RESUMO
O presente estudo objetivou refletir sobre as relações de gênero em uma academia de karatê na região do Cariri Oeste do estado do Ceará. Para a compreensão e interpretação das dinâmicas sociais estabelecidas, utilizou-se a etnografia apoiada na confecção de diários de campo e da observação participante, no período de junho de 2023 a março de 2024. Considerando as construções tradicionais no campo do karatê, quando adentram em um espaço predominantemente masculinizado, as mulheres acabam se deparando com uma limitação de poder, de certa forma consentindo operações coercitivas que as direcionam, em muitos casos, a adotarem posturas e comportamentos pautados na feminilidade hegemônica, aceitando o desempenho de um papel secundario no interior desse campo.
Palavras chaves:
Karatê; Gênero; Artes marciais; Feminilidade
ABSTRACT
The present study aimed to reflect on gender relations in a karate academy in the Cariri Oeste region of the state of Ceará. To understand and interpret the established social dynamics, ethnography was employed, supported by the creation of field diaries and participant observation, from June 2023 to March 2024. Considering the traditional constructs in the field of karate, when entering a predominantly masculinized space, women often encounter a limitation of power, somewhat consenting to coercive operations that direct them, in many cases, to adopt stances and behaviors based on hegemonic femininity, accepting a secondary role within this field.
Keywords:
Karate; Gender; Martial arts; Femininity
RESUMEN
El presente estudio tuvo como objetivo reflexionar sobre las relaciones de género en una academia de karate en la región de Cariri Oeste del estado de Ceará. Para comprender e interpretar las dinámicas sociales establecidas, se utilizó la etnografía, apoyada en la elaboración de diarios de campo y la observación participante, desde junio de 2023 hasta marzo de 2024. Considerando las construcciones tradicionales en el ámbito del karate, al ingresar a un espacio predominantemente masculinizado, las mujeres se enfrentan a una limitación de poder, consintiendo de cierta manera operaciones coercitivas que las dirigen, en muchos casos, a adoptar posturas y comportamientos basados en la feminidad hegemónica, aceptando un papel secundario dentro de este ámbito.
Palabras clave:
Kárate; Género; Artes marciales; Feminidad
INTRODUÇÃO
Cynarski (2019, p. 25) destaca que as artes marciais possuem “sistemas axiológicos normativos” que direcionam seus praticantes a cultivarem as tradições culturais dessas modalidades, repercutindo na construção de valores que consideram a agressividade e a combatividade como atributos específicos de seus praticantes. Martinkova et al. (2019) também destacam que as artes marciais possuem uma base moral sólida que muitas vezes dificulta a permeabilização de suas tradições, contribuindo para a manutenção da herança dos “guerreiros”, a qual pode ser definida como o ethos guerreiro. Este, por sua vez, se configura como “uma espécie de código de honra que consiste num conjunto de comportamentos socialmente (re)produzidos, nutridos de valores militares, baseados em honra, hierarquia e disciplina” (Elias, 1997, pp. 100-101).
Desse modo, o campo das artes marciais, segundo Lima et al. (2023a) está envolto por uma percepção estereotipada que associa a utilização da força, da agressividade e da virilidade a atributos essencialmente masculinos, hierarquizando as representações de gênero. Essa hierarquização é fruto de um processo social mais amplo, que aponta a fragilidade feminina e a força masculina. Essa compreensão é consolidada, segundo Roth e Basow (2004), por diversos segmentos sociais, como a religião, a família, os meios de comunicação, os esportes etc.
Nesse sentido, há um processo dicotômico que considera a existência de determinadas atividades “para homens” e “para mulheres”, reproduzindo o binarismo de gênero em que o gênero feminino é vigiado e regulamentado por normativas patriarcais. Segundo tais normativas patriarcais, as mulheres são vistas como objetos no tempo e dentro do espaço, e as atribuições sociais vinculadas a elas são de subserviência aos homens. Um exemplo desse processo é materializado a partir da elaboração do decreto-lei número 3199/41 (Brasil, 1941), que proibia a participação de mulheres em práticas corporais consideradas violentas, como as artes marciais (Mourão, 2000). Esse decreto ficou em vigor até 1979, todavia, os seus impactos foram e são hodiernos, uma vez que as mulheres em grande medida ainda precisam “negociar” a sua inserção nessas atividades.
Uma pesquisa realizada por Mariante Neto e Wenetz (2022), em uma academia de boxe do Rio Grande do Sul, valida a supracitada assertiva ao demonstrar que a participação das mulheres está condicionada à aceitação das reservas impostas pela dinâmica social do campo esportivo. Essas reservas estão associadas à manutenção do status quo que valoriza, em demasia, os comportamentos masculinos. Lima et al. (2023b), por sua vez, destacam que a inserção das mulheres na capoeira em Campos Sales, no estado do Ceará, está atrelada à legitimação de posturas agressivas, demarcadas por situações em que as mulheres buscam lutar “de igual para igual” com os homens. Na mesma direção, Fernandes et al. (2015) salientam que atletas de boxe e de MMA têm seus corpos potencializados pelos recursos tecnológicos e são instados a exibir performatividades marcadas pela virilidade, força e agressividade. Oliveira et al. (2020), ao interpretarem imagens de lutadoras de MMA postadas no Instagram, destacam que “autoapresentação das lutadoras negocia, em certa medida, a inconformidade de uma feminilidade normalizada no espaço masculino do UFC” (p. 10). Turelli et al. (2023a), por sua parte, destacam que mulheres que compõem a seleção espanhola de karatê incorporam uma percepção subjetiva amplamente veiculada no campo que toma como base o modelo de luta masculino como a forma mais adequada de se praticar karatê.
As ambivalências e tensionamentos ligados à participação das mulheres nas artes marciais, assim como nos demais campos sociais, efluem de um constructo social que as direciona a restringir seus movimentos e a socializar seus corpos de maneira a ocupar menos espaços, incutindo nelas sentimentos ligados à fraqueza e à fragilidade (Young, 1980). Concomitantemente, os homens são encorajados, desde a infância, a desenvolver um maior sentimento de confiança e a manifestar expressões corporais que se pautam nos atributos físicos. Esse processo desencadeia percepções que sugerem que eles podem ocupar e comandar os campos sociais (Mason, 2018).
Esse processo também é materializado no campo do karatê. Turelli et al. (2024), ao realizarem um estudo com a seleção feminina de karatê da Espanha, identificaram, por meio da análise de videos de lutas dessas mulheres, que elas ocupam menos abundantemente os espaços de luta e suas ações são mais contidas. Os homens, por sua vez, ocupam os espaços com maior fluidez, produzindo uma percepção de que eles são dominantes nesse campo e de que o campo lhes pertence. Nesse sentido, as dinâmicas sociais conduzem os corpos das mulheres a serem objetificados em variados espaços e situações, ao tempo que os corpos masculinos tendem a ser posicionados como sujeitos. Lima et al. (2024a) realizaram uma revisão integrativa da literatura para investigar as construções das relações de gênero no karatê. Os autores destacam que as mulheres possuem maiores dificuldades em inserirem-se e manterem-se na prática do karatê, pois além de precisarem adotar uma postura agressiva e combativa como código de conduta oriundo dos grupos de karatê, têm seu comportamento regulamentado pela feminilidade normativa, que se configura como uma série de comportamentos ordinariamente caracterizados como femininos, como a sensibilidade, a emotividade, o carisma e a estética corporal (Connell, 2016).
À vista disso, a participação das mulheres nas artes marciais é “justificada” desde que elas “não deixem de lado a beleza e a graciosidade, atributos associados a uma suposta ‘essência feminina’” (Fernandes et al., 2015, p. 369). Nesse sentido, as mulheres podem realizar tais atividades, contanto que não marginalizem a suposta “essência feminina”. Destarte, embora haja um discurso misógino e hegemônico de padronização dos comportamentos femininos, Connell (2016) destaca que as mulheres constroem as suas percepções sobre o “ser mulher” a partir da corporificação social, considerando suas experiências de vida. Louro (1997) também aponta que não há um “ser feminino”, mas diversas possibilidades de usufruto das feminilidades, que operam na construção de distintas percepções sobre as feminilidades. Em uma abordagem mais extrema, Butler e Trouble (1990) argumenta que existem performances (de feminilidade). Fernandes et al. (2015) também inferem que, ao adentrarem na arena das artes marciais, as mulheres exibem distintas formas de feminilidade, e ainda existem diversos autores desenvolvendo a combinação das abordagens que se mescla e deixam de ser binárias, como a produção de feminilidades masculinas ou masculinidades feminilizadas (Channon, 2014).
Lima et al. (2024a) apontam que os estudos sobre as relações de gênero no karatê são, no entanto, incipientes, e destacam que apenas seis artigos foram encontrados. Desses artigos, cinco foram publicados entre 2018 e 2023, se configurando como um objeto de estudos recente. A autoria também destaca que há uma centralidade de estudos desenvolvidos no continente europeu (Espanha, Escócia e Inglaterra) – pois cinco desses seis artigos foram desenvolvidos nessa região. Apenas um estudo foi desenvolvido na América do Sul, especificamente, no Brasil.
Lago Filho et al. (2024), em estudo realizado na região Nordeste do Brasil, destacam que as dinâmicas que envolvem o desenvolvimento do karatê são impactadas por elementos socioculturais, políticos e econômicos. Não encontramos nenhum estudo sobre as relações de gênero no karatê nessa região brasileira. Dessa forma, considerando as singularidades de cada região, este estudo tem como objetivo refletir sobre as relações de gênero em uma academia de karatê na região do Cariri Oeste do estado do Ceará.
CAMINHOS INVESTIGATIVOS
Este trabalho configura-se como uma etnografia e, consequentemente, se propôs a olhar “de perto e de dentro” (Magnani, 2002, p. 18) as construções subjetivas dos agentes sociais que estão inseridos no contexto sociocultural estudado. Magnani (2009) destaca que a etnografia é um recurso que permite que o pesquisador entre em contato com os distintos universos culturais, possibilitando o compartilhamento e a apreensão de percepções, contribuindo para o desenvolvimento de novas inferências sobre as dinâmicas sociais. Com reforço, Geertz (1978, p. 20) aponta que o fazer etnográfico “é como tentar ler um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado”.
No campo das artes marciais, Lima et al. (2024b) apontam que a etnografia é um recurso que tem sido usado com frequência para a compreensão de aspectos que envolvem a inserção, a permanência e o desenvolvimento das percepções sociais dos praticantes. O etnógrafo contribui para a compreensão dos impactos das artes marciais no constructo sociocultural dos participantes. O estudo em tela foi desenvolvido em um grupo de karatê localizado na região do Cariri Oeste do estado do Ceará. A investigação etnográfica ocorreu entre junho de 2023 e março de 2024, período no qual o pesquisador responsável pela construção das informações participou ativamente de 60 aulas de karatê. No grupo investigado, havia, à época, 14 participantes, 10 homens e quatro mulheres. O grupo era liderado por um sensei que possui faixa preta 3° dan. Todos os alunos e as alunas possuíam graduação cujas cores das faixas variavam da amarela a marrom.1
Ao inserir-se no campo de investigação, o pesquisador atendeu aos pressupostos teórico-metodológicos apontados por Wacquant (2014), que defende a compreensão das ações do campo a partir da ação do pesquisador, ou seja, busca-se compreender as “redes dinâmicas de forças inscritas e profundamente inseridas como redes perceptivas, capacidades sensório-motoras e tendências emocionais” (p. 3). Com reforço, Wacquant (2002) aponta que esse trabalho é “metódico e minucioso de detecção e de registro, de decodificação e de escritura capaz de capturar e transmitir o sabor e a dor da ação, o som e a fúria do mundo social que as abordagens do homem colocam em surdina, quando não os suprime completamente” (p. 11).
Nesse sentido, o pesquisador buscou tornar-se um praticante de karatê ao se inserir como aluno, buscando considerar os efeitos da sensorialidade das percepções e subjetividades emanadas do campo (MacLean, 2018). Para isso, foram utilizados diários de campo e a observação participante, em que o pesquisador se integrou ao grupo na função de aluno, sentindo os toques, os cheiros, os sabores e as tensões emanadas do campo. O diário de campo foi constituído por 174 páginas e suas notas foram construídas ao final de cada treino. A descrição narrativa de cada sessão de treino foi dividida em dois momentos: (i) descrição densa das ações e (ii) reflexões e inferências sobre as ações provenientes do campo. As informações derivadas dos diários de campo e da sensorialidade do pesquisador foram analisadas de maneira interpretativa, considerando a leitura flutuante e o agrupamento das informações do diário de campo a partir de temas específicos (Geertz, 1978).
O estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Regional do Cariri com CAAE: 64954022.2.0000.5055 e aprovado pelo parecer de número 5.865.500.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
As experiências vivenciadas e as observações realizadas no grupo investigado permitiram que o pesquisador pudesse perceber as particularidades das disposições materializadas pelos agentes sociais, circunscritas em comportamentos e posturas. Nesse sentido, ao buscar compreender a configuração social dos indivíduos a partir da participação ativa no grupo, adquiriu-se um saber incorporado.
Um primeiro excerto das anotações de campo demonstra que:
As duas mulheres de faixa laranja sempre vão aos treinos maquiadas, com unhas feitas e arrumadas. A aluna de faixa verde sempre está de unhas feitas e pintadas, mas ela sempre pinta o cabelo de cores diferentes, às vezes azul, às vezes roxo, às vezes vermelho (Diário de campo, 26 nov. 2023).
Podemos perceber que, em um campo no qual os atributos estéticos costumam ficar em segundo plano, frente às posturas combativas e disciplinadas presentes nas tradições das artes marciais, essas mulheres adotam comportamentos que estão ligados à feminilidade normativa absorvida ao longo da vida. Para além do uso de batom, das unhas pintadas e da utilização de maquiagem, como demonstra o supracitado trecho do diário de campo, pudemos observar demonstrações francas de emoções, brincadeiras e outras condutas compreendidas a partir de normatizações sociais como singularidades eminentemente femininas e que destoam das tradições das artes marciais.
Guardadas as diferenças contextuais, essas apresentações e comportamentos também foram perceptíveis em outras canchas de lutas, como no MMA. Ao analisarem a autoapresentação corporal de lutadoras profissionais de MMA no Instagram, Oliveira et al. (2021) identificaram que, embora as lutadoras possam apresentar distintas configurações de feminilidades, foram percebidos casos de sensualização e a enfatização de marcas hegemônicas de feminilidade. Fernandes et al. (2015) também identificaram que lutadoras de boxe e de MMA apresentam traços da feminilidade normatizada, precisando “parecer femininas: maquiadas, trajando vestuário considerado adequado às mulheres e apresentando uma gestualidade delicada” (p. 375), em um conceito, uma performance de feminilidade.
Nessa mesma direção, Jardim (2017) também evidenciou que algumas lutadoras se preocupam que suas imagens sejam associadas à heteronormatividade, e, para isso, exibem em seus corpos signos associados a uma feminilidade passível de sexualização. Esse tipo de feminilidade se vincula, usualmente, à heterossexualidade, externando-se através de unhas pintadas, de uso de batom, de saias e de vestidos esportivos utilizados nas lutas e treinamentos. Dessa forma, segundo Turelli et al. (2023a), as mulheres precisam atestar a sua feminilidade a partir das pressões que sofrem nesse campo, negociando, de maneira concomitante, as suas atitudes agressivas nos momentos de combate com posturas caracterizadas como femininas em suas formas de apresentação social.
Vejamos mais um excerto das anotações que aborda essa problemática:
As mulheres estavam conversando todas juntas na parte de fora da academia. Todas estavam maquiadas, usando brincos e colares e com unhas pintadas. Eu cheguei perto delas e comentei: “estão todas maquiadas, porquê?” Uma aluna faixa verde comentou: “É sim, estamos no treino, mas não podemos nos descuidar”. Uma aluna faixa laranja comentou: “É o jeito, né? Tem que manter a aparência” (Diário de campo, 15 dez. 2023).
Nota-se que, para além de ter que realizar as atividades fins do karatê, elas aderem a normativas sociais que direcionam os comportamentos das mulheres. Para elas, faz-se necessário adotar determinados padrões que são considerados, a partir de uma ótica hegemônica, machista, misógina e estereotipada, “femininos”. À vista disso, pode-se destacar que as mulheres sofrem uma grande cobrança social para atestar sua feminilidade, fato que influi na adoção de posturas características da feminilidade hegemônica. Caso as mulheres apresentem comportamentos, vestuários e atributos físicos dissonantes das normatizações incutidas pela sociedade, podem sofrer estigmas relacionados à sua sexualidade.
Em outra ocasião, uma aluna fez o seguinte relato durante um treino: “não sei porque lavar esse cabelo e vir treinar, suja tudo”. Após 10 minutos de exercício, ela parou de fazer os exercícios e comentou: “hoje eu preciso suar pouco, porque já lavei o cabelo” (Diário de campo, 10 fev. 2024). Embora a aluna compreenda que se lavar o cabelo e for treinar ele vai ficar sujo, ela se submete a essa dinâmica porque elas “têm que manter a aparência”, o que representa um ganho que vale a pena. Na mesma direção, uma nota diz que “as duas alunas de faixa laranja não quiseram completar o aquecimento. Após a primeira sessão, elas disseram: ‘mulher, vamos parar, né?! Estamos suando demais e hoje vamos sair’” (Diário de campo, 22 out. 2023).
Nesse sentido, além de ter que apresentar um determinado desempenho no karatê, sentem a necessidade de se preocupar com a aparência. Esse processo também impacta na participação e no rendimento das mulheres nas aulas, fazendo com que sejam menos ativas nas atividades. Desse modo, emerge uma concepção de fragilidade feminina que se incorpora em todos os agentes sociais, levando a uma maior proteção e cuidado destinado às mulheres, sendo compreendidas como possuidoras de uma incapacidade marcial, o que as conduz a não reconhecer os potenciais atléticos de seus corpos, mas reconhecerem-se pelos atributos estéticos que possam apresentar (Roth e Basow, 2004).
Esse fato favorece o desencadear de um cuidado especial com as mulheres, uma espécie de abrandamento das rotinas de treinamento associado a uma flexibilização das normas de conduta. Aparentemente, ou superficialmente, esse cuidado denota predicados altruístas e inclusivos, pois seria uma forma de moldar o ambiente para favorecer a participação das mulheres, preservando-se as suas características (femininas). No entanto, se aprofundarmos a análise desse “cuidado”, veremos um típico movimento machista que vê a mulher como um ser frágil que necessita da salvaguarda masculina para protegê-las. No contexto observado, em geral, as mulheres são tratadas de forma menos séria (“café com leite”) e esse “cuidado” as coloca em um lugar mais distante das tradições e das atividades fins do karatê. Alem disso, a proteção que lhes é destinada termina sendo uma forma articulada de mantê-las dominadas, controladas e submetidas ao suporte masculino.
No Brasil, a ideia de “café com leite” está relacionada a uma forma irrelevante de participação dos indivíduos em atividades lúdico-sociais. Quando as mulheres participam dos treinos, há um maior cuidado do sensei, como podemos ver no excerto do diário de campo: “A aluna de faixa verde tinha uma grande dificuldade para chutar com a perna esquerda, e o professor sempre a corrigia, dando mais feedbacks a ela do que para os demais” (Diário de campo, 24 set. 2023). Essa abordagem, proveniente das tradições patriarcais e conservadoras das instituições sociais, direciona uma percepção social de que as mulheres precisam desse cuidado para se manterem ativas no karatê e que não estão lá para “lutar de verdade”. O trecho do diário de campo disposto a seguir reforça essa ideia:
O sensei pediu para que uma aluna faixa verde realizasse o comando dos movimentos que estavam sendo realizados em duplas. Em um certo momento, ela demorou a dar o comando para a realização dos movimentos. Um aluno faixa vermelha (de graduação inferior à dela) comentou: “vamos”! Ela respondeu: “Já vai”! O faixa vermelha comentou para a sua dupla: “era para outra pessoa dar o comando”. Sua dupla respondeu: “mas o sensei pediu a ela” (Diário de campo, 02 mar. 2024).
Podemos perceber que mesmo o aluno homem possuindo uma graduação inferior à da mulher, ele deslegitima seu comando. Desse modo, a hierarquia de gênero sobrepõe-se à hierarquia das graduações, fato que reforça a ideia de “café com leite”, de que a participação marcial das mulheres é irrelevante para o campo social investigado.
Turelli et al. (2023a) destacam que o campo esportivo retrata as atletas femininas muito frequentemente a partir da sexualização de seus corpos. Esse processo é retratado por Turelli et al. (2023b) que, ao buscarem compreender as concepções de feminilidade no campo esportivo, identificaram elementos que reificam as hierarquizações de gênero e a sexualização dos corpos das mulheres.
Já conversei com árbitros homens que sim, se você tiver duas karatecas que tenham o mesmo nível (tecnicamente), mas uma seja mais bonita, ou tenha o decote mais aberto, a bonita vence. Isso eu juro para você, e se você falar com Hera e Deméter, porque elas também estavam lá, elas podem confirmar que um árbitro nos contou isso (Ceres, Entrevista 17(2), 23/08/2020) (Turelli et al., 2023b, pp. 2018-2019 – tradução nossa).
À vista disso, podemos perceber que a atuação das praticantes de karatê tende a ser secundarizada em detrimento de seus atributos físicos e da manutenção da feminilidade normativa, em que o estereótipo da mulher bonita e sensual antecede sua capacidade esportiva. Dessa maneira, as mulheres enfrentam múltiplos desafios para a sua inserção e permanência no karatê, como (i) a valorização exacerbada da masculinidade hegemônica, (ii) cultura da feminilidade, (iii) objetificação da mulher e (iv) recursos midiáticos voltados à sexualização dos corpos femininos (Souza e Franco, 2021).
Alguns trechos das anotações apontam que a feminilidade normativa apresentada pelas mulheres desencadeia, nos homens, a percepção de que elas não estão lá para lutar de verdade. “No intervalo para descanso, o sensei chamou uma aluna faixa verde e mostrou um movimento de kata que ela tinha dificuldade. Um aluno faixa amarela comentou com outro aluno de faixa vermelha: ‘cara, não sei porque perder tempo com ela, ela não quer lutar’” (Diário de campo, 26 nov. 2023). O exposto reforça a ideia de que os homens entendem que as mulheres não precisam aprender os movimentos porque não estão lá para lutar (pois são compreendidas como “café com leite”). Estar no espaço não é considerado uma ameaça, desde que nessa postura lúdica, pouco combativa e pouco ameaçadora. Esse fato representa a forma com a qual as mulheres são tratadas: como um ser frágil que não precisa aprender os movimentos de combate, que está ali apenas para complementar o ambiente como coadjuvante.
De fato, essa percepção é reforçada quando as mulheres desistem de realizar as atividades, quando elas apresentam resistências para participar dos combates e pela maior atenção que o sensei destina a elas, fruto dessa incorporação social de fragilidade feminina (Young, 1980). Esse processo as faz ser alvo de variadas brincadeiras, como podemos ver na passagem relatada a seguir.
O primeiro exercício foi uma esgrima utilizando o macarrão de piscina, trabalhando deslocamento e movimentos de ataque e defesa. Duas alunas de faixa laranja estavam nesse treino e realizavam a atividade com muitas brincadeiras. Sempre que uma acertava a outra, elas sorriam e contavam os pontos. Ao final da atividade, um aluno de faixa amarela acertou o macarrão de piscina nas costas de uma das alunas e falou: “ei, você não aprendeu a se movimentar, né”?! Em seguida, outro aluno, dessa vez um de faixa vermelha, acertou a outra colega e disse: “esta daqui também não aprendeu”! Em seguida, uma das alunas correu atrás dos dois, atacando-os com o macarrão de piscina (Diário de campo do dia 26/11/2023).
Com efeito, destacamos que esse tipo de brincadeira não acontece entre os homens. Quando se envolvem, eles direcionam essas ações lúdicas às mulheres, que, por sua vez, “entram na brincadeira” e devolvem as brincadeiras aos homens, aceitando, de certa forma, uma condição de inferioridade e infantilização. Nesse sentido, a vivência das mulheres nas dinâmicas que envolvem as atividades ligadas ao karatê é impactada negativamente, pois a sua presença na academia é tratada como um aspecto de segundo plano, um processo mais lúdico e menos bélico, com características menos guerreiras, fato que reforça o estereótipo de que não estão lá apenas para lutar, mas também por outros objetivos, como a estética e a ludicidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo teve como objetivo refletir sobre as relações de gênero em uma academia de karatê na região do Cariri Oeste do estado do Ceará. A inserção de um dos pesquisadores como um participante ativo das atividades fins do karatê contribuiu para que pudesse incorporar os saberes sociais e as configurações do campo de investigação, suscitando no desenvolvimento de reflexões e inferências que puderam tensionar e problematizar as ordens sociais vigentes.
A partir das dinâmicas analisadas, podemos afirmar que o ambiente dos treinamentos de karatê adquire uma dinâmica pautada na ludicidade quando as mulheres estão inseridas nas aulas. As suas ações são motivo de risos e brincadeiras e, em muitos casos, seus comandos não são considerados, inclusive por alunos com menor nível de graduação. As mulheres, por adentrarem um espaço predominantemente masculinizado, e por possuírem determinados limites de poder nesse campo, acabam sendo alvo de operações coercitivas que as direcionam a adotar posturas e comportamentos específicos, pautados na sensibilidade, na emotividade e nos atributos estéticos. Também há uma modificação da dinâmica das aulas para a acomodação das mulheres, em que o sensei parece ter maior cuidado com elas, dando-lhes mais atenção e flexibilizando a sua participação nas atividades. Em contrapartida, os karatecas homens são mais cobrados e possuem relações mais rígidas com o sensei.
Também podemos afirmar que as mulheres inseridas no contexto observado muitas vezes adotam comportamentos ligados à feminilidade normativa, como a utilização de maquiagem, unhas pintadas, cabelos pintados e arrumados, buscando apresentar uma estética corporal que se interligue aos “padrões femininos”. Esse processo também impacta na sua participação nas aulas. Por vezes elas não querem realizar determinados exercícios para não sujarem o cabelo, por exemplo. Desse modo, considerando as construções patriarcais no campo do karatê, quando adentram em um espaço predominantemente masculinizado, as mulheres acabam se deparando com uma limitação de poder, de certa forma consentindo as operações coercitivas que as levam, em muitos casos, a adotar posturas e comportamentos pautados na feminilidade hegemônica, aceitando o desempenho de um papel secundário no interior desse campo.
Este estudo é relevante e importante, como se compreende, mas ele também possui algumas limitações: (i) as informações foram construídas no trabalho de campo etnográfico por um homem branco e heterossexual; (ii) embora uma mulher tenha participado da análise das informações, o grupo de pessoas que fizeram as inferências sobre os dados é composto, em sua maioria por (três) homens brancos e heterossexuais. Destarte, compreendemos que os resultados da pesquisa e seus desbobramentos contribuem para a contraposição das normas sociais vigentes, podendo servir como um instrumento contra-hegemônico devido ao olhar do qual se utiliza, um olhar crítico e questionador que busca problematizar as conformações de gênero como primeiro passo para a futura transformação. Por fim, destacamos a importância do desenvolvimento de mais estudos sobre o fenômeno em tela, considerando elementos que se entrelaçam com gênero, como etnia, classe, sexualidade, deficiência etc, de modo a ter em conta outros aspectos interseccionais.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
23 Maio 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
19 Nov 2024 -
Aceito
28 Mar 2025
