capaz de possibilitar aos professores uma compreensão limitada da realidade. Por essa razão, segundo as autoras citadas, valorizam os conhecimentos de caráter utilitário, com a perspectiva de sustentar o pragmatismo, colaborando com empobrecimento da consciência crítica e afetando a condição humana do próprio professor.

Entendemos que a valorização da epistemologia da prática visa representar os interesses do mercado neoliberal (Magalhães, 2014Magalhães SMO. Profissionalização docente no contexto da universidade pública: condução do professor à expertise. In: Souza RCCR, Magalhães SMO, editores. Poiésis e Práxis II: formação, profissionalização, práticas pedagógicas. Goiânia: Kelps; 2014.), impõe a racionalidade técnica, uma concepção produtivista de sociedade e um modo cada vez mais individualista de ser e estar no mundo (Antunes, 2005Antunes R. Apresentação. A crise da sociedade do trabalho: fim da centralidade ou desconstrução do trabalho? In: Antunes R, editor. O caracol e sua concha: ensaios sobre a nova morfologia do trabalho. São Paulo: Boitempo; 2005.; Alves, 2011Alves G. Trabalho e subjetividade: o espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório. São Paulo: Boitempo; 2011.). Isso explica o fato de que “[...] a formação na/para a prática referenciada pela epistemologia da prática tem sido a perspectiva dominante nas novas políticas de formação, ecoando, evidentemente, nas reformas curriculares” (Silva, 2018Silva KACPC. Epistemologia da práxis na formação de professores: perspectiva crítico-emancipadora. Campinas: Mercado de Letras; 2018.).

Os ideais da epistemologia da prática se fortalecem e ganham difusão no Brasil a partir do final do século passado, com os estudos estrangeiros vindos de países como Estados Unidos, Inglaterra e Espanha a partir do início da década de 1990, de autores como Schön (2000)Schön D. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas; 2000., Perrenoud (1993)Perrenoud P. Práticas pedagógicas, profissão docente e formação: perspectivas sociológicas. Lisboa: Dom Quixote; 1993., Zeichner (1993)Zeichner K. A formação reflexiva de professores: ideias e práticas. Lisboa: Educa; 1993. e Tardif (2002)Tardif M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes; 2002.. Destacamos que tais autores expressam em suas teorias singularidades e especificidades3 3 Ver Anes (2017) e Silva (2008). , entretanto, com apoio em Duarte (2004)Duarte N. Vigotski e o “aprender a aprender”: crítica às apropriações neoliberais e pósmodernas da teoria vigotskiana. 3ª ed. Campinas: Autores Associados; 2004. e Guimarães (2004)Guimarães VS. Formação de professores: saberes, identidade e profissão. Campinas: Papirus; 2004., entendemos que, em comum, compõem um movimento teórico que os associam às finalidades neoprodutivistas para a formação de professores. Não por acaso, ainda hoje, são referenciados em diversas áreas do conhecimento, contribuindo para reforçar a ideia de que a formação do professor ocorre essencialmente pela aquisição da experiência prática.

No caso da Educação Física, a entrada das teorias representantes da epistemologia da prática converge com o contexto em que se amplia o debate sobre a formação em Licenciatura e Bacharelado, que compreende o final da década de 1980 e também a década de 1990. Debate esse que foi muito marcado pelo avanço da pressão para a área tecer maiores diálogos com os interesses de mercado.

As discussões epistemológicas corroboraram para o desenvolvimento de produções teóricas “[...] sobre a formação em Educação Física [, envolvendo] outros enfoques para além da polêmica entre Licenciatura e Bacharelado” (Furtado, 2020, pFurtado RP. Novas diretrizes e antigos debates: uma análise das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Graduação em Educação Física. Resolução CNE/ CES 06/2018. In: Soares MG, Athayde P, Lara L, editores. Formação profissional e mundo do trabalho. Natal: EDUFRN; 2020.. 117). Produções como de Rangel-Betti e Betti (1996)Rangel-Betti IC, Betti M. Novas perspectivas na formação profissional em Educação Física. Motriz. 1996;2(1):10-5. e Darido (1995)Darido SC. Teoria, prática e reflexão na formação profissional em educação física. Motriz. 1995;1(2):124-8., ao criticarem os modelos de currículo para a formação que são excessivamente técnicos e biologicistas, ou os currículos excessivamente teóricos e humanistas em que a prática é reduzida ao momento de aplicação de teoria, acabaram defendendo uma perspectiva para a formação e o currículo em Educação Física que “guarda semelhanças com a concepção conhecida como epistemologia da prática” (Furtado, 2020, pFurtado RP. Novas diretrizes e antigos debates: uma análise das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Graduação em Educação Física. Resolução CNE/ CES 06/2018. In: Soares MG, Athayde P, Lara L, editores. Formação profissional e mundo do trabalho. Natal: EDUFRN; 2020.. 118).

Outro exemplo da repercussão dos teóricos da epistemologia da prática na Educação Física foi a obra de Borges (2001)Borges CMF. O professor de educação física e a construção do saber. São Paulo: Papirus; 2001., intitulada “O professor de Educação Física e a construção do saber”. Esta, passou a ser buscada nos contextos de formação profissional, por defender a ideia de que a prática construída no próprio contexto de trabalho é a produtora dos saberes docentes. As análises produzidas por Borges (2001)Borges CMF. O professor de educação física e a construção do saber. São Paulo: Papirus; 2001. reforçaram a compreensão de que formação do professor deveria passar a recorrer aos saberes da experiência, para capacitar o professor a lidar de modo eficaz com os desafios cotidianos (Alves, 2006Alves WF. Sobre a formação profissional dos professores de educação física e as teorias do saber docente. Pensar Prát. 2006;9(2):313-30.).

Reconhecer, portanto, como a epistemologia da prática ainda vem sendo difundida no debate sobre a formação em Educação Física se faz necessário, entendendo que contribui para compreendermos os posicionamentos assumidos acerca da formação de professores de Educação Física. O que nos conduz a expor nossa investigação, sobre um conjunto de produções acadêmicas, com o objetivo de compreendermos como as teorias da epistemologia da prática, especialmente as produzidas por Schön (2000)Schön D. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas; 2000., Perrenoud (1993)Perrenoud P. Práticas pedagógicas, profissão docente e formação: perspectivas sociológicas. Lisboa: Dom Quixote; 1993., Zeichner (1993)Zeichner K. A formação reflexiva de professores: ideias e práticas. Lisboa: Educa; 1993. e Tardif (2002)Tardif M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes; 2002., se fazem presentes e influentes na formação de professores, com o recorte na área da Educação Física.

METODOLOGIA

Para atender ao objetivo estabelecido para esta pesquisa nos sustentamos numa concepção histórico-dialética de Educação e Educação Física, e tratamos de considerar as orientações da pesquisa tipo bibliográfica, visto que propomos o estudo sobre produções já publicadas no meio acadêmico (Gil, 2002Gil AC. Como elaborar projetas de pesquisa. 4ª ed. São Paulo: Atlas; 2002.). E, para seu desenvolvimento, nos orientamos em Lima e Mioto (2007)Lima TCS, Mioto RCT. Procedimentos metodológicos na construção do conhecimento científico: a pesquisa bibliográfica. Rev Katálysis. 2007;10(spe):37-45. http://dx.doi.org/10.1590/S1414-49802007000300004.
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, que definem que a pesquisa bibliográfica nos possibilita sínteses acerca do que tais produções revelam.

Definimos por investigar apenas as produções desenvolvidas em nível stricto sensu (teses e dissertações), que foram publicadas nos últimos dez anos (entre os anos de 2014 a 2023). Cuja seleção ocorreu seguindo a etapa leitura de reconhecimento do material bibliográfico, conforme proposto por Lima e Mioto (2007)Lima TCS, Mioto RCT. Procedimentos metodológicos na construção do conhecimento científico: a pesquisa bibliográfica. Rev Katálysis. 2007;10(spe):37-45. http://dx.doi.org/10.1590/S1414-49802007000300004.
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.

Elegemos como campo de busca o Banco de Teses e Dissertações da Capes, estabelecendo como critérios de seleção: produções vinculadas à grande área de conhecimento Ciências da Saúde; produções vinculadas à área de conhecimento Educação Física; produções vinculadas à área de avaliação Educação Física, na CAPES; produções elaboradas em Programas de Pós-Graduação Stricto Sensu cujo nome seja, exclusivamente, Educação Física.

Tratamos de fazer a busca por meio de termos que acreditamos nos possibilitar o alcance de teses e dissertação que dialogam com teorias que tratam da formação docente. Os termos foram aplicados de forma associada, mas com uso de aspas e separados pelo operador booleanoAND”. Para cada busca um par de termos foi estabelecido, buscando aplicar os critérios de seleção acima descritos. Ao término de aplicação dos critérios para cada par de termos, buscamos ler os títulos, selecionando para nossa amostra apenas aquelas que os dois termos aparecem.

O primeiro par de termos aplicado foi “formação” AND “professor”, que nos permitiu alcançar o total de 32 produções, e destas selecionar apenas 3 por identificarmos a presença dos dois termos no título; o segundo par foi “formação” AND “profissional”, que permitiu alcançar o total de 175 produções, e destas selecionar apenas 5 por identificarmos a presença dos dois termos no título; e o terceiro filtro foi “formação” AND “docente”, que nos permitiu alcançar 110 produções, e destas selecionar apenas 13 por identificarmos a presença dos dois termos no título. No total, as três buscas realizadas com os termos mencionados nos permitiram selecionar 21 produções, que passam a representar nossa amostra, sendo 17 dissertações – identificadas com a letra D, sendo D1 a D17 – e 4 teses – identificadas com a letra T, sendo T1 a T4.

Na sequência, passamos para as etapas de leitura exploratória e seletiva, conforme estabelecido pela pesquisa tipo bibliográfica, que nos exigiu, além da identificação geral (identificação do vínculo institucional, regional e ano de publicação), também a compreensão dos temas estudados, por meio da leitura dos títulos, resumos, palavras-chaves, sumário e introdução, justamente para confirmar se tratam de produções que atendem aos critérios estabelecidos e debatem sobre a formação de professores de Educação Física. Sobre os dados relacionados a identificação geral, coletamos as informações apresentadas no Quadro 1.

Quadro 1
Identificação do vínculo institucional, regional e ano de publicação.

Já na etapa de leitura reflexiva ou crítica, nos voltamos a organizar os dados presentes nas produções, especialmente no que se refere a presença de autores vinculados à epistemologia da prática. Por isso, foi necessário “ordenar e sumarizar as informações [...] contidas” (Lima e Mioto, 2007, pLima TCS, Mioto RCT. Procedimentos metodológicos na construção do conhecimento científico: a pesquisa bibliográfica. Rev Katálysis. 2007;10(spe):37-45. http://dx.doi.org/10.1590/S1414-49802007000300004.
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. 41) nas produções para a compreensão geral, exigindo a leitura integral e elaboração de uma planilha para identificar quantitativamente a presença dos autores representantes da epistemologia da prática e a quantidade de vezes que são citados.

Seguindo finalmente para a etapa de leitura interpretativa, tratamos de exercer uma análise crítica acerca do modo como as produções se posicionam sobre as ideias relacionadas à epistemologia da prática, buscando destacar os conceitos em que se sustentam.

A EPISTEMOLOGIA DA PRÁTICA NAS PRODUÇÕES ACADÊMICAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA

Dentre as 21 produções analisadas, em 5 não identificamos a presença de nenhum dos autores mencionados: D5, D11, D15, D17 e T1. Já nas outras 16, a presença dos autores ocorreu de modo diversificado. Em apenas 3 produções (D2, D3 e T2) foi possível notar a presença dos quatro autores; em 5 produções (D1, D4, D6, D14 e T3) pelo menos dois autores foram citados; e nas 8 demais (D7, D8, D9, D10, D12, D13, D16 e T4), pelo menos um dos autores foi citado.

Entre os autores, Tardif (2002)Tardif M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes; 2002. é o que aparece em um maior quantitativo de produções, no total de 10. Em sequência, Perrenoud (1993)Perrenoud P. Práticas pedagógicas, profissão docente e formação: perspectivas sociológicas. Lisboa: Dom Quixote; 1993. é notado em 9. Schön (2000)Schön D. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas; 2000. aparece em 7 produções, e, por fim, Zeichner (1993)Zeichner K. A formação reflexiva de professores: ideias e práticas. Lisboa: Educa; 1993., aparece em apenas 4 produções. O Quadro 2 contribui para melhor compreender a presença dos autores, por meio de citações diretas e/ou indiretas, onde são mencionados para fundamentar os estudos relacionados à formação de professores de Educação Física.

Quadro 2
Presença dos autores da epistemologia da prática nas produções.

A leitura crítica nos possibilitou ainda, pela análise sobre o modo como os autores são citados, reconhecer o posicionamento das produções acerca da epistemologica da prática como base orientadora para a formação de professores. Processo que nos fez identificar que em 12 produções os discursos dos autores representantes da epistemologia da prática estão presentes como suporte teórico para construir posicionamentos ou argumentações acerca do objeto que foi investigado. E, em 4 produções, especificamente as identificadas como D2, D8, D9 e D10, a existência de um posicionamento de crítica e oposição à epistemologia da prática.

Tratando inicialmente destas 4 produções mencionadas acima, destacamos que, na produção identificada como D2, a crítica se justifica pela densa denuncia que desenvolve para ressaltar como as teorias que sustentam a epistemologia da prática estão comprometidas com uma perspectiva neoliberal e economicista que fragiliza o professor, o distancia de sua condição humana e promove uma prática educativa distante de fundamentos intelectuais e princípios relacionados à formação humana. Ao fazer isso, inicialmente apresenta a origem do conceito de epistemologia da prática, como também os autores representantes e suas teorias; explica que o desenvolvimento dos discursos que promovem ocorre com a finalidade de superar a racionalidade técnica e o modelo tradicional de educação que atribui ao professor a função de aplicador de teorias; para, em sequencia, expor suas contradições.

A referida dissertação expõe a compreensão de que Schön (2000)Schön D. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas; 2000., Perrenoud (1993)Perrenoud P. Práticas pedagógicas, profissão docente e formação: perspectivas sociológicas. Lisboa: Dom Quixote; 1993., Zeichner (1993)Zeichner K. A formação reflexiva de professores: ideias e práticas. Lisboa: Educa; 1993. e Tardif (2002)Tardif M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes; 2002. produziram teorias que se vinculam ao ideário neoliberal, influenciaram as produções teóricas de diferentes autores nacionais (Geraldi et al., 1998Geraldi CMG, Fiorentini D, Pereira EMAP, editores. Cartografia do trabalho docente. Campinas: Mercado das Letras; 1998.; Pimenta, 2002Pimenta SG. Professor Reflexivo: construindo uma crítica. In: Pimenta SG, Ghedin E, editores. Professor reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito. São Paulo: Cortez; 2002. p. 17-52.; André et al, 2010André MEDA, Passos LF, Hobold MS, Ambrosetti NB, Almeida PCA. Os saberes e o trabalho do professor formador num contexto de mudanças. In: 33ª Reunião Anual da ANPEd. Educação no Brasil: o balanço de uma DÉCADA; 2010; Caxambu, MG. Anais. Rio de Janeiro: ANPEd; 2010.), e que, em comum, entendem que o professor deve ser investigador da sua própria prática. Portanto, diante de uma realidade complexa, incerta e irregular, deve aprender a “[...] improvisar, inventar e testar estratégias na situação de trabalho” (D2, p. 23).

As produções D8 e D9, além de apresentarem proximidade temática sobre formação de professores, tem em comum o fato de mencionarem apenas Perrenoud (1993)Perrenoud P. Práticas pedagógicas, profissão docente e formação: perspectivas sociológicas. Lisboa: Dom Quixote; 1993. como um dos autores representantes da epistemologia da prática elencado nesse trabalho, e esclarecerem a relação que este autor apresenta com uma base teórica e epistemológica compreendida por essas produções como estruturalista. Para justificar tal posicionamento, apresentam em seus textos fragmentos em que citam Perrenoud (1993)Perrenoud P. Práticas pedagógicas, profissão docente e formação: perspectivas sociológicas. Lisboa: Dom Quixote; 1993., para expor reflexões que revelam o modo como entendem a perspectiva desenvolvida pelo autor com relação ao conceito de avaliação.

[Na matriz teórica de Perrenoud (1993)Perrenoud P. Práticas pedagógicas, profissão docente e formação: perspectivas sociológicas. Lisboa: Dom Quixote; 1993.] Avalia-se para promover a aprendizagem por meio da regulação, ajudando o aluno a aprender e o professor a ensinar [...]. Permite captar os avanços e as dificuldades que se manifestam durante o processo pedagógico, possibilitando novas decisões e, se for o caso, até mesmo mudanças de estratégias de ensino. (D8, p. 33).

Perrenoud [...], em sua obra, [defende] a complexidade do problema da avaliação e de seus antagonismos, mostrando como está relacionada a um sistema de ação mais amplo. Nesse caso, não basta mudar as práticas avaliativas em um movimento que garanta a sua formatividade; é preciso mudar a própria lógica escolar que se pauta pela hierarquização e seleção dos sujeitos. (D9, p. 31).

Já a produção D10, ao produzir uma densa análise sobre narrativas docentes e, a partir dessas, a elaboração de reflexões sobre a formação continuada, apesar de não promover aprofundamento teórico que pudesse expor de forma crítica os sentidos para a formação que são projetados pela epistemologia da prática, demarca o entendimento do que tal epistemologia representa, a partir da compreensão que elabora sobre a obra de Schön (2000)Schön D. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas; 2000.. Veja no fragmento abaixo.

Adensou-se ao movimento de crítica à formação continuada instrumental a corrente denominada “epistemologia da prática”, baseada na análise dos processos de reflexão dos sujeitos de Schön (1988), nos Estados Unidos. Essa corrente foi apropriada por Nóvoa (1992) em Portugal, difundida amplamente no Brasil, em meados da década de 1990, pelo autor e ampliada por Pimenta (2002)Pimenta SG. Professor Reflexivo: construindo uma crítica. In: Pimenta SG, Ghedin E, editores. Professor reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito. São Paulo: Cortez; 2002. p. 17-52. na década de 2000. (D10, p. 13).

Seguindo para a etapa de leitura interpretativa, tratamos de considerar de forma específica as análises relacionadas apenas às 12 produções (D1, D3, D4, D6, D7, D12, D13, D14, D16, T2, T3 e T4) que entendemos se associarem teoricamente à epistemologia da prática, a partir do modo como se referem aos autores para expor as reflexões e investigações que promovem, com o objetivo de produzir o levantamento e o relacionamento das ideias apresentadas nas produções selecionadas (Lima e Mioto, 2007Lima TCS, Mioto RCT. Procedimentos metodológicos na construção do conhecimento científico: a pesquisa bibliográfica. Rev Katálysis. 2007;10(spe):37-45. http://dx.doi.org/10.1590/S1414-49802007000300004.
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). Ao mesmo tempo, propomos com essa análise compreender como os autores e as teorias representantes da epistemologia da prática estão presentes para sustentar teoricamente as referidas produções acadêmicas na área da Educação Física.

É notório que nas produções mencionadas, o apoio nos fundamentos dos autores da epistemologia da prática é apresentado de forma explicita, deixando claro ao leitor que os conceitos defendidos, bem como a forma que buscam compreender a formação de professores, está em consonância com a concepção pragmática, tal como proposto pelos autores citados nesse texto como representantes da epistemologia da prática. Veja alguns exemplos de quando essa explicitação ocorre:

No que tange à formação de professores/as [...], utilizamos como fonte principal o livro intitulado Saberes docentes e formação profissional, de Maurice Tardif (2014), que descreve os saberes docentes. (D1, p 19).

Conhecimentos esses que serão abordados neste estudo como sinônimo dos saberes, pois, segundo Tardif (2002)Tardif M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes; 2002., [...] os profissionais devem utilizar como base as habilidades, competências e o saber-fazer em suas intervenções. (D3, p. 32).

Perrenoud (2002, p. 20) explicitou que, na formação inicial, [...] a “reflexão sobre os problemas profissionais só pode ser treinada caso refira-se constantemente as práticas”. [...] Desse modo, entendemos que esta formação tem que preparar os futuros professores a aprender com as experiências e a refletir sobre o que fizeram. (D4, p. 29-30).

Tardif (2012c) afirmou que, para defender um trabalho eficiente e qualificado, um profissional não pode simplesmente acomodar-se ao aprendizado adquirido na sua formação universitária. (D6, p. 30).

Seguindo com a etapa de leitura e análise interpretativa, tratamos de compreender como as 12 produções, a partir da elaboração teórica de seus respectivos autores, buscam recorrer às ideias da epistemologia da prática para a defender as concepções de formação de professores e de professores de Educação Física que encontram-se presentes em seus textos. E, para isso, por meio da leitura integral dos textos, tratamos de analisar, identificar e selecionar momentos dos textos em que os autores das produções fazem referência aos conceitos da epistemologia da prática e seus representantes, para entender a finalidade pela qual adotam essa perspectiva teórica.

Identificamos que, em comum, a finalidade pela qual as 12 produções buscaram os fundamentos epistemológicos do pragmatismo de Schön (2000)Schön D. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas; 2000., Perrenoud (1993)Perrenoud P. Práticas pedagógicas, profissão docente e formação: perspectivas sociológicas. Lisboa: Dom Quixote; 1993., Zeichner (1993)Zeichner K. A formação reflexiva de professores: ideias e práticas. Lisboa: Educa; 1993. e Tardif (2002)Tardif M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes; 2002. está relacionado à necessidade de expor argumentos para desenvolver a compreensão sobre a formação de professores. E, de forma ainda mais específica, entendemos também que tais fundamentos foram buscados por algumas produções para justificar o modo como compreendem ocorrer o processo de constituição da profissionalidade4 4 A profissionalidade docente “[...] consiste em um conjunto de conhecimentos, de saberes, de capacidades e competências de que dispõe o professor, no desempenho de suas atividades. Profissionalidade consiste, então, de um conjunto de requisitos profissionais indispensáveis para transformar em professor aquele sujeito leigo, que busca uma formação para o futuro exercício profissional no campo da docência” (Brzezinski, 2011, p. 45). docente e aquisição dos conhecimentos que vão subsidiar o trabalho do professor. Em alguns casos a referencia aos autores da epistemologia da prática ocorre densamente, destacando apropriação dos conceitos para expor a compreensão sobre como deve ocorrer a formação de professores; e em outros casos tal referência ocorre mais timidamente, reproduzindo ideias e conceitos, sem manifestação de apoio à tal perspectiva epistemológica, mas também sem a presença de crítica ou contraposição.

Com relação aos primeiros casos mencionados, chama a atenção a forte presença de Tardif (2002)Tardif M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes; 2002. como um dos autores de referência para sustentar a concepção de formação de professores nas produções, e também a densidade com que tal sustentação ocorre, reforçando a compreensão de que contribuem para reverberar e reproduzir a perspectiva pragmática, bem como seu suporte para afastar gradativamente do professor a relevância do conhecimento teórico, tal como orientado pelo ideário neoliberal voltado para a formação de professores (Magalhães, 2014Magalhães SMO. Profissionalização docente no contexto da universidade pública: condução do professor à expertise. In: Souza RCCR, Magalhães SMO, editores. Poiésis e Práxis II: formação, profissionalização, práticas pedagógicas. Goiânia: Kelps; 2014.). Estas análises podem ser refletidas a partir dos fragmentos abaixo:

Essa concepção tradicional não é apenas redutora, mas também é contrária à realidade (Tardif, 2014). O autor aponta que hoje, aquilo que é chamado de “teoria”, de “saber” ou de “conhecimentos” só existe através de um sistema de práticas e de atores que as produzem e as assumem, defendendo a unidade da profissão docente do pré-escolar à universidade. (D7, p. 56).

Neste momento da discussão, observamos que, independentemente da fase/ciclo de vida profissional, as histórias dos professores se aproximam em relação a experiências na formação inicial, nos primeiros contatos com a escola e no desenvolvimento de outras atividades profissionais no campo da Educação Física antes do ingresso na rede. (D14, p. 95).

Seja no contexto acadêmico, seja no meio profissional, as relações estabelecidas com o saber teórico, com o saber-fazer vão compondo o ser-professor (Tardif, 2002Tardif M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes; 2002.), num processo de construção e reconstrução subjetivo, vivo e contínuo. (D16, p. 98).

Envoltos em todos estes questionamentos que entrelaçam à temática e assumindo o entendimento de que a formação de professores é um processo complexo e inacabado, constituído por diferentes categorias de saberes (profissionais, disciplinares, curriculares e experienciais) (Tardif, 2007). (T2, p. 27).

Dizem os autores que a identidade não é fixa para determinada pessoa, mas é um fenômeno relacional. Tardif (2007, p. 52), faz referencia a importância das experiências para a formação docente, para o autor as experiências tem vivencias únicas, porém assumem “valores de confirmação e justificação”. (T4, p. 34).

Entre os casos que estão as produções que fazem referencia aos autores representantes da epistemologia da prática de forma menos aprofundada, entendemos que revelam um movimento reprodutivista com relação ao debate sobre formação de professores. Fazem referencia aos autores justamente por que estes passaram a ter ampla visibilidade no debate sobre a formação de professores no país, inclusive no caso da Educação Física. Afinal, não buscam expor com maior densidade os conceitos, tão longe contestam ou exercem movimento de crítica. De todo modo, corroboram para o fortalecimento da concepção pragmática para a formação de professores, aos moldes da epistemologia da prática. Os casos identificados apresentam alguns fragmentos, que nos conduziram a produzir tal entendimento.

[...] um importante aspecto da profissão docente: o ato de refletir sobre a sua prática. (D12, p. 58).

Essa perspectiva do professor reflexivo, que pensa sobre as suas práticas, buscando autonomia através dos conhecimentos é discutida também nos trabalhos de Nóvoa (1995) e Schön (2000)Schön D. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas; 2000.. (D12, p. 68).

Para Locatelli et al. (2003), tanto o saber da experiência, quanto o saber da ação pedagógica, são conceitos que designam os saberes produzidos pelos professores na relação que estes desenvolvem com seus pares na prática pedagógica. (D13, p. 99).

Nossa análise nos remeteu ao fato de que algumas produções, ao recorrer às ideias dos autores da epistemologia da prática para apresentar e defender uma concepção de formação de professores, fazem isso buscando trabalhar com a compreensão de que a formação se desenvolve a partir da aquisição de saberes do cotidiano, e que estes acabam sendo responsáveis por promover o desenvolvimento da profissionalidade docente. Essa compreensão conseguimos apreender a partir de algumas ideias expostas, como o caso das produções D14, T3 e D16.

Schön (2000, pSchön D. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas; 2000.. 20-22) subdivide os conhecimentos profissionais em conhecimento útil e conhecimento ensinado. Nas escolas os professores constroem conhecimentos para lidar com os processos reais da prática educativa. (D14, p. 41).

Os saberes não têm origem apenas na formação inicial, mas são também produzidos pelos professores, a partir das exigências que se apresentam, sejam elas previsíveis ou não. “Os professores de profissão possuem saberes específicos que são mobilizados, utilizados e produzidos por eles no âmbito de suas tarefas cotidianas” (Tardif, 2014, p. 228). (T3, p. 75).

Essa relação com o saber [...] também é abordada por Maurice Tardif (2002)Tardif M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes; 2002., ao buscar identificar e definir os múltiplos saberes que compõem a atuação docente, assim como a relação professor-saberes docente, sublinha, justamente, o aspecto plural [...] além das experiências de vida e do trabalho docente. (D16, p. 76).

Ao tratar da subjetividade do trabalho docente, estamos nos referindo aos processos constitutivos do “ser-professor”, ou seja, a um saber-fazer que se incorpora e se modela no decorrer de toda a trajetória de vida pessoal [...] (Tardif, 2002Tardif M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes; 2002.). (D16, p. 78).

Os dados acima expostos expressam a compreensão de que as produções mencionadas se articulam aos autores citados por considerarem a necessidade de valorização do conhecimento que advém da prática e da experiência, como fontes de apoio para lidar com os desafios do próprio processo de trabalho. E que a busca pelos saberes práticos é entendida como percurso fundamental para dar suporte ao processo educativo e à constituição da profissionalidade do professor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entendemos que o debate epistemológico relacionado à formação de professores deve ser ampliado na área da Educação Física. Nas últimas décadas, as reformas políticas têm sido orientadas para atender a lógica de formação universitária que possa corresponder ao modelo de profissionalidade neoliberal, elevando, consequentemente, os discursos ideológicos e teóricos que reforçam o pragmatismo no exercício do trabalho docente.

Tal reforço avançou com a influência de teorias acadêmicas e científicas internacionais que trataram de divulgar a chamada epistemologia da prática, entendida como matriz teórica contemporânea que busca reproduzir a valorização da racionalidade técnica nos processos formativos, especialmente aqueles lidados à formação de professores, como o caso da Educação Física.

Isso explica o fato dessa pesquisa ter conseguido identificar, dentro do recorte e da amostra estabelecida, a presença das teorias de Schön (2000)Schön D. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas; 2000., Perrenoud (1993)Perrenoud P. Práticas pedagógicas, profissão docente e formação: perspectivas sociológicas. Lisboa: Dom Quixote; 1993., Zeichner (1993)Zeichner K. A formação reflexiva de professores: ideias e práticas. Lisboa: Educa; 1993. e Tardif (2002)Tardif M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes; 2002. em produções acadêmicas stricto sensu da área da Educação Física. Isso revela a influência dessa epistemologia no debate e na formação acadêmica relacionada à docência na área mencionada, que, em alguma medida, pode estar contribuindo para a valorização de um discurso hegemônico, sustentado no pragmatismo e na formação para atendimento de competências técnicas.

A partir dos critérios estabelecidos, em apenas 5 das 21 produções selecionadas, as teorias representantes da epistemologia da prática não são mencionadas ou citadas. Nas demais 16, aparecem referências a pelo menos um dos autores citados no parágrafo acima, sendo que, em 12 as referências evidenciam vinculação dos pesquisadores à epistemologia da prática, por defenderem o pragmatismo e o conhecimento prático como determinante para o desenvolvimento da profissionalidade docente. De todo modo, chama a atenção a presença das 4 produções que contribuem com o debate acadêmico, numa perspectiva contra hegemônica e crítica ao ideário neoliberal para a formação de professores, ao se posicionarem de maneira explicita e fundamentada acerca dos impactos da epistemologia da prática na formação docente, justamente por entenderem que tal epistemologia colabora com o distanciamento de uma formação teórica e crítica para a formação de professores no Brasil.

  • 1
    Conforme explicado por Dourado (2002), oDourado LF. Reformas do Estado e as políticas para a educação superior no brasil nos anos 90. Educ Soc. 2002;23(80):234-52. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-73302002008000012.
    http://dx.doi.org/10.1590/S0101-73302002...
    neoliberalismo refere-se a uma concepção ideológica hegemônica da contemporaneidade que introduz novas proposições práticas para gerir a sociedade, o mercado e a economia. E, no que se refere à educação, o neoliberalismo avança para consolidar uma formação frágil teoricamente e aligeirada; com projeções para intensificação e precarização do trabalho docente, com restrição da autonomia do professor para planejar e organizar suas atividades pedagógicas (Oliveira, 2010Oliveira DA. Os trabalhadores da educação e a construção política da profissão docente no Brasil. Educ Rev. 2010;(spe 1):17-35. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-40602010000400002.
    http://dx.doi.org/10.1590/S0104-40602010...
    ).
  • 2
    O neotecnisismo e neoescolanovismo, segundo Saviani (2010)Saviani D. História das ideias pedagógicas no Brasil. 3ª ed. rev. São Paulo: Autores Associados; 2010., representam a recolocações “[...] das concepções escolanovista e tecnicista, com o acréscimo do prefixo ‘neo’, portanto, neoescolanovista e neotecnicista” (Anes, 2017, pAnes RRM. Educação Física e Função Social Docente: ideário pedagógico, formação e concepções de professor. São Leopoldo: Oikos; Anápolis: Editora UEG; 2017.. 44).
  • 3
    Ver Anes (2017)Anes RRM. Educação Física e Função Social Docente: ideário pedagógico, formação e concepções de professor. São Leopoldo: Oikos; Anápolis: Editora UEG; 2017. e Silva (2008)Silva KACPC. Professores com formação stricto sensu e o desenvolvimento da pesquisa na educação básica da rede pública de Goiânia: realidade, entraves e possibilidades [tese]. Goiânia: Programa de Pós-graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal de Goiás; 2008..
  • 4
    A profissionalidade docente “[...] consiste em um conjunto de conhecimentos, de saberes, de capacidades e competências de que dispõe o professor, no desempenho de suas atividades. Profissionalidade consiste, então, de um conjunto de requisitos profissionais indispensáveis para transformar em professor aquele sujeito leigo, que busca uma formação para o futuro exercício profissional no campo da docência” (Brzezinski, 2011, p. 45).
  • FINANCIAMENTO

    O presente trabalho não contou com apoio financeiro de nenhuma natureza para sua realização.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    02 Set 2023
  • Aceito
    25 Out 2023
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