Acessibilidade / Reportar erro

Viriato Soromenho-Marques. Portugal na queda da Europa. Lisboa: Temas e Debates; Círculos de Leitores, 2014.

Portugal na queda da Europa. Lisboa: Temas e Debates; Círculos de Leitores, 2014

Quando olhamos para o mundo do século XXI, à primeira vista, nos maravilhamos com a capacidade desenvolvida pela humanidade em torná-lo mais próximo e comprimido. Os eventos, independentemente de seu caráter local, tornam-se acontecimentos logo reportados em âmbito global. Uns recebem maior importância, por terem ocorrido no centro do sistema internacional, enquanto outros, por terem acontecido na periferia, tendem a ser pouco repercutidos. De qualquer modo, é inquestionável que a globalização tenha concorrido para a maior interdependência entre cada parcela que compõe o mundo que habitamos.

Não obstante, esse movimento de contrair o mundo foi resultante de outro, também expansionista, que coloca os portugueses como os primeiros atores desse processo no decurso da modernidade. Ao se depararem, a leste, com o reino espanhol e, ao sul (mediterrâneo e norte da África), com o domínio árabe, os portugueses enxergaram no oceano Atlântico uma porta para alargarem suas possibilidades territoriais. E foi o que, de fato, ocorreu desde o início do século XV, quando realizaram a expedição à Ceuta.

Compreender o que se passa atualmente no interior da Europa exige um amplo entendimento tanto sobre os processos que culminaram no que é hoje a União Europeia (UE) quanto sobre os Estados-membros que compõem o bloco econômico. Nesse caso, o filósofo político português Viriato Soromenho-Marques oferece-nos uma visão de conjunto sobre o que foi e é Portugal no contexto europeu sem, contudo, perder de vista a complexidade geográfica, cultural, econômica e política que envolve a Europa - continente que, aos poucos e se nada for feito a contento, pode ver diminuída sua capacidade de influência na arena internacional.

Portugal na queda da Europa tem como objetivo mostrar "as causas profundas e próximas" da atual crise europeia, "bem como sobre os possíveis caminhos de saída" (p. 12), organizando-se em quatro partes. A primeira divide-se em três capítulos, cujo foco principal é a discussão sobre Portugal no quadro europeu. O primeiro capítulo tece considerações sobre a história portuguesa entrelaçada com a europeia, oferecendo informações gerais sobre os processos que concorreram para a formação de Portugal como Estado-nação e as razões que enfim o levaram a um relativo declínio e perda de influência em âmbito mundial.

Para explicar as causas da perda de prestígio que Portugal sofreu desde que deixou de ser um país imperial, o autor recorre às observações feitas por importantes intelectuais portugueses, entre os quais se destacam Almeida Garrett e Antero de Quintal. Para este, por exemplo, Portugal tornou-se um país em declínio por três razões: a) a primeira, de ordem moral, está vinculada a adoção do catolicismo, pelo estado português, como religião oficial; b) a segunda, de ordem política, refere-se ao centralismo político; c) a terceira, de ordem econômica, diz respeito à dispendiosa manutenção do império ultramarino por um período de cinco séculos, do XVI ao XX.

Inclusive, Antero de Quintal antecipou-se em relação a Max Weber, como aponta o autor, ao mostrar que as nações europeias que se tornaram protestantes desenvolveram uma condição material muito superior do que aquela que se verificou em Portugal e na Espanha, por exemplo. Outra explicação para o declínio da influência portuguesa no âmbito mundial tem a ver com as escolhas dos líderes portugueses de voltarem-se para fora do continente, não tendo a Europa como paradigma de civilização.

O segundo capítulo apresenta as principais consequências para Portugal de sua adesão à UE. Esse processo teve início em 1o de janeiro de 1986, quando Portugal e Espanha passaram a fazer parte da Comunidade Europeia (CE), e culminou com a defesa de Diogo Freitas do Amaral, em 1992, para que Portugal ratificasse o Tratado de Maastricht, que previa a União Econômica e Monetária (UEM) e a adoção de moeda única pelos países membros.

De acordo com o autor, os resultados para Portugal como membro da CE tinham sido positivos, pois entre 1986 e 1992 houve um relativo crescimento econômico no país. Esse crescimento econômico, portanto, serviu de justificativa para Portugal integrar a UE. Mas se ergueram vozes a apontar que, nesse movimento, o país corria sérios riscos, pois abriria mão de seus próprios instrumentos de soberania - a moeda e a regulação do câmbio conforme os interesses do país. Os críticos destacaram que as bases da UE eram essencialmente neoliberais e que as economias participantes eram desiguais. Em nenhum momento, porém, os líderes portugueses realizaram consulta popular para ouvir os cidadãos portugueses sobre o que pensavam a respeito.

Soromenho-Marques esclarece, então, que uma das causas da atual crise interna portuguesa é o fato de Portugal não dispor mais de moeda própria (o escudo) e não poder recorrer ao mecanismo de desvalorização cambial. Também expôs que diferentemente do federalismo dos Estados Unidos, a UE não é uma federação e, por isso, não atingiu a tão esperada convergência e coesão social. E o mais grave: a UE, na visão do autor, tende a caminhar para maior divergência e caos social. Por exemplo, mesmo integrando a UE nos diais atuais, Portugal não conseguiu atingir os níveis de desenvolvimento dos países nórdicos. Também a sobrevalorização do euro diante do dólar faz com que as exportações portuguesas, principalmente as de produtos têxteis e de calçados, percam a competitividade em relação aos produtos chineses.

Não dispondo mais de instrumentos que permitem a desvalorização do câmbio para, por conseguinte, ampliar suas exportações, Portugal - assim como Grécia, Itália, Irlanda e Espanha - recorreu à desvalorização interna para assegurar a ajuda financeira da "troika", comitê composto por agentes do Conselho Europeu, do Banco Central Europeu (BCE) e do Fundo Monetário Internacional (FMI). A medida consistiu na redução dos salários, no corte de investimentos e na diminuição das despesas públicas. Conforme o autor, trata-se das "mesmas receitas do velho Consenso de Washington" (p. 80). Com a entrada dos países da Europa Central e Oriental (Peco) na UE, sobretudo após a fragmentação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), a situação se agravou para os países ibéricos, pois houve uma deslocalização das indústrias e dos investimentos da Alemanha para os Peco, cuja mão de obra, além de ser mais barata, é altamente qualificada.

O terceiro capítulo encerra essa primeira parte do livro. Nele, Soromenho-Marques mostra como se deu a trajetória ascendente do endividamento público e privado em Portugal, bem como os princípios da crise econômica e política que viria atingir aquele país e toda a Europa. Ele discorre sobre as principais fragilidades estruturais da economia portuguesa, sobretudo no que diz respeito aos bancos nacionais. O sistema bancário europeu passou a usufruir de grande autonomia, o que dificultou aos próprios Estados da UE ter e exercer maior controle sobre aquele sistema. É nesse capítulo que se começa a esclarecer que a união federal dos Estados-membros da UE, que significa ir além da união econômica para efetivar uma união política, tal como são os Estados Unidos, seria uma das soluções para o problema português e para toda a Europa. Mas há aqueles que são contrários à união federal porque entendem que seria o fim das unidades políticas europeias; a respeito destes, o autor argumenta que não compreendem o que de fato é o federalismo.

Outras causas da calamitosa situação de Portugal, segundo SoromenhoMarques, referem-se à má governança, ao esbanjamento, à incompetência e à corrupção que envolvem tanto o setor público quanto o setor privado do país. Para o autor, se não houver uma mudança na condução da atual crise, é quase certa a saída de Portugal da UE. O dilema é que quem poderá determinar essa saída (ou não) são as autoridades centrais da UE. Para a sociedade portuguesa, tanto a permanência quanto a saída de Portugal da Zona do Euro significariam a ampliação da pobreza e a ruptura do tecido social, entre outros fenômenos.

Na segunda parte do livro, que contém mais três capítulos, o objeto da discussão são os processos que resultaram na construção do que é hoje a UE. Como já havia mostrado o quarto capítulo, a UE foi concebida como possibilidade de garantir a prosperidade econômica para todos e impedir que o continente europeu se estilhaçasse em novas guerras. Logo, "existia o consenso de que a União Europeia era um bom antídoto contra o risco de pretensões hegemônicas gravadas na memória sangrenta da história europeia" (p. 106).

Antes da crise internacional que eclodiu em 2008, todos os membros participantes do Parlamento Europeu, independentemente do país ao qual pertenciam, eram igualmente ouvidos. Contudo, a crise econômica europeia modificou esse cenário e propiciou o retorno das vozes das grandes potências da UE - nomeadamente, Alemanha e França. O autor observa, no entanto, que não foi necessariamente a crise econômica que trouxe de volta o perigo do desequilíbrio de poder no continente. A crise simplesmente teria exposto os problemas estruturais dos processos que culminaram na integração econômica europeia. A raiz da crise na Europa estaria na concepção neoliberal que moldou o construto da UE. Antes de 2007, a dívida pública dos Estados-membros não era elevada, mas os mercados financeiros internacionais e suas ofertas de crédito de certa forma induziram a elevação das dívidas soberanas.

O binômio fragilidade do sistema bancário europeu e dívida pública dos países-membros ainda não foi solucionado. Na visão de Soromenho-Marques, a Alemanha interviu muito tardiamente para minorar a crise na Zona do Euro. Como os Estados-membros da UE são assimétricos no aspecto econômico, seria preciso uma união bancária da Zona do Euro, pois os bancos dos membros periféricos da UE - Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha (Piigs) não possuem a mesma pujança da Europa rica - têm dificuldade em capitar créditos mais baratos no mercado financeiro, o que faz elevar seu endividamento.

O quinto capítulo remonta ao passado para explicar como se deu o processo da UEM. Para ele, o embrião da UE foi a criação, em 1953, da Comunidade do Carvão e do Aço (Ceca) seguida de outros tratados que visaram sempre a união econômica e não a união política da Europa. O autor explica que a Alemanha tentou frear os processos de união econômica do continente, mas, após a queda do Muro de Berlim (1989), acelerou-se o movimento de unificação, embora acompanhado de resistência dos alemães que não queriam "abrir mão" de sua moeda. Para ele, a UEM ou a Zona do Euro não são mais do que o estabelecimento da hegemonia, desde sua gênese, de uma moeda franco-alemã. Os franceses nunca admitiram um banco central independente, muito menos o financiamento do Estado por meio dos mercados financeiros. Desse modo, o problema da UE seria não haver uma integração efetiva política, apenas econômica.

O Banco Central Europeu (BCE), por exemplo, não cumpre as mesmas funções que o Federal Reserve System (FED) dos Estados Unidos. O FED, como banco central, visa atingir dois objetivos: assegurar pleno emprego e manter a estabilidade dos preços. O BCE empresta dinheiro aos bancos centrais dos Estados-membros da UE de forma moderada, o que obriga os países da Zona do Euro a se expor aos juros impraticáveis do mercado financeiro internacional.

Além disso, estabeleceu-se no continente europeu (igualmente a todo o mundo) uma competição entre Estados, bancos e empresários pelo mercado de capitais. Como mostra o autor, alguns importantes pensadores da atualidade e de distintas correntes do pensamento econômico, como Joseph Stiglitz, Paul Krugman, Milton Friedman e Martin Feldstein, previram que a UEM teria enormes desafios para atingir certa convergência no futuro.

Ainda, a crise na/da UE revela o embate entre os modelos neoliberal e keynesiano na condução das políticas econômicas do bloco. Para o autor, trata-se de Hayek contra Keynes: "A UEM representa hoje a primeira zona macroeconómica livre de keynesianismo no mundo" (p. 165). Assim, a grave crise que atinge a Zona do Euro e as medidas de austeridade têm provocado a destruição do Estado de bem-estar social na Europa, e a política tem sido paulatinamente substituída pela burocracia dos tecnocratas.

Nesse sentido, o autor retoma as ideias defendidas por Karl Polanyi, importante pensador nascido no antigo Império Austro-Húngaro e que formulou pensamentos diametralmente opostos a Hayek, igualmente austríaco. Em 1944, Polanyi demonstrou em seu famoso livro A grande transformação que o mercado autorregulado tende a arruinar a sociedade submetida a ele. Para Soromenho-Marques, a crise europeia reflete essa submissão da sociedade civil europeia a um mercado autorregulado, contexto em que as ideias de Polanyi são mais do que atuais para entender o que se passa no interior do continente.

O sexto capítulo, que encerra a segunda parte do livro, aprofunda ainda mais a ideia de que a crise na Zona do Euro é de natureza política. Ao retomar a teoria política desenvolvida pelo filósofo inglês Thomas Hobbes no século XVI, o autor sugere que a Zona do Euro pode optar por assegurar a ordem e a coesão do continente através do Leviatã federal (a união federal dos estados-membros da UE) ou manter o Behemoth da desintegração continental, reforçando a condição de sistema internacional que atualmente caracteriza a UE. Num sistema internacional, os Estados hegemônicos procuram manter sua autonomia e recorrem à guerra com outros Estados para conservarem sua independência. Já num sistema federal, os Estados deixam de ser "donos" absolutos das regras. Assim, a adoção do federalismo constituiria um dos possíveis instrumentos para a manutenção do equilíbrio de poder na Europa, uma vez que a construção de uma Carta Federal poderia manter o continente politicamente unificado através do primado da lei.

A terceira parte do livro contém mais quatro capítulos, sendo que cada um busca tratar sobre as diferentes fases da evolução política da Alemanha, o país que tem mandado na UE, embora não a lidere, na atual crise que assola o continente. Assim, o sétimo capítulo explana o processo de formação do Estado alemão, que, diferentemente de Portugal, Espanha, França e Inglaterra, concluiu-se só nas décadas finais do século XIX. Há quem veja semelhança, segundo o autor, entre os processos de constituição da Alemanha, no fim do século XIX, e da UE, em meados do século XX. Ele lembra que o processo de unificação dos reinos da Europa Central, dos quais a Prússia e a Áustria eram os mais importantes, iniciou-se com a construção de um espaço econômico, criando a união aduaneira conhecida como Zollverein, em 1834. A condução desses processos partiu da aristocracia e não necessariamente da burguesia germânicas. Em ambos os processos - unificação alemã e união europeia - é o econômico que prevalece sobre o político, e em ambos os casos observa-se a ausência da participação popular.

O estado alemão passou a existir efetivamente após a guerra Franco-Prussiana (1870). Esse processo não originou de uma revolução democrática, mas, conforme o próprio Otto von Bismarck, foi resultante "de sangue e ferro". Assim ficou conhecida a "via prussiana", ou a formação de um Estado conduzida pelas forças sociais aristocráticas. O federalismo imperial alemão e sua carta fundamental não foram uma atribuição do povo, mas de reis e príncipes. Como Soromenho-Marques destaca, o chanceler alemão Bismark foi um líder político e militar muito habilidoso. Além de ter comandado a unificação alemã, estabeleceu aliança com os ingleses, russos, italianos e húngaros com o objetivo de isolar a França defensivamente.

Contudo, como explicita o oitavo capítulo, toda essa articulação política e diplomática que Bismarck realizou para conter a França e proteger a Alemanha foi desfeita pelo Segundo Reich alemão, Guilherme II. Rapidamente, a França aliou-se com o Império Russo, em 1892, e a Grã-Bretanha, percebendo que logo seria desafiada, lançou-se, como toda a Europa, numa corrida armamentista. O resultado foi a eclosão da Primeira Guerra (1914-1918), que, para o autor, "só uma febre patriótica e uma gestão censória da informação permitiu manter um esforço de guerra tão duro durante mais de quatro anos" (p. 236).

O nono capítulo expõe mais detalhadamente o papel da Alemanha no continente europeu. Derrotada na Primeira Guerra, a Alemanha imperial deu lugar a uma Alemanha republicana. Esta conservou alguns elementos do centralismo político que foi herdado da Carta imperial. A Constituição republicana alemã, através dos artigos 25o e 48 o, por exemplo, possibilitava a concentração de poder na mão do presidente nos casos de possível eclosão de conflitos. Essa brecha constitucional foi posteriormente utilizada por Hitler para fundar o Terceiro Reich.

Para os historiadores, o período entre 1914 e 1945 correspondeu à Segunda Guerra dos Trinta Anos, e partiram da Alemanha as tensões verificadas no continente europeu durante esse interstício. Tendo de arcar com uma dívida sem precedentes na história europeia, imposta pelo Tratado de Versalhes, em 1919, o povo alemão viu suas condições de vida se deteriorarem com a hiperinflação, agravada, sobretudo após o crash de 1929. Para o autor, esse passado de hiperinflação que atingiu a Alemanha está vivo na memória do país que conduz a UE na atual crise; por isso, entre outras razões, os líderes alemães são defensores das políticas de austeridade que julgam ser um antídoto contra a volta da inflação.

O décimo capítulo discute as consequências para o continente europeu da reunificação alemã, em 1989, e da desintegração da URSS, em 1992, logo após o fim da Guerra Fria. Em seguida a esses eventos, a França buscou isolar defensivamente a Alemanha: os franceses lideraram a UEM com o intuito de conter o grande país do "meio" da Europa. A Alemanha, por sua vez, passou a refletir sobre como conciliar os próprios interesses com os de toda Europa. Contudo, o que se observa atualmente é uma Alemanha forte e economicamente relevante para toda a Europa, mas que tem optado por uma modernização neoliberal. Assim, a hegemonia alemã tende a ser defensiva, ou seja, trata-se de uma hegemonia que articula incerteza e medo, e a Zona do Euro, cada vez mais uma zona alargada do marco alemão.

A quarta parte, que contém os dois últimos capítulos e a conclusão da obra, discorre sobre os dois principais instrumentos que o autor considera vitais para que a Europa consiga atingir a coesão social e o seu o ponto de equilíbrio: o fortalecimento da democracia no continente e a construção do federalismo europeu.

O 11º capítulo retoma todos os pressupostos que dão sustentação à democracia representativa e explica que, se a política é cooptada por forças econômicas alheias ao bem comum, a democracia e as suas bases tendem a se tornar frágeis. No caso da UE, observa-se que, atualmente, a tecnocracia financeira "se transformou na nova elite dirigente da zona do euro" (p. 280), alertando-se que "há um profundo silêncio da política, entendida como a capacidade de traçar rotas de futuro alternativas ao linguajar dos tecnocratas" (p. 280).

Na contemporaneidade, os fatores que destroem a democracia na UE, de acordo com Soromenho-Marques, são o retorno da pobreza e o amplo desemprego, verificados, sobretudo em seus países periféricos, com o enfraquecimento do Estado de bem-estar social. A dificuldade que as democracias nacionais têm em lidar com as questões de ordem global é um fenômeno mundial. Após elencar uma série de medidas que podem ajudar as democracias a se fortalecerem, o autor enfaticamente defende a restauração do primado da política e da justiça social sobre a economia e mercados.

No 12º capítulo, o tema do federalismo ganha mais força, e apresentam-se todas as prerrogativas que uma união federal pode significar para o continente europeu. A forma como hoje a UE está organizada dificulta a real participação dos cidadãos provenientes dos diferentes Estados-membros. A UE segue padrões hierárquicos de poder, pelos quais o Parlamento Europeu atualmente está, segundo o autor, silenciado quanto às decisões tomadas em âmbito exclusivo do Conselho Europeu, que são executadas pelo corpo tecnocrático da Comissão Europeia.

A ação que demonstra de forma mais contundente o comando de Berlim sobre os demais Estados-membros diz respeito ao Tratado Orçamental, implementado em 2013 pelas altas esferas do Conselho Europeu, cujo objetivo tem sido definir o orçamento dos países com dificuldades de sanar as dívidas soberanas, como é o caso, sobretudo, de Portugal e da Grécia. Para o autor, num sistema federal tem de haver a partilha da soberania, pois "o federalismo implica sempre uma clara demarcação de poderes e competências" (p. 326). Se a UE ainda não é, de fato, uma federação, como pode um tratado determinar o orçamento de um Estado-membro?

O modelo de federalismo defendido na obra é aquele que se constituiu nos Estados Unidos. Em vez de predominar a competição entre os Estados federados, estes passam a cooperar entre si. Trata-se de um federalismo policêntrico, isto é, de um federalismo com múltiplas centralidades; ainda, de um federalismo como o governo da lei, em que haja a efetiva participação dos cidadãos, mesmo que suas identidades e origens sejam diversas, porque "uma federação só pode ser pensada como lugar de encontro do direito à diferença, como o espaço de coabitação das pluralidades e das diferenças" (p. 346).

Em suas considerações finais, Soromenho-Marques faz uma síntese das teses tratadas no decorrer das quatro partes que compõem a obra. Para ele, a crise europeia não tem um sujeito porque não há uma instituição supranacional capaz de coordená-la, e a política se rendeu ao mercado, pois "a causa da crise europeia não está nos mercados, mas sim no voluntário silenciamento das políticas públicas de regulação dos mercados" (p. 359).

Para o autor, como a Europa não tem uma Constituição, ou seja, uma lei universal fundamental, cada país-membro da UE viveria permanentemente num estado de exceção. E a Alemanha, mesmo sendo o país economicamente mais robusto da Zona do Euro, não assumiu a liderança de desenvolver uma Europa solidária e democraticamente forte, na qual os países mais pobres e pouco desenvolvidos pudessem, como numa verdadeira federação, contar com o repasse de recursos que sejam capazes de manter um equilíbrio e preservar a coesão social. Berlim precisaria deixar sua política de austeridade para que a Europa não se transforme num continente fraturado pelos ressentimentos e devastado pela miséria e pelo caos social que se avizinham.

Entendemos que talvez tenha faltado à obra uma discussão sobre o real papel dos Estados Unidos e das empresas transnacionais cujo capital de origem é norte-americano no agravamento da crise europeia. Embora o federalismo norte-americano sirva de paradigma, inclusive para a UE alcançar esse grau de articulação política, temos de nos perguntar se é de interesse (ou não) dos Estados Unidos que a Europa se torne efetivamente unificada. Afinal, a fragmentação europeia impede que o continente seja um polo de poder capaz de se contrapor ao império norte-americano. A ausência dessa discussão não invalida, porém, os argumentos e ideias apresentadas por Soromenho-Marques sobre a gravidade da crise europeia.

  • HOBBES, Thomas (1999). Leviatã, ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. São Paulo: Nova Cultural.
  • POLANYI, Karl (2012). A grande transformação: as origens políticas e económicas do nosso tempo. Lisboa: Edições 70.
  • QUENTAL, Antero de (2001 [1871]). Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos. Lisboa: Guimarães Editores.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2015

Histórico

  • Recebido
    23 Fev 2015
  • Aceito
    27 Abr 2015
Universidade de Brasília. Instituto de Ciência Política Instituto de Ciência Política, Universidade de Brasília, Campus Universitário Darcy Ribeiro - Gleba A Asa Norte, 70904-970 Brasília - DF Brasil, Tel.: (55 61) 3107-0777 , Cel.: (55 61) 3107 0780 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: rbcp@unb.br