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Mantendo o céu no lugar: o caso Yanomami e as denúncias contra a ditadura militar brasileira na Comissão Interamericana de Direitos Humanos 1 1 Este trabalho foi apresentado no 16º Encontro da Brazilian Studies Association (BRASA), organizado pela Georgetown University em março de 2022. Gostaríamos de agradecer os comentários dos participantes do evento, em especial de Beatriz Kushnir, Carlos Artur Gallo, Christian Schallenmueller, Janaína de Almeida Teles e Pádua Fernandes. As opiniões no texto, assim como eventuais erros e imprecisões são da nossa responsabilidade.

Keeping the sky in place: the Yanomami case and the accusations against the military dictatorship in the Inter-American Commission on Human Rights

Resumo:

Com base no institucionalismo histórico, o artigo avalia as interações entre Estado brasileiro, Comissão Interamericana de Direitos Humanos e organizações peticionárias pró-indígenas durante a tramitação da denúncia do caso Yanomami entre 1980 e 1985. Metodologicamente, a análise de fontes primárias do Ministério das Relações Exteriores permitiu reconstruir interesses, estratégias e o alcance das ações desses atores. Conclui-se que, apesar das pressões do Brasil contra o caso, a discricionariedade da Comissão e as clivagens entre seus membros se combinaram com o contexto político externo, o qual havia permitido um fortalecimento institucional da Comissão e projetado uma rede transnacional indigenista. Tais fatores resultaram em uma decisão da Comissão que instou o Estado a garantir a demarcação das terras indígenas Yanomami.

Palavras-chave:
povos indígenas; direitos humanos; sistema interamericano; ditadura militar

Abstract:

Based on historical institutionalism, this article assesses the interactions between the Brazilian state, the Inter-American Commission on Human Rights and pro-indigenous organizations during the proceedings of the Yanomami case between 1980 and 1985. Methodologically, we analyzed primary sources from the Ministry of Foreign Affairs to map the interests, strategies and impacts of these actors´ actions. Despite Brazilian pressure against the case, the Commission’s discretion and cleavages among its members coalesced with the external political context, allowing for the strengthening of the Commission and of a transnational indigenist network. These factors resulted in a decision by the Commission that urged the state to guarantee the demarcation of the Yanomami lands.

Keywords:
indigenous peoples; human rights; inter-American system; military dictatorship

Os brancos não temem, como nós, ser esmagados pela queda do céu.

Davi Kopenawa4 4 Essa frase consta da obra “A queda do céu: palavras de um xamã yanomami” de autoria de Davi Kope-nawa e Bruce Albert.

Introdução

Durante a ditadura militar brasileira (1964-1985), o Estado oficializou uma política de assimilação e integração forçada dos povos indígenas, com um saldo de milhares de mortes e vários episódios de genocídio (BRASIL, 2014BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório da Comissão Nacional da Verdade (v. 1; v. 2). Brasília: CNV, 2014.; VALENTE, 2017VALENTE, Rubens. Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.). Projetos desenvolvimentistas de infraestrutura e megaobras, combinados com pressões de missões religiosas e frentes de expansão agropecuária e mineradora, negavam aos povos indígenas suas terras e a possibilidade de manutenção das suas cosmovisões e modos próprios de vida. Como consequência, tais povos foram expostos à violência armada, epidemias, contaminação ambiental, expropriação de recursos naturais, processos de deslocamento forçado e inúmeros outros fatores de desintegração e extermínio étnico-cultural.

Em meio à prevalência das doutrinas do inimigo interno e do desenvolvimentismo econômico desenfreado, assim como do reforço aos mitos da democracia racial e da existência de uma única comunhão nacional pacificada, os povos indígenas foram retratados como empecilhos ao progresso do capitalismo e potenciais ameaças à segurança nacional. Apesar de denúncias internacionais sobre práticas de genocídio que circulavam contra o Brasil desde finais dos anos de 1960, foi somente com o término oficial da ditadura, em 1985, que um organismo internacional, a Comissão Interamericana de Direitos HumanosCOMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Coulter et al. v. Brazil - Caso Yanomami. Res. No. 12/85, Caso No. 7615, 5 de mar. 1985. (CIDH),5 5 A Comissão Interamericana de Direitos Humanos é um órgão da Organização dos Estados Americanos e, em conjunto com a Corte Interamericana de Direitos Humanos, compõe o sistema regional de proteção de direitos humanos no hemisfério americano. Como o Brasil aderiu à Convenção Americana de Direitos Humanos somente em 1992 e aceitou a competência da Corte em 1998, os casos contra o país durante o regime militar tramitaram somente na Comissão, que referenciava as violações com base na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem de 1948. É importante destacar que os relatórios da Comissão têm caráter de recomendação aos Estados. emitiu uma recomendação sobre esse contexto e abordou a denegação de território e os abusos perpetrados contra o povo Yanomami nos estados do Amazonas e Roraima, perto da fronteira com a Venezuela.

No momento em que, na Organização das Nações Unidas, o relatório Martínez Cobo de 1983 ainda definia o conceito de povos indígenas, e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) era criticada pelo caráter pouco protetivo da sua Convenção 107 de 1957, a pressão transnacional de uma rede de organizações de apoio aos Yanomami estimulou a CIDH a se pronunciar sobre os direitos territoriais desse povo indígena. Frente ao longo e tradicional silêncio dos regimes internacionais de direitos humanos nessa temática, tal recomendação foi um precedente importante para avanços jurisprudenciais mais substantivos do sistema interamericano, especialmente a partir dos anos 2000.

Quais fatores explicam essa mudança institucional tão importante da CIDH? Com base no institucionalismo histórico (MAHONEY; THELEN, 2010MAHONEY, James; THELEN, Kathleen. A theory of gradual institutional change. In: MAHONEY, J.; THELEN, K. T. (eds.). Explaining institutional change: ambiguity, agency and power. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 1-37.), neste texto tratamos das interações entre Estado, CIDH e organizações peticionárias pró-indígenas durante a tramitação do caso Yanomami entre 1980 e 1985, a fim de responder essa pergunta, reconstruir os interesses e estratégias desses atores e apresentar o alcance e a repercussão de suas ações. Assim, destacamos a atuação: (i) do Estado brasileiro e sua política externa de direitos humanos; (ii) da CIDH e sua política institucional como burocracia internacional de direitos humanos; e (iii) dos vários atores não estatais denunciantes e sua política transnacional de direitos humanos.

Lançando luz para os entrecruzamentos desses tabuleiros, o artigo revela, em primeiro lugar, no plano da agência política, como as pressões e ingerências do Brasil contra o andamento da denúncia foram rebatidas pela incidência político-legal dos peticionários e mediadas por clivagens existentes entre membros e alas da CIDH. Ademais, para além da disputa concreta na CIDH envolvendo o povo Yanomami, salientamos ainda a importância estrutural mais ampla do contexto histórico e político externo subjacente ao caso, que também afetou seu desenlace. A década de 1980 herdou da sua antecessora tanto o processo de fortalecimento institucional da CIDH - posterior ao governo Carter (1977-1981) e às críticas contra as ditaduras militares no Chile e Argentina (entre 1976 e 1980) (DYKMANN, 2008DYKMANN, Klaas. Human rights policy of the Organization of American States in Latin America: philanthropic endeavors or the exploitation of an ideal? Princeton: Markus Wiener Publishers, 2008.) - quanto o surgimento e consolidação das primeiras redes transnacionais em prol dos povos indígenas (ENGLE, 2018ENGLE, Karen. El desarrollo indígena, una promesa esquiva: derechos, cultura, estrategia. Tradução de Sabrina Frydman; Matías González Mama; Pedro Lama. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad de los Andes, 2018.; KEMNER, 2014KEMNER, Jochen. Fourth world activism in the first world. Journal of Modern European History, v. 12, n. 2, p. 262-279, 2014.; NIEZEN, 2003NIEZEN, Ronald. The origins of indigenism: human rights and the politics of identity. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 2003.).

O contexto era, portanto, de acúmulo de recursos e repertórios institucionais e, ao mesmo tempo, de mobilização de novos atores sociais indigenistas que, em suas lutas, atrelavam-se de maneiras pioneiras à linguagem internacional dos direitos humanos. Combinados, tais fatores estruturais incidiram na disputa política sobre os direitos territoriais dos Yanomami, que tinha a CIDH como palco.

Diante disso, argumentamos que, no caso Yanomami, o fortalecimento institucional pregresso da CIDH e a diminuição de pontos de veto ao seu trabalho - tanto na Organização dos Estados Americanos (OEA) e na estrutura interna da CIDH, quanto na relação com os Estados Unidos, desinteressados frente à Comissão desde a ascensão de Reagan (1981-1989), ainda mais em tema de fora da agenda anticomunista - permitiram que uma ala mais progressista de comissários se valesse da discricionariedade institucional da CIDH na aplicação de normas para estender o alcance da proteção então vigente dos direitos humanos aos povos indígenas, ainda que o acervo normativo existente não os mencionasse expressamente. Nesse sentido, a tramitação do caso Yanomami revela um cenário de mudança institucional marcado pela conversão (MAHONEY; THELEN, 2010MAHONEY, James; THELEN, Kathleen. A theory of gradual institutional change. In: MAHONEY, J.; THELEN, K. T. (eds.). Explaining institutional change: ambiguity, agency and power. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 1-37.), i.e., a ação de inovadores institucionais interessados em explorar ambiguidades de normas e regras pré-existentes para ampliar o escopo da missão institucional original da CIDH.

A explicação do caso ajuda, portanto, não só a compreender sua dinâmica e o desenvolvimento normativo da CIDH frente aos direitos dos povos indígenas. Além disso, introduz e operacionaliza o institucionalismo histórico dentro das discussões sobre Relações Internacionais e o funcionamento das organizações internacionais.

Em termos metodológicos, para a realização do trabalho, usamos fontes primárias do arquivo do Ministério das Relações Exteriores em Brasília, disponibilizadas em visitas de pesquisa entre 2017 e 2020. A fim de evitar tratamento enviesado das fontes, todos os memorandos encontrados no arquivo do MRE sobre direitos humanos na OEA, entre 1980 e 1985, foram resumidos de forma sistemática em tabelas individuais, seguindo os mesmos critérios: título, classificação original (ostensivo, confidencial, secreto ou ultrassecreto), breve resumo do conteúdo, e observações eventuais sobre a qualidade de visualização do documento. Ao final, selecionamos e analisamos os documentos relacionados ao trâmite do caso Yanomami na CIDH e assuntos correlatos. Como desconhecemos outros trabalhos acadêmicos que tenham usado essas fontes, elas foram privilegiadas em nossa análise.

Reconhecemos que os arquivos não são neutros, mas sim espaços de disputas que reproduzem silenciamentos, exclusões e expressam relações e narrativas de poder e autoridade. Nesse sentido, embora os arquivos do MRE expressem o ponto de vista do Estado, eles contêm cópias dos documentos enviados pelos peticionários e revelam ainda as movimentações políticas de bastidores de integrantes da Comissão, ausentes nos relatórios anuais protocolares da CIDH. Esses elementos permitem que a análise escape de uma abordagem estadocêntrica top-down por meio da reconstrução dos contextos de interação e do mapeamento desses outros atores e de suas estratégias e ideias, ademais da caracterização dos usos das regras e da arena institucional da CIDH. A falseabilidade dos argumentos assim elaborados, bem como o uso da documentação e das citações, pode ser avaliada pela consulta direta às fontes, o que garante a replicabilidade da pesquisa.

A escolha do caso Yanomami para um estudo de caso em profundidade se deve a dois motivos: relevância histórica do seu significado dentro da atuação da CIDH; e o fato de ter sido o único caso brasileiro na CIDH a envolver a temática indígena durante a ditadura. Os demais casos brasileiros enviados à CIDH nessa época, sobre não indígenas, e, portanto, não comparáveis ao caso Yanomami, já mereceram análise de outras pesquisas (GREEN, 2009GREEN, James Naylon. Apesar de vocês: oposição à ditadura brasileira nos Estados Unidos, 1964-1985. Tradução de S. Duarte. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.; BERNARDI, 2018BERNARDI, Bruno Boti. Silence, hindrances and omissions: the Inter-American Commission on Human Rights and the Brazilian military dictatorship. The International Journal of Human Rights, v. 22, n. 9, p. 1123-1143, 2018.). O caso mais semelhante e contemporâneo ao Yanomami seria o do povo Miskitu, da Nicarágua, sobre o qual já há produção convergente com a nossa sobre o papel da CIDH (ANAYA, 2009ANAYA, S. James. International human rights and indigenous peoples. New York: Aspen Publishers, 2009.), dispensando novas análises. Desse modo, a junção desta pesquisa com os achados empíricos já existentes sobre o caso Miskitu aumenta nossa compreensão sobre a conversão institucional vivenciada pela CIDH nos anos de 1980.

O artigo está dividido em oito partes. Após a introdução, a parte 2 expõe o referencial teórico do institucionalismo histórico que fundamenta o trabalho. Em seguida, a parte 3 trata dos aspectos mais elementares do caso Yanomami. As partes seguintes tratam de cada um dos atores analisados: os peticionários e as ONGs (parte 4), o Estado brasileiro (parte 5, com três subseções) e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) (parte 6, com uma subseção). O desfecho do caso na transição para a democracia é o tema da parte 7. Por fim, apresentamos as considerações finais.

Referencial analítico: a mudança na CIDH como um caso de conversão institucional

Os trabalhos mais recentes do institucionalismo histórico buscam responder “como as instituições mudam” e “qual a relação entre mudança institucional e resultados políticos” (HACKER; PIERSON; THELEN, 2015HACKER, Jacob S.; PIERSON, Paul; THELEN, Kathleen. Drift and conversion: hidden faces of institutional change. In: MAHONEY, J.; THELEN, K. (eds.). Advances in comparative-historical analysis. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. p. 180-208., p. 182). Se, no passado, as instituições eram tratadas como fixas, estáveis, engessadas e estruturadoras das interações entre os atores, a partir das noções de dependência da trajetória, trancamento de políticas (lock in) e de equilíbrios e inércias institucionais (CAPOCCIA, 2016CAPOCCIA, Giovanni. When do institutions “bite”? Historical institutionalism and the politics of institutional change. Comparative Political Studies, v. 49, n. 8, p. 1095-1127, 2016.), o foco atual se altera para o desenvolvimento e evolução das instituições: “quais tipos de mudanças institucionais, impulsionadas por quais tipos de processos sociais, são mais prováveis sob quais tipos de configurações políticas” (HACKER; PIERSON; THELEN, 2015HACKER, Jacob S.; PIERSON, Paul; THELEN, Kathleen. Drift and conversion: hidden faces of institutional change. In: MAHONEY, J.; THELEN, K. (eds.). Advances in comparative-historical analysis. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. p. 180-208., p. 180). A atenção se volta, sobretudo, para processos de mudança institucional desatados não por choques externos exógenos e momentos críticos (critical junctures), mas por processos endógenos e incrementais, enfatizando o papel da agência e “como interações políticas e sociais transformam as instituições” (CAPOCCIA, 2016CAPOCCIA, Giovanni. When do institutions “bite”? Historical institutionalism and the politics of institutional change. Comparative Political Studies, v. 49, n. 8, p. 1095-1127, 2016., p. 1096), que deixam de ser aprisionadoras.

Tendo em mente o desafio analítico de entender essas dinâmicas, Mahoney e Thelen (2010, p. 15)MAHONEY, James; THELEN, Kathleen. A theory of gradual institutional change. In: MAHONEY, J.; THELEN, K. T. (eds.). Explaining institutional change: ambiguity, agency and power. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 1-37. afirmam que

as características do contexto político e da instituição em questão, juntas, impulsionam o tipo de mudança institucional que podemos esperar. O contexto político e a forma institucional têm esses efeitos porque moldam o tipo de agente dominante de mudança que provavelmente surgirá e florescerá em qualquer contexto institucional específico, e os tipos de estratégias que esse agente provavelmente adotará para efetuar a mudança.

De acordo com os autores, “as diferenças nas possibilidades de veto [características do contexto político] e a extensão da discricionariedade na aplicação e interpretação institucionais [características da instituição] estão associadas a diferentes modos de mudança institucional” (MAHONEY; THELEN, 2010MAHONEY, James; THELEN, Kathleen. A theory of gradual institutional change. In: MAHONEY, J.; THELEN, K. T. (eds.). Explaining institutional change: ambiguity, agency and power. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 1-37., p. 18).6 6 Segundo os autores, “as possibilidades de veto são altas onde existem atores que têm acesso a meios institucionais ou extrainstitucionais para bloquear a mudança. Esses atores podem ter acesso à capacidade de veto tanto em relação às mudanças nas próprias regras (formais ou informais) quanto às mudanças na aplicação das regras na prática” (MAHONEY; THELEN, 2010, p. 19). Já a discricionariedade na aplicação e interpretação institucionais diz respeito a “diferenças no grau com que as instituições estão abertas a interpretações diversas e a variações em sua aplicação” (MAHONEY; THELEN, 2010, p. 20). Cada uma dessas modalidades, por sua vez, é promovida por tipos específicos de atores institucionais, com perfis e interesses distintos, resultando em quatro padrões de mudança possíveis: por substituição (displacement), por camadas (layering), por deriva institucional (drift) ou por conversão (conversion). Em outras palavras, a depender da extensão do poder de veto dos defensores do status quo e da margem de ação autônoma das instituições, alguns caminhos de mudanças se tornam mais prováveis, enquanto outros são bloqueados.

O tipo mais drástico e radical de mudanças corresponde a contextos com fracas possibilidades políticas de veto e baixos níveis de discricionariedade institucional. Nesses casos, os agentes interessados em impulsionar mudanças podem simplesmente se comportar como insurgentes: dado o pequeno alcance e reverberação das forças pró-status quo, opositoras a mudanças, as regras existentes podem ser abandonadas em favor de novas, com maior espaço discricionário. Como resultado, a velha instituição é substituída por completo (displacement).

Já as instituições que permitem baixos níveis de discricionariedade na interpretação ou aplicação de regras, quando inseridas em contextos políticos marcados pela presença de atores dotados de poder de veto que defendem o status quo, levam os agentes de mudança a se comportar como subversivos. Em vez de um redirecionamento radical e da criação de instituições alternativas, a rota promovida é a de introduzir paulatinamente pequenas alterações, emendas e acréscimos em camadas (layering), sobrepondo-os às regras e instituições antigas, que são fixas e protegidas.

Tanto a substituição quanto o processo de camadas envolvem instituições com baixos graus de discricionariedade. Nessas instituições, para que as estratégias dos agentes de mudança tenham chance de sucesso, é necessário alcançar algum grau de alteração das regras formais muito engessadas, de acordo com o que for possível em termos de pontos de veto. Contudo, esses dois padrões de mudança não se aplicam, em geral, à situação dos organismos internacionais de direitos humanos, cujas regras e procedimentos formais são, por um lado, mais estáveis e rígidos, e, por outro, mais maleáveis em termos de aplicação e interpretação.

Uma vez criados, os organismos de direitos humanos recebem missões institucionais delegadas pelos Estados e adquirem a habilidade de formular e aplicar regras destinadas ao cumprimento de tarefas. Inseridos dentro de uma relação agente-principal (HAWKINS et al., 2006HAWKINS, Darren et al. Delegation and agency in international organizations. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.), longe de serem servos passivos dos Estados, convertem-se em verdadeiras burocracias com interesses próprios e graus significativos - ainda que variáveis - de discricionariedade institucional e autonomia para implementar mandatos abstratos diante de imprevistos e cenários em constante transformação (BARNETT; FINNEMORE, 2012BARNETT, Michael; FINNEMORE, Martha. Rules for the world: international organizations in global politics. Ithaca: Cornell University Press, 2012.).

Paralelamente, em termos de rigidez, vários fatores dificultam seja a sua extinção por substituição, seja a criação cumulativa de novas regras por camadas até o ponto de alteração dos seus núcleos institucionais: a incapacidade ou indisposição dos Estados para cumprir suas tarefas favorece sua manutenção e reprodução; problemas de coordenação e ação coletiva nas negociações entre Estados dificultam a formação das coalizões necessárias para levar a cabo reformas e até mesmo ataques institucionais contra os organismos, tendendo a salvaguardar suas regras de funcionamento; o enraizamento da sua expertise técnica, de suas culturas organizacionais e das relações com outros atores geram constituencies que, em conjunto com os próprios organismos, opor-se-ão a mudanças radicais ou em excesso, ainda que pequenas, das regras.

Desse modo, por conta das suas características institucionais próprias que lhes dão discricionariedade e da natureza anárquica e descentralizada da política internacional que lhes concede relativa blindagem, os organismos internacionais de direitos humanos estão mais sujeitos a mudanças que não envolvem a alteração de suas regras internas, previstas nos outros dois tipos de mudanças institucionais do institucionalismo histórico (deriva e conversão). Assumindo a relativa rigidez formal de suas regras e constância da discricionariedade institucional dos organismos, a grande questão para avaliar qual tipo de mudança institucional prevalecerá entre essas duas possibilidades passa a ser a presença substantiva ou não de pontos de veto à atuação dos organismos.

No primeiro cenário possível, marcado pela existência de fortes pontos de veto e altos níveis discricionários da instituição na aplicação ou interpretação das regras, os simbiontes serão favorecidos. Trata-se de atores que, diante das poderosas pressões intra e extrainstitucionais a favor do status quo, instrumentalizam as regras da instituição segundo seus interesses, promovendo uma “descontinuidade com o contexto” (HACKER; PIERSON; THELEN, 2015HACKER, Jacob S.; PIERSON, Paul; THELEN, Kathleen. Drift and conversion: hidden faces of institutional change. In: MAHONEY, J.; THELEN, K. (eds.). Advances in comparative-historical analysis. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. p. 180-208.). Nesse caso, esses agentes se negam a aplicar as regras institucionais de novas maneiras mais atualizadas, capazes de acompanhar as alterações naturais nas condições político-contextuais externas, e a mudança institucional resultante será a de uma falha, negligência e desvio institucional (drift), com progressivo abandono da missão institucional original e incapacidade de lidar com novos desafios, tal como desejam os poderosos atores de veto.

Já quando se verifica a outra possibilidade, mesclando desta vez possibilidades de veto fracas com as mesmas oportunidades institucionais múltiplas para interpretação e aplicação de regras, criam-se condições para que os agentes interessados por mudanças dentro das instituições atuem como oportunistas. Nesse caso, na falta de poderosos atores externos e internos à instituição interessados na defesa do status quo, as regras também continuam a ser formalmente sustentadas e permanecem as mesmas, como na deriva, mas se torna possível interpretá-las e implementá-las de maneiras diferentes e potencialmente inovadoras, explorando assim suas ambiguidades e produzindo efeitos não antecipados por seus criadores originais, o que gera uma “descontinuidade do ator” (HACKER; PIERSON; THELEN, 2015HACKER, Jacob S.; PIERSON, Paul; THELEN, Kathleen. Drift and conversion: hidden faces of institutional change. In: MAHONEY, J.; THELEN, K. (eds.). Advances in comparative-historical analysis. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. p. 180-208.). Em outras palavras, os oportunistas “não precisam seguir estratégias insurgentes [de mudanças radicais]” ou de evolução institucional com criação de novas regras por camadas, “uma vez que as lacunas entre as regras e sua aplicação [já] estão disponíveis para eles explorarem” (MAHONEY; THELEN, 2010MAHONEY, James; THELEN, Kathleen. A theory of gradual institutional change. In: MAHONEY, J.; THELEN, K. T. (eds.). Explaining institutional change: ambiguity, agency and power. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 1-37., p. 29).

No nosso estudo de caso, em termos operacionais, as possibilidades de veto referiam-se a atores externos e internos à CIDH favoráveis ao status quo prevalecente até 1980, de silêncio quase absoluto da Comissão frente aos povos indígenas, o que implicava ser contra a extensão das normas da CIDH para protegê-los. Paralelamente, a discricionariedade na aplicação e interpretação institucionais se relacionava com a liberdade da CIDH - e disposição ou não dos seus membros individuais para explorá-la - no sentido da utilização das normas então existentes de maneiras inovadoras de modo a alcançar os povos indígenas.

Um exame desses fatores que afetaram a CIDH durante a tramitação do caso Yanomami nos permite analisar então a interação entre fatores estruturais - políticos e institucionais - e o nível de agência, i.e., de escolhas e estratégias de atores específicos, como os comissários, governo brasileiro e peticionários. Assim, é possível compreender como, premidos entre pressões diplomáticas pró-status quo (governo brasileiro) e reclamos societais radicais por mudanças (peticionários), a maioria dos membros da CIDH finalmente se inclinou em favor de importantes alterações na postura do organismo frente aos direitos dos povos indígenas, explorando a discricionariedade institucional da Comissão e redirecionando suas regras pré-existentes para novas finalidades.

Ao discriminar as características do contexto político (pontos de veto) e as propriedades institucionais da CIDH (discricionariedade), a fim de delinear as variáveis explicativas, enfatizamos os seguintes fatores:

(i) enfraquecimento dos pontos estruturais de veto externos à atuação da CIDH: a margem de ação da Comissão era ampliada pelo nível ascendente de prioridade atribuído aos direitos humanos e temáticas indígenas na agenda internacional, especialmente depois do governo Carter e do surgimento de um movimento indígena - e indigenista - transnacional na década de 1970 (ENGLE, 2018ENGLE, Karen. El desarrollo indígena, una promesa esquiva: derechos, cultura, estrategia. Tradução de Sabrina Frydman; Matías González Mama; Pedro Lama. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad de los Andes, 2018.; KEMNER, 2014KEMNER, Jochen. Fourth world activism in the first world. Journal of Modern European History, v. 12, n. 2, p. 262-279, 2014.; NIEZEN, 2003NIEZEN, Ronald. The origins of indigenism: human rights and the politics of identity. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 2003.);

(ii) dificuldade brasileira de ignorar o caso e exercer poder de veto: a vulnerabilidade e o nível de engajamento do Brasil em face das críticas demonstravam que o Estado se importava com as repercussões negativas do caso, o que criava janelas de oportunidade para a incidência da CIDH (como veremos na análise do caso);

(iii) ausência de interesse estadunidense sobre o Brasil na CIDH e OEA como ponto adicional de enfraquecimento das possibilidades de veto: a postura dos Estados Unidos, cujo foco, desde 1981, ao se centrar na América Central, criava mais espaços para possíveis questionamentos ao Brasil7 7 Dada a importância geoestratégia do Brasil para a política externa estadunidense anticomunista, pelo menos até meados da década de 1970, havia um “acordo de cavalheiros” de não criticar o Brasil na OEA por violações de direitos humanos (DYKMANN, 2008, p. 150, 160, 161, 217; BERNARDI, 2018, p. 1133). Na década de 1980, a ofensiva anticomunista e contrainsurgente do governo Reagan se centrou na América Central, ignorando em boa medida questões de direitos humanos e o Brasil. Frente à CIDH, teve uma postura de relutância, apatia e indiferença (DYKMANN, 2008, p. 311-422). , enfraqueceu ainda mais os pontos de veto à agenda dos direitos indígenas;

(iv) enquadramentos interpretativos e pressões societais de estímulo à utilização da discricionariedade institucional pela CIDH: o nível expressivo de mobilização transnacional de associações antropológicas e de litígio legal no caso Yanomami, combinado com o apoio de organizações e redes indigenistas brasileiras, oferecia novos raciocínios e justificativas jurídico-legais para embasar e legitimar a atuação da CIDH, contribuindo para a descontinuidade do ator e suas inovações (tal como demonstraremos a seguir);

(v) presença de comissários progressistas e fortalecimento burocrático da CIDH como forças propulsoras para o uso da discricionariedade institucional: no contexto de diminuição de atores de veto, a composição8 8 A dupla progressista de comissários por trás do protagonismo da CIDH entre 1976 e 1980, conformada por Andrés Aguilar e Tom Farer, permaneceu na Comissão e acompanhou quase a totalidade da tramitação do caso Yanomami. Segundo Dykmann (2008, p. 87-93), os dois conseguiam atrair muitas vezes o apoio do comissário Marco Gerardo Monroy Cabra e confiavam no compromisso do comissário César Sepúlveda com os direitos humanos. Nesse sentido, pode-se dizer que essa ala se opunha a comissários pró-governo, com destaque para Francisco Bertrand Galindo e Carlos A. Dunshee de Abranches (substituído em 1983 por Gilda Russomano, de mesma inclinação). e nível de autonomia estrutural9 9 Até 1976, com apenas dois advogados e restante de funcionários administrativos alheios a temas de direitos humanos, os escritórios da CIDH eram de terceira classe, permeados por um sentimento de sonolência, paralisia e depressão (DYKMANN, 2008, p. 94-95). Com a ascensão do governo Carter, a partir de 1977, para além do apoio político decisivo à CIDH, aumentaram substancialmente as contribuições financeiras dos EUA para o órgão, o que permitiu: mudança a instalações mais amplas; contratação de vários advogados e novos funcionários; realização de inúmeras atividades e viagens, como visitas in loco; estabelecimento de um centro de documentação e de uma biblioteca; e a compra de um sistema computadorizado de controle de dados (DYKMANN, 2008, p. 72-73). da CIDH abriram espaço para inovadores institucionais ou, na linguagem de Mahoney e Thelen (2010)MAHONEY, James; THELEN, Kathleen. A theory of gradual institutional change. In: MAHONEY, J.; THELEN, K. T. (eds.). Explaining institutional change: ambiguity, agency and power. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 1-37., oportunistas, i.e., comissários mais progressistas interessados em explorar novos caminhos de atuação para a CIDH.

Em resumo, dentro do enquadramento de Mahoney e Thelen (2010)MAHONEY, James; THELEN, Kathleen. A theory of gradual institutional change. In: MAHONEY, J.; THELEN, K. T. (eds.). Explaining institutional change: ambiguity, agency and power. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 1-37., na comparação com a situação da CIDH frente ao Brasil na década de 1970 (BERNARDI, 2018BERNARDI, Bruno Boti. Silence, hindrances and omissions: the Inter-American Commission on Human Rights and the Brazilian military dictatorship. The International Journal of Human Rights, v. 22, n. 9, p. 1123-1143, 2018.), ao menos na temática indígena, esses traços políticos e institucionais apontavam para o fortalecimento da instituição e de seus poderes discricionários e para o enfraquecimento de atores contrários à agenda dos direitos humanos, que até então atuavam como pontos de veto contra o avanço de casos brasileiros dentro da CIDH.

O caso Yanomami

Nesta parte do artigo, analisamos o trâmite e os principais marcos do caso Yanomami no sistema interamericano. A denúncia chegou à Comissão no final de 1980, foi considerada pela primeira vez na 53ª sessão da CIDH, em 1981, e sua conclusão foi deliberada em 1985, na 64ª sessão. O caso despertou grande preocupação do governo brasileiro e da própria Comissão e mobilizou uma dinâmica rede transnacional de ativismo, composta por antropólogos estrangeiros, organizações não governamentais (ONGs) internacionais e grupos pró-indígenas dentro e fora do Brasil. Nos seis anos de trâmite, a troca de informações entre peticionários, CIDH e Brasil, assim como entre Ministério das Relações Exteriores (MRE) e outros órgãos governamentais, foi intensa, com idas e vindas processuais e muita movimentação diplomática.

O caso passou pela alta cúpula do processo decisório da política externa brasileira. Figuram conversas ou assinaturas em documentos de pessoas como o presidente João Figueiredo, seu chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro e os chefes da representação do Brasil na OEA, Alarico Silveira Junior (1978-1982) e Dário Moreira de Castro Alves (1983-1989). Assinou também parte dos documentos o ministro de segunda classe Marco César Meira Naslausky que serviu na OEA de 1978 a 1984. Ainda do lado brasileiro, participaram do caso o ministro do interior Mário Andreazza e a burocracia da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que preparou os documentos técnicos.

Do lado da CIDH, além de Edmundo Vargas Carreño, secretário-executivo da Comissão, os comissários mais envolvidos foram os relatores Tom Farer e César Sepúlveda, além dos brasileiros Carlos A. Dunshee de Abranches e sua substituta, Gilda Maciel Corrêa Meyer Russomano, ambos defensores e colaboradores da ditadura. Tanto Abranches quanto Russomano eram docentes de direito internacional: o primeiro na UERJ e a segunda na Faculdade de Direito de Pelotas.

A denúncia foi feita por associações de antropologia e ONGs - a Associação Antropológica de Washington, Centro de Recursos Antropológicos de Boston, Survival International (da sede em Londres e da seção dos Estados Unidos) e Indian Law Resource Center (ILRC) de Washington. Embora não figurasse formalmente entre os peticionários, teve protagonismo também a Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY), liderada pela fotógrafa e ativista Cláudia Andujar. A denúncia se apresentava em nome de mais de dez mil indígenas Yanomami que, segundo as estimativas, viviam no Amazonas e Roraima.

No início da tramitação do caso, em um encontro reservado e informal em dezembro de 1980, o Secretário-Executivo da CIDH, Vargas Carreño, alertou o representante brasileiro sobre a denúncia. Na conversa, Vargas Carreño antecipou o teor da peça ao diplomata brasileiro, que transcreveu trechos no telegrama enviado a Brasília. Eram muitas as acusações de violações à Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (DADDH) perpetradas contra os Yanomami: pessoas físicas e jurídicas, agindo em acordo com agentes governamentais, teriam violado o direito à vida, à liberdade, à segurança e à integridade pessoal, o direito de igualdade perante a lei, o direito de liberdade religiosa e de culto, o direito à preservação da saúde e bem-estar, o direito de reconhecimento da personalidade jurídica dos direitos civis e o direito de propriedade.10 10 Como o Brasil ainda não tinha ratificado a Convenção Americana de Direitos Humanos, em vigor desde 1978, os casos contra o país eram baseados na Declaração Americana, de 1948.

A denúncia incluía o contexto de “enorme invasão de terras, desintegração social, disseminação de doenças, mortes e destruição”, sem que “a Funai tomasse providências para prevenir a destruição das comunidades Yanomami”. Pontuava ainda a incapacidade do governo de demarcar as terras Yanomami, ignorando doze propostas feitas entre 1968 e 1979 por antropólogos e missionários pró-indígenas. Por fim, os denunciantes solicitavam uma investigação in loco e uma resolução urgindo a criação do parque Yanomami11 11 O Parque Yanomami foi demarcado em 1992, no governo Collor. (MRE, 1980MRE. CIDH. Denúncia contra Brasil 18 de dezembro, 1980. Washington, 18 dez. 1980. [Delbrasupa para Exteriores, secreto].).

O caminho processual do caso pode ser resumido da seguinte forma. Em 1981, os documentos centrais circularam: a denúncia dos peticionários, a resposta do Estado, réplica e tréplica. O Brasil foi oficialmente notificado do caso no final de janeiro, um mês após a conversa informal com Vargas Carreño. Nos meses seguintes, os reclamantes adicionaram observações e contestaram ponto por ponto a resposta de Brasília. Em julho, a CIDH se reuniu com os denunciantes que reforçaram o pedido de visita e investigação por parte da Comissão. Em novembro, o Brasil enviou a segunda comunicação sobre o caso, reagindo à réplica dos denunciantes.

Se o primeiro ano do caso foi marcado pela troca de vários documentos formais, nos três seguintes destacaram-se as articulações, comunicações informais, troca de relator e envios de alguns poucos textos complementares. Parte significativa das conversas tratou da possível visita in loco, nunca permitida pela diplomacia brasileira, e o MRE hesitou em continuar enviando informações para a Comissão, ainda que o Ministério do Interior e a FUNAI tivessem produzido mais relatórios.

Em 1982, o comissário mexicano César Sepúlveda foi designado relator do caso, após pressão do Brasil contra o nome de Tom Farer, comissário estadunidense. No mesmo ano, ativistas visitaram novamente a CIDH, reiterando a urgência da demarcação de terras. Em 1983, após o falecimento de Abranches, Gilda Russomano assumiu o seu lugar na CIDH, seguiu repassando informações privilegiadas à ditadura e articulou a postergação do caso. Em 1984, os denunciantes enviaram mais informações.

O caso foi concluído em 1985. Já na redemocratização, o governo Sarney enviou em agosto novas informações à CIDH, que deliberou sobre o caso na sua 64ª sessão, recomendando a demarcação do Parque Yanomami (COMISSÃO INTERAMERICANA..., 1985).

A atuação das organizações peticionárias

A atuação das ONGs, associações antropológicas e da campanha transnacional em torno da pauta da CCPY foi decisiva no caso Yanomami. Os denunciantes contestaram a primeira resposta do governo brasileiro de modo rápido, ainda em meados de 1981. Seus documentos impressionam pela consistência e pela preocupação em rebater cada argumento do Estado brasileiro, com domínio não só de uma leitura antropológica sobre os Yanomami, mas também conhecimento atualizado tanto das violações no terreno quanto das questões jurídicas e políticas concernentes aos povos indígenas.

Dentre vários pontos, eles questionaram o sistema jurídico brasileiro e mostraram como o regime de tutela da ditadura sobre os indígenas cerceava seus direitos e promovia uma política oficial de integração e assimilação forçadas. Apontaram ainda a ineficácia do trabalho de fiscalização da FUNAI: prazos para as demarcações eram descumpridos e limites de terras indígenas alterados para beneficiar interesses privados. No caso dos Yanomami, a construção da BR-210 (Perimetral Norte) e as pressões econômicas em favor da mineração levavam doenças, vícios, desequilíbrio ecológico e exploração de mão de obra, e a FUNAI não conseguia proteger os territórios de invasões de posseiros, fazendeiros e garimpeiros (MRE, 1981fMRE. OEA. Caso Nr. 7615. Washington, 28 jul. 1981f. [Delbrasupa para Exteriores, secreto].).

Mesmo após o envio da documentação, os denunciantes continuaram pressionando. Em outubro de 1982, Cláudia Andujar, coordenadora da CCPY, e Curtis G. Berkey, advogado do ILRC, participaram de uma audiência sobre o caso durante a 58ª sessão da CIDH, reforçando assim a incidência política direta, fundamental na tramitação de qualquer petição tanto para sensibilizar os comissários quanto para posicionar o caso em lugar de maior destaque dentro da concorrida agenda e da pesada carga de processos da CIDH. Em um documento do ILRC do mês seguinte, os denunciantes salientaram que aquele não era um caso comum porquanto estavam ali representados “10.000 pessoas Yanomami cujos direitos foram violados como indivíduos e enquanto grupo” (MRE, 1982dMRE. OEA. CIDH. Caso Nr. 7615. Índios Yanomami. Washington, 24 nov. 1982d. [Delbrasupa para Exteriores, secreto].).

O documento destaca-se pela robustez da argumentação jurídica, fundamental para estimular a CIDH a usar sua discricionariedade institucional em favor dos Yanomami. Nele se reconhece que aquele era um caso provavelmente sem precedentes e desafiador sobre direitos coletivos dos povos indígenas em relação à DADDH, especialmente no tocante à propriedade coletiva da terra. Apesar do enfoque individualizado de direitos humanos e da ausência de menção normativa expressa aos povos indígenas na DADDH, fatores que poderiam bloquear ou moderar a atuação da CIDH no caso, o ILRC apresentava uma rota jurídica clara para os Comissários. A ONG defendia ser possível interpretar e acomodar a Declaração e seus vieses liberais de enquadramento da propriedade privada para garantir o “direito dos Yanomami como um grupo [de] regular e possuir suas terras e [...] [o] direito dos indivíduos Yanomami [de] manter suas propriedades sob seu próprio sistema de posse da terra” (MRE, 1982dMRE. OEA. CIDH. Caso Nr. 7615. Índios Yanomami. Washington, 24 nov. 1982d. [Delbrasupa para Exteriores, secreto].). Além de reiterar todos os outros direitos violados, a ONG reforçou, portanto, que a CIDH estava habilitada a emitir uma resolução e que a solução do caso dependia essencialmente da demarcação do parque Yanomami.

A atuação incisiva e sistemática dos denunciantes impactou o andamento do caso. A CCPY e os peticionários, com destaque para a ILRC e ARC, contestavam os documentos da ditadura diligentemente, apresentavam argumentos jurídicos sofisticados, enviavam regularmente informações atualizadas sobre a situação dos Yanomami e compareciam às sessões da Comissão. Sua atuação como uma rede transnacional sólida destoa de peticionários de outros casos que, sem um suporte jurídico tão bem organizado e situado nos EUA, e ainda com falta de recursos e dados probatórios, enfrentavam dificuldades de incidência e acesso frente à CIDH (BERNARDI, 2018BERNARDI, Bruno Boti. Silence, hindrances and omissions: the Inter-American Commission on Human Rights and the Brazilian military dictatorship. The International Journal of Human Rights, v. 22, n. 9, p. 1123-1143, 2018.; GREEN, 2009GREEN, James Naylon. Apesar de vocês: oposição à ditadura brasileira nos Estados Unidos, 1964-1985. Tradução de S. Duarte. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.).

Depois de réplicas a cada documento enviado por esses peticionários nos primeiros anos do caso, a ditadura decidiu em 1983 não mais mandar informações à CIDH “porquanto tal correspondência poderia até mesmo vir a oferecer oportunidade para novas iniciativas de grupos, quer nacionais, quer estrangeiros” (MRE, 1983cMRE. OEA. CIDH. Caso Nr. 7615. Índios Yanomami. Brasília, 29 abr. 1983c. [Exteriores para Delbrasupa, secreto].). Ou seja, a certa altura, a ditadura recuou para uma posição de silêncio em face do ativismo permanente do grupo.

No começo de 1984, os denunciantes voltaram a enviar informações à CIDH - a despeito do silêncio proposital do Itamaraty. O documento atualizava novas ações contra os povos indígenas desde a comunicação anterior.

A defesa e as estratégias da ditadura

Ser acusada de violações de direitos humanos na CIDH não era novidade para a ditadura. Algumas denúncias contra o país datam do final dos anos de 1960, mas foi durante a década de 1970 que a maior parte delas tramitou. Múltiplas condições políticas e institucionais impossibilitaram que a Comissão tivesse um desempenho satisfatório em relação às queixas sobre o Brasil e a maior parte dos casos foi arquivada (BERNARDI, 2018BERNARDI, Bruno Boti. Silence, hindrances and omissions: the Inter-American Commission on Human Rights and the Brazilian military dictatorship. The International Journal of Human Rights, v. 22, n. 9, p. 1123-1143, 2018.), algo que também aconteceu na Comissão de Direitos Humanos da ONU (RORIZ, 2021RORIZ, João. Os donos do silêncio: a política externa do regime militar brasileiro e a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, n. 113, p. 103-136, 2021.). O regime militar também se posicionava contra a criação de novas instituições, como o Alto Comissariado da ONU para direitos humanos (RORIZ, HERNANDEZ, 2021RORIZ, João; HERNANDEZ, Matheus de Carvalho. A dictatorship in the battle for human rights: the 1977 UN High Commissioner proposal and the Brazilian resistance. Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, v. 64, n. 1, p. 1-17, 2021.). No momento em que o caso Yanomami tramitava na Comissão, a avaliação de Abranches era que, com sua exceção, “a situação do Brasil no âmbito da CIDH parecia-lhe excelente” (MRE, 1982aMRE. OEA. CIDH. Caso Nr. 7615. Índios Yanomami. Washington, 5 mar. 1982a. [Delbrasupa para Exteriores, secreto].).

Em resposta à denúncia, a política do governo Figueiredo frente ao caso Yanomami envolveu uma intensa articulação de órgãos como MRE, Ministério do Interior e FUNAI, e também a troca de informações privilegiadas com a secretaria-executiva da CIDH e com os comissários brasileiros. As estratégias da diplomacia brasileira podem ser assim esquematizadas: (i) apresentar uma defesa formal de cunho diversionista, construída a partir de informações levantadas pela FUNAI; (ii) cooperar limitada e relutantemente com a CIDH com concessões dissimuladoras; e (iii) articular manobras processuais com os comissários brasileiros Abranches e Russomano e com o secretário-executivo Vargas Carreño, a fim de protelar e arquivar o caso. Porém, a despeito dessa intricada atuação, em razão do peso da campanha transnacional em favor dos Yanomami e da presença de comissários mais progressistas, o Brasil não logrou, como na década de 1970, influência para arquivar e vetar o andamento do caso.

Defesa formal

O Itamaraty reagiu rápido à denúncia e iniciou a arquitetura da defesa formal. Ao ser informado oficialmente pela CIDH, em janeiro de 1981, o chanceler Saraiva Guerreiro solicitou informações ao ministro do interior Mário Andreazza, que, por sua vez, recorreu à FUNAI.

Responsável pelos argumentos específicos da defesa, a FUNAI respondeu o MRE ainda no mesmo mês de janeiro. Em março, um detalhado documento assinado por João Carlos Nobre da Veiga, presidente da FUNAI, procurava rebater ponto a ponto as acusações contra o Brasil. Seu tom era nacionalista - “o Yanomami é, em primeiro lugar, um brasileiro” - e paternalista, pois reiterava o status dos indígenas como relativamente incapazes do ponto de vista jurídico.12 12 Até a Constituição de 1988, o Código Civil, de 1916, e o Estatuto do Índio, de 1973, estipulavam que os indígenas eram relativamente incapazes perante o ordenamento jurídico, devendo ser tutelados e representados pelo Serviço de Proteção aos Índios e, posteriormente, pela FUNAI. Negava a proporção da invasão de garimpeiros e se acastelava em dispositivos jurídicos do Estatuto do Índio (1973) e da Constituição Federal (FUNAI, 1981FUNAI. Ofício n. 22/Press. Brasília, 25 mar. 1981. [Funai para Mário David Andreazza].).

Os argumentos que chegaram ao representante brasileiro na OEA, Alarico Silveira, em abril do mesmo ano, preocupavam-se em apresentar o suposto quadro jurídico-institucional avançado de proteção aos povos indígenas da ditadura, além de mencionar que as obras da BR-210 estariam paralisadas desde 1974, ao passo que a demarcação das terras Yanomami já teria entrado em sua fase final. O diplomata brasileiro opinou que quase todos os pontos da denúncia estavam contemplados e que em “condições normais” o caso seria arquivado.

Em maio de 1981, o Brasil entregou a primeira resposta à Comissão sobre o caso Yanomami. Em linha com seu papel de informante e articulador dos interesses do Estado dentro da CIDH, Abranches julgou a resposta brasileira “serena e objetiva”, ainda que lamentasse a ausência expressa de menções a decisões então recentes da justiça brasileira, o que demonstraria a alegada abertura do Judiciário à temática, neutralizando assim o argumento dos denunciantes de que, dadas as resistências da ditadura, era inútil tentar o esgotamento jurisdicional dos recursos internos (MRE, 1981cMRE. OEA. CIDH. 53 Sessão. Caso Nr. 7615. Washington, 2 jul. 1981c. [Delbrasupa para Exteriores, secreto].).

Como apontamos, os denunciantes apresentaram uma réplica consistente poucos meses depois da resposta brasileira, e iniciaram uma troca significativa de documentos. Ainda em 1981, a ditadura preparou uma tréplica, com um conteúdo similar aos argumentos iniciais. O Estado brasileiro reconheceu a demora na demarcação de terras, mas mencionou que se esforçava para expulsar os invasores ilegais das áreas Yanomami. Reafirmou novamente que as obras da BR-210 estavam paradas, que a exploração de minérios não ocorria indiscriminadamente e precisava de autorização da FUNAI. Cópias de processos julgados pelo Tribunal Federal de Recursos com ganhos de causas da FUNAI em favor de povos indígenas eram elencadas como evidências do zelo da instituição. Apesar do tom aparentemente protetivo, o governo brasileiro reforçava explicitamente as referências ao “processo histórico de interiorização” e à política oficial e forçada da ditadura de encaminhar os povos indígenas até a “sua integração na coletividade nacional” (MRE, 1981aMRE. CIDH. Caso Nr. 7615. Índios Yanomami. Informações adicionais. 53 Sessão. 8 janeiro, 1981. Brasília, 8 jan. 1981a. [Exteriores para Missão OEA, secreto].).

Cooperação limitada e concessões dissimuladoras

Apesar de certa hesitação inicial, a ditadura decidiu responder às acusações feitas na CIDH. Cooperar minimamente com as organizações internacionais de direitos humanos - ao contrário das ONGs, com quem não se estabeleceu qualquer tipo de diálogo - foi uma das reações do governo Médici às denúncias internacionais (GREEN, 2009GREEN, James Naylon. Apesar de vocês: oposição à ditadura brasileira nos Estados Unidos, 1964-1985. Tradução de S. Duarte. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.) e se tornou parte de uma estratégia mais sistematizada de política externa a partir do governo Geisel, conduzida por Azeredo da Silveira e por um grupo interministerial criado especificamente para lidar com direitos humanos (RORIZ, 2017RORIZ, João. Clashing frames: human rights and foreign policy in the Brazilian re-democratization process. Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, v. 60, n.1, p. 1-17, 2017.). Quando ponderou sobre o assunto, Alarico Silveira opinou que era importante manter a interlocução com a CIDH, “com vistas a evitar, quando mais não seja, o desgaste que representaria interna e externamente uma decisão que nos aproximasse, em termos práticos, da postura assumida pelo Chile e Argentina” (MRE, 1981hMRE. OEA. CIDH. Caso Nr. 7615. Informações adicionais. Washington, 21 out. 1981h. [Delbrasupa para Exteriores, secreto].), ditaduras que tinham uma relação muito mais difícil com a Comissão. Brasília concordou com seu representante: “a posição tradicional de responder às acusações que nos são dirigidas em seu âmbito dev[e] ser mantida” (MRE, 1981iMRE. OEA. CIDH. Caso Nr. 7615. Informações adicionais. Brasília, 30 out. 1981i. [Exteriores para Missão OEA, secreto]. ).

No intuito de transmitir uma imagem de cooperação que escondesse intenções diversionistas, por um tempo o governo brasileiro informou à CIDH as políticas públicas adotadas, no decorrer do processo, sobre o povo Yanomami. Em março de 1982, o Ministério do Interior promulgou a Portaria/GM/nº.025 que tratava da interdição de área contínua, um passo a mais em direção à demarcação da terra Yanomami, e criava um grupo de trabalho para avançar o assunto, o qual realizava encontros inclusive com a CCPY.

A normativa foi publicada como mais uma tentativa de “esvaziar, em boa medida, a própria denúncia formulada perante a Comissão” (MRE, 1982bMRE. OEA. CIDH. Caso Nr. 7615. Informações adicionais. Washington, 26 mar. 1982b. [Delbrasupa para Exteriores, secreto].). Dada a preocupação da ditadura com sua imagem e reputação, era mais um esforço calculado para afastar as críticas, i.e., uma concessão tática dissimuladora que não impedia perpetração de novas violações (e por isso foi contestada pelos denunciantes).

Frente às respostas insistentes dos denunciantes, que contestavam rapidamente cada nova leva de informações, argumentos e defesas adicionais da ditadura, o Itamaraty hesitou em mandar mais documentos. Em meados de 1983, decidiu finalizar o envio, para não dar espaço às réplicas dos denunciantes. Brasília voltou a titubear sobre o assunto em meados de 1984, frente às reiteradas solicitações da CIDH. Na opinião de Dário Alves, o “envio das informações à CIDH poderá, é certo, precipitar a entrada em pauta do caso 7615. Mas, também é verdade, não prestação de informações poderia igualmente levar a Comissão a uma atitude negativa. É difícil julgar como reagirão os membros daquele organismo” (MRE, 1984bMRE. OEA. CIDH. Caso Nr. 7615. Washington, 9 jul. 1984b. [Delbrasupa para Exteriores, secreto].).

A CIDH insistia e, no final de 1984, o comissário César Sepúlveda fez um pedido final de “todas as disposições legais, recentemente tomadas pelo governo do Brasil, bem como as medidas e os programas da FUNAI a respeito dos índios Yanomami” (MRE, 1984fMRE. OEA. CIDH. Caso Nr. 7615. Índios Yanomami. Washington, 9 out. 1984f. [Delbrasupa para Exteriores, secreto]. ), questão que o Itamaraty remeteu ao Ministério do Interior, e que depois enviou à missão brasileira na OEA para ser entregue à comissária Gilda Russomano. No documento enviado à CIDH, o Itamaraty alegou que, prevendo projetos de educação e saúde, a FUNAI avançava decididamente na delimitação do futuro Parque Yanomami, área na qual, diferentemente das acusações dos denunciantes, não havia presença de mineradoras. Ao mesmo tempo, o governo afirmou discutir a regulamentação da mineração em terras indígenas, coibindo a presença de garimpeiros ilegais (MRE, 1985aMRE. OEA. CIDH. Caso Nr. 7615. Índios Yanomami. Brasília, 11 fev. 1985a. [Exteriores para Missão OEA, secreto].). Este foi o último documento significativo produzido durante a ditadura militar relativo ao caso.

Articulação para adiar e arquivar

A diplomacia da ditadura objetivava arquivar as denúncias contra ela e, quando isso não era possível, trabalhava para protelar a decisão da CIDH, um modus operandi empregado também nos casos da década anterior (BERNARDI, 2018BERNARDI, Bruno Boti. Silence, hindrances and omissions: the Inter-American Commission on Human Rights and the Brazilian military dictatorship. The International Journal of Human Rights, v. 22, n. 9, p. 1123-1143, 2018.; RORIZ, 2017RORIZ, João. Clashing frames: human rights and foreign policy in the Brazilian re-democratization process. Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, v. 60, n.1, p. 1-17, 2017.). A tática era distanciar, no tempo, o momento da decisão formal sobre as queixas de quando tinham ocorrido os fatos, a fim de diminuir sua repercussão, tal como explicitamente havia sido feito com os casos da década de 1970.

A colaboração que a ditadura tinha com o secretário-executivo da CIDH, Vargas Carreño, foi crucial para o trâmite processual da denúncia. Os diplomatas brasileiros mantiveram contato regular com ele e a lista dos seus auxílios é extensa. O chileno passou informações sobre o andamento dos casos contra o Brasil (dentre os quais o Yanomami); antecipou os procedimentos da secretaria; adiantou a pauta de discussões da Comissão; entregou as “observações complementares” dos reclamantes antes de elas serem transmitidas pelos procedimentos regulamentares; manobrou a relatoria do caso e sugeriu os nomes de Bertrand Galindo ou Andrés Aguilar em substituição à relatoria de Farer, cuja posição era de crítica aberta à ditadura.13 13 Galindo desempenhava a função de embaixador de El Salvador na Guatemala e comissário da CIDH ao mesmo tempo, o que levantava suspeitas sobre sua integridade (DYKMANN, 2008, p. 83). Aguilar, embora reconhecido como ativista e progressista, tinha proximidade pessoal com Carreño e foi responsável por indicá-lo para a Secretaria Executiva (DYKMANN, 2008, p. 100-101).

As conversas com Vargas Carreño não serviram apenas para informar a ditadura, mas influenciaram o próprio processo decisório, e permitiram que o regime militar desenhasse e calculasse suas estratégias de silêncio e dissimulação para a postergação do caso. Em encontro com Alarico Silveira em meados de 1983, por exemplo, o secretário-executivo lhe relatou que “face à existência de temas considerados prioritários (dentre os quais o relatório sobre o Suriname), parecia-lhe pouco provável que o caso Nr. 7615 viesse a ser incluído na respectiva agenda”. Diante dessa informação, dado seu interesse em adiar a decisão sobre o caso, o governo brasileiro decidiu não enviar mais informações à CIDH, como mencionamos. Ainda naquele ano, Vargas Carreño continuou informando o Brasil que “é reduzida a probabilidade de que venha a matéria a ser tratada nesse próximo período de sessões, dada a prioridade de outros temas, como os dos índios Miskitos na Nicarágua e a questão dos direitos humanos em Cuba, na Guatemala e no Suriname” (MRE, 1983dMRE. OEA. CIDH. Caso Nr. 7615. Índios Yanomami. Washington, 19 set. 1983d. [Delbrasupa para Exteriores, secreto].).

De posse dessas informações, a diplomacia da ditadura podia planejar seus próximos passos processuais e avaliar o clima político na CIDH. É interessante notar que, se em outros casos Vargas Carreño deu garantias de seu arquivamento aos representantes brasileiros, no caso Yanomami a contínua pressão transnacional dos peticionários e a relevância do tema na agenda da Comissão limitavam-lhe as ações. Mesmo assim, seus encontros com os diplomatas do Brasil foram uma fonte de informação e cooperação contínua.

Os comissários brasileiros na CIDH foram outra peça central na estratégia do Estado para lidar com os casos contra o país durante toda a ditadura. Abranches atuava na Comissão desde 1968 e sua atuação no caso Yanomami foi de íntima cooperação com Brasília até seu falecimento em 1983. A Comissão Nacional da Verdade (2014) descreveu como ele trabalhou como informante da ditadura brasileira na sua atuação como comissário. Seus relatos a Alarico Silveira e Naslausky relatavam o ambiente político e os bastidores da CIDH, apontavam quais comissários eram mais simpáticos ao governo brasileiro e quais se preocupavam com direitos humanos. Ele repassou grande parte dos documentos confidenciais produzidos pelos denunciantes ao Estado, o que antecipava o teor das comunicações ao governo brasileiro, concedendo-lhe mais tempo para articulações políticas e preparações formais de defesa.

Abranches também articulava apoio ao Brasil entre os próprios membros da Comissão. Quando o primeiro anteprojeto de resolução do caso circulou, por exemplo, ele antecipou posições dos comissários e quais seriam os melhores caminhos processuais para adiar sua votação. O comissário brasileiro também conseguiu reduzir o tempo e o número de participantes da primeira audiência dos peticionários com a Comissão, em junho de 1981. Sua intervenção era tamanha que, em determinados momentos, ele assessorou diretamente a resposta da ditadura.

Após o falecimento de Abranches, o Brasil indicou sem demora Gilda Russomano para ocupar seu lugar. Russomano continuou com a prática do seu antecessor de conversas informais, repasse de informações, sugestão de estratégias de defesa e relato do trâmite processual dos casos contra o país. No começo de 1984, reportou a “estranheza da Comissão diante do fato de o governo brasileiro não haver respondido às últimas comunicações da CIDH sobre o assunto” (MRE, 1984aMRE. OEA. CIDH. 62 período de sessões. Caso Nr. 7615. Washington, 14 maio 1984a. [Delbrasupa para Exteriores, secreto]. ). Ela informou Marco Naslausky que, ainda que o relatório de Sepúlveda fosse aprovado, o método de trabalho da CIDH não levaria à publicação da resolução naquele mesmo ano de 1984, o que daria mais tempo ao governo brasileiro para analisar e contestar o relatório e o projeto de resolução. Russomano ainda solicitou ao diplomata a apuração do pedido de demissão do presidente da FUNAI, citado por Sepúlveda, bem como se ainda estavam na FUNAI os caciques Terena e Megaron,14 14 Em outro documento, o MRE esclarece que a demissão do Presidente da FUNAI se devia ao fato de ele ser contra a portaria do Ministro do Interior que regulamentava a mineração do subsolo de reservas indígenas, e que os caciques Terena e Megaron continuavam na FUNAI (MRE, 1984e). pois esses dados a ajudariam na exposição que faria na manhã do dia seguinte - ou seja, Russomano solicitava apoio ao Itamaraty nas suas intervenções dentro da CIDH (MRE, 1984cMRE. OEA. CIDH. Caso Nr. 7615. Washington, 2 out. 1984c. [Delbrasupa para Exteriores, secreto].).

Quando a ditadura hesitava entre enviar ou não mais documentos à Comissão, o embaixador Dário Castro Alves sugeriu que Russomano fosse ouvida. Em outro momento, Naslausky lhe atribuiu o adiamento do caso para a sessão seguinte da CIDH, entre fevereiro e março de 1985: “A professora Gilda Russomano acaba de informar que, na reunião desta manhã, conseguiu convencer seus colegas da CIDH a adiar a decisão a respeito dos projetos de relatório e de resolução sobre índios Yanomami”. Prevalecia na CIDH, segundo a comissária brasileira, o entendimento de que “o caso deve ter uma solução”. No mesmo documento, Naslausky conta que Russomano conseguiu amenizar a linguagem do projeto de resolução, que considerava o adiamento positivo e creditava-o “à ação pronta e eficaz da professora Gilda Russomano” (MRE, 1984dMRE. OEA. CIDH. Caso Yanomami. Washington, 3 out. 1984d. [Delbrasupa para Exteriores, secreto].).

Direitos dos povos indígenas e a posição da CIDH

A designação da relatoria do caso para Tom Farer na 53ª sessão da CIDH desagradou muito a diplomacia brasileira, dadas as notórias posições progressistas do Comissário. Depois de, em março de 1981, Farer publicar um artigo intitulado Reagan’s Latin America no New York Review of Books (FARER, 1981FARER, Tom J. Reagan’s Latin America. The New York Review of Books, 19 de mar. 1981.), a ditadura teve um pretexto para denunciá-lo como parcial. O texto criticava a política econômica e social do Brasil - e a ditadura entendeu que ele antecipava sua posição no caso Yanomami. Em razão da repercussão negativa do artigo, o comissário estadunidense acabou desistindo da relatoria (MRE, 1981gMRE. OEA. CIDH. Caso Nr. 7615. Índios Yanomami. Washington, 1 set. 1981g. [Delbrasupa para Exteriores, secreto].).

Na 55ª sessão, no começo de 1982, Vargas Carreño antecipou ao representante brasileiro que o mexicano César Sepúlveda assumiria a relatoria no lugar de Farer. Apesar de reconhecido defensor dos princípios de soberania nacional e não intervenção, Sepúlveda era jurista e diplomata de grande renome, e tinha a confiança de Farer como defensor dos direitos humanos (DYKMANN, 2008DYKMANN, Klaas. Human rights policy of the Organization of American States in Latin America: philanthropic endeavors or the exploitation of an ideal? Princeton: Markus Wiener Publishers, 2008., p. 91). Abranches apostava que Sepúlveda, “como cidadão mexicano, não poderia deixar de preocupar-se com as possíveis repercussões, em seu próprio país” de questões de “minorias étnicas” (MRE, 1982cMRE. OEA. CIDH. Caso Nr. 7615. Índios Yanomami. Washington, 28 jun. 1982c. [Delbrasupa para Exteriores, secreto].), dada a importância da temática indígena no México.

Porém, os casos Yanomami e Miskitu, da mesma época,15 15 No caso Miskitu, frente ao programa de reforma agrária do governo sandinista da Nicarágua que não levava em conta a propriedade indígena de várias terras, a CIDH afirmou o direito a uma proteção especial da cultura de grupos étnicos, a qual incluía, ainda que de modo limitado, suas terras ancestrais e comunais (ENGLE, 2018, p. 245-246). marcaram uma mudança na postura da CIDH em relação aos povos indígenas. Abranches, já em março de 1981, alertou Alarico Silveira, representante brasileiro na OEA, “que, na presente sessão [52ª], teria destaque o debate da questão de direitos humanos de populações indígenas”, indicando como o assunto tinha se integrado de fato à agenda da Comissão. O comissário avaliou que o então presidente da CIDH, Tom Farer, tinha grande interesse pelo tema, o qual, dentro da CIDH, tinha alguns antecedentes, com pronunciamentos sobre indígenas do Paraguai e atuação do anterior comissário estadunidense, Robert Woodward, em outros casos mais antigos (MRE, 1981bMRE. OEA. CIDH. Caso Nr. 7615. Índios Yanomami. Washington, 4 mar. 1981b. [Delbrasupa para Exteriores, secreto].).

Por que a CIDH estava se dedicando a casos relacionados a povos indígenas? O movimento internacional pró-povos indígenas emergiu e se fortaleceu a partir da década de 1970 (ENGLE, 2018ENGLE, Karen. El desarrollo indígena, una promesa esquiva: derechos, cultura, estrategia. Tradução de Sabrina Frydman; Matías González Mama; Pedro Lama. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad de los Andes, 2018., p. 97-132; KEMNER, 2014KEMNER, Jochen. Fourth world activism in the first world. Journal of Modern European History, v. 12, n. 2, p. 262-279, 2014.; NIEZEN, 2003NIEZEN, Ronald. The origins of indigenism: human rights and the politics of identity. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 2003., p. 40-42). Ainda que essa rede transnacional nem sempre enquadrasse suas demandas a partir do vocabulário de direitos humanos (dada a ausência de menções normativas a indígenas nos principais instrumentos internacionais), a visibilidade das lutas indígenas chamava a atenção de organizações internacionais, incluindo a Comissão.

Outra mudança importante foi a chegada de Ronald Reagan à Casa Branca e a revitalização de uma retórica de confronto da Guerra Fria. A não reeleição de Carter significou um duro golpe na manutenção dos direitos humanos no topo da agenda política internacional. A Comissão, que passaria a enfrentar novamente dificuldades financeiras, deixava de ser um organismo crucial para a política externa estadunidense e para o contexto dos conflitos centro-americanos, o que a levou a buscar outras formas de dar visibilidade ao seu trabalho. Ademais, as ditaduras chilena e argentina endureceram seus posicionamentos em relação a ela. Quando a temática indígena se tornou proeminente nos anos de 1980, os casos pareciam uma janela de oportunidade para a instituição continuar a ter relevância e pautar as discussões.16 16 O representante brasileiro na OEA Alarico Silveira assim ponderou: “sobre a tendência da CIDH de se voltar para determinados temas até agora pouco abordados, mas que se possam vincular à problemática geral dos direitos humanos, como compensação para o estado de relativo enfraquecimento em que se encontra” (MRE, 1981b).

Na década de 1970, em casos anteriores sobre os povos indígenas Guahíbo da Colômbia, e Aché-Guayakí do Paraguai, a CIDH havia deliberadamente eludido a discussão sobre os conflitos pelo direito à terra e o tema da cultura, através de uma interpretação individualista dos direitos civis e políticos para se referir aos povos indígenas. Naquele momento, ela se furtou a analisar a destruição da cultura indígena como consequência direta da falta de garantia ao território, o que revelava falta de compreensão histórica e antropológica sobre como o direito à terra é pré-requisito necessário para a sobrevivência dos vários aspectos das culturas indígenas (DAVIS, 1988DAVIS, Shelton H. Land rights and indigenous peoples: the role of the Inter-American Commission on Human Rights. Cambridge: Cultural Survival Inc., 1988., p. 63).

De maneira incipiente, mas extremamente inovadora frente ao panorama assimilacionista que ainda prevalecia no direito internacional dos direitos humanos em face dos povos indígenas,17 17 O principal exemplo disso era a Convenção 107 da OIT, de 1957, único tratado internacional que se ocupava exclusivamente dos povos indígenas. Tinha viés estigmatizante e colonial marcado por uma estratégia de integracionismo econômico, estipulando limites claros ao direito às terras tradicionais (ENGLE, 2018, p. 76-79). essa visão da CIDH começou a ser alterada significativamente com os casos Yanomami e Miskitu. Nesses dois divisores d’água, embora não figurassem considerações sobre autodeterminação indígena, as resoluções finais da CIDH instaram os Estados a garantir a demarcação e respeito de territórios ancestrais para preservar os direitos dos povos indígenas à cultura e à proteção especial como minorias étnicas (ENGLE, 2018ENGLE, Karen. El desarrollo indígena, una promesa esquiva: derechos, cultura, estrategia. Tradução de Sabrina Frydman; Matías González Mama; Pedro Lama. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad de los Andes, 2018., p. 244-248; ROYO, 2006ROYO, Luis Rodríguez-Piñeiro. El sistema interamericano de derechos humanos y los pueblos indígenas. In: BERRAONDO, M. (coord.). Pueblos indígenas y derechos humanos. Bilbao: Universidad de Deusto, 2006. p. 153-206.).

Embora em nenhum dos casos a CIDH tenha afirmado a titularidade do direito de propriedade dos povos indígenas às suas terras, esses dois precedentes foram importantes para que, nas décadas seguintes, a Comissão e a Corte Interamericana alargassem esse entendimento e desenvolvessem a mais ampla jurisprudência internacional disponível sobre o direito à propriedade coletiva dos povos indígenas sobre suas terras tradicionais (ANAYA, 2009ANAYA, S. James. International human rights and indigenous peoples. New York: Aspen Publishers, 2009.). A fim de preservar a cultura dos povos indígenas, a CIDH e a Corte têm afirmado, desde o início dos anos 2000, que a ligação transcendente desses povos com seus territórios deve ser assegurada via direito da propriedade coletiva da terra para garantir seus modos culturais próprios de vida, saber e existência.

A solicitação de visita in loco

Antes de passarmos ao desfecho do caso no governo Sarney, é necessário destacar uma tática específica da Comissão: as solicitações de visita in loco ao Brasil. Para além do trâmite individual do caso Yanomami e da análise de provas e argumentos jurídicos, os integrantes da CIDH tentaram impulsionar uma visita in loco ao Brasil, replicando a experiência bem sucedida de viagem à Nicarágua no caso Miskitu, em 1982. Em momentos emblemáticos prévios, o protagonismo da CIDH e sua autoridade para pautar discussões e críticas internacionais tinham tido relação direta com a realização dessas visitas de coleta de evidências e testemunhos, como no caso do Chile, em 1974, e da Argentina, em 1980.

O pedido para a visita in loco ao país consta na denúncia dos peticionários, e a própria CIDH pressionou o governo brasileiro, sem sucesso, em várias oportunidades, para aceitar uma viagem - formal ou não - do relator ao país. Ainda em julho de 1981, Abranches relatou a Alarico Silveira um suposto acordo prévio e informal entre os comissários Tom Farer, Marco Gerardo Monroy Cabra, Francisco Bertrand Galindo e Cesar Sepúlveda em propor uma viagem ao Brasil. Abranches bloqueou a tentativa de Monroy Cabra de incluir na ata final de uma reunião da CIDH a decisão de efetuar uma visita. Para tanto, alegou que a base legal para tal proposta (o artigo 41 do regulamento da CIDH) não se aplicava ao Brasil, mas apenas aos Estados partes da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH). Em seguida, sugeriu que o presidente da CIDH entrasse em contato com o governo para, “de maneira informal”, conversar sobre a possibilidade de uma viagem. Essa possibilidade, no entanto, foi sempre refutada por Brasília, mesmo que a visita fosse “a título pessoal”, pois resultaria em “um informe, ainda que verbal, à próxima sessão da CIDH” (MRE, 1981dMRE. OEA. CIDH. 53º período de sessões. Caso Nr. 7615. Índios Yanomami. Washington, 2 jul. 1981d. [Delbrasupa para Exteriores, secreto].), possivelmente precipitando a análise final do mérito do caso com prejuízos para a ditadura (MRE, 1981eMRE. OEA. CIDH. 53º período de sessões. Caso Nr. 7615. Índios Yanomami. Brasília, 3 jul. 1981e. [Exteriores para Delbrasupa, secreto].).

Em um almoço com Marco César Meira Naslausky no começo de 1982, Abranches lhe alertou que “havia caído mal” a reação negativa do Brasil sobre a possível viagem do relator Sepúlveda, e que isso poderia reverter uma atitude antes simpática ao país na CIDH. Segundo o comissário, “a recusa brasileira estava sendo interpretada, ainda que erroneamente, no sentido de que ‘o Brasil poderia ter algo a ocultar’”. Ele propôs então a realização, em uma universidade brasileira, de um seminário de direitos humanos, com uma “rápida visita” posterior de Sepúlveda à reserva Yanomami, ou pelo menos a Manaus ou Brasília, o que talvez lhe provocasse uma “atitude menos militante”. Sugeriu ainda a adesão do Brasil à CADH, o que teria “excelente repercussão” junto a importantes entidades brasileiras como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a Associação Brasileira de Imprensa, bem como colocaria “em perspectiva mais favorável nosso pleito na CIDH” (MRE, 1982aMRE. CIDH. Caso Nr. 7615. Índios Yanomami. Informações adicionais. 53 Sessão. 8 janeiro, 1981. Brasília, 8 jan. 1981a. [Exteriores para Missão OEA, secreto].). A posição de Brasília sobre a visita, no entanto, era irredutível.

No começo de 1983, Saraiva Guerreiro escreveu a Andreazza lhe informando que Abranches tentava avançar o “Seminário sobre Normas e Mecanismos de Proteção dos Grupos Indígenas nos Estados Americanos”. O evento seria realizado no segundo semestre daquele ano no Rio de Janeiro, com participação de membros da CIDH, assim como da UERJ, FUNAI, Conselho Nacional de Pesquisas, Conselho Federal da OAB, Associação Brasileira de Antropologia e CNBB. Os membros da CIDH atenderiam em caráter pessoal. A CIDH aventava também a possibilidade de realizar sua 60ª sessão no Rio, na mesma época.

A questão chegou à alta cúpula do processo decisório: o assunto estava sendo discutido diretamente com o presidente Figueiredo (MRE, 1983aMRE. CIDH. Seminário sobre grupos indígenas e LX Período de Sessões. Sede no Brasil. Brasília, 16 fev. 1983a. [MRE para Mário David Andreazza, secreto]. ). A posição de Saraiva Guerreiro prevaleceu e, novamente, a decisão do governo foi contra a realização de eventos e da visita ao Brasil (MRE, 1983bMRE. CIDH. Realização de seminário e do 60º período de sessões no Brasil. Brasília, 1 mar. 1983b. [Exteriores para Delbrasupa, secreto].). Com a morte de Abranches em junho de 1983, a proposta de visita foi definitivamente abandonada.

A redemocratização e o desfecho do caso

O texto da resolução da CIDH foi finalizado ainda no período ditatorial, em 5 de março de 1985, dez dias antes do início do governo Sarney (COMISSÃO INTERAMERICANA..., 1985). Contudo, ele só foi publicado no final do ano, com o relatório da Assembleia Geral da OEA. Após a redação final da resolução sobre o caso Yanomami, o Estado teria duas opções, segundo o representante brasileiro na OEA. A primeira seria usar o prazo de 90 dias para tentar reverter a decisão desfavorável ou para acumular mais informações e continuar o diálogo com a CIDH. A segunda seria dar o caso por terminado, considerando as comunicações anteriores como suficientes.

Ao final, a diplomacia do governo Sarney escolheu a última opção e não enviou mais documentos à CIDH. A resolução nº 12/85 foi publicada em 1º de outubro de 1985. Não se tentou reverter a decisão porque se entendeu que a responsabilidade política sobre o caso seria atribuída à ditadura. Ao ponderar sobre a resolução iminente, a nova administração do Itamaraty instruiu sua delegação a “evitar maior envolvimento com a CIDH”, deixando que a resolução fosse publicada. Ao listar suas razões, o Itamaraty ponderou que “a acusação de omissão recai sobre o Governo anterior à Nova República” (MRE, 1985bMRE. OEA. CIDH. Caso Nr. 7615. Índios Yanomami. Brasília, 6 ago. 1985b. [Exteriores para Missão OEA, secreto]. , ênfase nossa). O documento também listou outras razões pelas quais a nova diplomacia deveria se distanciar da CIDH. O caso seria publicado na parte geral do relatório da Comissão, “perdendo-se entre dezenas de outros”, ou seja, já não teria um impacto tão significativo. Também já se cogitava a adesão à CADH, o que “contribuirá para contrabalançar qualquer eventual repercussão negativa da publicação do caso no relatório”, e assim “não haveria maior envolvimento e compromisso com a Comissão” (MRE, 1985bMRE. OEA. CIDH. Caso Nr. 7615. Índios Yanomami. Brasília, 6 ago. 1985b. [Exteriores para Missão OEA, secreto]. ).

Neste documento revelador, a diplomacia de Sarney se mostrou mais preocupada em se esquivar das consequências políticas do caso do que em manifestar uma disposição de mudar o engajamento com os direitos humanos, como sua política externa anunciava. Desejava-se um não “envolvimento e compromisso” com a Comissão, ao mesmo tempo em que se pretendia colher os frutos políticos de uma nova retórica que viria associada à futura adesão de tratados de direitos humanos.

Considerações finais

Temas relacionados a direitos humanos e a violações contra povos indígenas tornaram-se incômodos à ditadura militar de forma progressiva e ainda hoje geram denúncias contra o Brasil, envolvendo situações como a da tragédia humanitária persistente na Terra Indígena Yanomami. Trinta anos após sua demarcação, ela ainda é marcada pela devastação ambiental, epidemias, desnutrição, crimes atrozes e presença de 20 mil garimpeiros ilegais. O desmonte de instituições e políticas públicas indigenistas no atual governo Bolsonaro fragiliza ainda mais a situação do povo Yanomami.

Na década de 1980, em face do caso Yanomami, ao contrário das relações de outras ditaduras latino-americanas com a Comissão, a diplomacia do regime militar brasileiro interagiu com a CIDH, ainda que de forma recalcitrante e cheia de referências à soberania, às normas e instituições domésticas. Todavia, o fez não por espírito colaborativo, mas justamente pelo oposto: por meio do envio de documentos e de uma estratégia formal, com articulação política, manobras de bastidores, cooptação de funcionários e outras táticas, o regime militar brasileiro tinha como objetivo claro e constante o arquivamento das denúncias levantadas no caso Yanomami.

Porém, diferentemente de outros casos na CIDH contra o Brasil, o caso Yanomami teve uma particularidade que influenciou o desfecho da petição. Os denunciantes estavam muito bem preparados tecnicamente, eram motivados, faziam intervenções de forma sistemática e possuíam instalações físicas em Washington, o que facilitava a incidência política direta na CIDH, inclusive com encontros presenciais com comissários.

Em relação à Comissão, e como antecipado pelo modelo analítico que usamos, ela passou por uma mudança institucional de tipo conversão. Frente a um contexto político sem bloqueios explícitos, e com nível significativo de discricionariedade institucional, começou a interpretar e implementar de maneiras novas e diferentes suas regras e dispositivos, avançando sobre a temática indígena, para a qual não contava com qualquer previsão legal explícita, claramente buscando aumentar sua relevância, prestígio, acervo normativo-jurisprudencial e área de atuação.

O governo Carter havia promovido um fortalecimento institucional decisivo da CIDH, acompanhado, na mesma época, por uma renovação expressiva de comissários, com a chegada de inovadores institucionais mais progressistas. Paralelamente, o contexto político no início da década de 1980 tinha menos pontos de veto a esse tipo de iniciativas em comparação, por exemplo, com o quadro de repressão anticomunista imperante até meados dos anos de 1970. Ao mesmo tempo, mais sólida institucionalmente, especialmente depois da entrada em vigor da CADH, e, no caso Yanomami, com o apoio e pressão transnacional, a CIDH tinha mais espaço para explorar, de maneira expansiva, as ambiguidades de suas normas, passando a abarcar a temática indígena com a criação de novos posicionamentos.

Tal como antes, na década de 1970, a CIDH mantinha autonomia para criar seus próprios entendimentos e promover aplicações concretas das normas do regime interamericano de direitos humanos. Porém, a diferença era que, ao contrário daquele período, as pressões políticas de veto externas (do Brasil e Estados Unidos) e internas à OEA, no sentido de leituras mais soberanistas - que afastavam a CIDH de uma abordagem mais ativista e bloqueavam eventuais esforços de experimentação normativa -, deram lugar à voz da sociedade civil e à atuação de comissários mais inclinados a pressionar os Estados pelo cumprimento dos padrões de direitos humanos, ainda que em um campo totalmente inédito e sem previsão legal expressa.

Em termos gerais, o caso demonstra que os organismos internacionais de direitos humanos podem passar por mudanças relevantes ainda que suas regras formais se mantenham constantes. Em outras palavras, o escopo e foco de atuação de organismos internacionais de direitos humanos podem expandir-se, inclusive para abranger novos direitos e novos sujeitos de direitos, como no caso da CIDH que se abriu à agenda dos direitos dos povos indígenas como resultado do caso Yanomami.

No que diz respeito à aplicação do modelo teórico não só para análises futuras, mas também como guia de ação para atores interessados em impulsionar a conversão institucional, algumas lições podem ser extraídas. Mudanças de conversão institucional como a vivenciada pela CIDH só ocorrem, em primeiro lugar, se os organismos em questão contarem com espaço discricionário suficiente para explorar ambiguidades na aplicação de suas regras. Ademais, em segundo lugar, certos tipos de interações entre atores sociais, estatais e intergovernamentais são cruciais para viabilizar a conversão institucional. Mais especificamente, os seguintes fatores são necessários: (i) mudanças políticas internacionais que diminuam as resistências políticas às alterações pretendidas e deem mais peso à agenda dos direitos humanos - ou que, mesmo a deixando em plano secundário, não a posicionem em choque com pautas prioritárias das potências; (ii) pressões de atores especializados - e com recursos e tempo - da sociedade civil pró-direitos humanos; e (iii) recomposições de integrantes dos organismos, com entrada de atores progressistas.

Nesse sentido, ao tentar mapear, confirmar e até mesmo antecipar a ocorrência de conversão institucional, é preciso se atentar para alguns eixos principais: i) as propriedades burocrático-institucionais dos organismos e a correlação de forças entre os seus membros, analisando se há espaço e recursos suficientes para a atuação de inovadores institucionais; ii) a maior ou menor centralidade da agenda dos direitos humanos nos contextos internacional e regional no momento histórico em questão, avaliando se as possibilidades de veto - internas e externas aos organismos - são, de fato, fracas ou insuficientes a ponto de permitir os avanços subjacentes à conversão; e iii) a dimensão dos arcos sociais de alianças e do potencial de reverberação das redes transnacionais de ativismo que defendam o redirecionamento e ampliação da atuação dos organismos.

Assim, os vetores de mudanças pró-direitos humanos podem ser detonados e partir tanto das ações dos Estados e/ou organismos quanto da sociedade civil, parecendo ter mais força e chances de sucesso quando combinados. Vale observar, contudo, que a abertura, ainda que parcial, da agenda interestatal aos direitos humanos, com a diminuição dos pontos de veto, é mais preponderante e central do que os outros dois fatores, referentes à política interna dos organismos e à mobilização societal. Mesmo se houver, herdadas de um passado mais favorável, forte pressão da sociedade civil e composição interna nos organismos alinhada à pauta da conversão institucional, os avanços possíveis serão limitados na ausência da porosidade interestatal, pois persistirão os bloqueios e pontos de veto dos Estados aos avanços e inovações institucionais.

Ao se referirem aos padrões de mudança institucional de tipo conversão e deriva, Hacker, Pierson e Thelen (2015, p. 181)HACKER, Jacob S.; PIERSON, Paul; THELEN, Kathleen. Drift and conversion: hidden faces of institutional change. In: MAHONEY, J.; THELEN, K. (eds.). Advances in comparative-historical analysis. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. p. 180-208. afirmam que “os estudiosos apenas começaram a prestar atenção a essas duas formas “ocultas” de mudança institucional, quando e por que elas acontecem e como elas se relacionam entre si”. Diante dessa emergente agenda de pesquisa, este artigo sinaliza caminhos possíveis para futuras investigações em torno da conversão institucional de organismos internacionais de direitos humanos. Mudanças formais das regras internas e externas dos organismos não são pré-requisitos para que eles ampliem tanto o leque de direitos protegidos quanto o rol dos seus destinatários. Devemos agora entender melhor as estratégias, interações e circunstâncias necessárias por trás dessas mudanças.

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  • RORIZ, João; HERNANDEZ, Matheus de Carvalho. A dictatorship in the battle for human rights: the 1977 UN High Commissioner proposal and the Brazilian resistance. Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, v. 64, n. 1, p. 1-17, 2021.
  • ROYO, Luis Rodríguez-Piñeiro. El sistema interamericano de derechos humanos y los pueblos indígenas. In: BERRAONDO, M. (coord.). Pueblos indígenas y derechos humanos. Bilbao: Universidad de Deusto, 2006. p. 153-206.
  • VALENTE, Rubens. Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
  • 1
    Este trabalho foi apresentado no 16º Encontro da Brazilian Studies Association (BRASA), organizado pela Georgetown University em março de 2022. Gostaríamos de agradecer os comentários dos participantes do evento, em especial de Beatriz Kushnir, Carlos Artur Gallo, Christian Schallenmueller, Janaína de Almeida Teles e Pádua Fernandes. As opiniões no texto, assim como eventuais erros e imprecisões são da nossa responsabilidade.
  • 4
    Essa frase consta da obra “A queda do céu: palavras de um xamã yanomami” de autoria de Davi Kope-nawa e Bruce Albert.
  • 5
    A Comissão Interamericana de Direitos Humanos é um órgão da Organização dos Estados Americanos e, em conjunto com a Corte Interamericana de Direitos Humanos, compõe o sistema regional de proteção de direitos humanos no hemisfério americano. Como o Brasil aderiu à Convenção Americana de Direitos Humanos somente em 1992 e aceitou a competência da Corte em 1998, os casos contra o país durante o regime militar tramitaram somente na Comissão, que referenciava as violações com base na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem de 1948. É importante destacar que os relatórios da Comissão têm caráter de recomendação aos Estados.
  • 6
    Segundo os autores, “as possibilidades de veto são altas onde existem atores que têm acesso a meios institucionais ou extrainstitucionais para bloquear a mudança. Esses atores podem ter acesso à capacidade de veto tanto em relação às mudanças nas próprias regras (formais ou informais) quanto às mudanças na aplicação das regras na prática” (MAHONEY; THELEN, 2010MAHONEY, James; THELEN, Kathleen. A theory of gradual institutional change. In: MAHONEY, J.; THELEN, K. T. (eds.). Explaining institutional change: ambiguity, agency and power. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 1-37., p. 19). Já a discricionariedade na aplicação e interpretação institucionais diz respeito a “diferenças no grau com que as instituições estão abertas a interpretações diversas e a variações em sua aplicação” (MAHONEY; THELEN, 2010MAHONEY, James; THELEN, Kathleen. A theory of gradual institutional change. In: MAHONEY, J.; THELEN, K. T. (eds.). Explaining institutional change: ambiguity, agency and power. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 1-37., p. 20).
  • 7
    Dada a importância geoestratégia do Brasil para a política externa estadunidense anticomunista, pelo menos até meados da década de 1970, havia um “acordo de cavalheiros” de não criticar o Brasil na OEA por violações de direitos humanos (DYKMANN, 2008DYKMANN, Klaas. Human rights policy of the Organization of American States in Latin America: philanthropic endeavors or the exploitation of an ideal? Princeton: Markus Wiener Publishers, 2008., p. 150, 160, 161, 217; BERNARDI, 2018BERNARDI, Bruno Boti. Silence, hindrances and omissions: the Inter-American Commission on Human Rights and the Brazilian military dictatorship. The International Journal of Human Rights, v. 22, n. 9, p. 1123-1143, 2018., p. 1133). Na década de 1980, a ofensiva anticomunista e contrainsurgente do governo Reagan se centrou na América Central, ignorando em boa medida questões de direitos humanos e o Brasil. Frente à CIDH, teve uma postura de relutância, apatia e indiferença (DYKMANN, 2008DYKMANN, Klaas. Human rights policy of the Organization of American States in Latin America: philanthropic endeavors or the exploitation of an ideal? Princeton: Markus Wiener Publishers, 2008., p. 311-422).
  • 8
    A dupla progressista de comissários por trás do protagonismo da CIDH entre 1976 e 1980, conformada por Andrés Aguilar e Tom Farer, permaneceu na Comissão e acompanhou quase a totalidade da tramitação do caso Yanomami. Segundo Dykmann (2008, p. 87-93)DYKMANN, Klaas. Human rights policy of the Organization of American States in Latin America: philanthropic endeavors or the exploitation of an ideal? Princeton: Markus Wiener Publishers, 2008., os dois conseguiam atrair muitas vezes o apoio do comissário Marco Gerardo Monroy Cabra e confiavam no compromisso do comissário César Sepúlveda com os direitos humanos. Nesse sentido, pode-se dizer que essa ala se opunha a comissários pró-governo, com destaque para Francisco Bertrand Galindo e Carlos A. Dunshee de Abranches (substituído em 1983 por Gilda Russomano, de mesma inclinação).
  • 9
    Até 1976, com apenas dois advogados e restante de funcionários administrativos alheios a temas de direitos humanos, os escritórios da CIDH eram de terceira classe, permeados por um sentimento de sonolência, paralisia e depressão (DYKMANN, 2008DYKMANN, Klaas. Human rights policy of the Organization of American States in Latin America: philanthropic endeavors or the exploitation of an ideal? Princeton: Markus Wiener Publishers, 2008., p. 94-95). Com a ascensão do governo Carter, a partir de 1977, para além do apoio político decisivo à CIDH, aumentaram substancialmente as contribuições financeiras dos EUA para o órgão, o que permitiu: mudança a instalações mais amplas; contratação de vários advogados e novos funcionários; realização de inúmeras atividades e viagens, como visitas in loco; estabelecimento de um centro de documentação e de uma biblioteca; e a compra de um sistema computadorizado de controle de dados (DYKMANN, 2008DYKMANN, Klaas. Human rights policy of the Organization of American States in Latin America: philanthropic endeavors or the exploitation of an ideal? Princeton: Markus Wiener Publishers, 2008., p. 72-73).
  • 10
    Como o Brasil ainda não tinha ratificado a Convenção Americana de Direitos Humanos, em vigor desde 1978, os casos contra o país eram baseados na Declaração Americana, de 1948.
  • 11
    O Parque Yanomami foi demarcado em 1992, no governo Collor.
  • 12
    Até a Constituição de 1988, o Código Civil, de 1916, e o Estatuto do Índio, de 1973, estipulavam que os indígenas eram relativamente incapazes perante o ordenamento jurídico, devendo ser tutelados e representados pelo Serviço de Proteção aos Índios e, posteriormente, pela FUNAI.
  • 13
    Galindo desempenhava a função de embaixador de El Salvador na Guatemala e comissário da CIDH ao mesmo tempo, o que levantava suspeitas sobre sua integridade (DYKMANN, 2008DYKMANN, Klaas. Human rights policy of the Organization of American States in Latin America: philanthropic endeavors or the exploitation of an ideal? Princeton: Markus Wiener Publishers, 2008., p. 83). Aguilar, embora reconhecido como ativista e progressista, tinha proximidade pessoal com Carreño e foi responsável por indicá-lo para a Secretaria Executiva (DYKMANN, 2008DYKMANN, Klaas. Human rights policy of the Organization of American States in Latin America: philanthropic endeavors or the exploitation of an ideal? Princeton: Markus Wiener Publishers, 2008., p. 100-101).
  • 14
    Em outro documento, o MRE esclarece que a demissão do Presidente da FUNAI se devia ao fato de ele ser contra a portaria do Ministro do Interior que regulamentava a mineração do subsolo de reservas indígenas, e que os caciques Terena e Megaron continuavam na FUNAI (MRE, 1984eMRE. OEA. CIDH. Caso Nr. 7615. Brasília, 3 out. 1984e. [Exteriores para Missão OEA, secreto]. ).
  • 15
    No caso Miskitu, frente ao programa de reforma agrária do governo sandinista da Nicarágua que não levava em conta a propriedade indígena de várias terras, a CIDH afirmou o direito a uma proteção especial da cultura de grupos étnicos, a qual incluía, ainda que de modo limitado, suas terras ancestrais e comunais (ENGLE, 2018ENGLE, Karen. El desarrollo indígena, una promesa esquiva: derechos, cultura, estrategia. Tradução de Sabrina Frydman; Matías González Mama; Pedro Lama. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad de los Andes, 2018., p. 245-246).
  • 16
    O representante brasileiro na OEA Alarico Silveira assim ponderou: “sobre a tendência da CIDH de se voltar para determinados temas até agora pouco abordados, mas que se possam vincular à problemática geral dos direitos humanos, como compensação para o estado de relativo enfraquecimento em que se encontra” (MRE, 1981bMRE. OEA. CIDH. Caso Nr. 7615. Índios Yanomami. Washington, 4 mar. 1981b. [Delbrasupa para Exteriores, secreto].).
  • 17
    O principal exemplo disso era a Convenção 107 da OIT, de 1957, único tratado internacional que se ocupava exclusivamente dos povos indígenas. Tinha viés estigmatizante e colonial marcado por uma estratégia de integracionismo econômico, estipulando limites claros ao direito às terras tradicionais (ENGLE, 2018ENGLE, Karen. El desarrollo indígena, una promesa esquiva: derechos, cultura, estrategia. Tradução de Sabrina Frydman; Matías González Mama; Pedro Lama. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad de los Andes, 2018., p. 76-79).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    11 Abr 2022
  • Aceito
    13 Out 2022
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