Open-access Quando a corrupção é uma ameaça à democracia? Percepção de corrupção sobre políticos e burocratas e legitimidade democrática na América Latina 1

¿Cuándo es la corrupción una amenaza para la democracia? Percepción de la corrupción de políticos y burócratas y legitimidad democrática en América Latina

Resumo:

O artigo analisa a relação entre percepção de corrupção e legitimidade democrática na América Latina a partir da estrutura multidimensional da legitimidade. Além disso, nosso trabalho diferenciou a percepção de corrupção em duas variáveis independentes: políticos e funcionários públicos. Utilizamos uma metodologia quantitativa ancorada em dados do survey do Barômetro das Américas (BA) em sua rodada de perguntas 2018/2019. Os resultados do estudo indicam que a percepção de corrupção enfraquece a legitimidade democrática na América Latina não apenas nos níveis mais específicos de apoio político, mas também no próprio apoio aos objetos mais difusos do regime, comprometendo a legitimidade e a estabilidade da democracia na região. Nossos resultados também sugerem que o impacto da percepção sobre a legitimidade difere quando a variável independente são os políticos ou os funcionários públicos, sendo mais deletério para o regime quando os cidadãos percebem a classe política como corrupta.

Palavras-chave:
percepção de corrupção; legitimidade democrática; América Latina; políticos; funcionários públicos

Abstract:

The article analyzes the relationship between perceptions of corruption and democratic legitimacy in Latin America based on the multidimensional structure of legitimacy. The paper differentiates the perception of corruption into two independent variables: politicians and bureaucrats. We used a quantitative analysis of the Americas Barometer (AB) survey in its 2018/2019 round of questions. The results of the study indicate that the perception of corruption weakens democratic legitimacy in Latin America not only with respect to more specific levels of political support, but also with respect to diffuse support for the regime in general, compromising the legitimacy and stability of democracy in the region. Our results also suggest that the impact of perceptions of legitimacy differs when the independent variable is politicians or public officials, being more negative for the regime when citizens perceive the political class as corrupt.

Keywords:
perception of corruption; democratic legitimacy; Latin America; politicians; public officials

Resumen:

El artículo analiza la relación entre percepción de corrupción y legitimidad democrática en América Latina utilizando la estructura multidimensional de la legitimidad. Además, nuestro trabajo ha diferenciado la percepción de corrupción en dos variables independientes: políticos y funcionarios. Hemos utilizado una metodología cuantitativa anclada en los datos de la encuesta del Barómetro de las Américas (BA) en su ronda de preguntas 2018/2019. Los resultados del estudio indican que la percepción de corrupción debilita la legitimidad democrática en América Latina no solo en los niveles más específicos de apoyo político, sino también en el propio apoyo a los objetos más difusos del régimen, poniendo en riesgo la legitimidad y estabilidad de la democracia en la región. Nuestros resultados también sugieren que el impacto de la percepción sobre la legitimidad difiere cuando la variable independiente son políticos o funcionarios, siendo más deletéreo para el régimen cuando los ciudadanos perciben a la clase política como corrupta.

Palabras clave:
percepción de la corrupción; legitimidad democrática; América Latina; políticos; funcionarios

Introdução

A percepção da corrupção é diagnosticada por muitos estudiosos como um potencial fator deletério da legitimidade democrática (Anderson; Tverdova, 2003; Della Porta, 2000; Mishler; Rose, 2001; Putnam, 1993). Ao perceberem que a “máquina pública” e o “sistema político” estão corrompidos, ou seja, desviando-se das suas funções públicas para atender interesses particulares, o cidadão deixa de confiar nelas, tornando-se mais suscetível a discursos populistas/autoritários.

O problema da corrupção tem sido especialmente discutido na América Latina. Diferentemente de democracias mais longevas, as jovens democracias latino-americanas foram construídas sob grandes dificuldades econômicas e turbulências sociais. Nesse contexto de instabilidade, o efeito corrosivo de escândalos4 de corrupção poderia ser potencializado em razão das frágeis bases da legitimidade democrática.

Esse diagnóstico mais geral, no entanto, deixa escapar algumas sutilezas que nos ajudam a compreender melhor o fenômeno. Por um lado, não sabemos ao certo quais instituições/atores são mais relevantes nesse processo corrosivo. Será que toda instituição/ator que é percebida como corrupta afeta igualmente a legitimidade? No nosso caso, analisamos se a percepção de corrupção sobre burocratas e políticos exerce o mesmo efeito sobre a legitimidade do regime. Por outro lado, também não sabemos exatamente sobre quais esferas de legitimidade a percepção da corrupção impacta. Toda corrupção percebida afeta igualmente a confiança nos atores políticos, nas instituições representativas e na adesão à democracia?

Buscamos enfrentar estas questões ao analisar as relações entre corrupção percebida e apoio ao regime democrático na América Latina sob o ângulo da estrutura multidimensional da legitimidade política. Este refinamento da abordagem avança em relação aos estudos sobre o impacto da percepção sobre a democracia ao permitir identificar variações independentes em cada nível de apoio ao regime. Isso se torna particularmente importante porque o que coloca a democracia em perigo não é, necessariamente, a corrupção per se, e sim a queda de apoio ao regime em sua dimensão mais difusa (Norris, 1999, 2011).

Neste sentido, este artigo contribui para a área de comportamento político e legitimidade democrática ao avançar nessas questões. Para responder às perguntas delineadas neste trabalho, utilizamos os dados mais recentes do Barômetro das Américas (BA), coletados em 2018/2019. O BA é um survey realizado periodicamente desde 2004 pelo Latin American Public Opinion Project - LAPOP e abrange atualmente 20 países das américas. Além disso, o survey possui amostras representativas da população adulta dos países latino-americanos e um rol extenso de perguntas relacionadas à cultura política e à legitimidade democrática. Em relação ao tema da percepção da corrupção, o questionário contempla duas perguntas que distinguem dois atores políticos diferentes: 1) funcionários públicos e 2) políticos. Quanto ao tema da legitimidade democrática, o banco aborda múltiplas dimensões do apoio político, na linha proposta por Norris (1999) e outros estudiosos (Booth; Seligson, 2009; Dalton, 2004; Norris, 2011).

Esses dois conjuntos de perguntas permitem avançar em duas frentes. Ao distinguir entre “burocratas” e “políticos”, o BA permite testar se o efeito da percepção da corrupção sobre a legitimidade muda a depender de quem se corrompe. De um lado, temos o funcionário público que, segundo as teorias da burocracia, é marcado pelos princípios do mérito,5 da hierarquia,6 da estabilidade7 e, principalmente, pela impessoalidade.8 De outro, temos os políticos profissionais, cujas características são opostas: eleição, horizontalidade, periodicidade e pessoalidade.

A segunda frente de avanço, já aludida por nós, está na visão multifacetada da legitimidade democrática. Como argumentou Norris (1999), os cidadãos podem distinguir entre diferentes objetos políticos, que variam dos mais específicos até os mais difusos: avaliação dos atores políticos, confiança nas instituições, satisfação com o funcionamento da democracia e o apoio à democracia. Cada objeto político possui autonomia em relação aos demais, de modo que podem ser afetados e variarem de forma independente entre si. Este elemento é fundamental porque, como veremos mais adiante, não é toda corrupção que põe a democracia em risco, mas aquela que consegue afetar o apoio dos cidadãos à dimensão difusa da legitimidade democrática.

Nossa primeira hipótese de pesquisa é que o efeito da percepção de corrupção em relação aos políticos tem um efeito deletério mais forte sobre a legitimidade democrática do que a percepção direcionada a funcionários públicos. Levamos em consideração que estes atores estão mais expostos à veiculação de notícias negativas revelando casos e suspeitas de corrupção, além de serem periodicamente escrutinados em ciclos eleitorais. Isso impacta diretamente a imagem pública da classe política, corroborando para o aumento da sua responsabilização em termos de ocorrência de corrupção. Não obstante, atores políticos são mais facilmente associados a posições de comando no sistema político, sendo mais facilmente identificados como operadores da democracia do que os burocratas.

No caso dos funcionários públicos, seu trabalho envolve aspectos menos midiáticos, o que os torna, na média, menos expostos à responsabilização por casos de corrupção no regime democrático. Isso não os exclui de responsabilização pública frente aos cidadãos, mas o fato de frequentemente ocuparem postos de subordinação em relação aos atores políticos pode contribuir para a percepção de que eles são “menos responsáveis” do que a classe política pela corrupção no sistema.

Além das distinções entre políticos e burocratas, acreditamos que esse efeito tende a ser maior quanto mais específica a dimensão da legitimidade considerada, pois os cidadãos diferenciariam os níveis de legitimidade em termos de apoio ao regime democrático. Nossa expectativa ancora-se na capacidade do regime democrático em se autolegitimar na medida em que os indivíduos são socializados em instituições democráticas e desenvolvem conhecimentos, sentimentos e aspirações sobre o regime. Com isso, esperamos que os indivíduos sejam críticos mais impetuosos contra a qualidade do regime do que em relação ao tipo de regime em si. Em outras palavras, os cidadãos contestariam o desempenho de instituições e atores, mas dificilmente renunciariam à democracia, tendo em vista o amplo leque de direitos e vantagens que o regime assegura.

De forma geral, os resultados da pesquisa corroboram com essas expectativas. Os cidadãos atribuem maior responsabilidade aos políticos pela corrupção no regime democrático e a queda no apoio às dimensões da legitimidade do regime é maior em caso de percepção de corrupção dos políticos do que no caso de percepção de corrupção dos burocratas. Além disso, as dimensões mais específicas da legitimidade são mais vulneráveis aos efeitos da corrupção percebida do que a dimensão mais difusa de apoio, isto é, a adesão à democracia.

Além desta breve introdução, este artigo traz, na seção seguinte, uma discussão sobre o conceito de corrupção e seus efeitos sobre a democracia, argumentando também sobre a utilidade e as vantagens do indicador de percepção de corrupção nos estudos sobre legitimidade democrática. Em seguida apresentamos a estrutura da legitimidade democrática multidimensional baseada nos trabalhos de Norris (1999, 2011) e enfatizamos a importância de levar em conta as múltiplas dimensões da legitimidade em relação aos possíveis efeitos que a percepção de corrupção pode ter sobre a democracia.

Após as discussões indicadas acima, formalizamos o desenho da pesquisa e a construção das variáveis em nosso modelo de análise. Na sequência, apresentamos e discutimos os principais resultados encontrados em nosso trabalho para, finalmente, na última seção, sintetizarmos as considerações finais sobre os resultados, enfatizando a fecundidade dessa agenda de pesquisa e apontando lacunas que ainda precisam ser exploradas e superadas sobre o tema.

Corrupção, agentes corruptíveis e legitimidade democrática

Embora exista um grande debate a respeito da conceituação teórica da corrupção,9 é possível analisar o fenômeno de forma análoga a Silva (2014), que sistematiza o conceito em três aspectos: trata-se, em primeiro lugar, de um comportamento caracterizado pela ilegalidade; baseado no cálculo para benefício próprio em contraposição ao bem coletivo; e, por fim, que opera a partir da oposição dual e disjuntiva entre as esferas pública e privada, largamente assentadas sobre os padrões normativos estabelecidos socialmente.

Para nossa análise, é mais importante a dimensão subjetiva da corrupção, isto é, o que os cidadãos latino-americanos enxergam como corrupção e o quanto de corrupção identificam na democracia. Por isso, a despeito de utilizarmos uma base conceitual para a corrupção, entendemos que os cidadãos podem ter percepções distintas deste fenômeno. Ainda assim, como nosso trabalho está centrado sobre os efeitos que o sistema de crenças e atitudes tem sobre a estabilidade da democracia, argumentamos que é fundamental identificar em que medida os cidadãos latino-americanos levam em consideração o volume de corrupção que supõem haver no sistema político para apoiar e aderir ao regime, tornar-se satisfeito com seu funcionamento e confiar nos atores e instituições da democracia.

De forma geral, a literatura concorda com os efeitos nocivos da corrupção sobre a democracia. Em termos normativos, ela subverte o sentido de igualdade política, central à democracia, ao assegurar acesso privilegiado aos recursos de poder e restringir a competição e a capacidade de oposição (Moisés, 2013). No campo empírico, os trabalhos de Seligson (2001, 2002, 2006) estão entre os estudos pioneiros. Com dados originais coletados em surveys na América Central - e que, posteriormente, viriam a se expandir e dar início ao Barômetro das Américas -, o autor analisou a relação entre a vitimização10 por corrupção e baixos níveis de apoio ao sistema político, encontrando que ter sido vítima de crime de corrupção estaria associado a baixos níveis de apoio ao sistema e um menor nível de confiança interpessoal (Seligson, 2002).

Trabalhos empíricos mais recentes sobre a América Latina e o Brasil também têm enfatizado os efeitos nocivos que a corrupção percebida pelos cidadãos possui sobre o regime democrático do ponto de vista da legitimidade, da qualidade da democracia e da confiança política (Amorim, 2015; Baquero, 2015; Meneguello, 2011; Moisés, 2010; Pavão, 2018; Santos et al., 2023). Em geral, estes estudos enfatizam o declínio da adesão ao regime democrático, a queda na confiança interpessoal e na confiança sobre as instituições políticas e, não obstante, a avaliação negativa sobre o desempenho do regime e dos atores políticos.

Como os trabalhos mencionados acima indicam, o crescimento da disponibilidade de evidência empírica sobre as relações entre corrupção e democracia tem possibilitado avanços significativos sobre o tema na ciência política, especialmente para a pesquisa comparada. Entretanto, apesar das congruências em termos de diagnósticos e do aumento no número de trabalhos empíricos, ainda há lacunas teóricas e analíticas substantivas sobre o tema em questão.

Um primeiro ponto relevante concentra-se na variável independente: a diferença conceitual entre a “vitimização” - variável que é utilizada por Seligson (2002), por exemplo - e a “percepção” da corrupção (Meneguello, 2011; Moisés, 2010). A abordagem a partir da vitimização é relevante para analisar os efeitos da corrupção sobre o regime, mas restringe este afeito aos indivíduos que afirmam ter experienciado uma atividade corrupta ou que identificam a possibilidade de vivenciarem esta situação. Contudo, os efeitos da corrupção sobre o regime vão além dos indivíduos que experienciam esta situação, especialmente no caso da corrupção política, que mobiliza atitudes avaliativas dos cidadãos sobre seus representantes a despeito de terem experienciado casos de corrupção.

Uma segunda questão importante a ser explorada refere-se ao número de países analisados nos trabalhos sobre corrupção e democracia. Embora algumas análises tenham avançado na questão da percepção (Meneguello, 2011; Moisés, 2010), a literatura avançou pouco em termos comparados, tendo restringido parte substancial dos estudos a surveys nacionais. Neste sentido, nosso trabalho traz uma contribuição substantiva ao analisar dados de 17 democracias latino-americanas, aumentando a robustez analítica sobre o tema em questão.

Apesar de não haver consenso definitivo sobre a conceituação da corrupção, entendemos que esta comparação entre 17 democracias é possibilitada por estarmos trabalhando com o sistema de crenças dos cidadãos, isto é, em que medida os cidadãos levam em consideração sua percepção subjetiva do volume de corrupção para apoiar o regime. Em outros termos, a despeito do que um cidadão latino-americano entende por corrupção, se ele entender que há corrupção isso afeta suas atitudes em relação ao regime democrático? Ressaltamos este aspecto porque os indivíduos avaliam o regime segundo seu quadro cognitivo, o que indica a importância de levarmos em consideração a dimensão subjetiva de apoio ao regime.

Além do aumento no número de países estudados, nosso trabalho inova ao analisar os efeitos corrosivos sobre a legitimidade de maneira separada, avaliando a variação em cada nível de apoio ao regime. Isso é particularmente importante no caso da análise em questão porque, ao contrário do que as conclusões de parcela relevante da literatura sobre corrupção sugerem, entendemos que nem toda percepção de corrupção é danosa ao regime. Ao contrário, conjecturamos que é possível que níveis baixos de desconfiança dos cidadãos resultantes da percepção de corrupção podem forjar um apoio crítico aos atores, uma avaliação mais rigorosa sobre o desempenho das instituições, ou ainda ensejar formas de engajamento cívico em torno da atividade política. Nessas situações, é possível que haja incentivos para a melhoria da qualidade do regime e de suas instituições e atores.

Em contraponto, se os cidadãos mantêm uma disposição de apoio irrestrito às instituições e aos atores políticos, isso poderia resultar em menores incentivos para a melhoria do desempenho e da qualidade do regime democrático. Não obstante a isso, o aumento da criticidade dos cidadãos em relação ao regime é saudável enquanto não forjar atitudes e comportamentos políticos que contestem a existência do regime em si ou de seus pilares fundamentais. Em casos de extrema contestação do regime, é a própria democracia que está em risco. A perspectiva multidimensional, portanto, é fundamental para lidarmos com essa complexidade que envolve a necessidade de identificar quais níveis de desconfiança são realmente saudáveis e seguros ao regime, e quais níveis são profundamente deletérios para a sustentação das democracias latino-americanas.

Outra inovação relevante consiste na maneira de lidar com o problema da desejabilidade social presente em trabalhos sobre adesão à democracia. Este novo olhar sobre a legitimidade a partir da abordagem multidimensional da estrutura de apoio ao regime permitiu-nos lidar de maneira mais precisa com as clássicas limitações da “pergunta churchilleana” sobre preferência pela democracia. Ao inserirmos a rejeição a golpes militares como elemento constitutivo do apoio difuso, estabelecemos um “teste de fogo” sobre as atitudes de apoio ao regime. Embora entendamos que golpes militares sejam incompatíveis com um governo democrático, não descartamos que alguns cidadãos possam chamá-los de democráticos a partir de critérios obscuros. Por esta razão, incluímos a variável de rejeição a golpes a fim de limitar a “amplitude conceitual” a que podem incorrer cidadãos que apoiem soluções autoritárias afirmando serem democráticas. Ao mesmo tempo, tolerância a golpes nos permite avaliar se o aumento na corrupção percebida favorece o apoio a quebras violentas de regime pela via militar.

A comparação entre políticos e funcionários públicos possibilita identificarmos quais atores são mais responsabilizados socialmente pela corrupção e quais estão mais relacionados à corrosão do apoio à democracia. Tendo em vista que a corrupção pode envolver indivíduos posicionados estrategicamente nas estruturas do Estado, mas com funções diferentes, é válido questionar se qualquer corrupção afeta a legitimidade democrática. Dito de outro modo, os cidadãos responsabilizam servidores e atores políticos de forma igual ou diferenciada? Ou ainda, qualquer corrupção percebida, seja ela sobre burocratas ou representantes políticos, tem o mesmo potencial para corroer o apoio à democracia?

Assim, nosso trabalho contribui com a agenda de estudos sobre corrupção e legitimidade democrática ao propor um novo quadro teórico e multidimensional da legitimidade, propor uma visão mais sofisticada em relação a quais níveis de corrupção percebida são corrosivas para o apoio ao regime e ao aprofundar as diferenciações entre políticos e funcionários públicos. Em quais dimensões do apoio ao regime concentram-se os efeitos deletérios da corrupção percebida? Há diferenças entre políticos e burocratas neste sentido? Nosso argumento é que nem todo agente é responsabilizado da mesma forma pelo ato de corrupção e, em segundo lugar, que a percepção de corrupção não afeta a legitimidade de forma homogênea. Partindo da estrutura multidimensional da legitimidade, supomos que o impacto da corrupção percebida seja mais forte sobre os níveis mais específicos de apoio, como os políticos e as instituições representativas, do que em relação ao apoio difuso à democracia, isto é, suas regras, normas, valores e princípios democráticos.

Vantagens analíticas da medida de percepção da corrupção

Em linhas gerais, a corrupção tem sido estudada a partir de diferentes enfoques teóricos. Moisés (2013) argumenta que as abordagens correntes presentes estabelecem diferentes modelos analíticos centradas no perfil psicológico dos atores, no desenvolvimento econômico, no desempenho institucional e, por fim, em aspectos morais. Dentre esses paradigmas, o institucionalismo tem sido preponderante nas análises sobre a corrupção na ciência política.11

Apesar da relevância dos estudos sobre corrupção centrados no desenho institucional, entendemos que há problemas de mensuração inerentes ao objeto de estudo. Como afirma Abramo (2005), a mensuração direta da corrupção é um problema insolúvel, tendo em vista que o fenômeno se caracteriza pelo segredo. Dito de outro modo, saber sobre a existência de casos de corrupção informa muito pouco sobre o volume real do fenômeno, tendo em vista que só podemos estudar os casos que “deram errado”, isto é, que vieram a público. Neste sentido, os mecanismos institucionais explicativos se relacionam com os casos de corrupção descobertos, ou que deram errado, mas é limitado para concluir sobre casos possivelmente ocultos.

A literatura sobre comportamento político tem redirecionado o enfoque do debate teórico e proporcionado importantes contribuições a respeito. De maneira geral, os estudos fazem uso frequente de indicadores de percepção de corrupção e de atitudes em relação ao regime. A métrica mais comum para se estimar o fenômeno são os indicadores de percepção utilizados por pesquisadores e organizações com finalidades de transparência. Esses indicadores são comuns também em surveys de grandes institutos de pesquisa e tem constituído um conjunto de evidência empírica significativa para inúmeros trabalhos no campo do comportamento político.

Em relação ao índice de percepção da corrupção, levamos em consideração as críticas e ponderações presentes em Abramo (2005) e concordamos que os índices informam pouco sobre o volume de corrupção real e a dificuldade de se estabelecer associações entre uma parcela da corrupção desvelada e seu efeito no regime democrático. Acrescentamos a este argumento que, por se tratar de um tema com bastante sensibilidade social, está diretamente entrelaçado com a cobertura midiática sobre os casos. Isso significa que, além de observarmos apenas os atos ilícitos que vieram a público, isto é, os que geralmente falham na questão do sigilo, estamos sempre trabalhando com o escândalo. A literatura tem fornecido evidências empíricas da influência dos meios de comunicação na construção do escândalo de corrupção (Meneguello, 2011; Seligson, 2001, 2002; Silva, 2017).

Neste mesmo sentido, também consideramos consistente o argumento de Melo (2017) segundo o qual a publicização de um escândalo de corrupção pode estar relacionada com incrementos de robustez institucional, especialmente no que tange aos mecanismos de transparência e accountability. Tendo em vista que a percepção é uma ideia ou estimativa que os indivíduos possuem a respeito do nível de corrupção existente, esses fatores de desempenho institucional influem diretamente no modo como os cidadãos percebem um governo como corrupto.

Entretanto, mesmo concordando com as críticas acima suscitadas, argumentamos que a percepção de corrupção é um indicador relevante para entender o efeito do fenômeno sobre a democracia e que, ao contrário do que se poderia supor, a medida de percepção traz informações relevantes para os estudos sobre democracia. Ao se tomar em conta esses indicadores, a questão fundamental consiste em saber o que, de fato, essas métricas são capazes de informar e qual sua utilidade para a agenda de pesquisa.

Mesmo que não haja relação necessária entre percepção e o volume real de corrupção, os indicadores de percepção são válidos porque fornecem um dado amplo e geral sobre o nível de corrupção reconhecida pelos cidadãos, e esta informação, per se, já nos permite entender alguns efeitos do fenômeno sobre a democracia a partir da perspectiva comportamental. De forma resumida, em relação à questão sobre o que de fato os índices de percepção de corrupção medem, podemos afirmar que a percepção de corrupção nos fornece informações sobre em que medida ela é reconhecida e levada em conta pelos cidadãos em suas atitudes. Neste sentido, argumentamos que o regime democrático também é afetado pelo comportamento dos indivíduos em termos atitudinais, especialmente no que se refere à sua legitimidade. As relações entre cidadãos e regime democrático envolvem sistemas de crença e dimensões abstratas cuja relevância, amplamente corroborada pela literatura, não pode ser negligenciada (Almond; Verba, 1963; Dalton, 2004; Norris, 1999, 2011; Putnam, 1993).

Por fim, há outra questão relevante de causalidade. Como estamos abordando o sistema de crenças dos cidadãos, devemos levar em consideração a suposição de que o mal funcionamento da democracia poderia afetar a própria percepção de que há corrupção. Infelizmente não há metodologias e técnicas de pesquisa que solucionem definitivamente esta questão, mas é possível amparar-se na teoria e em evidências para identificar as relações entre corrupção e democracia. Temos razões teóricas para conjecturar que a corrupção percebida também afeta a estabilidade democrática, uma vez que a sobrevivência de um regime depende do apoio que obtém entre os cidadãos. Em todo tipo de regime político, a crença na validade do regime, de seus valores, princípios e regras, torna a estabilidade e a organização do poder menos custosa porque os cidadãos, ao atestarem a validade do regime, tendem a aceitar o exercício do poder como um direito, não como arbitrariedade.

Para os estudos sobre legitimidade democrática, a percepção torna-se relevante porque pode predispor atitudes, crenças e comportamentos que comprometem o apoio à democracia em distintas dimensões. Em nossa visão, a percepção de corrupção, quando mensurada de forma satisfatória e associada a um desenho de pesquisa adequado, fornece uma informação ampla e geral sobre o nível de corrupção reconhecida e, mesmo que essa informação não seja condizente com o volume real de corrupção efetiva, ainda assim nos auxilia a entender o papel que a corrupção ocupa no sistema cognitivo de crenças e de apoio ao regime democrático por parte dos cidadãos.

Política, burocracia e a estrutura multidimensional da legitimidade

Diferentemente das pesquisas que identificam os efeitos da percepção de corrupção sobre a democracia, utilizamos duas medidas de corrupção percebida: uma direcionada aos “políticos” e outra aos “funcionários públicos”. Temos razões teóricas para supor que os cidadãos responsabilizam de forma diferente a corrupção de servidores públicos e a de seus representantes políticos. Em primeiro lugar, a forma de recrutamento entre estes atores é notoriamente distinta, uma vez que os “burocratas” geralmente são recrutados segundo sistemas de seleção especificamente meritocráticas, isto é, a partir de mecanismos organizados para promover formas meritocráticas, impessoais, técnicas e universalistas de competição pelos cargos públicos.12

Isso significa que os cidadãos não participam diretamente da escolha dos funcionários do Estado no nível burocrático e que possivelmente não identificam os funcionários públicos como os responsáveis diretos pelo sucesso ou insucesso do desempenho do regime. Além disso, os funcionários públicos são menos expostos publicamente do que os atores políticos, o que implica um menor impacto na imagem destes funcionários frente aos cidadãos. Tendo em vista que os principais atores responsáveis pela elaboração de políticas públicas e soluções para as demandas do eleitorado são os representantes políticos, evidentemente isto pode implicar uma imagem diferente das responsabilidades de burocratas e políticos no desempenho da democracia.

Esta diferenciação, per se, é relevante porque a corrupção política está inserida em uma relação entre as esferas pública e privada em que tanto políticos quanto burocratas atuam. Entretanto, questionamo-nos se os cidadãos identificam o mesmo nível de corrupção entre funcionários do Estado e representantes políticos. Ou ainda, se a corrupção reconhecida em relação a burocratas e políticos têm efeitos semelhantes sobre o apoio ao regime e suas instituições e qual das duas é mais perigosa para a sustentação do regime democrático.

O conceito multidimensional de legitimidade democrática

Além desta diferenciação entre burocratas e políticos, argumentamos que a corrupção em si só é perigosa para democracia quando afeta a adesão ao regime, pois quando se resume ao nível dos atores, instituições ou desempenho da democracia, por exemplo, o regime dispõe de mecanismos para lidar com o problema. Entretanto, quando a percepção reduz as chances de apoiar o regime ou aumenta a tolerância a golpes militares, torna-se um problema sistêmico para a própria sobrevivência democrática. Neste artigo, respondemos à esta questão analisando a legitimidade democrática de forma multidimensional, tendo como alicerce teórico os trabalhos de Norris (1999, 2011).

Em seu trabalho, Norris (1999) enfatiza que o conceito de apoio político é multidimensional e que os diagnósticos de declínio do apoio à democracia seriam “exagerados” pelos pesquisadores, uma vez que estes não diferenciavam os objetos de apoio ao regime entre difusos e específicos. A análise da autora sugere que há tendências divergentes no âmbito dos objetos de apoio político, isto é, haveria, desde o pós-Guerra, uma tendência de aumento de apoio à democracia como forma ideal de governo ao mesmo tempo em que os cidadãos teriam se tornado mais “críticos” aos seus representantes e às suas instituições.

De fundo, o argumento subjacente consiste em afirmar que os cidadãos fazem uma clara distinção entre o tipo de governo que consideram ideal e o desempenho dos atores e das instituições dos regimes sob os quais vivem. Desenvolvendo a ideia de apoio difuso proposta por David Easton, a autora subdivide a legitimidade em uma estrutura de cinco dimensões: 1) apoio à comunidade nacional; 2) apoio à democracia; 3) satisfação com o desempenho do regime; 4) confiança nas instituições políticas; e 5) apoio aos atores políticos.

O primeiro nível de apoio à comunidade nacional, o mais difuso entre os listados na estrutura de legitimidade, diz respeito à vinculação do cidadão em relação à ideia de nação e a atitudes de cooperação junto a uma comunidade nacional de destino. De modo geral, é possível obter pistas desse nível difuso de apoio a partir da mensuração de indicadores que evidenciem o sentimento de pertença nacional, orgulho e identidades nacionais.

No nível seguinte, o apoio aos princípios enfatiza atitudes relacionadas aos valores fundamentais do regime democrático. A despeito da polissemia conceitual, busca-se identificar se a democracia é apoiada pelos cidadãos como forma de governo ideal ou preferível em relação às demais existentes. Esse nível de apoio pretende informar se a ideia de democracia está solidamente estabelecida no sistema de crenças e valores dos indivíduos, obtendo deles a adesão enquanto forma de regime ideal. Este objeto de apoio é um parâmetro difuso de legitimidade porque não é identificável diretamente na democracia, mas mantém-se vivo no sistema de crenças e sentimentos dos cidadãos em relação ao melhor tipo de regime possível. A deterioração neste nível de apoio significa uma ameaça grave à existência da democracia porque corrói as bases axiológicas de validação e justificação do regime democrático.

A terceira dimensão de apoio diz respeito à avaliação do desempenho do regime, isto é, ao modo como os cidadãos avaliam a satisfação com o funcionamento do regime democrático na prática. É possível que os indivíduos apoiem princípios democráticos e ainda assim avaliem o “funcionamento da democracia” em que vivem de forma negativa, explicitando uma clara distinção entre expectativas de um funcionamento ideal, e a realidade vivenciada. Nestes casos, pode-se dizer que a crença na democracia como melhor forma de governo não está sendo deteriorada.

Por sua vez, o quarto nível de apoio busca mensurar a confiança generalizada nas instituições que alicerçam e estruturam o regime, especialmente em relação à política (partidos, parlamentos, sistema de justiça etc.). Por fim, o nível de apoio aos atores políticos consiste na dimensão mais específica dentro da estrutura de legitimidade proposta por Norris (1999), e se refere aos atores políticos, autoridades e lideranças políticas. Nesta última dimensão, busca-se identificar o apoio aos atores e organizações que operam a democracia por dentro do regime.

A partir de uma análise fatorial, Norris (1999) identifica que os cidadãos fazem essa distinção supracitada da legitimidade em várias dimensões e, além disso, observa que os níveis de apoio a cada uma dessas dimensões apresentam tendências divergentes ao longo do tempo. Tendo em vista essa estrutura multidimensional de apoio, a autora argumenta que não há um movimento global de desapreço pela democracia em seu nível de apoio difuso. Ao contrário do que muitos diagnósticos vêm apontando, Norris (1999) entende que há uma nova forma de cidadão que tem se tornado mais crítico em relação aos rumos do governo e ao desempenho do sistema político e suas instituições, sem, contudo, deixar de considerar a democracia como forma legítima de autoridade política.

Apesar de apresentar um diagnóstico menos pessimista sobre os rumos da democracia no mundo, Norris (1999) reconhece em seu trabalho que o aumento dos cidadãos críticos pode significar problemas para os regimes democráticos. A autora apresenta duas hipóteses possíveis para o futuro: (1) em primeiro lugar, o crescimento do número de cidadãos críticos, que desconfiam da democracia, pode resultar em corrosão do apoio às instituições no longo prazo, sedimentando crises e instabilidades futuras; (2) em segundo lugar, pode significar o fortalecimento das instituições representativas tendo em vista o aumento de accountability e o incremento da participação democrática.

Em trabalho mais recente, Norris (2011) organiza um conjunto de dados ainda mais robusto sobre a legitimidade democrática ao redor do mundo. Ao retomar o debate iniciado em Critical Citzens (1999), ela desenvolve o conceito de “déficit democrático”, argumentando que boa parte das frustrações do cidadão moderno é explicada pelo hiato entre demanda e oferta de democracia. Essa frustração poderia ser canalizada pelas próprias instituições democráticas, via eleições. O resultado seria mudança de governo e maior pressão sobre os novos atores eleitos. No entanto, ela também poderia resultar em cidadãos predispostos a discursos populistas e autoritários.

Após os trabalhos de Norris (1999, 2011), a estrutura multidimensional de apoio ao regime democrático torna-se recorrente nas abordagens sobre legitimidade (Dalton, 2004). O trabalho de Booth e Seligson (2009) busca redefinir esta conceituação e propõe uma estrutura de legitimidade sustentada em seis dimensões, acrescentando o governo local como uma das dimensões da legitimidade, justificando o acréscimo a partir da relevância que a esfera subnacional tem para o cidadão comum, especialmente na América Latina. Entretanto, a despeito de algumas discordâncias acerca dos níveis de apoio, a multidimensionalidade do apoio ao regime democrático tem sido a tônica prevalente no debate sobre legitimidade.

Em nosso trabalho, adotamos o conceito de legitimidade como apoio ao regime democrático de forma multidimensional. Partimos da estrutura proposta por Norris (1999, 2011) como base para compreender o efeito que a percepção da corrupção tem sobre essas dimensões da legitimidade democrática. Mesmo que as dimensões da legitimidade possam estar correlacionadas entre si, entendemos como importante considerá-las separadamente, tendo em vista que os níveis de apoio podem variar de forma independente e, consequentemente, que a percepção de corrupção pode exercer uma influência maior sobre algumas dimensões do que sobre outras.

A ideia de que existem níveis de apoio difuso e específicos à democracia permite-nos supor que o arranjo democrático persista e seja mais resiliente a crises que afetem atores políticos ou instituições, desde que não corroa o apoio difuso ao regime. É esperado e perfeitamente aceitável que a avaliação do desempenho de governos varie ao longo do tempo, mas no que se refere aos vínculos mais profundos entre cidadãos e a democracia, isto é, no nível mais difuso de apoio, deduz-se que os laços sejam mais duradouros e persistentes. Segundo Norris (2011), os titulares de cargos e autoridades públicas dispõem de um reservatório de boa vontade afetiva no longo prazo que os permite agir sem que haja a contestação sobre o regime político.

Nesse sentido, escândalos de corrupção podem significar o fracasso pessoal de uma autoridade pública ou partido político, ou ainda resultar em uma crise que envolva o nível institucional e o desempenho do regime. No entanto, espera-se que isso não afete, num primeiro momento, a crença na própria validade do regime democrático. Seguindo esta linha de argumentação teórica, o problema seria quando a descrença pode ser suficientemente ampla ao ponto de atingir outros níveis da estrutura de legitimidade. Isso significa dizer que os “reservatórios de legitimidade” são importantes para entender como crises podem desestabilizar não apenas governantes eleitos, mas o apoio à democracia propriamente em suas dimensões mais difusas.

No caso da percepção de corrupção, é esperado que o nível de corrupção reconhecida pelos cidadãos afete a maneira como estes avaliam o governo incumbente. O arranjo institucional democrático possui mecanismos de responsabilização e de resolução de conflitos capazes de lidar com o problema quando este se resume aos titulares no poder. No entanto, é possível que a percepção de corrupção ultrapasse as dimensões mais específicas de apoio ao governo e avaliação do desempenho institucional e atinja o apoio difuso ao regime? Quando a corrupção deixa de ser um problema de governo e se torna uma questão para a democracia? Há níveis seguros para a corrosão da legitimidade democrática? Ou, dito de outro modo, a percepção de que a corrupção é persistente e generalizada pode resultar em déficits democráticos severos, comprometendo o apoio às dimensões mais difusas e basilares da democracia?

Hipótese, dados e desenho da pesquisa

A partir do exposto, nossas questões teóricas consistem em avaliar os efeitos da percepção de corrupção sobre o apoio ao regime democrático em dois sentidos. Em primeiro lugar, analisamos a distinção dos cidadãos em relação aos atores políticos e funcionários públicos. Acreditamos que essa diferença é perceptível para o eleitor comum, ainda que de forma intuitiva.13 Ele entende que é o “político” que está à frente do processo de decisão, formulação e fiscalização das políticas públicas, sendo o “funcionário público” limitado a sua execução.

Além disso, o político foi eleito diretamente, podendo ser pessoalmente “fiscalizado” pelo eleitor, ao contrário do burocrata que é selecionado via concurso público ou processos seletivos da administração pública. Nessa situação, o mais lógico é que a percepção sobre a corrupção sobre o agente político exerça um impacto maior na legitimidade do sistema político, afinal, ele é que foi diretamente eleito e que dispõe de maior autonomia de atuação. Assim, nossa primeira hipótese é que:

H1: o impacto da percepção da corrupção sobre as dimensões da legitimidade democrática deverá ser maior quando a corrupção é percebida em políticos do que quando é percebida em funcionários públicos.

A segunda frente de avanço está na visão multifacetada da legitimidade democrática. Como argumentou Norris (1999), os cidadãos distinguem entre diferentes objetos políticos, que podem variar do mais difuso até os mais específicos: avaliação dos atores políticos, a confiança nas instituições, a satisfação com o funcionamento da democracia e o apoio à democracia.

Nosso argumento é que a percepção da corrupção não é, por si mesma, ruim para a democracia. Ela depende, essencialmente, das dimensões da legitimidade que afeta. Se a percepção da corrupção impacta a confiança dos cidadãos nos atores políticos, ou então na sua avaliação do funcionamento prático do regime, ela não seria, necessariamente, um problema. Pelo contrário: a virtude da democracia representativa está, justamente, na possibilidade de que os atores políticos sejam premiados ou punidos periodicamente. Portanto, se um governo é corrupto, ou, ao menos, se é assim que a maioria da população o percebe, é compreensível - e até mesmo desejável - que essa sensação afete o apoio às dimensões mais específicas da legitimidade democrática.

No entanto, na medida em que esse efeito ascende das dimensões desses níveis de apoio para a dimensão de apoio difuso, isto é, o apoio à democracia enquanto conjunto de normas, regras e valores, a virtude se transforma em vício, abrindo janelas de oportunidade para discursos populistas/ autoritários, contrários à própria ideia mais geral de democracia, e, portanto, colocando em risco o regime.

Assim, como no caso anterior, partimos do pressuposto que o cidadão reconheça, ainda que implicitamente, essa diferença entre os objetos políticos. Nesse caso, nossa hipótese é a seguinte:

H2: o impacto da percepção da corrupção, especialmente de políticos, deverá ser maior nas dimensões mais específicas de apoio da democracia - avaliação dos atores políticos, confiança nas instituições e satisfação com o funcionamento do regime - e menor na dimensão difusa de apoio, a adesão à democracia.

A corrosão do apoio difuso implica queda na adesão à democracia enquanto forma de governo em si. No entanto, para termos mais convicção a respeito dos efeitos negativos que o aumento da percepção de corrupção engendra sobre a democracia, inserimos nossa terceira hipótese de que, de fato, o apoio ao regime é comprometido quando a percepção e corrupção aumenta. Para isso, mensuramos a relação entre aumento da corrupção percebida e tolerância à golpes militares para avaliar se, de fato, este decréscimo na adesão à democracia poderia significar maiores chances de chancela a quebras de regime e soluções claramente violentas e autoritárias.

Neste sentido, nossa terceira hipótese é a seguinte:

H3: o aumento da percepção de corrupção política aumenta a tolerância a golpes militares, o que consiste em um grande risco para a legitimidade do regime democrático.

Esta terceira hipótese consiste em nosso “teste de fogo” para o apoio ao regime, porque limita o efeito da desejabilidade social sobre a pergunta de preferência pela democracia. Em outros termos, argumentamos que, em um contexto democrático, é menos propício que haja a defesa direta de golpes militares, tendo em vista a marca patentemente negativa de que se trataria de uma deposição violenta e ilegítima do governo a partir de processos que passam longe do rito eleitoral clássico. Não obstante, esta é uma variável particularmente importante na América Latina, tendo em vista o histórico de ingerência militar na política da região, inclusive com governos militares ao longo de sua história recente.

Para responder às perguntas da pesquisa, utilizamos os dados mais recentes do survey Barômetro das Américas (BA), coletados em 2018/2019. A pesquisa é nacionalmente representativa da população eleitoral, com amostra desenvolvida a partir de um desenho probabilístico de múltiplos estágios (com cotas no nível familiar) estratificado pelas principais regiões do país, tamanho do município e áreas urbanas e rurais. Excluímos da análise os países de colonização britânica e língua oficial inglês - EUA, Canada e Jamaica. Assim, fizeram parte da análise 17 países da América Latina:14 Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Equador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana e Uruguai.

A variável independente de interesse da pesquisa é a percepção da corrupção. Na onda mais recente do BA são aplicadas duas questões relativas a essa temática. Uma delas menciona a corrupção entre funcionários públicos: “Considerando sua experiência ou o que ouviu falar dos funcionários públicos, a corrupção dos funcionários públicos é...”. A outra pergunta dá centralidade aos políticos: “Pensando nos políticos do [país], quantos deles o(a) Sr./Sra. acha que estão envolvidos com corrupção?”.

Uma observação importante é que as perguntas foram aplicadas separadamente: metade de respondentes foram escolhidos aleatoriamente para responder à primeira (funcionários públicos), enquanto a outra metade para responder a segunda (políticos). Essa dinâmica de aplicação não permite que as variáveis sejam analisadas conjuntamente. Ou seja, deve-se analisar sempre uma, depois a outra. Em contrapartida, ela traz um ganho conceitual importante ao diferenciar uma percepção de corrupção direcionada aos “burocratas” do sistema, isto é, pessoas normalmente despersonalizadas, que atuam na execução de processos em nome da “máquina pública”; e outra ligada aos políticos, estes sim, os “operadores” da democracia e agentes decisores.

As dimensões da legitimidade representam as variáveis dependentes do modelo. Utilizamos aqui quatro dimensões - apoio à democracia; confiança nas instituições; satisfação com o funcionamento da democracia; avaliação dos atores políticos - ao invés de cinco (Norris, 1999) ou seis (Booth; Seligson, 2009). A própria Norris (2011) deixa de dar centralidade à dimensão da “comunidade política” para enfatizar a importância das dimensões mais diretamente ligadas à democracia e suas instituições. Igualmente, Booth e Seligson (2009) acabam focando muito mais nessas dimensões, do que nas de “comunidade” ou de “atores políticos locais”.

O Anexo 1 detalha cada uma das variáveis utilizadas nos modelos. As escalas de respostas às perguntas utilizadas foram dicotomizadas para a construção dos modelos de regressão logística. Além das percepções de corrupção e das dimensões da legitimidade, utilizamos algumas variáveis de “controle” sociodemográficos e individuais, como sexo, faixa etária, escolaridade, região de moradia e interesse por assuntos políticos.

Resultados e discussão

A partir dos dados do banco Barômetro das Américas, identificamos que há uma alta percepção de corrupção dos cidadãos, tanto para políticos quanto para burocratas. A Figura 1 apresenta os resultados para a percepção de corrupção dos “burocratas”. Em média, 69% dos latino-americanos acreditam que a corrupção entre os funcionários públicos é “muito comum” ou “algo comum”. Os países que se destacam com os maiores níveis são Argentina (81%), Peru (76%) e Chile (76%), enquanto Guatemala (61%), Nicarágua (57%) e Honduras (55%) sustentam os menores níveis.

Figura 1.
Percepção de corrupção dos funcionários públicos (%)

Os dados da Figura 2 indicam que a percepção média de corrupção dos políticos é quase idêntica à dos burocratas (68%). Entretanto, a posição dos países muda consideravelmente. No topo, com os maiores percentuais, estão Peru (85%), Panama (75%) e Brasil (74%), ao passo que Costa Rica (54%), Nicarágua (53%) e Uruguai (50%) detêm os menores níveis de corrupção percebida. É importante esta ressalva sobre a mudança de posições dos países porque, mesmo que a corrupção média percebida pelo latino-americano para políticos e burocratas seja próxima, a mudança nas posições dos países pode ter significados diferentes para a legitimidade democrática, uma vez que, como apresentaremos a seguir, percepção sobre os políticos tem maior potencial para deteriorar o apoio ao regime.

Figura 2.
Percepção de corrupção dos políticos (%)

A Figura 3 compara a percepção de corrupção dos políticos com o Corruption Perceptions Index (CPI). Embora seja muito difícil medir “objetivamente” a corrupção, o CPI é um dos índices mais utilizados no mundo para esse propósito. A baixa correlação entre os percentuais do BA e o CPI reforça o argumento de que a corrupção percebida pelos cidadãos nem sempre coincide com a corrupção “efetiva” dos países. O mesmo padrão é observado quando utilizamos o percentual de corrupção dos burocratas.

Figura 3.
Percepção de corrupção política (PCP) x Corruption Perceptions Index (CPI)

Em relação aos efeitos da percepção de corrupção sobre a legitimidade, apresentamos de forma resumida na Tabela 1 os resultados dos modelos de regressões logísticas que rodamos. Como explicado na seção anterior, são sete variáveis dependentes que representam as dimensões da legitimidade. Para cada variável rodamos dois modelos, uma com a variável de percepção da corrupção de burocratas (PCB) e outra com a percepção da corrupção de políticos (PCP). Ou seja, foram 14 modelos de regressão logística. Todos os modelos tiveram efeitos fixos por país e foram controlados por sexo, faixa etária, escolaridade, residência em área urbana ou rural e interesse por política. A tabela apresenta os coeficientes de razão de chance (odds ratio) e, entre parênteses, o erro padrão.

O primeiro ponto a ser destacado é que existem diferenças entre as formas de perceber a corrupção. A percepção de corrupção dos burocratas diminui o apoio apenas nas dimensões mais específicas do regime, como a confiança nas instituições, satisfação com a democracia e avaliação do presidente. Entretanto, não há efeito significativo para a rejeição a golpes militares e encontramos aumento nas chances de apoio à democracia como forma de governo, nossa dimensão mais difusa analisada. Além disso, ela tem um efeito sistematicamente menor do que a percepção de corrupção em relação aos políticos. Esta última, além de exercer um impacto maior sobre as esferas específicas da legitimidade, alcança também os estratos mais difusos, como a crença de que a democracia é a melhor forma de governo e a rejeição a golpes militares.

Em termos percentuais, a PCB reduz em: 33% a satisfação com a democracia; 28% a confiança nas eleições; 36% a confiança no Congresso; 30% a confiança nas Cortes Superiores de Justiça; e 22% na aprovação presidencial. Em relação ao apoio difuso, não encontramos associação estatisticamente significativa entre sua corrosão e a corrupção percebida entre burocratas. Por sua vez, a percepção de corrupção política (PCP) reduziu em: 21% o apoio à democracia; 23% a rejeição a golpes militares; 58% a satisfação com o regime; 63% a confiança nas eleições; 61% a confiança no Congresso; 61% a confiança nas Cortes Superiores de Justiça; e 56% na aprovação presidencial.

Neste sentido, nossa primeira hipótese H1 de que “o impacto da percepção da corrupção sobre as dimensões da legitimidade democrática deverá ser maior quando a corrupção é percebida em políticos do que quando é percebida em funcionários públicos” foi confirmada pela análise. A percepção de corrupção sobre burocratas tem um efeito relativamente menor sobre a legitimidade do regime quando comparada aos efeitos da percepção de corrupção sobre políticos.

Esse resultado incita a conjecturar se haveria certa “sofisticação” do eleitor, uma vez que o efeito da sua percepção de corrupção é mais forte justamente quando perpassa os “operadores” do sistema democrático, isto é, aqueles que têm condições efetivas de mudar o sistema político. Por outro lado, ele também serve de alerta: a imagem dos políticos é mais poderosa para afetar a legitimidade da democracia do que a imagem do “sistema”, impessoalizada e generalizada, na figura dos funcionários públicos. Sabemos, no entanto, que os políticos são muito mais vulneráveis aos escândalos de corrupção e a sua divulgação na mídia. O eleitor é constantemente bombardeado por notícias negativas envolvendo políticos, passando a dar centralidade a esta informação e tornando-a mais saliente ao formar a sua opinião (Zaller; Feldman, 1992).

Tabela 1.
Efeito da percepção de corrupção sobre as dimensões da legitimidade democrática. Modelos de Regressão Logística.

O segundo ponto que chamamos a atenção está na força dos efeitos e sua relação com a teoria discutida anteriormente. Nota-se que o efeito da percepção de corrupção é mais pronunciado exatamente onde se esperava: nas dimensões mais específicas da legitimidade. Este resultado confirma nossa hipótese H2 de que “o impacto da percepção da corrupção, especialmente de políticos, deverá ser maior nas dimensões mais específicas de apoio da democracia - avaliação dos atores políticos, confiança nas instituições e satisfação com o funcionamento do regime - e menor na dimensão difusa de apoio, a adesão à democracia”.

A percepção de que os políticos não respeitam as leis para extraírem benefícios próprios em detrimento do bem comum, incrementa as chances de os cidadãos avaliarem mal a principal liderança política do país, de estarem insatisfeitos com o funcionamento da democracia e desconfiados das instituições democráticas. Como argumentamos, isso não é um problema per se para a democracia. Pelo contrário: a virtude da democracia é justamente ter um arranjo institucional que acomoda a insatisfação pública via eleições. De tempos em tempos, os cidadãos têm a oportunidade de renovar o quadro político e, se estiverem insatisfeitos com o desempenho dos atores políticos, podem puni-los ou, inversamente, se estiverem satisfeitos, premiá-los.

O problema, no entanto, é quando a percepção da corrupção deixa de se limitar ao “governo do dia” para deslegitimar o regime político, enquanto conjunto de normas, regras e princípios. Nesse caso, as próprias instituições que acomodam a insatisfação pública estão em risco e, no limite, colocadas em xeque pelos cidadãos. Os dados para América Latina sugerem que isso acontece, ao menos quando o alvo da percepção da corrupção são os políticos. Embora o efeito dessa percepção seja mais intenso nas dimensões específicas da legitimidade, ela não deixa de atingir, também, a dimensão mais difusa. Ou seja: na medida em que enxergam mais corrupção nos “operadores” da democracia, os cidadãos passam a considerar alternativas autoritárias.

Neste sentido, nossas análises indicam a confirmação de nossa terceira hipótese (H3) O aumento da percepção de corrupção política aumenta a tolerância a golpes militares, o que consiste em um grande risco para a legitimidade do regime. Este é um dado alarmante, pois reduzir a rejeição a golpes militares implica maior tolerância à derrubada violenta de governos pela força das armas. Mesmo em nossa pergunta “teste de fogo” da democracia, onde reduzimos o efeito da desejabilidade social da preferência democrática, observamos a explícita aceitação de ruptura com a democracia em caso de aumento da percepção de corrupção política. É digno de nota que a redução da preferência pela democracia e a redução da rejeição a golpes possuem valores muito próximos, respectivamente 21% e 23%, e são significativos em nossos modelos.

Levando-se em conta que a maioria dos latino-americanos (67%) percebe algum grau de corrupção entre os políticos, esse resultado não pode ser desprezado. Pode ser exagerado dizer que a democracia estaria em “risco” eminente por esse motivo. Mas, ao mesmo tempo, é prudente admitir que níveis persistentemente altos de percepção da corrupção podem contribuir para a deterioração da “reserva de legitimidade” democrática e que, conjuntamente com fatores de ordem institucional e econômica, podem proporcionar um contexto favorável a alternativas populistas e autoritárias.

Em outros termos, é possível conjecturar que, ao perceber a corrupção política como algo mais sistêmico, os cidadãos latino-americanos podem entender que a corrupção seja um problema do próprio regime, não apenas dos atores políticos de forma individualizada. Se isso ocorrer, o perigo é não diferenciarem o que é um problema do regime e o que é um problema de atores políticos e instituições, levando a punirem a própria democracia em si. Neste cenário, o apoio crítico ao regime pode converter-se em desprezo pelos valores que sustentam e validam a democracia.

Ainda neste sentido, ressaltamos que os países latino-americanos possuem um histórico de ingerência militar na arena política. Apesar de não ser razoável considerar estas democracias como ainda “jovens”, tendo em vista que o retorno à democracia ocorreu em sua maioria nos anos 1980 e 1990, não se trata de um passado demasiado longínquo e insignificante. Ao contrário, argumentamos que é preciso manter atenção à qualidade do regime democrático na região, que não se solidifica apenas com mudanças institucionais, mas também com a experiência dos cidadãos com desempenhos satisfatórios do regime.

Considerações finais

Nossa análise dos dados diferenciou a percepção de corrupção praticada por funcionários públicos e por políticos a partir de duas perguntas do Barômetro das Américas assumidas aqui enquanto variáveis independentes. Os resultados encontrados a partir das análises de regressão confirmaram nossas hipóteses H1, H2 e H3, indicando que é relevante fazer a diferenciação entre corrupção de políticos e burocratas, tendo em vista que os efeitos sobre a legitimidade são muito mais significativos para a percepção de corrupção em relação aos políticos do que em relação aos funcionários públicos.

Além disso, outro resultado importante relacionado a esta diferenciação consiste na capacidade de ambas as formas de percepção afetarem as dimensões da estrutura de legitimidade. Os efeitos são substantivamente diferentes de acordo com a pergunta de percepção adotada. As duas variáveis independentes apresentam efeitos diferenciados em relação aos níveis mais específicos e mais difuso de apoio, mantendo ambas o mesmo sentido nos níveis de legitimidade, a saber: quanto mais se ascende na escala da estrutura de apoio, indo dos objetos mais específicos para o mais difuso, menor é o efeito da percepção sobre o apoio a legitimidade. No entanto, somente a percepção de corrupção dos políticos apresentou capacidade de reduzir o apoio de forma significativa sobre a dimensão mais difusa de apoio à democracia.

Quando comparamos nossas duas variáveis explicativas, é nítida a maior responsabilização dos políticos pela corrupção e, coerente a este dado, maior a capacidade da percepção de que os políticos são corruptos afetar todas as dimensões. Mesmo analisando as dimensões separadamente, o efeito da responsabilização sobre os políticos é maior e mais corrosivo do que o dos funcionários públicos. Isso nos leva a pensar que as atitudes dos cidadãos, de fato, podem significar uma diferenciação no que concerne à responsabilização, uma vez que atribuem maior responsabilidade aos atores com maior poder de controle sobre os processos decisórios e a própria operacionalização da democracia do que aos burocratas.

No entanto, embora possa haver uma “sofisticação” dos cidadãos em termos de responsabilização, nosso estudo indica que a percepção de corrupção não afeta somente as atitudes em relação ao governo atual. Os resultados das análises apontam que o efeito da percepção é corrosivo também na dimensão mais difusa, de adesão ao regime, mesmo que em menor grau na comparação com o apoio aos níveis mais específicos. Isso confere maior centralidade à importância que a imagem dos políticos têm para a estabilidade do regime. Esses achados também confirmam o que a literatura vem apontando referente ao efeito nocivo da corrupção sobre a legitimidade democrática, mas atentamos para a necessidade de considerar os objetos de apoio da legitimidade e, não obstante, alertamos para a possibilidade de contaminação das dimensões mais difusas de apoio, reduzindo o “reservatório de boa vontade” em relação à democracia.

Apontamos que há lacunas a avançar na pesquisa sobre as relações entre corrupção e legitimidade. Em primeiro lugar, destacamos que os países diferem bastante em termos de percepção de corrupção. Além de características individuais, provavelmente existem dimensões contextuais importantes a serem exploradas. O legado democrático nos chama atenção tendo em vista suas proximidades com a ideia de “reservatório de apoio ao regime”. Entendemos que o tempo vivido sob uma democracia e a qualidade dessa experiência com o regime podem constituir variáveis interessantes para avaliar se há elementos contextuais interativos que condicionam o efeito da percepção de corrupção.

Outra abordagem interessante seria analisar o efeito corrosivo da corrupção levando em consideração o voto nas últimas eleições ou mesmo o apoio ao governante do dia. Em outros termos, analisar se a afinidade política ou ideológica reduz o efeito da percepção ou até mesmo a própria percepção. Ou, ainda, em contextos mais polarizados o efeito corrosivo pode ser potencializado? Neste aspecto, desenhos de pesquisa que ofereçam bom tratamento dos casos e que deem atenção aos aspectos contextuais interativos, em especial ao legado democrático, afinidade política e ideológica e polarização, têm potencial para contribuir para a agenda de pesquisa.

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    1 Para replicação dos dados: https://doi.org/10.7910/DVN/YMO8YJ
  • 4
    Utilizamos aqui o termo escândalo no sentido elencado por Adut (2004), em que o termo é definido como a publicização da transgressão de forma perturbadora, gerando indignação coletiva e reações negativas no espaço público.
  • 5
    O recrutamento por mérito é oposto ao método eleitoral porque não se baseia no sufrágio do voto popular, mas em um conjunto de mecanismos que buscam selecionar os indivíduos a partir de um sistema de competição universal pelos cargos e por seu desempenho em questões técnicas da função que será exercida.
  • 6
    Por definição, a organização da burocracia de tipo weberiano ocorre necessariamente de forma hierarquizada, subordinada, disciplinada e com regras de conduta pré-estabelecidas, ao contrário dos políticos, que não estabelecem uma organização piramidal de obediência e disciplina, construindo relações mais “horizontais” com seus pares e, com frequência, utilizam o discurso de são “iguais” frente aos seus eleitores.
  • 7
    A estabilidade da burocracia contrasta com a volatilidade a que os políticos estão suscetíveis de acordo com o “humor político” dos cidadãos. Assim, a rotatividade política tende a ser mais “natural” na democracia que a rotatividade de burocratas.
  • 8
    No ideal weberiano, a impessoalidade é fundamental para despersonalizar a máquina administrativa do Estado e estabelecer padrões universalistas de procedimentos, contrastando com a busca pela “boa imagem” que os políticos objetivam a fim de conquistarem votos.
  • 9
    Entretanto, não há um consenso no que tange à conceituação precisa, de modo que as divergências podem ser agrupadas, segundo Heidenheimer, Johnston e Levine (1989), em três modelos: public-office-centered definitions, em que o fenômeno diz respeito mais propriamente aos agentes públicos (Manzetti; Wilson, 2009; Nye, 1967); market-centered definitions, dando ênfase aos aspectos econômicos e de mercado (Rose-Ackerman, 1999); e interest-centered definitions, cujo aspecto central consiste na oposição à ideia normativa de interesse público (Calera, 1989; Filgueiras, 2008; Valdés, 1995).
  • 10
    É importante salientar que a vitimização consiste, na verdade, em um índice indireto para tentar mensurar a vitimização por corrupção, tendo em vista a dificuldade de conjecturar acerca do real volume de corrupção e vitimização por corrupção. Dada a peculiaridade da corrupção caracterizar-se pelo sigilo e levando em consideração a desejabilidade social acerca do tema, é difícil mensurar efetivamente tanto a corrupção quanto a vitimização por corrupção.
  • 11
    Na perspectiva institucional, a ocorrência de corrupção é explicada a partir de variáveis internas ao sistema político. De modo geral, a literatura neoinstitucional tem utilizado a escolha racional como paradigma analítico para abordar a questão da corrupção, adotando como suposto básico o modo como o desenho institucional pode criar mecanismos de incentivo ou inibição ao comportamento corrupto. É constante também assumir o comportamento rent-seeking como modelo de preferência pré-ordenada e analisar mecanismos de responsabilização por meio da accountability institucional ou vertical. Embora não haja consenso sobre quais mecanismos institucionais podem explicar de maneira efetiva a ocorrência da corrupção, o argumento que subjaz os trabalhos assume o contexto institucional como variável explicativa.
  • 12
    O recrutamento da burocracia é mais complexo e envolve relações com o próprio sistema político, especialmente para os cargos de alto nível hierárquico e comando. Entretanto, referimo-nos ao padrão característico de recrutamento da burocracia delimitado pelo paradigma weberiano porque esta é a visão clássica sobre a forma de recrutamento burocrático e é amplamente identificada pelos cidadãos como forma de seleção para os cargos públicos.
  • 13
    Utilizamos o temo “intuição” de forma análoga a Singer (2000), por exemplo, quando argumenta que os eleitores têm uma “intuição ideológica”. Isso significa que, mesmo sem saber exatamente as definições formais que envolvem os conceitos, os cidadãos são capazes de compreendê-los no que há de mais essencial por meio das experiências práticas que adquirem ao agir politicamente ao longo da vida. Esse é o sentido empregado aqui: embora existam definições formais que separem o “burocrata” do “político”, o eleitor comum faz uma distinção mínima, ainda que não perfeita, que orienta os seus julgamentos.
  • 14
    Não houve aplicação do questionário para a Venezuela na rodada 2018/2019.

ANEXO: QUADRO 1

Dimensão Variável Pergunta Escala do questionário Variável dicotômica Apoio à democracia Apoio à democracia como melhor forma de governo Mudando de assunto de novo, a democracia tem alguns problemas, mas é melhor do que qualquer outra forma de governo. Até que ponto concorda ou discorda desta frase? 1 - Discorda muito. 2 3 4 5 6 7 - Concorda muito. 1/4 = 0 (pouco democrata). 5/7 = 1 (democrata). Rejeição a golpes militares Algumas pessoas dizem que em certas circunstâncias se justificaria que os militares tomassem o poder através de um golpe de estado. Na sua opinião, se justificaria um golpe militar... Quando há muito crime? / Diante de muita corrupção? 1 - Seria justificado que os militares tomassem o poder por um golpe de estado. 2 - Não se justificaria que os militares tomassem o poder por um golpe de estado. 1 = 0 (Maior tolerância a golpes militares). 2 = 1 (Rejeita golpes militares). Satisfação com o regime Satisfação com o desempenho da democracia De uma maneira geral, o(a) sr./sra. está muito satisfeito(a), satisfeito(a), insatisfeito(a) ou muito insatisfeito(a) com o funcionamento da democracia no(a)... [país]? 1 - Muito satisfeito(a) 2 - Satisfeito(a) 3 - Insatisfeito(a) 4 - Muito insatisfeito(a) 3/4 = 0 (Insatisfeito) 1/2 = 1 (Satisfeito) Apoio às instituições democráticas Confiança nas eleições Até que ponto o(a) sr./sra. tem confiança nas eleições neste país? 1 - Nada 2 3 4 5 6 7 - Muito 1/4 = 0 (Confia pouco) 5/7 = 1 (Confia muito) Confiança no Congresso Até que ponto o(a) sr./sra. tem confiança no Congresso Nacional? 1 - Nada 2 3 4 5 6 7 - Muito 1/4 = 0 (Confia pouco) 5/7 = 1 (Confia muito) Confiança no STF Até que ponto o(a) sr./sra. tem confiança no Supremo Tribunal Federal? 1 - Nada 2 3 4 5 6 7 - Muito 1/4 = 0 (Confia pouco) 5/7 = 1 (Confia muito) Avaliação dos atores Confiança no Presidente Até que ponto o(a) sr./sra. tem confiança no Presidente da República 1 - Nada 2 3 4 5 6 7 - Muito 1/4 = 0 (Confia pouco) 5/7 = 1 (Confia muito) Percepção de corrupção Funcionários públicos Considerando sua experiência ou o que ouviu falar dos funcionários públicos, a corrupção dos funcionários públicos é... ? 1 - Muito comum 2 - Algo comum 3 - Pouco comum 4 - Nada comum 3/4 = 0 (Percebe pouca corrupção) 1/2 = 1 (Percebe muita corrupção) Políticos Pensando nos políticos do [país], quantos deles o(a) Sr./Sra. acha que estão envolvidos com corrupção? 1 - Nenhum 2 - Menos da metade 3 - A metade dos políticos 4 - Mais da metade 5 - Todos 1/3 = 0 (Percebe menos corrupção) 4/5 = 1 (Percebe muita corrupção) Fonte: Barômetro das Américas 2018/2019

Editado por

  • Debora Rezende de Almeida
  • Rebecca Neaera Abers

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Fev 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    21 Ago 2023
  • Aceito
    18 Set 2024
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