Resumo:
Este artigo analisa as percepções de manifestantes que participaram dos protestos de junho de 2013. Através de entrevistas em profundidade, realizadas nos meses seguintes às manifestações, buscamos analisar as narrativas dos ativistas sobre os rituais de participação, suas percepções sobre a natureza e motivações dos protestos e o modo pelo qual foram atraídos ou convocados a participar das mobilizações. Apesar da diversidade de perfis e da grande quantidade de pautas emergentes durante os protestos, identificamos duas formas principais de constituição e participação dos sujeitos políticos, a partir da distinção entre indivíduos com e sem experiência política ou associativa prévia. Neste artigo, observamos como essas diferenças influenciaram as formas de participação e os diversos enquadramentos dos manifestantes em relação aos partidos e à representação política.
Palavras-chave:
Protestos de junho de 2013; representação; partidos políticos
Abstract:
This article analyzes the perceptions of participants in the June 2013 protests. Through in-depth interviews conducted in the months following the demonstrations, we seek to examine activist narratives regarding the rituals of participation, their perceptions of the nature of and reasons for the protests, and the factors that led them to get involved. Despite the diversity of participants and the enormous number of issues that emerged during the protests, we found that the constitution and participation of political subjects differed significantly between those who had prior political and associational experience and those who did not. In this article, we found that such differences influenced forms of participation as well protester framings about the relation between parties and political representation.
Keywords:
June 2013 protests; representation; political parties
Introdução
Nas últimas décadas, temos testemunhado a proliferação de debates acerca da crise da democracia. Por um lado, essa crise tem sido identificada por meio de indicadores “objetivos” que demarcam a erosão de regras, direitos e práticas que influenciam o funcionamento das democracias. De outro, há uma dimensão subjetiva, refletida pelo declínio do apoio popular e diminuição da legitimidade do regime (Castaldo, 2018), acompanhada pela deterioração dos níveis de confiança nos partidos, parlamentos e governos, além de avaliações negativas quanto à sua performance (Moisés, 2019). Este debate tem enveredado por múltiplos caminhos, desde a historicização das transformações do sistema representativo em direção a uma “democracia de público” (Manin, 1997), passando pela interpretação de uma possível revolta contra os corpos intermediários (Urbinati, 2015), até as investigações sobre o “declínio” dos partidos nas democracias contemporâneas (Dalton; Wattenberg, 2002). Ou seja, parte do diagnóstico negativo incide diretamente sobre os partidos e seu papel pivotal no sistema representativo. Esses processos, todavia, são firmemente ancorados em dinâmicas locais e com ritmos e temporalidades distintas.
No Brasil, apesar dos tropeços iniciais com a crise hiperinflacionária e o processo de impeachment de Collor, os anos seguintes ao processo de redemocratização, sob a égide do presidencialismo de coalizão, resultaram na conquista de importantes bens públicos, como a estabilização monetária, a Lei de Responsabilidade Fiscal e o êxito de políticas de redistribuição de renda e acesso ao ensino superior, entre outros. No entanto, a irrupção inesperada, a intensidade e a magnitude das manifestações de junho de 2013 criaram a percepção de um novo marco zero na política brasileira pós-redemocratização, promovendo a emergência de teses exógenas sobre o “sentido” das manifestações, ademais de causar perplexidade tanto na mídia tradicional quanto no mundo da política institucional e entre acadêmicos.
Os “sentidos” dos protestos de junho de 2013 e dos eventos subsequentes foram interpretados de maneiras diversas: como evidências da crise do reformismo lulista (Singer, 2018) ou do modelo de desenvolvimento e de conciliação de classes petista, resultando em várias formas de insatisfações difusas, incluindo questões identitárias (Tatagiba; Galvão, 2019). Também foram vistos como uma “rejeição incondicional do peemedebismo”, considerado um sistema de “blindagem” do sistema político contra transformações progressistas (Nobre, 2013). Em suma, se por um lado o presidencialismo de coalizão havia proporcionado condições de governabilidade em termos de capacidade decisória, por outro, o teria feito às custas de sua legitimidade política perante a opinião pública.
A emergência de “novos públicos” nas ruas igualmente causou perplexidade e foi alvo de disputas. Não é trivial interpretar as especificidades das jornadas de junho, especialmente quando constatamos que o fluxo de protestos de 2013 foi posteriormente apropriado e reorientado de forma exitosa contra o Partidos dos Trabalhadores e suas principais lideranças, o que poderia predispor os analistas a validar uma possível unidirecionalidade ideológica do fenômeno. Neste sentido, estamos de acordo com a hipótese de que a presença nos atos de indivíduos ou grupos de direita (ou antipetistas) teria sido sobre dimensionada (Singer, 2013).
Não há como negar a centralidade política de Lula e do petismo na configuração atual do sistema político brasileiro e, mesmo reconhecendo a “polarização constitutiva” prévia contra a esquerda, concordamos também que os protestos de 2013 foram inicialmente um epifenômeno contra a representação (Bringel, 2013). No entanto, para alguns analistas, as jornadas teriam assumido a feição de rejeição aos partidos políticos e à política institucional (Alonso; Mische, 2016), refletindo o desejo de exercer a política sem intermediação (Tatagiba, 2014), a partir de uma “profunda desconfiança da política” (Gohn, 2014).
Em suma, a partir de um corpus empírico inédito, composto por entrevistas em profundidade com jovens, realizadas nos meses seguintes à eclosão dos protestos de junho de 2013, na cidade do Rio de Janeiro, analisaremos o protesto “a partir de dentro”, com a contextualização das bases “objetivas” (percepção sobre as condições do país) e “subjetivas” (motivações) dos protestos, além de descrever como estes jovens relataram o ritual de participação durante aquelas jornadas. Nossa contribuição ao debate consistirá na análise do nível de informação política destes indivíduos, suas percepções e valorações sobre os partidos, bem como suas expectativas em relação à representação política.
Revisão teórica
As especificidades do ciclo de protestos de 2013
Aqueles que ocuparam as ruas brasileiras em junho de 2013, ao olhar para trás, puderam se apoiar em repertórios simbólicos pregressos fundamentados em símbolos de unidade nacional: a bandeira brasileira nos eventos das Diretas Já ou os jovens “caras pintadas” de verde e amarelo nos protestos contra a corrupção e pelo impeachment do presidente Collor. Durante este período inicial de redemocratização, esse ciclo de protestos exibia um caráter suprapartidário ao qual se somavam atores organizados da sociedade civil, movimentos sociais e estudantis, em torno de “frames” compartilhados (Tatagiba, 2014, Scherer-Warren, 2014), cujas demandas dirigiam-se diretamente a institucionalidade política (Alonso, 2017). Após este período inicial de incertezas, o país navegou por relativa estabilidade institucional (Abranches, 2018). A hegemonia eleitoral petista, não obstante, sofreu uma nova fissura com a irrupção dos protestos, seguido pela inauguração de um novo contexto sociopolítico marcado pela polarização e pela instabilidade institucional.
É fundamental observar que, segundo Tatagiba e Galvão (2019), já estava em curso uma escalada de protestos prévios, em 2011 e 2012, com pautas diversas e com a presença de atores heterogêneos, incluindo sindicatos, movimentos sociais, religiosos e populares, coletivos, estudantes e grupos antipetistas, entre outros. Dito de outra maneira, insatisfações difusas antecederam a crise política e econômica de 2013 e teriam produzido um efeito de realinhamento, provocando “mudanças no contexto político, abrindo oportunidades políticas inéditas para que um conjunto heterogêneo de atores, à direita e à esquerda do PT, manifestasse suas divergências em relação ao governo” (2019, p. 63). Em obra mais recente, Alonso (2023) vai mais longe e atribui parte das tensões às “zonas de conflitos” abertas e herdadas do governo Lula, em torno dos eixos de “moralidade, violência e redistribuição”.
Outros componentes da crise teriam sido os conflitos com atores coletivos integrados anteriormente em formas de participação institucional, que se autonomizaram do campo petista em novos formatos de ação coletiva (Avritzer, 2016) e que, mais recentemente, foram contrabalançados por indivíduos de perfil à direita ou conservador inseridos em outras modalidades de associativismo - em associações esportivas e profissionais, organizações caritativas e igrejas (Avritzer, 2017). A gestação, a organização e a emergência de novos atores à direita do espectro político, durante os mandatos do governo Lula, teria sido um dos fatores mais negligenciados nas análises de junho de 2013 (Alonso, 2023; Silva; Pereira, 2020). A nosso ver, essas organizações políticas extrainstitucionais não se estruturaram exclusivamente como uma reação negativa ao governo Lula ou ao papel legiferante do STF, mas também como um movimento positivo de construção política em resposta ao enfraquecimento da oposição institucional.4
Para entendermos as especificidades dos eventos de junho de 2013, devemos demarcar suas diferenças com o ciclo de protestos do período da redemocratização. Os eventos atuais teriam sido marcados por “uma rejeição feroz aos partidos políticos e à política institucional” (Alonso; Mische, 2016, p. 1), com o deslocamento ou a substituição de atores organizados pela proeminência da lógica de “cada pessoa um cartaz”, expressões tanto da crise da representação quanto de um desejo de exercer a política sem intermediação (Tatagiba, 2014). A partir de uma “profunda desconfiança da política” (Gohn, 2014) e sem coordenação centralizada, as ruas foram tomadas por uma “maioria fragmentada” (Pinto, 2017), ou seja, por indivíduos sem socialização política ou associativa prévia, formada por jovens escolarizados que portavam consignas contraditórias e não estruturadas - que teriam respondido aos apelos de convocação por meio das novas mídias digitais (Bringel, 2013; Pinto, 2017; Scherer-Warren, 2014). Verhulst e Walgrave (2009) ressaltam que a emergência de “first timers” em manifestações mundo afora tende a produzir um público mais heterogêneo, geralmente mobilizados por intensa cobertura midiática e/ou por amigos e parentes inseridos em redes de relações específicas, e não por lideranças e organizações. Como consequência, esse público apresentaria mais propensão a responder a estímulos de natureza emocional, “que surgem após eventos altamente publicizados de violência aleatória e sem sentido ou, mais geralmente, que reagem diretamente a um agravo repentinamente imposto (Walsh 1981)” (Verhulst; Walgrave, 2009, p. 8).
Pinto (2017) chama a atenção para a necessária diferenciação entre consignas (não estruturadas) e demandas, que são as que permitiriam a constituição de sujeitos políticos. Scherer-Warren (2014), por sua vez, elogiou a participação esporádica como uma dimensão do exercício de cidadania por parte daqueles que buscaram se informar sobre política, mas ao mesmo tempo reconheceu a presença de “outros, que estavam lá pelo protesto em si mesmo, numa simulação de participação e, possivelmente, para alguns, com resultados políticos pouco expressivos para si mesmos ou para a sociedade” (2014, p. 424). Bringel reforça esse argumento ao mencionar “um sentido da indignação pouco coeso politicamente, já que para a grande maioria este foi seu ‘batismo político’. Em outras palavras: a indignação, a ira, a raiva e o ódio ainda não se cristalizaram em uma ação política estruturada” (2013, p. 46).
Nas ruas, os repertórios e as performances, então, teriam se bifurcado em três: autonomistas (coletivos horizontais de perfil anarquista, a novidade no ciclo de 2013), o tradicional repertório socialista invocado por militantes e, por fim, os recém-chegados ao espaço público com um repertório patriótico (Alonso; Mische, 2016):
O campo patriótico consistia principalmente de manifestantes sem ativismo prévio que se juntaram aos protestos individualmente, convocados para as ruas pelo que viram na imprensa e na internet. Suas ações foram expressivas e lúdicas, sem coordenação. Seu propósito era imediato e expressivo. Foram movidos por um nacionalismo vago e um forte sentimento anti-PT, e estavam em sua maioria à direita do governo (Alonso, 2017, p. 10).
Por sua vez, a partir de uma intepretação alternativa baseada na noção de campos de ação política, que denota a relação estratégica e contingente de atração entre diversos atores - desde indivíduos e formas de organização mais descentralizadas até atores institucionalizados - Bringel (2022) sugeriu a presença de quatro campos nos protestos: o democrático-popular, o alterativista e revolucionário, o liberal-conservador e o campo reacionário-autoritário.
Esses repertórios ou campos de ação compartilharam o espaço público das ruas, formando um “mosaico”, até o ápice no dia 20 de junho, quando emergiram vários relatos de agressões e hostilidades às bandeiras de esquerda (Alonso, 2017), como indicação de que as “singularidades não eram revertidas, necessariamente, no reconhecimento da diferença” (Scherer-Warren, 2014).
Em resumo, com a ampliação da heterogeneidade dos participantes ao longo de junho de 2013, observou-se um novo padrão caracterizado fortemente pela agência individual, resultando em uma mudança na “infraestrutura das mobilizações” (Tatagiba, 2014), com convocação descentralizada por meio das redes sociais e pela falta da proeminência de atores organizados na coordenação do processo.5 Em consonância, vieram juntas a emergência de consignas e demandas contraditórias que foram disputadas tanto durante as jornadas, quanto posteriormente por tentativas de dar “sentido” aos acontecimentos ou, dito de outra forma, pela busca em conferir direção política hegemônica ao processo.
Por fim, outra fonte de disputa reside na interpretação das condições “objetivas” do país. Ao analisar dados do Latinobarômetro de 2012, a partir de uma amostra com representatividade nacional, Mendonça e Fuks (2015) identificaram a associação, quando as condições objetivas “melhoravam”, entre a sensação de privação relativa, o acionamento de expectativas crescentes e, em consequência, o aumento do ativismo contestatório. Essas evidências estariam em consonância com teorias que preveem maior possibilidade de ativismo público quando emergem estruturas de oportunidades políticas favoráveis (Tarrow, 1998) ou quando há a ampliação do “horizonte do possível” (Santos, 2007).
Sob outra ótica, Lawless (2012), ao revisar a literatura sobre participação política, reiterou que “eventos críticos” tendem a impactar o processo de formação de preferências e a diminuir o nível de confiança nos governos e, podemos complementar, nas instituições políticas, incluindo os partidos. Ao analisamos a série histórica de dados do Latino barômetro verificamos, entre 1995 e 2012, grandes oscilações no percentual de respondentes que afirmavam ter “nenhuma confiança” nos partidos políticos - entre 40% e 60%, com variações anuais importantes. Em 2011, a cifra era de 49,5%, mas desde 2013 o nível de desconfiança vinha aumentando, atingindo o pico em 2017, com 73,3%. Esses dados parecem estar em consonância com a hipótese de Tatagiba e Galvão (2019), que sugeriram, como efeito não antecipado, que as jornadas de junho teriam produzido o “deterioro” das condições políticas e econômicas, e não o inverso.6
Para o que nos interessa mais diretamente, em termos políticos e atitudinais, qual a implicação dessa desconfiança e qual é o caráter substantivo da amplamente divulgada rejeição aos partidos políticos e à representação política?
Rejeição aos partidos políticos e à representação política?
O desenrolar dos acontecimentos que culminaram com a eleição de Bolsonaro poderiam induzir qualquer analista a imputar uma unidirecionalidade ideológica às jornadas de 2013, lastreadas nas hipóteses da predominância do antipetismo ou da direita entre os manifestantes. Através de uma pesquisa de opinião nacional realizada pelo IBOPE, com amostra probabilística estratificada em 140 cidades, Winters e Weitz-Shapiro (2014) demonstraram que, entre os manifestantes que simpatizavam com algum partido político, 13% declararam identificação com o PT (contra 23% na população), 9% com o PSOL, 8% com o PSDB, 6,3% com o PV e 2% com o PMDB.7 Adicionalmente, a “queda” do nível de identificação com o PT entre os manifestantes teria sido compensada pelo aumento de simpatizantes com o PSOL e o PV. E mais significativo, os partidos de oposição não ganharam terreno com os protestos.
Por fim, os autores constataram que a porcentagem daqueles que afirmavam não se identificar com nenhum partido era de 57% na população em geral e de 62% entre os que protestavam, diferença não estatisticamente significativa (Winters; Weitz-Shapiro, 2014). Em resumo, se de um lado há indícios da não homogeneidade ideológica do fenômeno, de outro, verificou-se um contingente relevante de “partidarismo” entre os manifestantes, com cerca de 38% afirmando simpatizar com algum partido.
Embora estejam corretos, de modo geral, os diagnósticos que apontam as tensões entre os protestos e as instituições representativas, há a necessidade de se matizar e qualificar conceitualmente o que é entendido como expressões genéricas de antipartidarismo. Samuels e Zucco (2018) estimaram que a porcentagem de antipetistas em 2014 correspondia a 20,6% do eleitorado, com aumento de 5 pontos percentuais em relação à 2010.8 Além disso, o número de “não partidários” - aqueles que não manifestavam nem sentimentos positivos, nem negativos - variou de 29,4% em 2010 para 45,6% em 2014 (Samuels; Zucco, 2018). Obviamente, que este método de mensuração do fenômeno é diferente do captado por surveys que buscam estimar se os indivíduos simpatizam ou não com algum partido. Independentemente da métrica, o relevante para este estudo é observar - inclusive para aqueles que insistem em imputar efeitos ideológico-partidários unidirecionais às jornadas de 2013 - que o antipetismo teria alcançado algum grau de impulso em 2014, porém na mesma direção e com efeito mais relevante teria aumentado o contingente de cidadãos “indiferentes”, isto é, indivíduos que não manifestavam sentimentos, nem positivos, nem negativos em relação aos partidos. Em resumo, devemos insistir que, para além das questões referentes ao tipo de mensuração e da magnitude destas cifras, sabemos muito pouco sobre o substrato das percepções dos manifestantes, além de uma parca generalização acerca de repúdio aos partidos e à representação política.
Fuks e Borba (2021) apresentam uma extensa revisão da literatura sobre as transformações contemporâneas relacionadas aos vínculos entre eleitores e partidos, assim como das vertentes que as analisam sob a ótica dos “sentimentos partidários”. Sob este conceito, opera-se a diferenciação entre partidários e eleitores sem identificação e, entre estes últimos, entre independentes e os que manifestam atitudes negativas em relação aos partidos. Em estudo promissor, Dassonneville e Hooghe (2018), ao analisar a literatura referente a tese de desalinhamento do sistema partidário em países europeus, com a identificação do enfraquecimento dos vínculos dos eleitores com os partidos, haviam apontado que a reflexão acadêmica havia se dividido em duas perspectivas. A otimista considera que o aumento de indivíduos apartidários ou independentes poderia significar a presença de um eleitor “indiferente”, sofisticado politicamente ou ao menos apto a filtrar as mensagens das elites políticas, que optaria em diferentes contextos e eleições por diferentes agremiações. Outra parte da literatura preocupa-se com o fenômeno da “alienação”, isto é, a percepção de que todas as opções disponíveis ao eleitor seriam consideradas como muito distantes do seu ponto ideal. Em contraposição, um eleitor “aberto” a novas opções ou um eleitor alienado que poderia vir a questionar a legitimidade democrática? Os autores apresentam evidências de que o desalinhamento produz ambas as atitudes, com diferenças relevantes entre países, e com um efeito mais forte para a alienação, que incide em baixos níveis de confiança na política e baixo grau de satisfação com a democracia e/ou com o sistema representativo.
Em última análise, são escassos os estudos que tematizaram e apresentaram evidências empíricas sistemáticas acerca das percepções dos manifestantes sobre a representação política. Como exceção a esse padrão, dois trabalhos abordaram esse tema com foco exclusivo na análise de membros de coletivos. Mendonça (2018) investigou através de entrevistas semiestruturadas com ativistas de coletivos de São Paulo e Belo Horizonte, a ênfase destes indivíduos na democracia direta e em práticas horizontais, concomitantemente ao pouco apreço ou preocupação manifesta com a institucionalidade democrática:
Chama a atenção, entretanto, a pouca preocupação com regras e instituições que assegurem a democracia, incluindo-se aí a questão dos controles. A crítica veemente às instituições vigentes caminha para uma negação da própria institucionalidade da democracia e para um apagamento de suas múltiplas dimensões (Mendonça, 2018, p. 17-18).
Perez (2019) reforça esse argumento, indicando que a maioria dos membros de coletivos em Teresina expressava um distanciamento das instituições tradicionais, em virtude de seu caráter hierárquico, burocrático e centralizado. A autora identificou que parte dos membros de coletivos expressava posturas antipartidárias e antissistema, enquanto outra parte, menos numerosa, estabelecia vínculos com partidos. Esta ligação não era rechaçada de antemão, desde que esses ativistas mantivessem uma postura autônoma dentro dos coletivos. O ponto em questão é que, nestas instâncias, os ativistas deveriam primar pela horizontalidade, pela defesa do debate de ideias e pelas decisões compartilhadas. No mesmo sentido, a análise de Dowbor e Szwako (2013), ao analisar a atuação do Movimento do Passe Livre e dos Comitês Populares dos Atingidos pela Copa, colocou em evidência que para os indivíduos que participam desses formatos organizacionais flexíveis, “apartidário não é sinônimo de não relação com atores partidários” (2013, p. 47).
Metodologia e os perfis dos manifestantes.
Este artigo analisa as percepções de 28 manifestantes que participaram dos protestos no dia 20 de junho de 2013, na Avenida Presidente Vargas, na cidade do Rio de Janeiro. A seleção, o contato e as entrevistas em profundidade com os ativistas foram viabilizadas por meio de um survey presencial, totalizando 316 questionários, aplicados com a colaboração dos alunos da Escola de Ciências Sociais (FGV CPDOC), que haviam manifestado interesse em acompanhar o protesto. Ciente dos problemas metodológicos provenientes do tipo de fenômeno estudado, optamos por um questionário curto, formado basicamente por perguntas relativas à identificação do perfil dos manifestantes e seus motivos declarados para estarem reunidos naquele ato público. Os contatos telefônicos obtidos no survey nos permitiram dar o passo seguinte, o de analisar o protesto “a partir de dentro”, com a realização de entrevistas em profundidade entre os meses de agosto e setembro de 2013.9
Com a análise qualitativa do corpus empírico, buscamos contextualizar as bases “objetivas” (com uma pergunta sobre a percepção dos entrevistados sobre as condições do país) e “subjetivas” (motivação para ir às ruas) dos protestos, além de analisar como os entrevistados relataram o ritual de participação no dia 20 de junho de 2013. Por fim, duas questões principais nortearam a reflexão nesse artigo: as percepções dos entrevistados sobre os partidos políticos e suas expectativas sobre a representação política.10
A seguir apresentaremos uma descrição breve sobre diversas pesquisas de opinião realizadas por diferentes instituições com manifestantes das jornadas de junho, durante atos públicos realizados nos dias 17 e 20 de junho de 2013,11 como forma de qualificar o perfil de segmentação dos nossos entrevistados. Os surveys indicavam que a média de idade dos manifestantes variava entre 24 e 28 anos, com os mais jovens, aqueles com até 25 anos, representando entre 43% e 53% dos respondentes. Cerca de dois terços dos respondentes tinham nível superior completo ou incompleto, com um predomínio marcante da participação de pessoas que trabalhavam. No entanto, Singer (2013, p. 31) adverte-nos que se a escolaridade apontava para a parte superior da estratificação social, a renda indicaria igualmente a participação da “metade inferior da pirâmide”. Em termos substantivos, as manifestações poderiam ser consideradas “tanto expressão de uma classe média tradicional inconformada com diferentes aspectos da realidade nacional quanto um reflexo daquilo que prefiro denominar de novo proletariado [...]” (Singer, 2013, p. 27).
Podemos dizer que nossa “amostra” qualitativa por conveniência refletia, em termos gerais, os perfis apresentados nos surveys citados. Os entrevistados eram jovens distribuídos entre a faixa etária de 18 e 29 anos (a maioria, estudantes), com alto nível de escolaridade. Dois terços dos respondentes eram mulheres. Do total de respondentes, doze tinham nível superior completo e outros quinze estavam a caminho de concluí-lo. Apenas um entrevistado tinha ensino médio. Pois bem, em cerca de metade de nossos casos os pais, evidência de capital cultural alto, também compartilhavam de formação de nível superior. Como outra forma de complementar o perfil, questionamos em qual classe social o entrevistado achava que se encaixava, sem definir as categorias. Ao todo, doze entrevistados se classificaram como classe A e B, como classe alta ou usando um gradiente do tipo “média para alta”. Dez entrevistados classificaram-se, em sua maioria, como classe média e outro conjunto de cinco pessoas classificam-se em um intervalo entre média e baixa ou classe C ou D.
Como categoria de controle, havíamos incluído no roteiro uma pergunta que buscava verificar se os entrevistados tiveram alguma experiência política prévia e se haviam participado de alguma manifestação anterior ao dia 20 de junho, quando o Movimento da Passe Livre já havia perdido a liderança das manifestações - com a hipótese de que a afluência aos protestos de um segmento que experimentava pela primeira vez a participação em ações contestatórias nas ruas incidiria em diferentes enquadramentos sobre partidos e a representação política.
Pois bem, um pouco mais da metade (quinze entrevistados) nunca havia tido participação política prévia e, ao mesmo tempo, estavam participando pela primeira vez das jornadas de junho, com exceção de dois respondentes.12 Por outro lado, dos treze respondentes que relataram participação política prévia, apenas quatro não haviam participado das manifestações anteriores ao 20 de junho. Ou seja, há evidências no corpus empírico de uma associação (embora não de caráter estatístico) entre inexperiência política e a participação no “dia mais festivo”. A partir da distinção entre novatos (Verhulst; Walgrave, 2009) e os que tiveram algum tipo de experiência política prévia iremos evidenciar, ao longo do artigo, diferenças significativas na ativação de diferentes repertórios e nas percepções sobre “política” e “representação”. Dito de outra forma, o filtro de análise colocará em evidência duas formas diferentes de participação e de constituição de sujeitos políticos no desenrolar das jornadas de junho (Alonso; Mische, 2016; Bringel, 2013; Pinto, 2017; Scherer-Warren, 2014), embora como uma série de nuances e zonas cinzentas que iremos ressaltar nas seções seguintes.
Análise do corpus empírico
Insatisfação difusa e expectativas futuras
Perguntamos aos entrevistados se poderiam mencionar experiências cotidianas suas, ou de pessoas próximas, nas quais costumavam se sentir injustiçados, desrespeitados ou que causassem indignação. Os alvos foram múltiplos e, em boa parte, francamente compartilhados, quase independentemente de classe social, como são os temas de mobilidade urbana, acesso a serviços públicos e referentes à agenda pós-materialista. Em consequência, com a ebulição de demandas públicas durante os protestos de junho, seria de se esperar que os respondentes carregassem com cores extremamente negativas a avaliação das “atuais condições do país”. Entretanto, o cenário era pintado de modo mais equilibrado, com exceção de um ou outro que apontava uma situação péssima, sem perspectivas de melhorias. A imensa maioria dos entrevistados fazia alguma avaliação positiva da situação do país, para, em seguida, ponderar com algum adendo de insatisfação, como referência a um processo inconcluso.
Os entrevistados expressam essa dualidade em frases do tipo: “o país cresce, mas não se desenvolve”, “o desenvolvimento econômico gera uma ilusão de que tudo está bem” ou ainda a percepção de que estamos numa “transição, essa coisa louca de crescer ou não”. Há muitos avanços, mas o hiato em relação às expectativas referentes às questões sociais e econômicas é mantido. Marcelo13, morador do Méier, reconhece que a economia vai bem e que continua crescendo devido às políticas assistencialistas, mas pondera que a questão social é ainda um grande entrave “que o IDH não revela”. Mariana, por sua vez, menciona que “a ascensão da classe média” lhe possibilitou comprar vários celulares, embora não contasse com educação ou transporte de qualidade. A mediação em relação a estas narrativas é feita com observações do tipo “tem muito a melhorar ainda” ou do reconhecimento de que estamos avançando “devagar, mas avançando pouco”. Um estudante, que se auto identifica como pertencente à classe C, relatou que percebia ao seu redor ascensão em vários aspectos, mas ponderou que não sabia se viveria “para ver tantas mudanças assim”. De certa forma, há certa euforia entre os entrevistados, mesmo que cautelosa, sobre uma propalada mudança de patamar, que parecia acionar uma espiral de expectativas e de novas insatisfações. Observe-se que os comentários, em sua maioria, expressam percepções difusas, avaliando a situação de forma geral, sem estabelecer alvos diretos ou responsabilização direta com governos ou partidos. O mecanismo em operação indicava a percepção de melhora nas condições de vida, seguida de expectativas crescentes e insatisfações com a lentidão do processo.
As respostas enfocaram temas como desenvolvimento econômico, questões sociais e redistributivas e a qualidade dos serviços públicos, basicamente saúde e educação, mas também, embora em menor medida, os bens e serviços ofertados pelo mercado. A corrupção também é um tema recorrente, mas não se resume ao setor público. O que aparece como novidade, em nosso corpus empírico, é a contraposição a comportamentos predatórios da própria sociedade em que pessoas tentam “tirar vantagem”, desrespeitam fila no supermercado, no trânsito, não respeitam assento preferencial em ônibus, motoristas que não param para idosos, pessoas que jogam lixo na rua. De forma autorreflexiva, uma entrevistada jovem, antes de reclamar do descaso da saúde pública, mencionou que havia tomado vacina para idoso, mesmo sem necessidade, porque sua mãe trabalhava em um hospital. A menção à corrupção “dos costumes” é assim vocalizada por Fábio, que havia participado de atos do MPL: “Não corrupção, mas uma desonestidade generalizada, da sociedade como um todo. No Brasil é muito hipócrita, muito fácil e clichê falar de político. O político representa a gente, mas muitos se tivessem oportunidade fariam igual ou pior.” Devemos retomar esse argumento mais à frente, por levar a um outro nível de reflexão o slogan, caro aos protestos, enunciado na frase “não me representa!”.
Por que fomos às ruas?
Após analisarmos anteriormente duas formas indiretas de perscrutar as insatisfações dos manifestantes, nesta seção, por meio da pergunta “o que motivou você a participar do protesto ou da manifestação em junho?”, voltamo-nos para as “justificativas racionalizadas”, que basicamente apontam para dois achados principais: os entrevistados, de forma geral, em suas “motivações declaradas” para participar dos protestos apoiavam-se em um frame interpretativo, quase um substrato, que concebia e associava de forma restrita e negativa a ideia de “política” à institucionalidade oficial e à cadeia de representação. Por outro lado, parte dos novatos assumia que havia aderido aos protestos devido à intensa mobilização das redes sociais digitais.
No caso daqueles que metaforicamente “chegaram depois” ao espaço público de contestação, sem participação política prévia - parte com a palavra de ordem triunfalista “o gigante acordou” -, os respondentes percebiam um engajamento acima do normal de pessoas “convidando” e “incentivando” a participação no ato do dia 20, como se as redes estivessem funcionando como um termômetro de um grande acontecimento por vir.14 Em parte desses casos, o aquecimento da rede foi a primeira justificativa para ir às ruas, sendo complementada em seguida por adendos racionais:
[...] empolgado de ver a geração na rua, quis fazer parte, e também pelas causas (Maria Eduarda, 24 anos, São João de Meriti).
[...] assim, o boom da manifestação que foi, fez um sucesso, porque independente da pessoa que ia, com a intenção que ia, era uma moda positiva. Ir na manifestação entrou na moda carioca.... Eu não me enquadro nesse tipo, eu tinha meus ideais para ir, mas eu gostei disso. Porque você ir sem saber por que, mas você estar lá, já é alguma coisa. Está lá somando. [...] Prezo pela mudança, para que o cara quando sentar em Brasília, pensar - o que vou fazer hoje para resolver e ajudar a mudar, cansei de roubar, não preciso mais, não quero mais pegar dinheiro público e fazer farra (Carlos, 20 anos, morador da Gávea).
No grupo com experiência política prévia, havia dois manifestantes com perfil de participação política mais eventual: um deles havia se envolvido com a “questão do bandejão” da universidade e participava do jornal estudantil e o outro havia participado de um ato “que deu rolo no ENEM”. O primeiro fazia a seguinte ressalva: “Não é uma manifestação política, mas foi um envolvimento social por um bem comum. Mas não sou militante”. E o segundo queixava-se da tentativa do “interesse privado se sobrepor”, por meio de lobbies das empresas de ônibus por tarifas elevadas e das empreiteiras com os gastos do mundial de futebol. A exceção, neste caso, manifesta-se como uma das poucas identificações claras do setor privado como alvo. Na maior parte das vezes, os problemas são imputados apenas ao Estado e aos políticos. Ou seja, a questão está no topo da cadeia de delegação ou da representação política. Esses casos contrastam, por exemplo, com os indignados da Espanha ou com o movimento Occupy Wall Street, nos quais o setor privado é trazido para o centro do turbilhão de insatisfações (Castells, 2013).
Quatro respondentes apresentavam maior predisposição à participação política. Um deles menciona atuação no movimento estudantil e em movimentos sociais, relatando presença em ato na aldeia Maracanã. Outra respondente, de 21 anos, diz que participava de forma esporádica em movimentos sociais, com amigos, e que aos 16 já participava de marchas para Zumbi. Ela afirmou de forma categórica que “para algumas pessoas o gigante nunca dormiu”. Outros dois respondentes mencionaram participação na marcha da maconha, na “marcha das vadias” e em movimentos feministas - ao que sentenciam, respectivamente, “acho que nada muito diretamente político” ou “atuação política efetiva de fato nenhuma”. Outro, morador do Méier, afirmou que se sentia representado pelo movimento LGBT e pelo movimento negro.
Há dois outros exemplos interessantes, porque ilustram disposições em relação à política partidária tradicional. Moradora de Nova Iguaçu, 24 anos, disse que nunca havia ido a manifestações porque tinha medo e os pais desestimulavam. Frequentava reuniões do PV, mas “nada muito oficial”. Disse que não se filia porque tem “pé atrás com partidos”. Por outro lado, Márcio, estudante de 20 anos, morador de Laranjeiras, informou que tinha um contato crítico com o PSOL, que havia começado há menos de um ano. Hoje é militante de um coletivo de uma tendência interna do PT, mas não filiado. Diz que o que o motivou a participar dos protestos foi uma série de pautas que emergiram em uma plenária na universidade a favor da desmilitarização da polícia e com a proposição de união das esquerdas contra o fascismo e para opor-se às posições antipartidárias que se espalharam na manifestação do dia 20. Em resumo, apesar da contraposição ideal em dois grupos, identificamos em ambos uma concepção de política arraigadamente negativa, em parte pela associação da política oficial com “a” política.
O ritual de preparação e participação no protesto.
No grupo de manifestantes sem participação prévia é comum haver relatos mais “performáticos” da participação e “percepções monolíticas” do evento ao interpretar a reunião heterogênea de pessoas e grupos nos atos. A confecção de cartazes sinalizava temas mais genéricos e uma preparação prévia que envolvia símbolos nacionais, como bandeiras ou camisas do Brasil, pintar o rosto de verde e amarelo, além de menções a cantos de tipo patriótico/festivo: “sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor” ou com tom mais festivo, “moro num país tropical”.
O evento iniciava-se antes mesmo da chegada ao centro da cidade. Valentina foi à casa da prima, fez e postou cartazes no Instagram e no Facebook avisando que estava saindo. Beatriz fez dois cartazes: um escrito “Copa das manifestações” e outro “Basta”, e os postou na rede. Outra entrevistada mencionou que confeccionou cartazes em grupo, com as consignas “ou para a roubalheira ou paramos o Brasil” e “o gigante acordou”. Além dos temas genéricos, há um tom mais festivo nos rituais de participação, fato que não passou despercebido por alguns deles. Isabella, por exemplo, resume sua participação da seguinte forma: “até porque lá não era só protestar, era uma certa brincadeira misturada com protesto”. Yasmim foi com a blusa do Brasil, apreensiva e com medo da violência, “num clima meio de festinha [...] nada muito dedicado”. José afirmou que foi uma “aventura para contar para os netos”.
Nesse grupo, além de consignas genéricas, emergiu um “discurso totalizante” estruturado em símbolos nacionais, que reforçava a identificação de interesses harmônicos e a presença de pessoas de todas as classes e idades. Fernanda diz que fez cartazes contra a corrupção “para não perder o foco” e destacou o sentimento “de estar todo mundo ali junto em prol de um objetivo”. Ressaltou ainda que “tinha gente de todas as classes sociais e idades, porque tinha uma especulação de que era elitista”. Alberto foi com amigos e relatou que, quando viu aquela quantidade de gente, percebeu que estava fazendo a coisa certa. Levou uma canga na cabeça, com a bandeira do Brasil, cantou o hino e ficou impressionado com o fato de que havia pessoas que não tinham nenhum contato prévio, “mas que dividiam as mesmas opiniões”. É interessante ressaltar um extrato, que indicava animosidade em relação às manifestações organizadas antes das jornadas de junho:
[ao relatar não ter participado em ato anterior] [...] não acredito que não estou lá, sabe? Minha mãe não queria porque as manifestações pré-junho não eram bem-vistas. Era sempre um bando de arruaceiros, querendo arrumar confusão. Eram pequenas, não chamavam atenção, então eram meio que clandestinas (Maria, 21, Barra da Tijuca).
Há pontos de interseção com aqueles que apontaram ter participação política prévia? Neste grupo, há a percepção de que acedeu às ruas um tipo diferente de público, que não estava presente em atos anteriores, identificados com demandas “alienadas” e rituais de participação festivos. Em resumo, cerveja, micareta, coreografias, marchinhas e cartazes irônicos, mas sem conteúdo, são constantemente citados para exemplificar a mudança no perfil. A negação da pluralidade, ou a defesa da unidade,15 é também citada como uma forma de hostilidade à esquerda.
Lucas identificou palavras de ordem que considerava alienadas, entre elas o frequentemente entoado “sem violência”, como também o fez Pedro acerca dos gritos vagos “contra a corrupção”. Márcio, por sua vez, reforça e expande o argumento, alertando que a corrupção não está presente apenas só no setor público, mas também no setor privado, e que faz parte da cultura do dia a dia. Ao mesmo tempo, o estudante levanta como bandeiras a desmilitarização da polícia e a democratização dos meios de comunicação, defendendo que essas são demandas muito concretas, discutidas em plenárias estudantis e decididas por votação. Este exemplo é fundamental, pois menciona um processo que envolve deliberação, uma agência que não é de tiro único e que não se encerra em um evento.
Sofia, que já havia participado de outras três manifestações em junho, disse que percebeu um público diferente, com bandeiras do Brasil e a cara pintada, que não sabia por que estava lá. “Vi muito cartaz bonitinho, engraçadinho, para aparecer no Facebook”. Ao mesmo tempo, reconheceu, como efeito não intencional, que muitas pessoas procuraram se politizar mais. Rafaela reclamou que muitas pessoas foram “achando que era um tipo de evento”. Em geral, havia a constatação de que o público havia se diversificado muito e que o pessoal do “sem partido” havia tomado as rédeas.
achei antidemocrático, vi pessoas apanhando por conta disso. Quem diz que aquela pessoa que está sem bandeira realmente não tem um partido? Muito diziam-se apartidários, mas aí você conversava com as pessoas, tinha sim partido, tinha sim uma posição de direita, aí ficava naquela de sem partido. Vi muita truculência. E tinha várias bandeiras lá, mesmo que não fossem partidárias (Lívia, 27, Andaraí).
Obviamente, devemos ressaltar que o tipo ideal aqui proposto é imperfeito. Dois casos de jovens com experiência política prévia personificam esta ambiguidade. Entre eles, a estudante Gabriela, que foi à manifestação com roupa branca, portando um cartaz contra a corrupção, que participou da coreografia de “abaixar e levantar” e reclamou da falta de empolgação dos manifestantes. Identificou alguns cartazes como ótimos, com destaque para o “eu não preciso de cura gay, preciso de bolsa Prada”. Ou, tal como na reflexão de Helena, que saiu de casa com a irmã, com medo, encontrou muita gente bebendo cerveja e se perguntou: “qual o intuito dessas pessoas? E qual o nosso? [...] Porque essa coisa do Facebook foi muito forte”.
A rejeição aos partidos políticos
Na quinta-feira, dia 20, durante o ápice dos protestos, difundiram-se pela rede relatos de agressões a militantes de esquerda e a ativistas de movimentos sociais, expressão da ampliação da heterogeneidade do público que tardiamente acedeu à esfera pública das ruas. Esses episódios marcantes de violência política tiveram um impacto significativo nas análises sobre a natureza ideológica dos protestos e contribuíram para uma interpretação generalizada de antipartidarismo entre os manifestantes. No entanto, esse rótulo genérico não nos fornece pistas sobre as inclinações dos manifestantes, se eles expressavam sentimentos partidários de indiferença ou de alienação.
No grupo de jovens sem participação política prévia, as justificativas para a rejeição às bandeiras dos partidos políticos seguem basicamente dois padrões. Uma posição ponderada considera desnecessária a participação dos partidos nos atos “naquele momento” e, embora, não se apregoasse a negação dos partidos, costumava-se externar uma concepção cética sobre sua atuação. Alice, apesar de considerar positiva a rejeição durante o ato, afirma que é importante ter partido e não votar em branco. Beatriz também defende a tese da inadequação do momento, mas considera um contrassenso impedir a liberdade de manifestação de opinião, assim como Igor, ao afirmar que os partidos são essenciais à democracia. O ceticismo é alimentado pela concepção essencialista de que essas organizações agem de forma predatória e corrupta, e pelo pressuposto de que tentariam se aproveitar da manifestação por meio de autopromoção. Para exemplificar esse diagnóstico de um “ceticismo essencialista”, um dos entrevistados manifestou uma clara aversão ao PT, mas no decorrer da entrevista ponderou que todos os partidos “fariam o mesmo”, enquanto outro afirmou que o objetivo seria “atingir quem está no poder” para, em seguida, fazer a ressalva, de caráter premonitório, de que aqueles que estão na oposição iriam “fazer igualzinho”. Nesse sentido, é perceptível um consenso negativo que atinge todos os partidos, independentemente da coloração ideológica:
[...] não queriam que se manifestassem, mas partido é algo da democracia, não tem como impedir. Muita gente agiu de forma irracional [...] a rejeição é natural, porque partidos têm trajetória manchada ao longo dos anos. O PSDB tem a privataria tucana, o PT tem o mensalão. Vinculam a uma grande decepção. Mas fazem parte da democracia. Você não pode impedir (Marcelo, 24, Meier).
Acho certo, não podia ir de camisa vermelha por causa de certo partido, não? É contra a política, o jeito da política de agir. Se esses partidos estivessem lá fariam a mesma coisa. Sabem que vão apanhar, [...] não com certo partido, mas com o sistema em geral. A violência sou contra. O PT é horrível, mas não só contra o PT, caso fosse o PT ou PSDB (José, 21, Laranjeiras).
[...] era o povo lutando contra qualquer um. [...] a gente está contra a corrupção do Brasil. Todos os partidos daqui tem roupa suja, imunda. O PSOL tem gente sendo investigada (Clara, 26, Jardim Botânico).
Outra posição, a mais negativa, esta sim de caráter antipartidário, apoiava-se na ideia de união “do povo” e reforçava a importância de um ato não partidário. Tal como expresso por Carlos, “você não quer dividir, quer agrupar, pelo Brasil, não pelo partido”. Em um dos casos, essa concepção monolítica e não pluralista é levada ao extremo ao interpretar o papel de uma das principais clivagens da política:
O que o cara de esquerda quer mudar é exatamente o mesmo que o cara de direita, só que os ideais são outros [...]. O que adianta juntar, se no final você vai dividir. A população saiu para protestar contra o governo, tem que ir todo mundo junto. Então, sou contra. Ir para protestar, não importa o foco dos dois, pode ser de direita, pode ser de esquerda. Quer mudar, 90% de chance de ser a mesma coisa. Você tem que ir pelo Brasil, não pelo partido (Carlos, 20, Gávea).
Por sua vez, parte dos manifestantes com participação política prévia criticava abertamente a “visão orgânica” da política, representada pelo “povo”, e o argumento do apartidarismo, porque considerava que se voltava especificamente contra os partidos e movimentos de esquerda:
[...] vieram uns caras meio fortões, sem blusa, como se estivessem na micareta. - ‘ah isso aqui não é política, é sem partido’ [...]. Aqui não tem política, é tudo uma coisa só (Sofia, 24, Nova Iguaçu).
[o pessoal do] sem partido, começou a ficar mais violento, tacar pedras e intimidar, partiram para cima, vários confrontos. Tivemos que tirar todas as camisas e bandeiras. Dispersamos, vimos que estava perigoso e voltamos para casa [...]. O público tinha diversificado muito, gente tomando cerveja, sem camisa, com chapéu de carnaval. Não é sem partido. É exatamente para aqueles partidos que sempre foram às ruas e que foram criminalizados e os movimentos sociais (Márcio, 20, Laranjeiras).
Entretanto, neste grupo, cinco entrevistados não se posicionaram incondicionalmente a favor da participação dos partidos. Gabriela, por exemplo, afirma conhecer militantes do PSOL e do PSTU, pessoas engajadas, mas, ao mesmo tempo, considera que “não ter bandeira torna tudo mais democrático”. Por sua vez, Renato afirma primeiramente que, se não “fossem eles, não estaríamos lá”, para em seguida repetir o jargão de que não se deve desunir a multidão “contra o inimigo comum”.
Para a maior parte desse segmento, entretanto, a ideia de inadequação do momento é substituída pela validação diacrônica - os movimentos e os partidos de esquerda sempre estiveram presentes nas ruas, “há muito mais tempo”, em contraposição a “quem chegou agora”, fato que desautorizaria a crítica de oportunismo político:
[...] há partidos e partidos, alguns são ativos nos movimentos sociais, tem história de participação, são legítimos. Apartidário é diferente de antipartidário. Não pode agredir como vimos. Gente falando em acabar com partidos, é um retrocesso. Partidos são clara demonstração da democracia, do direito a ter opiniões (Pedro, 20, Niterói).
[Disse achar estúpido, porque] “você quer ser ouvida, mas ao mesmo tempo quer que as pessoas se calem. As ferramentas que temos para chegar ao poder são os partidos. É uma expressão da democracia (Mariana, 23, Botafogo).
Os relatos de violência daqueles dias foram perturbadores e, obviamente, ajudaram a consolidar uma percepção de rejeição absoluta (e igualmente essencialista) do papel dos partidos políticos, não apenas os da esquerda. Se por um lado, em termos impressionistas, foi visível a presença de grupos com inclinações antidemocráticas, por outro, o juízo mais corrente nas entrevistas foi ancorado em uma visão cética da atuação de todos os partidos - o que não implica necessariamente na negação de sua função “procedimental”. A questão aqui reside na (in)distinção conceitual entre indiferenciação e alienação partidária (Dassonneville; Hooghe, 2018; Fuks; Borba, 2021), isto é, sobre a interpretação acerca dos “sentimentos partidários”, com a indicação de que o último tipo, antissistema e antidemocrático, não era majoritário em nosso corpus empírico.16
Cognição política e expectativas sobre a representação
De forma geral, o público formado por aqueles sem participação política prévia apresentava baixo nível de investimento cognitivo em informação política, como vimos pela maneira como relataram o ritual de participação ou pela avaliação “orgânica” que fizeram dos protestos. Isso se confirma em outras partes das entrevistas, em que oito respondentes relatam de forma espontânea que não se informavam sobre política.17 As entrevistas, de forma geral, desnudam uma percepção da política como delegação e direcionam suas reivindicações às instituições tradicionais. A crítica geral ao “sistema” não se concretiza em um diagnóstico de esgotamento do sistema representativo, nem na defesa de outras formas de democracia direta. E aqui nosso argumento principal: a desconfiança endêmica acerca da atuação das instituições, mas também dos indivíduos/cidadãos, aponta para uma aposta resignada em uma possível melhora futura do comportamento dos representantes - o que eu designo como esperança cética na delegação política. Às vezes, o ceticismo é expresso de maneira crua, como na expectativa de uma das entrevistadas “de que pelo menos roubem menos”, ou em outro estrato em que o entrevistado diz que não acompanha a política, mas espera que “eles façam um bom trabalho”.
A autodeclaração de “analfabetismo político” convive, em parte dos entrevistados, com sentenças que atribuem a outros a culpa pelas mazelas do sistema político. Nesse caso, a referência modal é o programa Bolsa Família, várias vezes evocado de forma espontânea nas entrevistas, com tons carregados de preconceito contra os beneficiários ou com inferências que remetem a formas de controle político de uma massa disforme. Nesse caso, as menções referem-se à compra de votos, à criação de currais eleitorais, ao voto de cabresto no Nordeste e ao voto de analfabetos. Alberto sentencia que “o povo brasileiro é muito facilmente ludibriado pela política”. Fernanda, ao mesmo tempo em que diz que irá se abster nas próximas eleições, afirma que “a grande maioria vai votar como sempre votou, a maioria que faz a diferença nas votações não tem informação”.
Se os casos anteriores podem, em tese, indicar um potencial viés político à direita, há outro conjunto de participantes que não apresenta posições tão claras e definidas ou que ainda não completou seu processo de formação de preferências políticas. Neste segmento, os entrevistados mencionam pautas genéricas e ideias políticas fragmentadas, quando não “inconsistentes”, tal como Beatriz, que afirma ser interessante a ideia de um estado regulador, em que o setor privado exerça a maioria das atividades, o que atribui a Fernando Henrique Cardoso, para em seguida emendar: “não me representa!” Ao mesmo tempo, diz reconhecer que Lula tem ideias interessantes, que partilharia com ele o mesmo senso crítico. Já Yasmim diz que não votaria mais no PT, que estava pensando em Marina Silva, mas expressou dúvidas por conta da “composição esquisita que ela fez”. Por fim, esta entrevistada autoidentificou-se como liberal, afirmando que acredita que o mercado se regula. Esses trechos, se de um lado demonstram formulações fragmentadas, de outro sinalizam que a tese do antipetismo também necessita ser requalificada.
Neste grupo, há a interpretação dominante da corrupção como parte inerente da política, que reforça sentimentos de rejeição e ao mesmo tempo de resignação, que se mistura com uma cultura política de cidadania que prescinde da participação e do ativismo, com a expectativa de que esses mesmos políticos, que são rejeitados, devam gerar bens públicos e “ajudar a quem necessita”. A interpretação corrente é que “o sistema” é corrompido, gera incentivos ao enriquecimento e faz com que uma minoria que se arrisque a enfrentá-lo morra por inanição: “política é como bater com a cabeça na parede”. Os honestos se deparariam com um ambiente inóspito, enfrentando os outros 99% e sofrendo a chance de “contaminação”,18 uma hipótese que aponta de forma explícita para um diagnóstico de comportamento do brasileiro médio que alimenta esse padrão predatório, representando um dilema do prisioneiro que alimenta a desconfiança e a reiterada deserção. Um deles sentencia que se “os manifestantes estivessem lá, provavelmente fariam o mesmo”.
A ideia de agência individual some com a redução reiterada da política à sua forma de delegação institucional, a principal forma reconhecida pelos respondentes sem participação prévia. A expectativa de que “eles façam” é combinada a esse pessimismo e à resignação fatalista de que, pelo menos, “roubem menos” ou de “que não se vendam tão fácil”. Exemplos de honestidade, decência e altruísmo são citados como possíveis mecanismos de redenção, a par do reconhecimento de que sofreriam veto do sistema. Como vimos anteriormente, o veto não se resume aos políticos profissionais, visto que a visão prospectiva, baseada na desconfiança, adverte que aqueles que ingressarem na política farão o mesmo. A cadeia de delegação deveria ser preenchida por lideranças notáveis - exemplos citados são Gandhi e Churchill - que “vão responder por alguém ou por várias pessoas”.
Neste nevoeiro aparecem, embora minoritárias, algumas concepções minimamente simpáticas à política, que implicam em participação política na sociedade civil. Igor ressalta que “existe uma divisão de poderes, e nem todo mundo está integrado em falcatrua. Yasmim expressa que “política é tudo que a gente faz dentro de uma sociedade [...] e que interfere na vida das pessoas”, enquanto Patrícia afirma que “política não é só o sistema político, você faz diariamente”.
E quais seriam as concepções dos manifestantes que possuem algum grau de participação política prévia? Existem pontos de contato? Mesmo aqui, sete entrevistados reconheceram ter baixo grau de investimento informacional em política. Entretanto, alguns deles afirmam que aumentaram seu grau de consciência e que passaram a “focar mais em política” após a deflagração das manifestações. Sofia, que participava informalmente de reuniões do PV, disse que, após participar das manifestações, despertou seu interesse em saber o que um deputado faz e sobre o funcionamento da separação de poderes. Fábio, que havia participado do MPL em Salvador, afirmou que não se informava sobre política, apenas dava uma olhada nas manchetes e que não tem tempo nem interesse. Rafaela, por sua vez, relatou que “não acompanha os candidatos, mas espera sejam pessoas menos corruptas”.
Dos outros seis é difícil fazer inferências sobre o nível de informação, mas, de certa forma, é possível observar um processo de formação de preferências não consolidadas. Um exemplo ilustrativo é a posição de Gabriela que elogia o Plano Real, as privatizações e, também, o Bolsa Família. Diz que não gosta da figura do Lula e que também não é “anti-FHC” (definição não muito entusiástica), mas que sua família vivia melhor durante seu governo.
O afastamento da política “oficial” ou tradicional por parte destes jovens igualmente apoia-se, embora parcialmente, no diagnóstico da corrupção. Esse diagnóstico pode resultar na percepção do esgotamento do sistema representativo, mas, em nosso corpus, essa visão é minoritária, ou em uma aposta resignada de esperança “cética” na delegação política (os dois últimos extratos):
[...] sistema representativo parlamentar não nos serve mais. Questão do financiamento privado de campanhas, interesses das empresas e empreiteiras. A população não se sente representada [...]. Partidos demais submetidos ao pragmatismo e a governabilidade” (Márcio, 20, Laranjeiras).
[...] eleição é coisa séria. [A corrupção existe], mas não por causa do governo, independe, vai ser em qualquer governo. Acho que está no sangue (Renato, 22, Méier).
Ser humano é corruptível. Você sempre vai proteger mais seus amigos, sua família, isso é humano [embora nepotismo seja errado]. Política para mim é muito uma questão de crença, você acreditar em uma pessoa, você depositar suas esperanças de que ela vai te representar (Gabriela, 20, Vila da Penha).
A votação é mais importante para mudar do que as manifestações. Que consigamos eleger bons políticos, que façam melhorias e que pelo menos [eles] tentem lutar pelos nossos direitos. Acho que falar que não sejam corruptos é complicado... política são formas de o governo tentar melhorias para a gente (Rafaela, 24, Copacabana).
Novamente, essas falas retomam as expectativas do adequado funcionamento e não de negação da representação, dado a reiterada afirmação da importância do voto e das eleições. No entanto, esses jovens optaram por formas de engajamento e de ativismo distanciadas das instituições políticas tradicionais, que, como vimos, não são consideradas como orientadas ao bem comum.
Vale a pena insistir que a variável de controle, grau de participação política, inclui um grupo muito heterogêneo de jovens com vínculos organizacionais e níveis de intensidade de engajamento ou ativismo muito díspares, que, somados aos fatores inexperiência e baixo nível de investimento em informação política, indicariam um processo inconcluso de formação de preferências. Os dois exemplos a seguir ilustram esta heterogeneidade. Um deles, Fábio que participou de atos do MPL em Salvador e se dizia simpatizante do governo Dilma, criticou um grupo de ativistas acampados que reivindicava o impeachment do prefeito e do governador: “Eu não apoio, acho uma palhaçada, passo na Cinelândia e o povo está lá acampado. Eu me pergunto se esse povo não tem o que fazer?”. Outro entrevistado, por sua vez, ressaltou a entrada em cena de novos repertórios de ação política:
O diretório acadêmico daqui não é uma chapa, ele é aberto, todo mundo contribui de alguma forma, ele é horizontal, a gente faz grupos temáticos para organizar coisas [...] na faculdade fizemos discussões e ainda estamos fazendo para entender essa questão dos movimentos sociais (Nádia, 20, Paracambi).
Considerações finais
Junho de 2013 trouxe às ruas a presença massiva de “first timers” (Verhulst; Walgrave, 2009) ou de uma “maioria fragmentada” (Pinto, 2017). Isso não seria novidade, a não ser pelo novo contexto em que se desdobraram essas manifestações: a presença de mídias sociais descentralizadas, a falta de coordenação centralizada por lideranças organizadas, a ausência de frames comuns e, em consequência, a inexistência de demandas concretas dirigidas à institucionalidade política, o que seria interpretado como um epifenômeno contra a representação política e contra os partidos políticos. Apesar de estarmos de acordo com estes juízos genéricos, entendemos que era necessário explorar melhor os substratos destas insatisfações. Uma síntese razoável aponta, então, para uma maioria que não se identificava com partidos (o que não necessariamente significa antipartidarismo) e era heterogênea ideologicamente.
Dito de outra forma, com a abertura de uma estrutura de oportunidades favorável, um amplo espectro de manifestantes encontrou-se nas ruas com as mais diversas insatisfações (Tatagiba; Galvão, 2019). A partir da análise heurística, que diferenciava dois grupos de manifestantes distintos pelo seu grau de engajamento político prévio, buscamos dialogar com parte da literatura que identificou duas modalidades diferentes de constituição de sujeitos políticos no desenrolar das Jornadas de Junho. Dentre os achados principais, documentados ao longo do artigo, vale a pena ressaltar que está solidificada uma concepção extremamente negativa da política, geralmente associada à “política oficial”, mesmo para aqueles que atuavam, com graus variados de intensidade, em coletivos, em movimentos sociais ou mesmo em ações políticas pontuais. Por outro lado, havia um consenso negativo que atingiu todos os partidos, independentemente da ideologia, ao mesmo tempo que os entrevistados reconheciam, de forma paradoxal, sua relevância em termos de representação procedimental.
Por certo, havia grupos extremistas que partilhavam uma perspectiva que rechaçava os partidos, e concomitantemente, a pluralidade política. Não obstante, devemos insistir: não havia unidirecionalidade ideológica do fenômeno, fato atestado por vários surveys, quanto por nossa análise que evidenciou a presença de jovens ainda em processo de formação de suas preferências políticas e com baixo grau de investimento em cognição política. Na maioria dos casos, verificamos nos entrevistados uma perspectiva de “aposta cética” no funcionamento da representação política, com lastro em uma concepção essencialista do papel dos partidos políticos, reduzidos a uma dimensão de competição predatória pura e simples. Adicionalmente, outro elemento que apareceu de forma espontânea nas entrevistas foi a verbalização de uma “desconfiança generalizada”. Nesse sentido, a indagação provocativa do título do artigo foi inspirada na expectativa expressa por alguns dos entrevistados de que a oposição e os manifestantes “fariam igual” se estivessem nos representando na institucionalidade política.
Deparamo-nos, então, com dois desafios à democracia e à institucionalidade democrática. No segmento representado pela maioria fragmentada, a ausência de participação política, o acento no tema da corrupção como questão moral e a desconfiança generalizada criam as condições para o apoio e a adesão a soluções de tipo hobbesiano.19 Por sua vez, no grupo dos jovens que têm algum grau de participação política, o ceticismo os empurra para ações fora da institucionalidade, com o potencial de realimentar o ciclo vicioso de um equilíbrio instável entre cidadãos e instituições representativas, como sugerido por Putnam (1993).
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O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
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Agradeço os valiosos comentários dos pareceristas, que contribuíram significativamente para a versão final do texto. Como de praxe, as alterações e a versão final são de minha inteira responsabilidade.
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Para uma discussão sobre o caráter relacional da ação contenciosa de contramovimentos sociais e o negligenciamento dos movimentos políticos à direita ou conservadores, ver o artigo de Silva e Pereira (2020).
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Espontaneidade é uma palavra frequentemente mencionada durante a emergência dos protestos de junho, em contraste com ciclos de confronto anteriores. No entanto, isso não implica que não tenha havido a participação de atores organizados na mobilização e na produção de enquadramentos (Silva; Pereira, 2020; Bringel, 2022).
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Cabe ressaltar que estamos tratando aqui das percepções dos indivíduos sobre a estrutura de oportunidades políticas, e não das condições objetivas em si. Ao longo da análise do nosso corpus empírico, e reconhecendo todas as limitações em relação à possibilidade de generalização dos resultados, mostraremos que nossos entrevistados avaliavam positivamente as condições econômicas do país.
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Embora restrito à passeata realizada na Avenida Paulista, o survey do Datafolha, realizado em 20 de junho de 2013, por sua vez, confirmou igualmente a presença de um público diversificado ideologicamente, com 36,2% dos manifestantes classificando-se como de esquerda, 30,7% de centro e 20,7% de direita. Outros 12,5% não sabiam como se auto classificar no espectro ideológico.
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Os autores demonstram que, no Brasil, o partidarismo positivo concentra-se no PT, assim como o partidarismo negativo.
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O survey foi aplicado presencialmente pelos estudantes de graduação no dia 20 de junho de 2013, com um questionário curto, composto por questões sociodemográficas e perguntas sobre os motivos para a participação nos protestos. Estes dados não são analisados neste artigo. As entrevistas em profundidade foram realizadas por mim, com a coparticipação das antropólogas Nádia Côrrea e Lídia Canelas, além da estudante Gabriela Mayall, da graduação em Ciências Sociais, a partir de um roteiro semiestruturado padronizado. Toda a análise do corpus empírico foi feita exclusivamente pelo autor. A maioria das entrevistas foram realizadas na sede da Fundação Getúlio Vargas, e foram gravadas em áudio com o consentimento dos entrevistados e, posteriormente, transcritas para a análise. As entrevistas foram codificadas em uma planilha de Excel, a partir da seleção de algumas perguntas ou temas-chaves do roteiro.
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Como limite, devemos reconhecer que nossa análise e as evidências extraídas do corpus empírico são, necessariamente, influenciadas pelas especificidades, pelo perfil socioeconômico e sociabilidades dos indivíduos ancorados no contexto local, isto é, na cidade do Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, com o advento das redes sociais virtuais, estes mesmos indivíduos não apenas são influenciados, mas também influenciam dinâmicas não limitadas territorialmente.
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Refiro-me aos surveys do Datafolha realizados nos dias 17 (na concentração no Largo do Batata na cidade de São Paulo) e 20 de junho (Durante a passeata na avenida Paulista) e do IBOPE realizados em oito capitais (dos Estados de SP, RJ, MG, RS, BA, DF, PE e CE), também no dia 20 de junho.
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Segundo surveys, com metodologias e amostragens diferentes, realizados durante junho de 2013, a presença de “novatos” (aqueles que participavam pela primeira vez) variava entre 40% e 70%. A amostra do Datafolha no Largo do Batata, em São Paulo, indicava que 71% participavam pela primeira vez. No dia 20, na avenida Paulista, eram cerca 40%. Por sua vez, pesquisa do IBOPE em 8 capitais apontou que para 46% “protestar era um hábito novo”. Em nossa amostra de 316 entrevistados, no dia 20, na Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, 67% estavam participando pela primeira vez nas jornadas de junho.
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Os nomes usados, para fins de anonimização, são fictícios.
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Alguns trechos de diferentes entrevistados ilustram o argumento: “esperança de mudança, de que o povo acordasse, porque é um escândalo atrás do outro. Percebi uma mobilização muito grande”, “as redes sociais em fervorosa, meus amigos insistindo, dizendo que não ia ser perigoso”, “curiosidade, o pessoal me convenceu”, “coisa nova, que todo mundo foi incentivado”.
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Sobre esta interpretação, vale a ponderação de Verhulst e Walgrave (2009, p. 8): “Os manifestantes novatos são mais “ingênuos”, mais impressionados pelo próprio evento de protesto [...]. Em comparação com os manifestantes experientes, os novatos são caracterizados por um sentimento mais forte de identidade coletiva e identificação com os outros manifestantes”.
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Não é nossa pretensão “mensurar” quantitativamente as opiniões dos entrevistados. Ao contrário, a ideia é insistir na diversidade de opiniões e perspectivas sobre a natureza dos protestos e, principalmente, matizar as interpretações acerca da alegada rejeição aos partidos.
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Alguns extratos referentes a diferentes indivíduos ajudam a ilustrar este ponto: “Não me considero politizado”; “Eu não acompanho muito política, é até errado isso. Agora sim”; “Eu conheço muito pouco de política”; “Confesso que sou totalmente um analfabeto politicamente, nunca liguei não gosto de política”; “Não tenho paciência. Nunca tive vontade”, “Eu não estou nem aí, só quero que eles façam um bom trabalho”. Outro exemplo: um entrevistado disse admirar Marcelo Freixo, mas se questionava se ele era do PSDB ou do PSTU.
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Um dos entrevistados, após ressaltar que o pai é uma pessoa honesta, menciona que o impediu de se candidatar a vereador, a partir dessa chave interpretativa de funcionamento do sistema político como esfera de contaminação.
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O acento na perspectiva moral pode ter diversos desdobramentos. Isto inclui a oposição monocromática entre o bem e o mal, a suposição de que a corrupção é o principal problema da democracia, ou seja, a visão de que o sistema está contaminado tanto “por cima” quanto pelo “oportunismo” e deserção generalizada entre os concidadãos. Essa perspectiva pode levar a uma interpretação política de que apenas um líder com qualidades notáveis pode resolver os dilemas da ação coletiva e o persistente equilíbrio negativo da não cooperação, por meio de soluções centralizadoras e/ou autoritárias.
Editado por
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Debora Rezende de Almeida
-
Rebecca Neaera Abers
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
24 Fev 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
01 Fev 2024 -
Aceito
16 Out 2024