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Seria a luta por reconhecimento uma aspiração à agência soberana?

Would it be the struggle for recognition an aspiration to sovereign agency?

Resumo

O objetivo deste artigo é escrutinar as críticas tecidas pelo filósofo estadunidense Patchen Markell aos autores situados no campo das teorias do reconhecimento, reconstruindo, por meio de seus questionamentos, as obras dos pesquisadores com os quais ele se propôs a dialogar, e indicando, por intermédio desse procedimento, inconsistências em suas problematizações, decorrentes do fato de Markell não ter avaliado adequadamente o percurso argumentativo adotado pelos autores. O estudo toma como eixo central a obra Bound by Recognition, publicada por Markell em 2003, e a análise permitiu, inclusive, apontar que, a despeito da contribuição oferecida pelo autor com a proposição de uma política do acknowledgment, tal projeto teórico não se delineia como a panaceia de incongruências associadas ao reconhecimento, mas se insere na mesma agenda das teorias que aventa questionar.

Palavras-chave:
filosofia política; reconhecimento; soberania; acknowledgment; Patchen Markell

Abstract

The aim of this paper is to scrutinize the critiques made by the American philosopher Patchen Markell to the authors situated in the field of theories of recognition, reconstructing, through their questions, the works of researchers with which he proposed dialogue, and indicating through this procedure inconsistencies in their problematizations, arising from the fact that Markell has not evaluated properly the argumentative route adopted by these authors. The study takes, as central axis, the work Bound by Recognition, published in 2003 by Markell, and the analysis has even point out that despite the contribution made by the author with the proposition of a politics of acknowledgment, this theoretical project does not outlines as the panacea of problems associated with recognition, but it is characterized as a proposal inserted in the same agenda of the theories that was suggested to question.

Keywords:
political philosophy; recognition; sovereign; acknowledgment; Patchen Markell

Introdução

Desde que os debates no âmbito da filosofia política foram alimentados pelas questões suscitadas por vertentes das teorias do reconhecimento, tendo como grandes catalisadores a publicação de 1992 de Charles Taylor (um ensaio acerca do multiculturalismo intitulado A Política do Reconhecimento) e a tese de livre-docência de Axel Honneth, do mesmo ano, que tem por título Luta por Reconhecimento, ambas inspiradas nas obras de Hegel, expressivas críticas direcionaram-se aos trabalhos desses autores no transcorrer das últimas décadas, abordando questões específicas que foram consideradas negligenciadas ou formuladas de maneira equivocada em seus textos.

Em meio a uma seara de pesquisadores que propuseram revisões ou mesmo o abandono de elementos provenientes dessas teorias,2 2 Tomemos como exemplo as críticas que Nancy Fraser (2003) endereçou a Axel Honneth, ou ainda os entraves que Lois McNay (2008) procurou identificar nas teorias do reconhecimento em sua totalidade. serão recuperadas, neste texto, as reflexões de um autor que se propõe, em certa medida, a negar a própria validade da luta por reconhecimento. No livro Bound by Recognition, do filósofo estadunidense Patchen Markell (2003______. Bound by recognition. Princeton: Princeton University Press, 2003. ), e em publicações suas que antecederam ou procederam os esforços condensados nesse trabalho (Markell, 2000; 2006; 2007), esse tipo de luta é entendido como uma forma de aspiração à soberania, na medida em que teria como fio condutor uma busca por autoconhecimento. Mais de uma década após o lançamento de sua contribuição mais fértil ao debate, a reinterpretação crítica das teorias do reconhecimento proposta por Markell reverbera, seja em incursões empíricas balizadas por seu marco conceitual (Muldoon e Schaap, 2012MULDOON, Paul; SCHAAP, Andrew. Confounded by recognition: the apology, the High Court and the Aboriginal Embassy in Australia. In: HIRSCH, Alexander (Ed.). Theorising post-conflict reconciliation: agonism, restitution and repair. New York: Routledge, 2012. ), seja em revisões de literatura dedicadas a apreender as variações da leitura de Hegel pelo viés do reconhecimento (Fareld, 2012FARELD, Victoria. The re-in recognition: Hegelian returns. Distinktion - Scandinavian Journal of Social Theory, v. 13, n. 1, p. 125-138, 2012. ), e mesmo em proposições complementares, debruçadas em expandir os horizontes teóricos desse campo de discussão (Connolly, 2014CONNOLLY, Julie. Shame and recognition: the politics of disclosure and acknowledgement. Global Discourse - An Interdisciplinary Journal of Current Affairs and Applied Contemporary Thought, v. 4, n. 4, p. 409-425, 2014. ; Malloy, 2014MALLOY, Tamar. Reconceiving recognition: towards a cumulative politics of recognition. The Journal of Political Philosophy, v. 22, n. 4, p. 416-437, 2014. ). Por essa razão, faz-se premente retomar, em minúcias, a natureza das formulações críticas apresentadas especialmente em Bound by Recognition, acompanhadas de suas consequências em âmbito normativo.

Isto posto, o objetivo deste artigo será escrutinar as propriedades dos questionamentos de Markell direcionados a uma gama de autores identificados com as teorias do reconhecimento (nomeadamente Charles Taylor, Carolin Emcke, James Tully e Axel Honneth), reconstruindo, por meio de suas críticas, as teorizações dos pesquisadores com os quais ele se propôs a dialogar, e indicando, por meio desse procedimento, inconsistências em suas problematizações, decorrentes do fato de Markell não ter avaliado, adequadamente, o percurso adotado nos argumentos desses autores. Pretende-se evidenciar sua contribuição para esse campo de discussões por meio da proposição de uma política do acknowledgment, ressaltando, apesar disso, que tal ideal normativo indicado pelo filósofo estadunidense já estaria contemplado nos escritos de Axel Honneth, publicados a posteriori de sua obra seminal de 1992.

Markell e Taylor: “fusão de horizontes” como manifestação de soberania?

Logo nos primeiros capítulos de Bound by Recognition, Markell (2003______. Bound by recognition. Princeton: Princeton University Press, 2003. ) retoma alguns dos componentes do ensaio de Taylor de 1992 sobre o multiculturalismo. Para compreender precisamente o teor de sua crítica ao filósofo canadense (com suas consequentes imprecisões), considera-se essencial recuperar, primeiramente, o argumento de Taylor no referido ensaio.

Taylor (1993TAYLOR, Charles. La política del reconocimiento. In: GUTMAN, Amy (Coord.). El multiculturalismo y la “política del reconocimiento”. México: Fondo de Cultura Económica, 1993. ) dizia que a preocupação moderna com o reconhecimento e com a identidade iniciar-se-ia a partir do colapso das hierarquias sociais vigentes em uma era pré-moderna - que Markell (2003______. Bound by recognition. Princeton: Princeton University Press, 2003. ) diz tratar-se da Europa Medieval -, que se baseava, acima de tudo, na honra. A honra estava ligada diretamente à desigualdade, já que, para que alguns a possuíssem, outros não poderiam ter acesso a ela. Não se colocava a diferença entre os seres humanos como uma questão moral (a identidade dependia da posição social, e não de um esforço individual, e o reconhecimento desta identidade hierarquicamente distribuída era óbvio demais para ser problematizado ou fracassado em seu intento).

Seguindo a trilha de Taylor, na modernidade (e, acima de tudo, em sociedades democráticas) emergiu um conceito de dignidade que teria se sobrepujado à noção de honra, de modo que tal noção estaria sendo empregada em um sentido universalista. Em uma cultura democrática da dignidade, o reconhecimento equitativo seria essencial, já que o que mais se procuraria socialmente evitar seria que os cidadãos fossem subdivididos como de “primeira” e “segunda” classes, como ocorria tradicionalmente em sociedades pré-modernas. Inclusive se edificaria, nesse cenário, um princípio de cidadania igualitária que dotaria todos os indivíduos com os mesmos direitos, tomando como prerrogativa o fato de que são agentes racionais capazes de dirigir suas vidas adequadamente.

Entretanto, Taylor assinala que a importância do reconhecimento em cenário hodierno consolidar-se-ia não somente por meio do florescimento de um ideal de dignidade, mas também a partir de uma nova interpretação da identidade que surgiu ao findar do século XVIII. “Podemos falar de uma identidade individualizada, que é particularmente minha, e que eu descubro em mim mesmo. Este conceito surge junto com o ideal de ser fiel a si mesmo e ao seu particular modo de ser” (Taylor, 1993, p. 22). Nessa conceituação, a identidade desponta junto a um ideal de autenticidade. Estar em contato com os próprios sentimentos admite uma significação moral (julga-se que, para sermos fiéis e plenamente humanos, é necessário que façamos esse contato). Assim, de uma cultura em que o laço com o divino era fulcral para uma vida plena, avançamos para outra em que o primordial é um vínculo com o mais profundo do self, a intimidade.

Para Taylor, Rousseau seria um dos grandes defensores dessa perspectiva. Esse filósofo iluminista apresentaria, “frequentemente, a questão da moral como a atenção que dirigimos a uma voz da natureza que existe dentro de nós” (Taylor, 1993, p. 24). Destarte, para Rousseau, um privilégio à moral seria condicionado pela recuperação de um autêntico contato com a interioridade, amparado pelos anseios do indivíduo por autorrealização e autoplenitude.

Em sua apresentação das ideias centrais de Taylor, Markell (2003______. Bound by recognition. Princeton: Princeton University Press, 2003. ) não se descuida de reconhecer que esse autor, como um filósofo profundamente marcado por uma conceituação social da linguagem inspirada no pragmatismo de George Mead (que chega a ser mencionado no ensaio A Política do Reconhecimento), seria um crítico incisivo a uma noção monológica de autenticidade (tal qual formulada em Rousseau). Nos termos do próprio Taylor, o predicado fundamental da vida humana seria seu caráter dialógico. Aprenderíamos a expressar-nos por meio da linguagem por intermédio da interação humana, e não por uma aquisição individual autossuficiente, da mesma forma que a linguagem não seria aprendida dialogicamente e depois empregada monologicamente para os propósitos egocêntricos dos indivíduos. “Sempre definimos nossa identidade em diálogo com as coisas que nossos outros significantes desejam ver em nós, e às vezes em luta com elas” (Taylor, 1993, p. 27).

Markell (2003______. Bound by recognition. Princeton: Princeton University Press, 2003. ) afirma que a crítica que Taylor dirige à Rousseau ou ao liberalismo, por exemplo, seria a de que seus ideais de autorrealização estariam embebidos em uma agência soberana da escolha (algo que implicaria um mergulho na intimidade para revelar uma identidade autêntica), sob o pano de fundo de um conhecimento e controle do mundo por meio da linguagem. Markell (op. cit.) também observa que Taylor não concebe a soberania dessa forma, pois compreende a linguagem como não sendo propriedade de alguém (provém de uma herança histórica), apresentando um uso sempre aberto às recriações que acontecem no intercâmbio entre os sujeitos - e que, por isso mesmo, escapam ao controle de um indivíduo aspirando autonomia em seu uso.

A despeito disso, Markell atribui, ao caso específico de Taylor e a outras abordagens da teoria do reconhecimento (como será perceptível nas seções subsequentes), uma espécie diversa de soberania, baseada, como já mencionado, em um suposto ideal de (auto) conhecimento. Em Taylor, Markell encontra a fonte de sua crítica no projeto de um reconhecimento de valor igualitário entre diferentes culturas. Taylor (1993) preocupa-se com essa questão como uma forma de superação dos descompassos no reconhecimento de valor às culturas distintas, apontando que não bastaria atribuir a todas elas um valor paritário independentemente de um princípio ético (algo que tão somente conduziria ao reforço das injustiças que algumas dessas culturas cometem contra outras - e que incita, nessas últimas, a construção de uma imagem depreciativa de si mesmas decorrente de um reconhecimento negado). Assim, vê como solução para o problema a edificação de um senso de ação política comum, ancorado no conceito de “fusão de horizontes” gadameriano, que implica uma afinação do olhar para as possíveis contribuições de uma multiplicidade de culturas, por meio da proposição de vocabulários normativos que possibilitem contrastá-las em busca de uma definição de valor que leve em conta um reconhecimento justo entre elas (com o devido cuidado de não fomentar sectarismos comunitários).

Markell (2003______. Bound by recognition. Princeton: Princeton University Press, 2003. ) apreende essa proposta de Taylor como uma manifestação do anseio por soberania, dado que ela teria como ideal normativo um estado harmônico no qual as pessoas poderiam reconciliar com suas identidades, por meio de uma vida social e política partilhada com as demais - segundo Markell (ibidem, p. 58), na progressiva fusão e ampliação de horizontes haveria um “horizonte último no qual o valor relativo de diferentes culturas poderia ser evidente”. Nessa perspectiva hipotética, um sujeito adquiriria total conhecimento sobre quem ele é agindo e reconhecendo-se em correspondência à natureza do grupo maior ao qual ele pertence. O reconhecimento mútuo, nessa utopia, seria o responsável por apagar os obstáculos do não reconhecimento e os prejuízos de relações que afastam os sujeitos, permitindo que eles atuem em correspondência ao que efetivamente são.

Uma idealização dessa envergadura, para Markell, recairia em uma ausência de reconhecimento sistemático da imprevisibilidade não transponível da política e a uma antecedência da identidade sobre a ação, desviando as questões de injustiça de seu cerne. Em primeira instância, o ideal de reconhecimento mútuo que Markell atribui à Taylor carregaria consigo o prejuízo de conceber a injustiça como uma falha na atribuição de respeito e estima às pessoas em virtude do que elas verdadeiramente são. Isso teria como consequência a insinuação de que, eliminado o falso reconhecimento, as injustiças e as vicissitudes que marcam a existência humana no mundo seriam superáveis. Para Markell (2003, p. 57), “esse movimento, contudo, tende a obscurecer a segunda dimensão da finitude humana - a contingência da interação social, sua abertura ao futuro”. Nessa medida, a proposta de reconhecimento mútuo advogada por Taylor seria responsável por propor um tipo de invulnerabilidade soberana que teria no escopo a ultrapassagem desta contingência da fragilidade mútua que marca a experiência humana no tempo (fragilidade esta que o próprio Taylor reconhecera quando discorrera acerca da dimensão constitutiva e dialógica da linguagem).

O fenômeno da incerteza que, para Markell (2003______. Bound by recognition. Princeton: Princeton University Press, 2003. ), é irremovível, emergiria em Taylor em duas situações: como uma crise de identidade dolorosa ou como a modéstia em admitir que quem “nós somos” não é um projeto com um final definitivo (o reconhecimento devido), mas um constante tema de disputa. A despeito de, nesse movimento, Taylor reconhecer a incompletude no plano identitário, como Markell indica, isso não altera a aspiração de soberania na formulação, já que a conclusão do filósofo canadense seria a de que “precisamos prestar atenção não só para ‘onde estamos’, mas também para ‘aonde vamos’, nos projetando para o futuro com base nos melhores conhecimentos disponíveis sobre quem somos e temos sido” (ibidem, p. 60).

Por essa razão, a identidade em Taylor estaria, sempre na letra de Markell, sendo configurada em precedência à ação, como uma série histórica de fatos sobre quem efetivamente nós somos, conduzindo nossos atos de modo a poder delinear quais deles são correspondentes à nossa identidade que deseja ser reconhecida. No afã de questionar essa visada que atribui às teorias do reconhecimento, Markell retoma o pensamento de Hannah Arendt (2001ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. ), pensadora que defende que a identidade seria o resultado, em retrospecto, da ação (de falar e agir em público). Segundo sua abordagem, não temos controle sobre nossa identidade logo que agimos em interação com outros em sequências de ação imprevisíveis, com múltiplos significados que aflorariam continuamente, ou seja, não podemos predizer integralmente as respostas dos outros que interagem conosco. Destarte, teorias como a de Taylor estariam condenadas, ao sugerir que o reconhecimento da identidade pela alteridade seria uma garantia contra as imprevisibilidades que demarcam a condição humana de vulnerabilidade intersubjetiva.

As incisivas insuficiências que Markell aponta em Taylor, acionadas primordialmente pela suposição de que o emprego do conceito de “fusão de horizontes” acenaria para a aspiração a uma grande comunidade idílica na qual as diferentes culturas poderiam ser justamente avaliadas a partir de suas contribuições (sendo devidamente respeitadas em suas particularidades), é uma conclusão que Markell elabora do trabalho de Taylor, mas que o filósofo canadense não endossa em suas próprias palavras. O que Taylor (1993) chega a afirmar é que o conceito de “fusão de horizontes” aponta, sobretudo, para a disposição a um tipo de estudo cultural comparativo que dilataria as fronteiras, transformando as normas que definem o que é um valor. Contudo, na conclusão do ensaio sobre a política do reconhecimento, o autor faz a ressalva de que é necessário ter em mente que estaríamos muito distantes ainda de uma investigação dessa envergadura, na qual o valor relativo de diferentes culturas poderia se evidenciar (sem serem engolfadas por um “modelo dominante” trasvestido de universal). A própria característica da luta por reconhecimento, como Ricardo Mendonça (2009MENDONÇA, Ricardo. A dimensão intersubjetiva da auto-realização: em defesa da teoria do reconhecimento. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 24, n. 70, p. 143-154, 2009., p. 147) reforça, é a de ser um “processo permanente em que a sociedade reflexivamente se transforma e altera padrões de relação social”, de modo que não é possível tratar o reconhecimento como um bem a ser concedido ou finalmente alcançado, superando algum dia quaisquer expressões de injustiça.

Se Taylor não implica, em seu raciocínio, como Markell (2003______. Bound by recognition. Princeton: Princeton University Press, 2003. ) procurou salientar, o ideal normativo de um horizonte último no qual as identidades seriam devidamente reconhecidas em função de seu pertencimento a um grupo maior - eliminando daí os falsos reconhecimentos que decorrem da investida de determinadas formas de vida de impor-se sobre outras ou mesmo forçar suas definições éticas e seus critérios particulares de existência -, também não é possível dizer que Taylor estaria situando a identidade como algo que precede as ações e os intercâmbios intersubjetivos. O filósofo canadense opõe-se a um ideal de autenticidade soberana, propondo, nesse aspecto, como já visto, uma definição constitutiva e intersubjetiva da linguagem (como uma herança que conforma as interações e como processos que dialogicamente constroem as identidades).

Esse caráter de ação processual nas lutas por reconhecimento em Taylor (amparado em uma concepção substantiva aportada em critérios éticos e teleológicos construídos intersubjetivamente) previne sua conceituação de “alimentar modos de ação que visam suprimir ou gerenciar a imprevisibilidade mundana, frequentemente restringindo outros, ou obrigando-os a suportar uma parcela desproporcional dos riscos da interação humana” (Markell, 2003______. Bound by recognition. Princeton: Princeton University Press, 2003. , p. 60), tal qual sugerido em Bound by Recognition. Em outras palavras, seria necessário destacar, já nessa primeira incursão de Markell contra as teorias do reconhecimento, uma imprecisão crítica, derivada de uma distorção das implicações do argumento de Taylor no que tangencia a sua apreensão de uma política do reconhecimento enquanto ideal normativo. Apesar de Markell (op. cit.) indicar que tal ideal resguardaria consigo o ímpeto de transposição das vicissitudes que marcam a experiência humana em benefício do reconhecimento de uma identidade formulada em um momento anterior à ação intersubjetiva, o que Taylor pavimenta é um raciocínio construído no meio-termo entre um igualitarismo cego às diferenças e um relativismo pouco afeito a metas coletivas, salientando a importância de conceitos como o de “fusão de horizontes”, enfocados, sobremaneira, no exercício de contraste de valor entre diferentes culturas, permitindo averiguar suas possíveis contribuições e reconfigurar as normas de demarcação valorativa.

Emcke e Markell: identidade imperativa nas categorias de reconhecimento?

Sendo Markell um autor preocupado em negar a validade das lutas por reconhecimento da maneira como foram até então conceituadas, é evidente que suas apreciações, ainda que mais abertamente dedicadas às teorizações de Taylor, estendam-se a outras conceituações de escopo semelhante, como as elaboradas por Axel Honneth, James Tully e Carolin Emcke. As críticas dirigidas a esses autores são acionadas por meio do mesmo argumento traçado para examinar o ensaio de Taylor sobre a política do reconhecimento, sugerindo que, em suas respectivas obras, haveria uma aspiração à soberania do (auto) conhecimento derivada de uma suposta ambivalência na noção de reconhecimento - que oscilaria entre uma definição cognitiva (o reconhecimento como um tipo especial de respeito às identidades de pessoas e grupos em sua particularidade inerente antes ignorada) e outra construtiva (na qual as identidades não seriam fenômenos pré-políticos, mas efeitos de uma dinâmica de reconhecimento que operaria nas interações).

Entretanto, se em Taylor o autor de Bound by Recognition localiza uma definição cognitiva como recurso à ascensão de um estado futuro de reconhecimento realizado - restaurado de uma era pré-moderna na qual ambos os sentidos estavam em harmonia e a “identidade social e as relações de reconhecimento eram livres de problemas e tidas como certas, e as interações dialógicas nunca poderiam se enganar na construção de pessoas em acordo [...] ao que elas já são” (Markell, 2003______. Bound by recognition. Princeton: Princeton University Press, 2003. , p. 55) -, em outras obras Markell destaca, em princípio, a preocupação dos autores com uma proposição mais construtiva.

Nos trabalhos de Carolin Emcke, por exemplo, o filósofo estadunidense encontra uma resposta possível à tensão entre as noções cognitivas e construtivas das lutas por reconhecimento (que, segundo ele, estariam em desequilíbrio no trabalho de Taylor), resposta essa obtida no esforço dessa autora em versar sobre tais noções enquanto categorias que corresponderiam a dois tipos diferentes de lutas por identidade e diferença. Emcke (2000) ancora-se na prerrogativa crítica de que a definição do reconhecimento, apreendida em um sentido cognitivo (de reconhecimento de características que determinados agentes já possuiriam a priori) e conduzida no nível da justiça ao ideal de que se deve reconhecer favoravelmente (ou ao menos tolerar) a identidade que determinados grupos evidenciam possuir, pode recair em uma forma de injustiça complementar, uma vez que algumas situações de opressão não demandam o reconhecimento positivo da identidade de um grupo, mas sim a dissolução desta identidade - que, para os membros envolvidos no agrupamento, é interpretada como algo imposto, opressor, não elegido deliberadamente. Por esse ângulo, a autora trabalha com as duas concepções de reconhecimento indicadas anteriormente (a saber, a cognitiva e a construtiva), articulando formas de conflito, injúria e discriminação às situações complexas em que ora grupos específicos demandam o reconhecimento de convicções sobre si mesmos intersubjetivamente construídas, ora outros, que compartilham uma experiência estrutural de discriminação e desrespeito - “são definidos pela injustiça que é e foi cometida contra eles” (ibidem, p. 492) -, ensejam a dissolução dessa imposição construtiva que fora atribuída, de forma que, “quando as desigualdades sociais que foram o resultado do desrespeito são reparadas, quando os membros não são mais delimitados em conjunto em seus apegos feridos ou em lutas por redistribuição, eles se tornam aptos a reconsiderar sua pertença e sua permanência” (ibidem, p. 494).

Markell (2000MARKELL, Patchen. The recognition of politics: a comment on Emcke and Tully. Constellations, v. 7, n. 4, p. 496-506, 2000.) reconhece que essa forma de tratamento da tensão entre as noções de reconhecimento de ordens cognitiva e construtiva é devidamente explorada por meio do esforço de categorização ofertado por Emcke. Seu questionamento é conduzido no ímpeto de arguir a validade de tratar duas noções teóricas como distinções analíticas. Se, por um lado, aos grupos aos quais é atribuído um reconhecimento imposto e, neste sentido, constitutivo (pois no ato de agrupá-los em um composto similar seriam a eles conferidas características que não considerariam como relevantes em sua existência), a ideia de reconhecimento não corresponde a um ideal identitário que prescindiria da ação de nomeação, por outro lado, “ela [Emcke] parece se satisfazer em continuar a pensar sobre o reconhecimento em termos cognitivos em respeito a outras categorias de grupo (aqueles aos quais a identidade é internamente gerada)” (ibidem, p. 498). Por esse prisma, nesses grupos aglutinados sob uma mesma convicção ainda residiria o ideal de reconhecimento de uma identidade correspondente àquilo que os sujeitos pertencentes a eles efetivamente são.

Contudo, Emcke (2000EMCKE, Carolin. Between choice and coercion: identities, injuries, and different forms of recognition. Constellations, v. 7, n. 4, p. 483-494, 2000. ) resguarda-se desse tipo de julgamento, invalidando a investida de Markell ao asseverar que, seja nos casos de reconhecimento construtivo, seja nos de reconhecimento cognitivo, o autoentendimento é sempre o produto híbrido de descrições internas e externas. Ou seja, a autora não estaria propondo uma identidade cultural que se manifestaria como resultado “puro” de conflitos internos, debates e avaliações, como sugeriria seu crítico. Em suas palavras, “as identidades coletivas são sempre o produto de práticas e significados que são modelados e formados por processos interiores e exteriores” (ibidem, p. 494). E mesmo sua definição de injúria moral referir-se-ia, sobretudo, às contínuas assimetrias estruturais entre a autocompreensão de alguém, as percepções que os outros possuem desse grupo e a inabilidade dele para alterar essas distribuições opressoras do poder - devido à sua posição desfavorável na hierarquia social.

Markell e Tully: fundação cognitiva do reconhecimento no jogo político?

Se Markell reconhece em Emcke um esforço para solucionar os impasses entre acepções contrastantes do reconhecimento, em James Tully esse autor também atesta uma contínua preocupação em tratar a política do reconhecimento como uma atividade em permanente andamento em vez de uma meta com um objetivo predefinido.

Tully (2000TULLY, James. Struggles over recognition and distribution. Constellations, v. 7, n. 4, p. 469-482, 2000.) parte da discussão encetada por Seyla Benhabib, que sugeriria uma passagem das discussões sobre a distribuição material para outras focadas especificamente nas questões do reconhecimento. Apontando a profunda conexão entre ambas as abordagens, de modo a frisar que o seu movimento teórico não estaria indicando a “superação” de uma corrente pela outra, mas antes um intercâmbio profícuo e conflituoso entre reconhecimento e redistribuição, Tully advoga em prol de uma perspectiva que, em vez de privilegiar a formulação de uma teoria da justiça, tem como preocupação nevrálgica as lutas em que definições contrastantes são colocadas em confronto. Assim, para esse autor, é importante pensar em uma democracia na qual exista liberdade para questionar e modificar as normas de reconhecimento e distribuição que prevalecem. Nas palavras de Tully, “existem muitos modos razoáveis de argumentação sobre os quais os participantes podem racionalmente discordar e [...] muitas considerações sobre a justiça que podem ser trazidas à tona em cada caso específico” (ibidem, p. 478).

O filósofo canadense defende que “parte do que faz uma sociedade livre e democrática é o desentendimento razoável entre os membros e suas tradições políticas” (Tully, 2000TULLY, James. Struggles over recognition and distribution. Constellations, v. 7, n. 4, p. 469-482, 2000., p. 473). Assim sendo, deve haver um contínuo processo de discussão no qual elementos de dissenso e injustiça configuram-se como catalisadores de novas contendas democráticas e renegociações. Demandas por reconhecimento (e as respostas a elas) devem ser justificáveis e baseadas em argumentos que não desqualifiquem injustamente os outros envolvidos na discussão. Nesse processo, as identidades daqueles que anseiam reconhecimento, assim como daqueles aos quais o reconhecimento é exigido, são modificadas no curso dos debates e de suas parciais resoluções.

Atento à importância da permanente luta por reconhecimento, Tully aponta que a “reciprocidade, a conquista de um acordo, a escuta das vozes de todos os afetados, e a estabilidade por meio de amplo suporte nunca é alcançada. [...] Sempre existem assimetrias no reconhecimento e na distribuição de poder entre aqueles engajados nas negociações” (Tully, 2000, p. 475). A despeito desse fato intransponível, o autor afirma que a mera possibilidade de discutir em público, ainda que com resultados negativos, pode fomentar em sujeitos oprimidos um tipo de realização que supera, mesmo que minimamente, os efeitos psicológicos e sociológicos do desrespeito. Essa aposta de Tully deposita ampla confiança na dimensão acional da luta, já que é em seu desenrolar público que as próprias identidades são elaboradas (algo que Markell também assevera, como foi visto em seção anterior por meio de sua remissão à Arendt como recurso para questionar a obra de Taylor). Além disso, esse filósofo canadense também afirma que a participação nas teias de discussão pode estimular um senso de integração a um contexto político amplo e reciprocamente legitimado.

O texto de Tully também ressoa a crítica que Taylor (1993TAYLOR, Charles. La política del reconocimiento. In: GUTMAN, Amy (Coord.). El multiculturalismo y la “política del reconocimiento”. México: Fondo de Cultura Económica, 1993. ) faz a um conceito de reconhecimento que teria como norte a busca por uma identidade autêntica, já que enfatiza que as identidades imersas nas lutas por reconhecimento são mutáveis e multifacetadas criações de elucidação recíproca que não cessam de se reconstruírem por estarem mergulhadas nos contextos práticos em que a linguagem é acionada dialogicamente.

Markell (2000MARKELL, Patchen. The recognition of politics: a comment on Emcke and Tully. Constellations, v. 7, n. 4, p. 496-506, 2000.; 2003) não desconsidera esse esforço empreendido por Tully em defesa de uma noção construtiva de reconhecimento, mas aponta deficiências em seu tratamento do tema que seriam atribuídas ao emprego, ainda que de modo ambíguo, de uma noção cognitiva do conceito, responsável por distinguir um reconhecimento bem ou malsucedido. Markell frisa que a importância que Tully atribui aos processos de discussão pública em que sujeitos demandam reconhecimento deve ser problematizada, já que obter um resultado positivo ou negativo em um debate público pode fazer uma diferença significativa no que diz respeito à participação.

Perder na política uma vez pode deixar o ator desapontado, mas inabalado em seu senso de permanecer à comunidade de participantes, mas após meses, anos ou décadas de constante perda no jogo da política, as pessoas podem justamente se perguntar se elas estão realmente tendo sua participação consentida (Markell, 2003______. Bound by recognition. Princeton: Princeton University Press, 2003. , p. 33).

Markell (2000MARKELL, Patchen. The recognition of politics: a comment on Emcke and Tully. Constellations, v. 7, n. 4, p. 496-506, 2000.; 2003) conclui daí que a conceituação de reconhecimento em Tully, associada a um jogo de perder ou ganhar, resguardaria um alicerce cognitivo. Se perder continuamente, ainda que com demandas justificáveis, pode representar aos atores um senso de desrespeito e desapontamento ainda maior do que até então fora vivenciado, então ser incluído nesse jogo de discussões públicas pode significar ser reconhecido em função daquilo que se considera ser antes mesmo da entrada na luta por reconhecimento. Essa incongruência, afirma Markell, levaria Tully de volta a uma definição da política do reconhecimento pautada pela aspiração à soberania e ao (auto) conhecimento, à qual ele se opõe explicitamente.

Uma vez mais, é nítido um descompasso na crítica de Markell, haja vista que Tully não adere a uma visada do reconhecimento como “reificação de identidades”, pois assevera não ser possível a eliminação de desigualdades relacionadas ao reconhecimento e à distribuição de poder. Não seria viável resolver essas assimetrias, a título de exemplo, por meio de políticas estatais que valorizassem as minorias que continuamente se veem derrotadas no jogo político. Mas a própria tentativa de participar em uma discussão pública pode representar aos atores a reconstrução de suas demandas por reconhecimento em um contexto intersubjetivo, alterando as pretensões ou mesmo reforçando as perspectivas. Os argumentos teóricos de Tully nesse escopo ficam ainda mais claros se os analisarmos ecoando em trabalhos como os de Aspen Brinton (2012BRINTON, Aspen. Association and recognition in authoritarian societies: a theoretical beginning. European Journal of Political Theory, v. 11, n. 3, p. 324-347, 2012. ), que adentraram em terreno marcadamente empírico, explicitando o ponto defendido por esse autor (mesmo que de modo indireto).

Brinton (2012BRINTON, Aspen. Association and recognition in authoritarian societies: a theoretical beginning. European Journal of Political Theory, v. 11, n. 3, p. 324-347, 2012. ) coloca algumas questões centrais que ancoraram a existência de associações civis baseadas em um reconhecimento mútuo em contextos não democráticos. Salpicada por casos concretos extraídos primordialmente de sociedades autoritárias do Leste Europeu no período de permanência da União Soviética, a autora diz, complementando Tully, que, em determinados cenários nos quais é difícil para sujeitos oprimidos formularem suas reivindicações publicamente (pela constante ameaça de repressão ou pela desconsideração da participação, por exemplo), a própria agremiação pode representar uma forma de superação do não reconhecimento, na medida em que alguns ambientes nomeadamente privados podem ser utilizados para uma discussão mais ampla, que não teria espaço nos locais em que esses tipos autoritários de ordem social consideram como públicos. Nestes cenários “paralelos” ao regime vigente, os sujeitos podem vislumbrar um tipo de sociedade em que seria admissível falar livremente, atuando no privado “como se” ele fosse público. Destarte, a questão do reconhecimento em Tully não se reduz a um jogo em que o foco está na vitória ou na derrota - como Markell o faz para robustecer sua crítica às teorias do reconhecimento como teorias da soberania e do (auto) conhecimento -, tendo em mente que a preocupação iminente desse autor é com a dinâmica processual da luta, levando em consideração que, mesmo em cenários totalitários, nos quais o enfrentamento de um regime opressor, na maior parte das vezes, não traz resultados positivos àqueles que demandam reconhecimento, ainda despontam atores que permanecem resistindo, reconfigurando progressivamente suas demandas e galgando reconhecimento positivo (ainda que somente entre os seus pares, que se agrupam de modo a coletivizar o dano correspondente a uma injustiça sofrida).

Como último ponto da defesa de Tully em virtude da crítica tecida por Markell, é importante ter em conta que não há algo como um fracasso ou uma vitória definitiva no terreno das lutas por reconhecimento. Primeiro porque, como propôs o próprio Tully, as identidades no processo da luta são modificadas a partir do debate mutuamente justificado, ou seja, não há um desenho pré-moldado da identidade a ser reconhecida que só adentra no espaço público de discussões para ser ou não agraciada (resultando daí em sua vitória ou não no debate). Segundo porque uma conclusão delineada em um processo analiticamente distinguível é tão somente temporária, assegurando, nas palavras de Tully, que “qualquer resolução proposta poderá aportar elementos de dissenso e injustiça, e então deverá ser aberta para um novo dissenso democrático e renegociação” (Tully, 2000, p. 474), o que, em outras palavras, significa afirmar que cada “vitória” ou “derrota” no terreno da luta é só um momento pontual (e de menor relevância) diante de um panorama mais extenso em que o elemento central é a própria discussão.

Markell, Honneth e a política do acknowledgment

Em Bound by Recognition, Markell (2003______. Bound by recognition. Princeton: Princeton University Press, 2003. ) admite que, em Axel Honneth, assim como em James Tully, há uma preocupação explícita em tratar as lutas por reconhecimento como permanentes, e não como transitórias (ou seja, não findáveis em um horizonte idílico em que cada sujeito seria reconhecido por sua “real” identidade). Em Luta por Reconhecimento, Honneth (2003a) frisa, ainda nos momentos iniciais da obra, que as experiências de desrespeito (mesmo aquelas experiências dolorosas que ainda não adquiriram notoriedade pública) seriam o motor das diversas lutas por reconhecimento. As vivências de injustiça motivariam embates que se conformam como “etapas em um processo de formação conflituoso, conduzindo a uma ampliação progressiva das relações de reconhecimento” (ibidem, p. 265), que, em sua força moral, promovem desenvolvimentos e evoluções na vida social. O investimento de Honneth na luta por reconhecimento decorre de uma tentativa do filósofo alemão de recuperar a realidade social do conflito como elemento estruturante da intersubjetividade.

Destarte, Honneth salienta (assim como os outros autores da teoria do reconhecimento aqui versados) que a identificação é sempre um processo multifacetado, condicional, repleto de fragmentações e fraturas, e que o reconhecimento positivo é sempre um estágio transitório de um processo de integração social que nunca se dá por completo, já que sempre haverá a infração de um conjunto de expectativas de reconhecimento ensejadas pelos sujeitos por meio de sua socialização, assim como novas lutas por reconhecimento serão sempre necessárias para extrair o indivíduo de uma situação de paralisia, reinserindo-o em um coletivo que o permite galgar novamente uma autorrelação positiva e o respeito por competências que ele considera valiosas - no “reconhecimento antecipado de uma comunidade de comunicação futura para as capacidades que ele revela atualmente, ele encontra respeito social como a pessoa a quem continua sendo negado todo reconhecimento sob as condições existentes” (Honneth, 2003a, p. 259).

Nesse marco, Honneth defende que mesmo as expectativas de reconhecimento alteram-se em função das transformações da estrutura social, e não há somente um quadro moral de exigências de reconhecimento inflexível às conjunturas concretas (Honneth, 2003b). O filósofo alemão também não se baseia em uma soberania da agência e da volição - tão criticada por Markell nas teorias do reconhecimento em sua extensão. Pelo contrário: “Honneth propõe uma teoria radical da intersubjetividade na formação subjetiva: o sujeito só aprende a relacionar consigo mesmo pela integração das expectativas e atitudes dos outros” (Deranty, 2009DERANTY, Jean-Philippe. Beyond communication: a critical study of Axel Honneth social philosophy. Leiden; Boston: Brill, 2009., p. 357). Em seus termos, essa seria uma nova “concepção formal de eticidade”, estabelecida em um “ponto mediano entre a teoria moral de Immanuel Kant e as éticas comunitaristas” (Honneth, 2003a, p. 271). O resultado de tal guinada é a constatação de que a formação do sujeito ocorre em um plano de extrema vulnerabilidade; nesta formação, a própria moralidade evidencia-se como um conjunto de atitudes tomadas perante nossos contemporâneos para garantir as condições de formação das identidades. Essa dependência mútua revela que, antes de os sujeitos demarcarem os limites entre seus modos de exposição pública, é necessário que reconheçam que necessitam dos seus parceiros para construírem suas identificações.

Mais recentemente, em El Derecho de la Libertad (Honneth, 2014a______. El derecho de la libertad: esbozo de una eticidad democrática. Buenos Aires: Katz, 2014a. ) e em artigos publicados na esteira dessa nova obra seminal do projeto filosófico mais extenso de Axel Honneth (Anderson e Honneth, 2011ANDERSON, Joel; HONNETH, Axel. Autonomia, vulnerabilidade, reconhecimento e justiça. Cadernos de Filosofia Alemã, n. 17, p. 81-112, 2011.; Honneth, 2014b; 2015), seu enfoque volta-se a uma análise da teoria da justiça socialmente informada - sob a égide do conceito de liberdade social. Assim, procura entender o processo de diferenciação e institucionalização de esferas da eticidade cujo conteúdo normativo possibilita entrever a expansão progressiva da autonomia. Contudo, como Anderson e Honneth (2011) elucidam, tal ampliação da liberdade no percurso histórico não é garantida, pois se encontra sempre vulnerável às injustiças que a restringem a determinados sujeitos e grupos e às lutas que aspiram a ampliação de seu vetor de abrangência. Por isso, as condições para conduzir a própria vida autonomamente se mostram dependentes do estabelecimento de relações de reconhecimento mútuo, derivadas de vínculos legalmente institucionalizados de respeito universal pela liberdade e pela dignidade das pessoas, de redes de solidariedade e de valores compartilhados “em que a importância particular dos membros de uma comunidade pode ser reconhecida” (ibidem, p. 89), e das relações de amor e amizade.

Em uma releitura profícua da teoria dos sistemas de Talcott Parsons sob o primado da luta por reconhecimento, Honneth (2014b______. Barbarizações do conflito social: lutas por reconhecimento ao início do século 21. Civitas, v. 15, n. 4, p. 575-594, 2014b. ) identifica os fragmentos sociológicos de uma teoria do reconhecimento orientada em Hegel, na qual a busca individual por reconhecimento torna-se a fonte motivacional para assumir papéis no corpo social, e o conflito emerge como componente endêmico de toda esfera de ação normativamente institucionalizada (já que seria impossível imobilizar as lutas por uma interpretação melhorada e mais justa das normas de reconhecimento). Por essa guinada,

os membros de uma sociedade apenas reunirão motivação suficiente para o cumprimento de tarefas e responsabilidades socialmente necessárias quando a observância das normas de ação correspondentes abrir-lhes concomitantemente como recompensa a perspectiva da satisfação de seu autorrespeito (Honneth, 2014b______. Barbarizações do conflito social: lutas por reconhecimento ao início do século 21. Civitas, v. 15, n. 4, p. 575-594, 2014b. , p. 157).

Assim, as esferas institucionais de reconhecimento funcionalmente especializadas (nos escritos de Parsons seriam a economia, a família, a democracia parlamentar e o direito) oferecerão uma razão justificada para a emergência de embates sempre que alguns dos participantes “acreditarem identificar motivos para a suposição de que aqueles parâmetros normativos prejudicam suas próprias contribuições ou sequer lhes oferecem qualquer chance de conquista do respeito” (Honneth, 2014b______. Barbarizações do conflito social: lutas por reconhecimento ao início do século 21. Civitas, v. 15, n. 4, p. 575-594, 2014b. , p. 157).

A despeito do mapa teórico elaborado (e mais tarde atualizado) por Axel Honneth, Markell persiste com o argumento crítico de que há uma ambivalência na noção de reconhecimento (como vimos, tal crítica possui uma série de insuficiências no contraste com as formulações teóricas que ela se propõe a problematizar). Supõe-se que tal ambivalência levaria ao risco de que o conceito fosse entendido como a defesa de uma agência soberana do (auto) conhecimento, que estaria para além das imprevisibilidades que pavimentam a ação humana no mundo.

Embora em Bound by RecognitionMarkell (2003______. Bound by recognition. Princeton: Princeton University Press, 2003. ) não dedique espaço privilegiado para um debate manifesto com a perspectiva de Honneth (sua referência crítica primordial naquele momento era Taylor), em trabalhos ulteriores o filósofo estadunidense destina-se explicitamente a essa tarefa, inicialmente por meio de uma revisão das teorias do reconhecimento sob o pano de fundo da discussão sobre redistribuição de recursos materiais, promovida por Nancy Fraser (Markell, 2006), e, em seguida, operando uma reconstrução das heranças pragmatistas do arcabouço de Honneth para indicar descompassos em sua proposição acerca do ato moral do reconhecimento enquanto afirmação situada de qualidades valorativas que os seres humanos já detêm em potência (Markell, 2007).

Na primeira expedição mais detida aos escritos de Honneth, Markell irá afirmar que, muito embora o filósofo alemão assinale que o reconhecimento não é um bem tal qual um objeto a ser possuído, mas sim um “mecanismo onipresente pelo qual as relações sociais significativas são constituídas” (Markell, 2006, p. 454), se o endereçamento do ato de reconhecimento é a identidade de outrem (seja um sujeito, seja um grupo), persistiria, como consequência, uma ambivalência sobre o resultado dessa ação: estaríamos tratando da identidade como algo dado em antecedência ao próprio ato de reconhecimento (responsável unicamente pela reiteração da valoração de uma característica já potencialmente incrustada no destinatário do ato), ou como um produto, “uma relação social constituída através dos intercâmbios de reconhecimento” (ibidem, p. 456)?

Essa inquietação conduzirá o filósofo estadunidense a um esforço suplementar, no qual mergulha, sobretudo, na fortuna do pragmatismo norte-americano (especialmente George Mead, John Dewey e William James), para esmiuçar como percepções produtivas e reprodutivas do reconhecimento derivam de uma interpretação dos processos de formação do self. Nesse trabalho, sugestivamente intitulado de The Potential and the Actual: Mead, Honneth, and the “I”, Markell (2007______. The potential and the actual: Mead, Honneth and the “I”. In: VAN DEN BRINK, Bert; OWEN, David (Eds.). Recognition and power: Axel Honneth and the tradition of critical social theory. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. ) tentará responder à questão pronunciada no texto anterior assinalando que, se o reconhecimento emergisse no puro devir em que se processa, os sujeitos não poderiam assumir-se como tais, a não ser que fossem reconhecidos desse modo por outros, ou seja, haveria uma dependência radical da alteridade que poderia perverter o reconhecimento, em variadas circunstâncias, na própria fonte de exploração e dominação daqueles que não dispõem ainda dessa valoração positiva de suas capacidades emergentes. Entretanto, se o reconhecimento é a atualização situada das qualidades de valor já impressas nos seres humanos que se fazem valer publicamente por meio desse ato moral - permitindo que se vejam positivamente pela perspectiva dos outros ao seu redor -, então a ausência de reconhecimento restringe o desenvolvimento do sujeito à pura potencialidade não manifesta. Assim, na letra de Markell, “possuir uma reivindicação justificável de reconhecimento é também ser incapaz de demonstrá-la, ao menos sem a ajuda de quem já tem suas faculdades atualizadas e assim pode testemunhar a sua igual pessoalidade com inigualável confidência e maturidade” (ibidem, p. 106) e, desta feita, o reconhecimento corrompe-se uma vez mais em manancial de espoliação daqueles que já foram positivamente valorados em suas competências em face dos que aguardam ansiosamente suas benesses.

As críticas que Markell endereça às teorias do reconhecimento servem de pano de fundo à sua própria proposição de uma teoria normativa, nomeada por ele como política do acknowledgment. No cerne dessa proposta, a justiça democrática seria apreendida como algo que não exigiria que todas as pessoas fossem reconhecidas e respeitadas por ser quem são (ou são em potência), já que “ser incapaz de se identificar plenamente com suas próprias capacidades não representaria um déficit de atualidade: ao contrário, teria que ser apreendido como uma condição normal e inevitável da agência humana” (Markell, 2007, p. 107). Por isso a política do acknowledgment “exige que cada um de nós suporte a partilha da carga e do risco envolvido na incerta, interminável, algumas vezes irritante e outras surpreendentemente prazerosa atividade de viver e interagir com outras pessoas” (Markell, 2003, p. 7), sem, com isso, consentir que nenhum sujeito seja restringido a uma caracterização de sua identidade para os propósitos da realização dos demais por meio de um senso de soberania ou invulnerabilidade - ainda que tal caracterização seja positiva (Markell sugere que mesmo imagens positivas podem ser instrumentos de subordinação).

O acknowledgment tomaria por princípio uma aceitação da imprevisibilidade e da finitude que caracterizam a existência e a agência humanas. Nesse movimento, exigiria dos atores um assentimento com essa condição ontológica primordial, que imporia limites práticos ao que pode ser controlado em vista de um futuro sempre inconstante. Assim sendo, a ação modelaria a identidade, conduzindo a uma abdicação da aspiração de soberania a partir do reconhecimento da vulnerabilidade de nossa espécie e das imprevisíveis respostas da alteridade. Markell discorre aqui sobre uma teoria normativa voltada não ao reconhecimento da identidade do outro, mas sim a uma volta ao self, que implica um abandono da pretensão de entrar em contato com a alteridade sob a convicção de que seria possível conhecer tudo sobre sua constituição, já que o anseio por essa categoria de conhecimento inevitavelmente envolveria dominação e distorção. Como Mendonça (2009MENDONÇA, Ricardo. A dimensão intersubjetiva da auto-realização: em defesa da teoria do reconhecimento. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 24, n. 70, p. 143-154, 2009.) sugere, a teorização desse autor estadunidense está debruçada no entendimento de que a “subordinação social só pode ser superada se os atores sociais admitirem sua própria condição e pararem de buscar a soberania. [...] Mais do que valorizar oprimidos, seria preciso desconstruir as estruturas sociais que reforçam os privilégios de certos grupos” (ibidem, p. 147).

Apesar da política do acknowledgment indicada por Markell (2003______. Bound by recognition. Princeton: Princeton University Press, 2003. ; 2006; 2007) realçar aspectos fulcrais a uma teoria política de fundação normativa, não se pode desconsiderar que, no âmbito das discussões acerca do reconhecimento, tais questões também já foram colocadas de formas similares (e complementares). O modo como Honneth elabora sua teoria do reconhecimento, por exemplo, é informado pelas mesmas limitações à construção da identidade que Markell advoga sob o pano de fundo do acknowledgment. Se Markell fala do abandono da pretensão de soberania que uns sujeitos têm sobre os outros, Honneth explicita um quadro em que a dependência intersubjetiva impõe que demandas unilaterais ou não ancoradas na reciprocidade sejam postas em desconfiança por não levarem a uma evolução moral, mas tão somente à reafirmação de injustiças. Se Markell (2003) fala de um movimento autodirigido em que os sujeitos reconhecem seus limites práticos de intervenção no mundo alimentados por um senso de que as interações sociais são imprevisíveis e que devemos nos preparar para essas situações incontornáveis, Honneth elucida que o reconhecimento é o produto de uma relação (embebida em suas contingências), e que um sujeito “só pode ver-se respeitado porque é alvo dos mesmos direitos que atribui aos outros” (Mendonça, 2009MENDONÇA, Ricardo. A dimensão intersubjetiva da auto-realização: em defesa da teoria do reconhecimento. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 24, n. 70, p. 143-154, 2009., p. 149). E, por fim, a exigência impressa na política do acknowledgment de que ninguém “seja reduzido a nenhuma caracterização de sua identidade para os propósitos da realização de outros em um senso de soberania ou invulnerabilidade” (Markell, 2003, p. 7) também preocupa sobremaneira Honneth, ao ponto de esse autor dedicar um ensaio sobre o assunto intitulado El Reconocimiento como Ideología (Honneth, 2006).

Nele, o filósofo alemão adverte, logo de partida, que, a despeito dos potenciais críticos e emancipatórios presentes em sua teoria do reconhecimento, estaríamos diante de um cenário em que:

o fato de ser oficialmente atribuído respeito a determinadas qualidades ou capacidades parece ter-se convertido em um instrumento da política simbólica, cuja função subterrânea é integrar indivíduos e grupos sociais na ordem social dominante mediante a sugestão de uma imagem positiva de si mesmos. Longe de contribuir eficazmente ao melhoramento das condições de autonomia dos membros de nossa sociedade, o reconhecimento social serve segundo todas as aparências somente a geração de atitudes conforme ao sistema (Honneth, 2006______. El reconocimiento como ideología. Isegoría, n. 35, p. 129-150, 2006. , p. 129-130).

Segundo Honneth, o reconhecimento estaria sendo interpretado, então, como um mecanismo de produção de sujeitos convenientes ao sistema hegemônico, e não como um meio de fortalecimento da autonomia pessoal. O filósofo alemão alerta-nos, entretanto, que o conceito de reconhecimento deveria ser o contrário de práticas de dominação e nunca deveria recair nesse tipo de suspeita. Com base nesse argumento, seu artigo inclina-se a distinguir formas de reconhecimento emancipatório de outras nomeadamente ideológicas, ou seja, que estimulariam:

a disposição favorável para uma série de práticas e modos de conduta que harmonizam com a função de reprodução da dominação social [e que] surgem da promessa de reconhecimento social para a manifestação subjetiva de determinadas capacidades, necessidades e desejos (Honneth, 2006______. El reconocimiento como ideología. Isegoría, n. 35, p. 129-150, 2006. , p. 144).

Sob essas inquietações, Honneth adverte que o reconhecimento não deve ser orientado para outra finalidade que não a valoração positiva de um grupo, e que uma ação bem-sucedida de reconhecimento deve permitir que os seus destinatários identifiquem-se com suas qualidades para, com isso, alcançar maior autonomia. Assim, assevera que se deve distinguir esse tipo de reconhecimento de manifestações ideológicas que, em lugar de darem mais expressão a determinados valores, proporcionam a disposição emocional para cumprir sem resistência tarefas e obrigações esperadas, como acontece no caso da valorização de sujeitos que se adaptam, sem maiores reclamações, às rotinas de trabalho extenuantes, recebendo, vez ou outra, gratificações de seus patrões para que consintam com regimes de produção estafantes. Deparamo-nos aqui com uma “enfermidade social”, como conceitua o filósofo alemão em ensaio recente intitulado As Enfermidades da Sociedade (Honneth, 2015). Em tal conjuntura, uma dimensão do corpo social, em seus arranjos institucionais historicamente situados, “fracassa numa das tarefas que [...] se propôs dentro do circuito funcional de socialização, processamento da natureza e regulação das relações de reconhecimento de acordo com as convicções de valor que prevalecem nele” (ibidem, p. 591), inviabilizando que os indivíduos possam compreender-se como membros ativamente contribuintes e reciprocamente relacionados de uma sociedade em que podem participar conjuntamente - e barbarizando, na esteira, as sendas do conflito social (Honneth, 2014b).

Neste ponto, fica evidente que as supracitadas inquietações de Honneth em muito se assimilam à preocupação de Markell com modos de subordinação que seriam, em princípio, “formas de estruturar e arranjar o mundo que permitem a algumas pessoas e grupos aproveitar uma aparência de agência soberana à custa dos demais” (Markell, 2003, p. 5), ou seja, situações em que determinados sujeitos conseguem obter, por meio de assimetrias de poder, vantagens desmensuradas de outros - sob a aparente fachada de um mútuo reconhecimento -, conduzindo a uma conjuntura na qual a busca por reconhecimento deforma-se em um projeto “que não encontra mais satisfação normativamente justificada nas esferas de ação sistematicamente previstas para tal” (Honneth, 2014b, p. 158).

Considerações finais

Ao longo deste artigo foi possível escrutinar as críticas que Patchen Markell endereça aos diversos autores que se identificam com as teorias do reconhecimento, tendo como principal argumento uma descaracterização de tais teorias decorrente do fato de que cada uma delas se aportaria, segundo esse filósofo estadunidense, em uma visada cognitiva do reconhecimento, incorrendo em uma aspiração por soberania - do reconhecimento daquilo que se é efetivamente, ou seja, um (auto) conhecimento que independe das interlocuções com a alteridade - e a uma tentativa de transposição da vulnerabilidade mútua que demarca a experiência humana no mundo (acenando para um horizonte utópico no qual cada sujeito seria “verdadeiramente” reconhecido). Markell estabelece, em contraste a esse panorama teórico que aprecia como problemático, uma teoria normativa baseada na política do acknowledgment, que, como foi visto, baseia-se em um retorno ao self como meio de assentimento com a imprevisibilidade e a finitude que demarcam a existência e a agência humanas.

Como fora mencionado ainda na introdução deste trabalho, são notáveis as contribuições desse filósofo estadunidense em direção a um progressivo refinamento crítico das teorias do reconhecimento - substantivamente problematizadas e atualizadas desde as primeiras incursões de Taylor e Honneth. São também consideráveis as recentes apropriações da política do acknowledgment, a título de exemplo, em investimentos empíricos, como os de PaulMuldoon e Andrew Schaap (2012MULDOON, Paul; SCHAAP, Andrew. Confounded by recognition: the apology, the High Court and the Aboriginal Embassy in Australia. In: HIRSCH, Alexander (Ed.). Theorising post-conflict reconciliation: agonism, restitution and repair. New York: Routledge, 2012. ). Tratando das políticas de reconciliação do governo australiano diante do sofrimento causado aos povos aborígenes (perpetrado pela própria máquina estatal), os autores asseveram que as desculpas proferidas pelo então primeiro ministro Kevin Rudd em fevereiro de 2008 a esses grupos historicamente deslegitimados providenciam a eles um reconhecimento sob o marco da soberania nacional, identificando-os, acima de tudo, como cidadãos australianos. Os contrapontos desta política incorrem da forma como ela desviaria o próprio Estado de reconhecer (acknowledge) como sua ambiciosa busca por construir uma “identidade nacional” implicou a multiplicação de injustiças contra populações que já habitavam o território antes mesmo do início do processo de colonização pelo governo britânico. Já em reflexões como a de Tamar Malloy (2014MALLOY, Tamar. Reconceiving recognition: towards a cumulative politics of recognition. The Journal of Political Philosophy, v. 22, n. 4, p. 416-437, 2014. ), as conceituações de Patchen Markell despontam associadas às perspectivas de outros teóricos, como Wendy Brown e Nancy Fraser, no intuito de problematizar as implicações práticas de seus argumentos para o campo das lutas sociais em sentido operacional, identificando, por exemplo, a inviabilidade de uma aplicação estrita da política do acknowledgment enquanto instrumento de ação coletiva.

A despeito da vitalidade da contribuição de Patchen Markell para esse campo de discussão, o que este texto procurou evidenciar é que não se devem desconsiderar as deficiências em sua leitura da noção de reconhecimento (leitura esta que é utilizada para problematizar todos os autores com os quais ele estabelece contato), incorporando apressadamente seus levantamentos críticos sem as devidas ponderações. Como visto, tais insuficiências incorrem de uma interpretação enrijecida das obras de seus interlocutores, que não coincide com a lógica interna de seus eixos argumentativos. Estas insuficiências na formulação das críticas minam substancialmente o potencial normativo da política do acknowledgment, tendo em vista que as questões acionadas por meio dela já transparecem também nas obras de autores das teorias do reconhecimento, como nos trabalhos de Axel Honneth que versam sobre formas de reconhecimento ideológico. Destarte, e respondendo à questão motivadora deste artigo, não é possível concordar com a suposição de que as lutas por reconhecimento seriam aspirações à agência soberana, assim como não é possível afirmar que a política do acknowledgment seria, como anseia Markell, a panaceia para os deficit que ele atribui ao reconhecimento. Com Markell (mas também contra ele), talvez o mais apropriado fosse afirmar que a política do acknowledgment está inserida na agenda das teorias do reconhecimento, reforçando a dinâmica processual e intersubjetiva das lutas, o caráter circunstancial dos quadros morais de exigências de reconhecimento e a provisoriedade dos conflitos - que devem ser, acima de tudo, etapas no desenvolvimento e na ampliação progressiva das relações de reconhecimento apreciadas em sua potência moral.

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    O autor agradece ao Prof. Dr. Ricardo Fabrino Mendonça pela leitura cuidadosa de uma versão preliminar deste trabalho e pelas valiosas sugestões de revisão do manuscrito.
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    Tomemos como exemplo as críticas que Nancy Fraser (2003) endereçou a Axel Honneth, ou ainda os entraves que Lois McNay (2008) procurou identificar nas teorias do reconhecimento em sua totalidade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2017

Histórico

  • Recebido
    15 Mar 2016
  • Aceito
    21 Dez 2016
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