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Ativismo Feminista Negro no Brasil: do movimento de mulheres negras ao feminismo interseccional

Black Feminist Activism in Brazil: from the black women’s movement to intersectional feminism

Resumo:

Este artigo analisa a trajetória política do ativismo feminista negro no Brasil, os seus repertórios discursivos acerca das intersecções entre gênero, raça e outras categorias sociais em três tempos. O material de análise provém de dois projetos de pesquisa conduzidos entre 2013 e 2019. Os dados apresentados foram coletados de documentos internos e jornalísticos do Movimento de Mulheres Negras, documentos governamentais, conversas informais e entrevistas semiestruturadas com ativistas negras de Belo Horizonte. O artigo está dividido em três seções, correspondentes a fases específicas: na primeira, nos concentramos no processo de autonomização do Movimento de Mulheres Negras nos anos 1980 e analisamos os repertórios utilizados e expressos no Nzinga Informativo. Em seguida, analisamos suas estratégias de advocacy institucional na década de 1990 e início dos anos 2000, período caracterizado pela tentativa de estabelecer canais formais de participação política para as mulheres negras dentro da burocracia estatal e organizações internacionais. Finalmente, discutimos o ressurgimento de mobilizações de rua na década de 2010 e a emergência de dois cenários de mobilização política liderados por jovens ativistas negras no Brasil: (i) a ascensão de uma geração de jovens feministas negras que estão reformulando e/ou criando novos repertórios discursivos e de confronto nas ruas, nas redes e na representação política; e (ii) a crescente presença de mulheres negras exercendo mandatos legislativos, que, neste texto, nomeamos como movimento de “ocupar a política”. Ao analisar esses repertórios, este trabalho pode contribuir para um melhor entendimento das várias estratégias de mobilização política que feministas negras estão empregando no início do século XXI e seu impacto sociopolítico.

Palavras-chave:
Movimentos sociais; Mulheres negras; Feminismo negro; Feminismo interseccional; Ativismo político; Repertórios discursivos

Abstract:

This article analyzes the political trajectory of black feminist activism in Brazil and its discursive repertoires with respect to the intersections between gender, race and other social categories in three historical moments. The article is based on two research projects conducted between 2013 and 2019. The data presented in this article were collected through internal and journalistic documents from the Black Women’s Movement, government documents, informal conversations and semi-structured interviews with Black women activists from Belo Horizonte. The article is divided into three sections. First, we focus on the autonomization process of the Black Women’s Movement in the 1980s and analyze the discursive repertoires expressed in the Nzinga Informativo. Then, we analyze the movement’s institutional advocacy strategies in the 1990s and early 2000s. This period was characterized by an attempt to establish formal channels of political participation for Black women within the state bureaucracy and international organizations. Finally, we discuss the resurgence of street demonstrations in the 2010s, along with two emerging scenarios of political mobilization led by young black women activists in Brazil: (i) the rise of a generation of young black feminists who are reformulating and/or creating new discursive and confrontational repertoires in the streets, on the internet and in political representation; and (ii) the growing presence of black women exercising legislative mandates, which we interpret as a movement of “occupying politics”. By analyzing these discursive repertoires, this article contributes to a better understanding of the various strategies of political mobilization that black feminists employ in the early 21st century and the socio-political impact of these strategies.

Keywords:
Social movements; Black women; Black feminism; Intersectional feminism; Political activism; Discursive repertoires

Introdução

O ativismo de mulheres negras brasileiras ganhou relativa visibilidade na última década. O seu impacto pode ser observado em diferentes dimensões da sociedade, passando pelas redes sociais, programas de entretenimento na televisão e, de maneira especial, no debate sobre déficit democrático e sub-representação de integrantes de grupos subalternizados na política institucional. Porém, ainda há uma carência de análises histórico-políticas sobre a trajetória do ativismo feminista negro no país e sua interconexão com fenômenos semelhantes em outras partes do mundo.

A Psicologia e a Sociologia estão entre as poucas áreas a desenvolver uma produção importante nesse campo e são referência para novos trabalhos que vêm sendo desenvolvidos atualmente. Este artigo visa a preencher a lacuna sobre esse debate na Ciência Política, em diálogo interdisciplinar, ao apresentar uma discussão empírico-teórica que analisa os contextos políticos e históricos, nos quais se deram a emergência, a consolidação e a pluralização do ativismo feminista negro no país. Também nos dedicamos a observar as mudanças em seus repertórios discursivos ao longo do tempo, a partir da década de 1980, e o florescimento de novas estratégias de cooperação e/ou confronto com o Estado e outros atores políticos. Assim, um dos nossos objetivos é introduzir as premissas básicas sobre feminismo negro contemporâneo, formuladas em outros campos disciplinares, e contribuir para a organização e a consolidação de uma agenda de pesquisa semelhante na Ciência Política. Reconhecemos que a trajetória do ativismo feminista negro brasileiro esteja muito além do recorte proposto aqui. Consideramos, também, que a efervescência dos debates com base na tríade incontornável gênero-raça-classe, que se delineou mais fortemente na última década, seja reflexo da entrada mais expressiva de alunas/os negras/os nas universidades a partir das ações afirmativas. Esse período tem, nas redes sociais, um arcabouço primordial para a expansão das discussões para além da academia, ampliando repertórios discursivos e contribuindo para a proliferação de coletivos de jovens feministas negras (RIOS; PEREZ; RICOLDI, 2018RIOS; Flavia; PEREZ; Olívia; RICOLDI; Arlene. Interseccionalidade nas mobilizações do Brasil contemporâneo. Lutas Sociais, São Paulo, v. 22, n. 40, p. 36-51, 2018.; FACCHINI; CARMO; LIMA; 2020FACCHINI, Regina; CARMO, Íris Nery do; LIMA, Stephanie Pereira. Movimentos feministas, negro, LGBTI no Brasil: sujeitos, teias e enquadramentos. Educação & Sociedade, Campinas, v. 41, p. 1-22, 2020.).

Nosso artigo se apoia no entendimento de “repertórios discursivos”, de Marc Steinberg (1999)STEINBERG, Marc W. The talk and back talk of collective action: a dialogic analysis of repertoires of discourse among nineteenth-century English cotton spinners. American Journal of Sociology, Chicago, v. 105, n. 3, p. 736-780, 1999., o qual considera que o discurso de uma ação coletiva é composto pela junção de agências e dinâmicas discursivas dos diversos atores nela envolvidos, incluindo a premissa de haver a pluralidade de vozes intragrupos. Angela Alonso (2012)ALONSO, Angela. Repertório, segundo Charles Tilly: história de um conceito. Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 21-41, 2012., apoiando-se na conceituação de repertório de Charles Tilly, compreende que a apropriação do “repertório de ação coletiva”, ou seja, a escolha das formas a serem utilizadas por atrizes e atores depende de contextos, interlocutor(es) e nível de ação e, embora o seu uso possa variar, observa-se a consolidação de um repertório comum, compartilhado, dentro da dinâmica e de contexto delimitados. No artigo em tela, vislumbramos que, ao longo dos três diferentes momentos recortados da trajetória do ativismo feminista negro brasileiro, houve uma apropriação de diferentes estratégias, de acordo com o contexto de cada época, conformando, assim, o repertório discursivo desses sujeitos políticos - que compreendemos como sendo a capacidade argumentativa utilizada estrategicamente pelos coletivos como contradiscurso e confrontação ao discurso dominante de caráter sexista, racista, classista, lgbtfóbico, entre outros.

O artigo está dividido em três “tempos”. No primeiro, apresentamos a emergência do Movimento de Mulheres Negras (MMN), nos anos 1980, analisando suas estratégias de cooperação e confronto com os movimentos negros e feministas e os repertórios discursivos expressos no Nzinga Informativo3 3 Adotamos a grafia do título do periódico e do nome do coletivo conforme utilizada pelo próprio jornal e coletivo: http://www.cpvsp.org.br/upload/periodicos/pdf/PNZINRJ071988004.pdf. , “talvez o primeiro periódico da história do feminismo negro brasileiro enquanto movimento autônomo” (RIOS; FREITAS, 2018RIOS, Flavia; FREITAS, Viviane Gonçalves. Nzinga Informativo: redes comunicativas e organizacionais na formação do feminismo negro brasileiro. Cadernos Adenauer, São Paulo, n. 1, p. 25-45, 2018., p. 29). No segundo, analisamos a mudança nos repertórios discursivos no ativismo feminista negro, nos anos 1990 e início dos anos 2000, e sua estratégia de incidência política, caracterizada pela tentativa de estabelecer canais formais de participação política para as mulheres negras dentro da burocracia estatal e em organizações internacionais.

No terceiro tempo, discutimos o recrudescimento de mobilizações de rua na década de 2010, exemplificado pelo impacto da Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo, a Violência e pelo Bem Viver, ocorrida em Brasília, em 2015, com significativa relevância para o momento atual das mobilizações pela ampliação de direitos para a população negra, em especial, as mulheres negras. Analisamos, ainda, outros dois cenários emergentes de mobilização política liderada por jovens ativistas negras no Brasil. O primeiro é a ascensão de uma geração de jovens feministas negras, que estão reformulando e/ou criando novos repertórios discursivos e de confronto nas ruas e nas redes sociais. Já o segundo, por nós interpretado como o movimento de “ocupar a política”, é ilustrado pela crescente presença de mulheres negras concorrendo e exercendo mandatos legislativos.

Primeiro tempo: Entre o movimento de mulheres e o movimento negro, seguimos sendo mulheres negras anos 1970-19804 4 Parte das reflexões da seção 1 integram a tese de doutorado de Freitas (2017), intitulada “De qual feminismos estamos falando: desconstruções e reconstruções das mulheres, via imprensa feminista brasileira, nas décadas de 1970 a 2010”, realizada com bolsa Demanda Social - CAPES, de abril/2013 a março/2017, sob orientação de Flávia Biroli, no Instituto de Ciência Política, da Universidade de Brasília. Em 2018, a pesquisa foi publicada em forma de livro - Feminismos na imprensa alternativa brasileira: quatro décadas de lutas por direitos -, pela Paco Editorial.

Embora o termo “interseccionalidade” tenha sido cunhado pela jurista norte-americana Kimberlé Crenshaw apenas em 1989, com foco em raça e gênero (HENNING, 2015HENNING, Carlos Eduardo. Interseccionalidade e pensamento feminista: as contribuições históricas e os debates contemporâneos acerca do entrelaçamento de marcadores sociais da diferença. Mediações, Londrina, v. 20, n. 2, p. 97-128, 2015.; RIOS; PEREZ; RICOLDI, 2018RIOS; Flavia; PEREZ; Olívia; RICOLDI; Arlene. Interseccionalidade nas mobilizações do Brasil contemporâneo. Lutas Sociais, São Paulo, v. 22, n. 40, p. 36-51, 2018.), a ideia das opressões cruzadas e indissociáveis de gênero, raça e classe já fazia parte do repertório discursivo das mulheres negras brasileiras desde os anos 1970 e 1980, período em que muitas integrantes do que viria a se constituir como um movimento autônomo começaram suas atividades, em uma dupla militância junto a coletivos de mulheres e de negros brasileiros, os quais reemergiram na década de 1970. Porém, tais movimentos se institucionalizaram partilhando uma ideia essencialista de igualdade: entre as mulheres, raça era uma dimensão secundária, e entre os negros as desigualdades de gênero eram ignoradas (RIBEIRO, 1995RIBEIRO, Matilde. Mulheres negras brasileiras: de Bertioga a Beijing. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, n. 2, p. 446-457, 1995.; CARNEIRO, 2003CARNEIRO, Sueli. Mulheres em movimento. Estudos Avançados, São Paulo, v. 17, n. 49, p.117-132, 2003.). Também acabaram produzindo formas de opressão internas, à medida que se silenciavam diante de situações nas quais racismo e sexismo se intersectavam, posicionando as mulheres negras em uma situação bastante desvantajosa em seu interior. Segundo Flavia Rios, Olívia Perez e Arlene Ricoldi (2018)RIOS; Flavia; PEREZ; Olívia; RICOLDI; Arlene. Interseccionalidade nas mobilizações do Brasil contemporâneo. Lutas Sociais, São Paulo, v. 22, n. 40, p. 36-51, 2018., isso decorre de haver, naquele período, grande influência marxista na academia e no ativismo brasileiros, o que acentuava a ênfase nas desigualdades de classe e relegava a segundo plano as desigualdades de gênero e raça.

Kia Lilly Caldwell (2010)CALDWELL, Kia Lilly. A institucionalização de estudos sobre a mulher negra: perspectivas dos Estados Unidos e do Brasil. Revista da ABPN, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 18-27, 2010. destaca a importante tradição intelectual de mulheres negras brasileiras surgida nos anos 1970 e 1980 - com obras de Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro, Thereza Santos, Edna Roland, Luiza Bairros, Matilde Ribeiro e Fátima Oliveira - que, conjugada à dupla militância, tornou-se fundamental para a construção do pensamento e da prática feminista negra no Brasil. Ao mesmo tempo, Rios (2017)RIOS, Flavia. A cidadania imaginada pelas mulheres afro-brasileiras: da ditadura militar à democracia. In: BLAY, Eva Alterman; AVELAR, Lúcia (org.). 50 anos de feminismo: Argentina, Brasil e Chile, a construção das mulheres como atores políticos e democráticos. São Paulo: Edusp, FAPESP, 2017. p. 227-253. ressalta que a presença de mulheres negras nos círculos políticos antiditadura militar, especialmente em organizações de esquerda, em processos de formação de lideranças, tanto do movimento negro quanto do movimento feminista, contribuiu para que elas emergissem como sujeitos políticos independentes. Nesse período, o movimento de mulheres negras foi-se afirmando como fruto de experiências de lutas sociais conduzidas por organizações institucionalizadas e independentes, que enfrentavam conflitos tanto dentro dos movimentos de esquerda quanto nas organizações negras, visto que as questões específicas das mulheres eram consideradas menores e divisionistas (RODRIGUES, 2006RODRIGUES, Cristiano. As fronteiras entre raça e gênero na cena pública brasileira: um estudo da construção da identidade coletiva do movimento de mulheres negras. 2006. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006.; MOREIRA, 2007MOREIRA, Núbia Regina. O feminismo negro brasileiro: um estudo do movimento de mulheres negras no Rio de Janeiro e São Paulo. 2007. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007.).

Em 1975, quando as feministas se reuniram na Associação de Imprensa para o Congresso de Mulheres Brasileiras, solenidade pelo Ano Internacional da Mulher, Lélia Gonzalez e suas companheiras ali compareceram para apresentar um documento no qual caracterizavam a situação de opressão e exploração da mulher negra. O Manifesto das Mulheres Negras foi o primeiro de uma série de posicionamentos formais de feministas negras contra o que denominavam de “feminismo branco hegemônico”. Nos anos seguintes, houve a fundação de vários grupos de mulheres negras: Aqualtune5 5 Aqualtune foi uma princesa africana do Congo, que, como guerreira e estrategista, liderou um exército de 10 mil homens para defender o seu reino contra a invasão portuguesa, em 1695. Após a derrota no conflito, foi escravizada e vendida no Brasil como escrava reprodutora. Grávida, organizou uma fuga para o Quilombo dos Palmares, o maior da América Latina. Seus filhos, Ganga Zumba e Gana, foram importantes chefes de Palmares. Seu neto Zumbi era descendente de Sabina, sua terceira filha (ARRAES, 2020). , 1979 (Rio de Janeiro, RJ); Nzinga6 6 Nzinga foi uma rainha africana que, por enfrentar o colonialismo português em Angola, transformou-se, ao longo dos séculos, em símbolo de luta, como guerreira e estrategista. Após 35 anos de conflitos, foi morta em 1663, em pleno campo de batalha. Sem a sua comandante, os guerreiros se renderam e muitos foram aprisionados e trazidos ao Brasil (MULHERES..., 1985, p. 2-3). - Coletivo de Mulheres Negras, 1983 (Rio de Janeiro, RJ); Mãe Andresa7 7 Mãe Andresa, ou Andresa Maria de Souza Ramos (1854-1954), foi uma das mais importantes mães de santo do estado do Maranhão. Assumiu a chefia da Casa de Mina Jeje quando tinha 60 anos e exerceu essa atividade durante quatro décadas. Era considerada uma pessoa generosa e se tornou respeitada e conhecida também em outros estados (LEMOS, 2016). , 1986 (São Luís, MA); Mulheres Negras do Espírito Santo, 1987 (Vitória, ES); Maria Mulher, 1987 (Porto Alegre, RS), Geledés8 8 O termo Geledè, na tradição africana, remete a uma forma de sociedade secreta feminina de caráter religioso das sociedades tradicionais iorubás - consideradas, hoje, patrimônio da humanidade. Expressa o culto ao poder feminino sobre a fertilidade da terra, a procriação e o bem-estar da comunidade. Também se vincula à reapropriação das tradições culturais negras, reafirmando, diante do feminismo de ideário judaico-cristão, o patrimônio cultural e simbólico próprio das mulheres negras (BORGES, 2009; CARNEIRO, 2018). - Instituto da Mulher Negra, 1988 (São Paulo, SP) (RODRIGUES, 2006RODRIGUES, Cristiano. As fronteiras entre raça e gênero na cena pública brasileira: um estudo da construção da identidade coletiva do movimento de mulheres negras. 2006. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006.; RIOS, 2017RIOS, Flavia. A cidadania imaginada pelas mulheres afro-brasileiras: da ditadura militar à democracia. In: BLAY, Eva Alterman; AVELAR, Lúcia (org.). 50 anos de feminismo: Argentina, Brasil e Chile, a construção das mulheres como atores políticos e democráticos. São Paulo: Edusp, FAPESP, 2017. p. 227-253.; RIOS; MACIEL, 2018RIOS, Flavia; FREITAS, Viviane Gonçalves. Nzinga Informativo: redes comunicativas e organizacionais na formação do feminismo negro brasileiro. Cadernos Adenauer, São Paulo, n. 1, p. 25-45, 2018.; FREITAS, 2018FREITAS, Viviane Gonçalves. Feminismos na imprensa alternativa brasileira: quatro décadas de lutas por direitos. Jundiaí: Paco Editorial, 2018.). Apesar de a emergência de grupos organizados de mulheres negras ter-se iniciado no final da década de 1970, foi a partir da segunda metade dos anos 1980 que começaram a estabelecer maior autonomia em relação às organizações dos movimentos feminista e negro.

Lélia Gonzalez é figura primordial para se compreender não apenas esse momento do Movimento de Mulheres Negras, mas por antever as discussões que atualmente ressoam por meio do debate que caracterizamos como interseccional, principalmente na tríade gênero-raça-classe. Ao mesmo tempo em que transitava pelos movimentos negro e feminista, Gonzalez criticava a ambos, frisando que os feminismos deveriam dar atenção às múltiplas formas de opressão que recaem sobre as mulheres. A filósofa, historiadora e antropóloga ressaltava a importância da autonomia das organizações de mulheres populares, negras e indígenas, ao acreditar que “ninguém era melhor do que essas mulheres para vocalizar seus próprios interesses e suas formas de simbolizar o mundo social” (RIOS; RATTS, 2016RIOS, Flavia; RATTS, Alex. A perspectiva de Lélia Gonzalez. In: PINTO, Ana Flávia Magalhães; CHALHOUB, Sidney (org.). Pensadores negros - pensadoras negras: Brasil, séculos XIX e XX. Cruz das Almas: EDUFRB; Belo Horizonte: Fino Traço, 2016. p. 387-403., p. 399).

Segundo Matilde Ribeiro (1995)RIBEIRO, Matilde. Mulheres negras brasileiras: de Bertioga a Beijing. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, n. 2, p. 446-457, 1995. e Núbia Moreira (2007)MOREIRA, Núbia Regina. O feminismo negro brasileiro: um estudo do movimento de mulheres negras no Rio de Janeiro e São Paulo. 2007. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007., o III Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe, realizado em Bertioga, no interior de São Paulo, em 1985, foi fundamental para que as mulheres negras começassem a se articular, de modo mais organizado e autônomo. O evento, cujo tema foi feminismo e racismo, contou com a participação de 850 mulheres formalmente inscritas, sendo que 116 se autodeclararam negras ou mestiças. Contudo, um grupo de mulheres negras ligadas a movimentos de bairros (favelas e periferia), vindo do Rio de Janeiro, não havia feito inscrição e declarava não ter dinheiro para efetuá-la. A organização do encontro impediu a participação dessas mulheres, as quais, por sua vez, mantiveram-se acampadas em frente ao hotel onde se realizava o evento, gerando, assim, um enorme conflito.

Desse momento em diante, feministas negras passaram a considerar a necessidade de construir um movimento independente, uma vez que não se sentiam contempladas nas plataformas de luta do movimento feminista, e deliberaram sobre a realização do I Encontro Nacional de Mulheres Negras (SOARES, 1994SOARES, Vera. Movimento feminista: paradigmas e desafios. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, número especial, p. 11-24, 1994.; RIBEIRO, 1995RIBEIRO, Matilde. Mulheres negras brasileiras: de Bertioga a Beijing. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, n. 2, p. 446-457, 1995.). O evento foi realizado em Valença, Rio de Janeiro, em 1988, e contou com a participação de 450 mulheres de 17 estados, das cinco regiões do país, ressaltando-se que nem todas as participantes vinham de organizações declaradamente feministas (RIOS; FREITAS, 2018RIOS, Flavia; FREITAS, Viviane Gonçalves. Nzinga Informativo: redes comunicativas e organizacionais na formação do feminismo negro brasileiro. Cadernos Adenauer, São Paulo, n. 1, p. 25-45, 2018.).

Durante o encontro, foram debatidas temáticas que incidiam diretamente sobre o cotidiano das mulheres negras, como nos lembra Joselina da Silva (2014)SILVA, Joselina da. I Encontro Nacional de Mulheres Negras: o pensamento das feministas negras na década de 1980. In: SILVA, Joselina da; PEREIRA, Amauri Mendes (org.). O Movimento de Mulheres Negras: escritos sobre os sentidos de democracia e justiça. Belo Horizonte, Nandyala, 2014. p. 13-39.: organizações da sociedade civil; trabalho; educação; legislação; mito da democracia racial; ideologia do embranquecimento; sexualidade; meios de comunicação; história das mulheres negras na África e no Brasil; arte e cultura; políticas de controle da natalidade; saúde; violência; estética; e sexismo.

Sobre o periódico propriamente, o Nzinga Informativo, criado pelo coletivo homônimo carioca, circulou de junho/1985 a março/1989, com cinco edições de periodicidade irregular. Gonzalez (1985)GONZALEZ, Lélia. Mulher negra. Afrodiáspora, Brasília, v. 6 e 7, n. 19, p. 94-106, 1985., a primeira coordenadora do coletivo, salientava que colocar a sede na Associação do Morro dos Cabritos, zona oeste do Rio de Janeiro, foi uma escolha de importância também simbólica, que retratava a aproximação entre o movimento negro (MN) e o movimento de favelas (MF), em meio à efervescência da retomada dos movimentos sociais à arena pública, no início dos anos 1980 (BAIRROS, 2000BAIRROS, Luiza. Lembrando Lélia Gonzalez. In: WERNECK, Jurema; MENDONÇA, Maisa; WHITE, Evelyn C. (org.). O livro da saúde das mulheres negras: nossos passos vêm de longe. Rio de Janeiro: Pallas, Criola, 2000. p. 42-61.; RATTS; RIOS, 2010RATTS, Alex; RIOS, Flávia. Lélia Gonzalez. São Paulo: Selo Negro, 2010.). As fundadoras e principais participantes eram originárias, principalmente, dos movimentos negro e de favelas: Lélia Gonzalez (MN), Elizabeth Viana (MN), Rosália Lemos (MN), Jurema Batista (MF), Geralda Alcântara (MF), e Miramar da Costa Correia (movimento de bairros), entre outras (GONZALEZ, 1985GONZALEZ, Lélia. Mulher negra. Afrodiáspora, Brasília, v. 6 e 7, n. 19, p. 94-106, 1985.; LEMOS, 1997LEMOS, Rosalia de Oliveira. Feminismo negro em construção: a organização do movimento de mulheres negras no Rio de Janeiro. 1997. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1997.).

O jornal, expressão do repertório discursivo do grupo, entendia que era a divisão sexual do trabalho que abria as portas do mercado para as mulheres negras atuarem como babás, cozinheiras, empregadas domésticas, passadeiras - de preferência, escondidas e com baixa remuneração -, enquanto outras mulheres (brancas) e homens (brancos), mercadologicamente qualificados, ocupavam as melhores posições no mundo público. O questionamento do coletivo e do jornal, consequentemente, sobre a divisão sexual do trabalho e as diversas outras opressões sofridas pelas mulheres é pautado na percepção de que tudo que foi ensinado às mulheres como natural da condição feminina resulta de fatores socioculturais que deveriam, portanto, ser entendidos como questões de natureza política. A percepção de fatores como agressões e estupros sofridos maciçamente, mortes de milhões de mulheres pobres em decorrência de abortos improvisados, menor remuneração delas e homens considerados por lei como chefes das famílias - mesmo em países com mais de 50% dos lares tendo as mulheres como provedoras - fez com que surgissem os processos de organização e tomada de decisão das mulheres sobre seus problemas específicos.

Segundo o coletivo carioca, o que, de fato, estava em discussão era o espaço no qual cada grupo desejava atuar. O Nzinga fez a opção por trabalhar com as questões das mulheres negras (EDITORIAL, 1988EDITORIAL. Nzinga Informativo, Rio de Janeiro, n. 4, p. 2, 1988., p. 2). Simbólica e marcante é a apresentação do coletivo, publicada na primeira edição do periódico, em junho de 1985, em que se explicita sua agenda e seu repertório discursivo, a partir do título “O que é o Nzinga? Um coletivo de mulheres negras” (O QUE..., 1985O QUE é o Nzinga? Um coletivo de mulheres negras. Nzinga Informativo, Rio de Janeiro, n. 1, p. 2-3, 1985., p. 2-3, grifos do original):

Um COLETIVO, porque acreditamos que as decisões devem ser tomadas em conjunto, devem ser o resultado das discussões, devem refletir a diversidade de opiniões.

Um COLETIVO DE MULHERES, porque enquanto mulheres participamos da luta contra todas as violências praticadas contra a MULHER, que vão desde o estupro, o assassinato puro e simples em nome da honra, a demissão do emprego por causa de uma gravidez, o receber menos que o homem, ainda que realize as mesmas tarefas, a ausência de creches onde deixar os filhos para que possa trabalhar; passando pelo desrespeito sutil, disfarçado nas “Cantadas de rua”, nas palavras obscenas ditas baixinho, até a discriminação a nível jurídico, que penaliza o aborto e discrimina a mãe solteira; responsabiliza a mulher pelo bom ou mau desempenho de seus filhos e sobretudo, não permite dispor de nosso corpo segundo nossos desejos. É isto que entendemos por discriminação sexual.

Um COLETIVO DE MULHERES NEGRAS, porque aí se encontra a nossa especificidade, a nossa diferença. Por sermos MULHERES, pensamos, agimos, sentimos diferentes dos homens. Sendo NEGRAS, herdeiras em maior ou menor grau da cultura africana, temos um modo de sentir, agir e pensar diferente das mulheres não negras.

Além do sexismo, lutamos contra o racismo e a discriminação racial que fazem de nós o setor mais explorado e mais oprimido da sociedade brasileira.

A edição n. 5, de março de 1989, do Nzinga Informativo, diferencia-se das quatro anteriores, como salientam Rios e Freitas (2018, p. 32)RIOS, Flavia; FREITAS, Viviane Gonçalves. Nzinga Informativo: redes comunicativas e organizacionais na formação do feminismo negro brasileiro. Cadernos Adenauer, São Paulo, n. 1, p. 25-45, 2018., porque o encontro de Valença foi registrado por meio de “textos-depoimento assinados por representantes de diversos coletivos de mulheres negras de vários estados brasileiros, o que demonstra a ramificação atingida pelo informativo e o diálogo existente entre os grupos em atuação naquele momento”. Os 22 depoimentos refletem o que essas mulheres e tantas outras levaram daqueles dias e o que esperavam da força dessa união. A referida edição contemplou os “ecos” do encontro, como expresso em sua capa. Mais do que a repercussão do evento, o editorial desse número configurou uma homenagem a todas as mulheres negras, brancas, indígenas e mestiças, “àquelas que descobriram que são oprimidas e àquelas que ainda nem se aperceberam disso” (APRESENTAÇÃO, 1989APRESENTAÇÃO. Nzinga Informativo, Rio de Janeiro, n. 5, p. 1, 1989., p. 1).

As cartas publicadas vieram de múltiplos coletivos que participaram do encontro, oriundos de 11 dos 17 estados que estiveram nas atividades - Paraná, Mato Grosso, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Maranhão, Bahia, Pernambuco, Paraíba, Espírito Santo e Rio Grande do Sul. Eram mulheres de partidos políticos, das comunidades de base, dos sindicatos, dos grupos religiosos, dos movimentos de mulheres, do movimento negro, com espaço garantido “para suas denúncias, plenário para a defesa de suas propostas e tribuna para discordar de todos os encaminhamentos” (Helena Maria de Souza, Nzinga - Coletivo de Mulheres Negra, RJ). Falaram do “tripé da exploração raça, sexo e classe” (LENI, Banda-lá, SP), das “poucas oportunidades que as mulheres negras têm de se reunir e discutir sua problemática” (Juraci de Oliveira, Comissão Executiva do Programa do Centenário da Abolição da Escravatura, RS), “dando início ou fortalecendo sua identidade de cor, de sexo, de cultura afro-brasileira” (Maria do Socorro Freitas, Grupo de Mulheres Negras de João Pessoa, PB).

O intuito do jornal era ser um veículo que chegasse ao maior número de pessoas preocupadas com as questões abordadas pelo periódico, independentemente de cor/raça ou gênero. O Nzinga Informativo não era politicamente sectário ou identitariamente exclusivista, embora fossem as mulheres negras o segmento político direcionador da identidade do jornal (RIOS; FREITAS, 2018RIOS, Flavia; FREITAS, Viviane Gonçalves. Nzinga Informativo: redes comunicativas e organizacionais na formação do feminismo negro brasileiro. Cadernos Adenauer, São Paulo, n. 1, p. 25-45, 2018.).

Com o objetivo de colaborar para que a realidade das mulheres negras se transformasse, o coletivo Nzinga colocava-se em defesa desse segmento populacional, pela conquista de seus direitos, em uma perspectiva democrática e visando à justiça social. Para tal, o informativo era um veículo de divulgação da luta das mulheres negras entre os diferentes movimentos sociais, buscando articular as próprias organizações de mulheres negras e os demais segmentos da sociedade, a fim de fortalecer a mobilização quanto aos problemas sociais e políticos do país. Além do sexismo, a luta contra o racismo e a discriminação racial justificava uma ação coletiva com diretrizes distintas das mulheres brancas que também debatiam a agenda feminista naquela época (O QUE..., 1985O QUE é o Nzinga? Um coletivo de mulheres negras. Nzinga Informativo, Rio de Janeiro, n. 1, p. 2-3, 1985., p. 2-3). Como a base de todo o trabalho e de discussões promovidas pelo grupo, a ênfase na importância do movimento de mulheres negras se organizar a partir de outras vertentes distintas do feminismo hegemônico foi recorrente em todas as edições da publicação, visto também ser o direcionamento que conduzia o próprio coletivo.

Entre as principais temáticas abordadas, estavam “comunidade negra”, “organizações de mulheres”, “política institucional”; “histórias de mulheres”; “educação” e “direitos sexuais e reprodutivos” (FREITAS, 2018FREITAS, Viviane Gonçalves. Feminismos na imprensa alternativa brasileira: quatro décadas de lutas por direitos. Jundiaí: Paco Editorial, 2018.). A capilaridade do informativo e o seu papel como uma referência para os grupos ou coletivos que se constituíam à época em todo o país podem ser inferidos a partir dos eventos divulgados em sua agenda político-cultural, a cada edição. São alguns exemplos: lançamentos de livros de importantes nomes entre as intelectuais dos movimentos negro, de mulheres negras, e feministas; encontros e festas em casas culturais que se tornaram celeiros da cultura negra e da estética afropop9 9 A estética afropop é uma identidade artística e de comportamento que representa a união entre os ritmos afro-brasileiros e o comportamento do rock e da sonoridade das guitarras, teclados e timbres da música pop mundial. A cantora baiana Margareth Menezes é uma das principais representantes desse estilo na atualidade. , como o Clube Renascença e seus bailes black; atuação do Movimento Negro Unificado (MNU) na Bahia, junto a “comunidades periféricas”; atividades do Centro de Cultura Negra de Vitória, ES (CECUN); divulgação do jornal Porantim sobre a temática indígena, do Distrito Federal; atividades organizadas nas periferias de São Paulo, pelo Instituto FASE (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional) (RIOS; FREITAS, 2018RIOS, Flavia; FREITAS, Viviane Gonçalves. Nzinga Informativo: redes comunicativas e organizacionais na formação do feminismo negro brasileiro. Cadernos Adenauer, São Paulo, n. 1, p. 25-45, 2018.).

A defesa da identidade das mulheres negras e de sua luta foi central nos editoriais das cinco edições (FREITAS, 2018FREITAS, Viviane Gonçalves. Feminismos na imprensa alternativa brasileira: quatro décadas de lutas por direitos. Jundiaí: Paco Editorial, 2018.), o que se vincula à perspectiva de Gonzalez (1985)GONZALEZ, Lélia. Mulher negra. Afrodiáspora, Brasília, v. 6 e 7, n. 19, p. 94-106, 1985., ao considerar a origem do movimento de mulheres negras muito mais atrelada ao movimento negro do que ao feminista. Para a intelectual e ativista, é a partir da discriminação racial que as mulheres negras se percebem sofrendo uma dupla opressão, tanto em relação a homens e mulheres brancas quanto aos próprios companheiros do movimento - os homens negros. Dessa forma, as mulheres negras buscavam uma dupla afirmação, com sua agenda, ao mesmo tempo, seja no movimento negro, seja naqueles feministas e de mulheres, ressaltando as desvantagens a que eram submetidas pela subjugação de seu papel na estrutura social hierárquica.

Ao se referir ao contexto dos Estados Unidos, Patricia Hill Collins (2017)COLLINS, Patricia Hill. Se perdeu na tradução? Feminismo negro, interseccionalidade e política emancipatória. Parágrafo, São Paulo, v. 5, n. 1, p. 6-17, 2017. entende também a importância de examinar como, nessa época, as mulheres de cor (aqui incluídas mexicanas e outras latinas, indígenas e asiáticas) lidaram com o desafio da busca por seu próprio empoderamento, a partir de diferentes padrões de negociação no contexto político dos movimentos sociais, quanto a raça, classe, gênero e sexualidade - ou seja, uma localização estrutural que teve significativo efeito nas dimensões simbólicas do discurso interseccional dali em diante. Dessa maneira, tornam-se desnecessárias as discussões a respeito de qual seria a prioridade do feminismo negro - lutar contra o racismo ou o sexismo -, já que a intersecção entre gênero, raça e classe não pode ser decomposta.

A agenda defendida pelas mulheres do coletivo Nzinga perdura ao longo dos outros dois momentos que apresentamos a seguir. Como será detalhado adiante, mudam-se os repertórios discursivos e as estratégias, de acordo com cada contexto e suas tecnologias. No entanto, permanece como a tônica dos movimentos e coletivos de mulheres negras a perspectiva de contribuir para uma sociedade mais justa e igualitária, na qual discriminações intra e intergênero, além do racismo e do classismo não sejam mais uma realidade. Ao se expandir o debate do feminismo negro, também há rupturas de modelos hegemônicos e a construção de novos processos formativos.

Segundo tempo: Advocacy institucional e novas articulações dos campos feministas e antirracistas 10 10 Os dados empíricos e reflexões apresentados na segunda e terceira seções deste artigo foram coletados no âmbito do Projeto “Mulheres Negras em Movimento(s): trajetórias, intersecções e novos cenários para a teoria e práxis feminista negra no Brasil”, financiado pelo CNPq (Processo 432980/2016-4).

Na década de 1990, houve um esforço coletivo para potencializar a incidência política das mulheres negras institucionalmente. A multiplicação de organizações não-governamentais (ONGs) feministas negras (Geledés, Fala Preta!, Criola, Casa de Cultura da Mulher Negra, Nzinga - Coletivo de Mulheres Negras de Belo Horizonte, Maria Mulher, entre outras), a fundação da Rede de Mulheres Afro Latino-Americanas e do Caribe, em 1992, e a participação, inicialmente individual e desconcertada, posteriormente de maneira coletiva e articulada, de feministas negras em importantes conferências internacionais da Organização das Nações Unidas (ONU) fazem parte desse esforço concentrado para gerar impacto institucional de longa duração. Sobre esse momento, Sonia Alvarez ressalta a modificação do repertório discursivo em relação às feministas das décadas anteriores:

[...] em contraste com os primeiros anos do feminismo [feminismo no singular] - muitas mulheres que se proclamam “feministas” hoje não fazem suas intervenções culturais-políticas principal ou exclusivamente dentro de grupos ou organizações feministas autônomas do movimento de mulheres. Em vez disso, na metade dos anos [19]90, muitas feministas afirmavam estar levando seus discursos e práticas de transformação para uma ampla variedade de arenas socioculturais e políticas. E a antiga prática predominante da militância dupla dava lugar a práticas feministas mais integradas destinadas a causar impacto ou transformar de dentro os discursos e práticas político-culturais dominantes (ALVAREZ, 2000ALVAREZ, Sonia. A “globalização” dos feminismos latino-americanos: tendências dos anos 90 e desafios para o novo milênio. In: ALVAREZ, Sonia; DAGNINO, Evelina; ESCOBAR, Arturo (org.). Cultura e política nos movimentos sociais latino-americanos: novas leituras. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000. p. 383-426., p. 391-392).

As ativistas negras perceberam que o Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo e o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, com sede em Brasília, instâncias nas quais concentraram os seus esforços de aproximação institucional na década de 1980, passavam por um período de relativo fechamento às demandas vocalizadas por mulheres negras, como decorrência da chegada ao poder de governos menos progressistas, tanto em nível estadual quanto federal. Ao mesmo tempo, a década de 1990 foi marcada por uma importante inflexão no cenário internacional que impactou positivamente os debates sobre gênero e raça. Esse fenômeno, que gerou efeitos para novas articulações dos campos feministas e antirracistas, pode ser observado a partir de: (i) reformulação das Constituições de aproximadamente 15 países latino-americanos, originando o que alguns autores consideram como “giro multicultural” no subcontinente (RODRIGUES, 2020RODRIGUES, Cristiano. Afro-latinos em movimento: protesto negro e ativismo institucional no Brasil e na Colômbia. Curitiba: Appris, 2020.; PASCHEL, 2016PASCHEL, Tianna. Becoming black political subjects: movements and ethno-racial rights in Colombia and Brazil. Princeton: Princeton University Press, 2016.); (ii) pluralização e globalização dos feminismos latino-americanos, conformando o que Alvarez (2014)ALVAREZ, Sonia. Para além da sociedade civil: reflexões sobre os campos feministas. Cadernos Pagu, Campinas, n. 43, p. 13-56, 2014. conceitua como um processo de sidestreaming do movimento no subcontinente; e (iii) consolidação de redes internacionais de advocacy, que propiciou a alocação de recursos financeiros e o treinamento de ativistas negras brasileiras.

Novos repertórios discursivos vieram a lume, tanto internamente ao movimento quanto em seu percurso rumo a uma maior independência em relação aos movimentos negros e feministas. A confluência de ativistas negras dos mais distintos matizes políticos em torno das reivindicações por ações afirmativas e no campo da saúde e direitos sexuais e direitos reprodutivos demonstra o primeiro momento dessa coalizão discursiva que garantiria consistência e congruência ao movimento de mulheres negras na esfera pública brasileira, ao longo das décadas de 1990 e 2000.

A partir de contatos que algumas ativistas negras estabeleceram com instituições e ONGs internacionais, como a International Women’s Health Coalition, a Fundação MacArthur e a Fundação Ford, a partir dos anos 1980, e, em meados da década de 1990, com a Bank of Boston Foundation, puderam ser estabelecidas importantes iniciativas como o primeiro programa de saúde, além dos projetos Geração XXI e SOS-Racismo, implementados pelo Geledés. Além da instituição paulista, as ONGs Maria Mulher, Criola, Associação Cultural de Mulheres Negras (ACMUN) e Fala Preta! criaram programas de saúde ao longo dos anos 1990.

O Seminário Nacional de Políticas e Direitos Reprodutivos, organizado pelo Geledés e realizado nos dias 21 e 22 de agosto de 1993, em Itapecerica da Serra (SP), foi um marco da organização política de feministas negras. O encontro fazia parte da série de eventos preparatórios para a Conferência Internacional de População e Desenvolvimento, realizada no Cairo, em 1994, e contou com a participação de 55 lideranças ligadas a organizações de mulheres, organizações negras, organizações feministas, universidades e serviços públicos de saúde. Desse seminário saiu a emblemática Declaração de Itapecerica da Serra, que, de acordo com Roland (2000)ROLAND, Edna. O movimento de mulheres negras brasileiras: desafios e perspectivas. In: GUIMARÃES, Antônio Sérgio; HUNTLEY, Lynn. Tirando a máscara: ensaios sobre o racismo no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 237-256., foi assinada por praticamente todas as forças políticas atuantes do movimento de mulheres negras do período. A Declaração afirma que:

O papel do Estado tem se dado basicamente no sentido de tratar a reprodução como uma questão pública e os meios de manutenção da vida - habitação, saúde, educação, alimentação e trabalho - como uma questão privada. Compreender essa inversão de papéis é fundamental nessa conjuntura preparatória da Terceira Conferência Mundial de População [...]. Liberdade reprodutiva é essencial para as etnias discriminadas. Portanto, precisamos lutar para que a reprodução possa ser decidida no mundo do privado, cabendo ao Estado garantir os direitos reprodutivos e assegurar condições para a manutenção da vida (SEMINÁRIO NACIONAL DE POLÍTICAS E DIREITOS REPRODUTIVOS DAS MULHERES NEGRAS, 1993SEMINÁRIO NACIONAL DE POLÍTICAS E DIREITOS REPRODUTIVOS DAS MULHERES NEGRAS. Declaração de Itapecerica da Serra das Mulheres Negras Brasileiras 1993. São Paulo: Geledés/Programa de Saúde, 1993., p. 3, grifo nosso).

A afirmação de que liberdade reprodutiva é fundamental para as mulheres negras representou uma ruptura política com o pensamento hegemônico do Movimento Negro sobre os direitos reprodutivos e quanto aos procedimentos de esterilização cirúrgica empreendidos pelo Estado em larga escala àquele momento. Os direitos reprodutivos e o controle da natalidade vinham enfrentando críticas tanto do Movimento Negro, no sentido de que a mulher negra não poderia se sujeitar ao controle da natalidade, pois o controle via Estado representaria um processo de genocídio da população negra; bem como por parte das feministas, no sentido de que estas defendiam a completa desregulamentação das práticas de controle de natalidade. Todavia, a preocupação das mulheres negras estava relacionada ao direito de escolha que nunca tiveram.

Consideramos que a Declaração de Itapecerica da Serra é um documento fundamental para os rumos do feminismo negro brasileiro por três motivos. Primeiramente, marca o momento inaugural em que feministas negras brasileiras construíram uma decisão política internamente consensual, porém divergente tanto da posição hegemônica do movimento negro quanto do movimento feminista sobre direitos reprodutivos e controle de natalidade (RODRIGUES, 2006RODRIGUES, Cristiano. As fronteiras entre raça e gênero na cena pública brasileira: um estudo da construção da identidade coletiva do movimento de mulheres negras. 2006. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006.). A segunda razão diz respeito ao impacto que o foco em saúde e direitos reprodutivos teve no interior das organizações de mulheres negras daquele momento em diante. A partir do seminário, a maioria das organizações implementou programas de saúde da mulher negra como um de seus principais focos de atenção, recebendo financiamentos para desenvolver projetos nessa área das mais diferentes agências, entre as quais, Ministério da Saúde, ONGs internacionais de mulheres e instituições filantrópicas internacionais.

Além disso, a Declaração de Itapecerica da Serra estabeleceu o primeiro e mais importante espaço de interlocução entre organizações de mulheres negras, o Estado brasileiro, redes internacionais de advocacy e organismos internacionais. Embora algumas ativistas negras tivessem participado da organização do Planeta Fêmea, na Conferência Internacional de Ambiente e Desenvolvimento (Rio de Janeiro, 1992) e da Conferência Internacional de Direitos Humanos (Viena, 1993), tal ação não teve um caráter coletivo, tampouco objetivos e estratégias definidas. Foi somente a partir dos preparativos para a Conferência do Cairo (1994) que a participação coletiva foi sistematizada.

O impacto político que a Declaração de Itapecerica da Serra teve à época foi essencial para que um grupo de ativistas negras participasse do encontro Nossos Direitos no Cairo, em Brasília, em 1993, e da Conferência Saúde Reprodutiva e Justiça, no Rio de Janeiro, em 1994. Alguns itens da declaração foram incorporados ao documento oficial do governo brasileiro enviado ao Cairo, e a Rede Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Reprodutivos indicou uma mulher negra para ser sua representante na Conferência (RIBEIRO, 1995RIBEIRO, Matilde. Mulheres negras brasileiras: de Bertioga a Beijing. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, n. 2, p. 446-457, 1995.; ROLAND, 2000ROLAND, Edna. O movimento de mulheres negras brasileiras: desafios e perspectivas. In: GUIMARÃES, Antônio Sérgio; HUNTLEY, Lynn. Tirando a máscara: ensaios sobre o racismo no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 237-256.).

Para Catalina Zambrano, embora a questão da mulher negra e do racismo não fosse central nas discussões realizadas durante a Conferência do Cairo,

As organizações de mulheres negras também estavam presentes no espaço transnacional em luta por seus direitos. Organizações como Criola no Rio de Janeiro e Geledés em São Paulo, junto com organizações feministas como Cepia no Rio de Janeiro, se posicionaram frente ao tema da saúde da mulher negra, e desde aí o combate ao racismo e ao sexismo na sociedade brasileira assim como o direito à reprodução (ZAMBRANO, 2017ZAMBRANO, Catalina Gonzalez. Mulheres negras em movimento: ativismo transnacional na América Latina (1980-1995). 2017. Tese (Doutorado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017., p. 177-178).

Por fim, o debate público sobre saúde reprodutiva, raça e gênero iniciado no Seminário de Itapecerica da Serra ultrapassou as fronteiras da militância e se tornou tema de pesquisas acadêmicas e de interesse político-institucional, com a criação de Comissões Parlamentares de Inquérito sobre o caráter racial da esterilização em massa realizada no país. As atividades desenvolvidas por ONGs de mulheres negras com o respaldo de instituições acadêmicas, como o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), bem como o suporte financeiro de instituições como a Fundação Ford e a Fundação MacArthur, também foram essenciais para o delineamento de uma agenda de direitos sexuais e direitos reprodutivos (ROLAND, 2001ROLAND, Edna. Saúde reprodutiva da população negra no Brasil: um campo em construção. Perspectivas em Saúde e Direitos Reprodutivos, São Paulo, v. 2, n. 4, p. 17-23, 2001.).

Em 1996, o Ministério da Saúde promoveu uma mesa-redonda sobre saúde da população negra. No entanto, não houve consenso sobre a necessidade de criação de programas de saúde focalizados. O Programa de Anemia Falciforme (PAF) foi considerado uma exceção, por se tratar de uma doença com maior incidência sobre a população negra. Tais dados estatísticos eram suficientemente convincentes para justificar sua prioridade como problema de saúde pública. Em 1997, o governo federal formulou o Programa para Saúde da População Negra. No entanto, o programa não foi implementado, pois não houve alocação de recursos, tampouco definição de um conjunto de diretrizes (ROLAND, 2001ROLAND, Edna. Saúde reprodutiva da população negra no Brasil: um campo em construção. Perspectivas em Saúde e Direitos Reprodutivos, São Paulo, v. 2, n. 4, p. 17-23, 2001.).

Em 2004, já no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e o Ministério de Saúde assinaram um termo de compromisso, cujo intuito era implementar uma Política Nacional de Saúde da População Negra. Como parte desse convênio, foi criado o Comitê Técnico de Saúde da População Negra, que tinha como principal função sistematizar propostas que visassem à promoção da equidade racial na atenção à saúde.

A criação do Comitê foi acompanhada da realização do I Seminário de Saúde da População Negra, que ratificou as propostas contidas no documento Política Nacional de Saúde da População Negra: uma questão de equidade, elaborado por ativistas e pesquisadores negros durante o Workshop Interagencial de Saúde da População Negra, realizado em 2001 (PNUD et al., 2001PNUD et al. Política Nacional de Saúde da População Negra: uma questão de equidade. Documento resultante do Workshop Interagencial de Saúde da População Negra. Brasília: PNUD/OPAS/DFID/UNFPA/UNICEF/UNESCO/UNDCP/UNAIDS/UNIFEM, 2001.). Nele ressalta-se a necessidade de se expandir o acesso da população negra ao sistema público de saúde, a importância da implantação do quesito raça/cor nos formulários oficiais de Declaração de Nascidos Vivos e de Declaração de Óbitos e a necessidade de se desenvolver políticas que atendam às especificidades de saúde dos grupos étnico-raciais (BRASIL, 2009BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: uma política do SUS. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2009.).

Em 2006, o Conselho Nacional de Saúde aprovou a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN). Constam das diretrizes do programa a necessidade de se ater a fatores intrínsecos de determinadas doenças prevalentes na população negra, assim como fatores que determinam a exclusão social, como pobreza e escolaridade. O documento vai além, ao afirmar que há racismo institucional dentro do sistema de saúde pública brasileiro, o que afeta negativamente o atendimento prestado à população negra (BRASIL, 2013BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: uma política para o SUS. 2.ed. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2013.).

Ainda na primeira metade da década de 1990, a mobilização em torno da 4ª Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Pequim, em 1995, contribuiu para o desenvolvimento de estratégias de incidência política em instituições formais do Estado, que orientou as ações das organizações de mulheres negras até a década seguinte. As ativistas negras participaram de todos os fóruns estaduais preparatórios para a Conferência Mundial, conseguindo ampla visibilidade para suas questões. Além disso, compareceram em número expressivo à Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras, no Rio de Janeiro, em junho de 1995. Dessa forma, conseguiram que a temática racial fosse incorporada aos documentos da Conferência de Mulheres Brasileiras para Pequim e também no documento oficial do governo brasileiro.

Durante a 4ª Conferência Mundial sobre a Mulher, a intervenção das ativistas negras levou a discussão acerca da questão racial para um patamar mundial. Explicitou-se que o racismo se manifesta com maior ou menor intensidade em todas as sociedades, hierarquizando a relação entre grupos sociais racializados, privilegiando pessoas brancas em detrimento das demais. Considerou-se que o racismo não está circunscrito a uma região ou cultura, sendo, amiúde, o fator determinante para a exclusão social.

Ativistas negras brasileiras e de outras partes do mundo, em alguma medida influenciadas pelas teorias do standpoint e pelo feminismo negro norte-americano, criticavam uma noção essencialista de identidade amplamente atrelada às práticas feministas. O embate se deu entre as feministas negras e brancas, em que aquelas buscavam inserir as categorias raça e classe como articuladoras do conceito de gênero. Feministas negras buscavam “desessencializar” identidades universalizadas a partir de mulheres brancas e de classe média europeias, difundidas a partir dos anos 1970, que explicitavam uma profunda ignorância quanto às demais mulheres do mundo, sua pluralidade, seu contexto, suas vivências (WERNECK, 2008WERNECK, Jurema. De Ialodês e feministas: reflexões sobre a ação política das mulheres negras na América Latina e Caribe. 2008. Disponível em: Disponível em: http://mulheresrebeldes.blogspot.com/2008/10/de-ialods-e-feministas.html . Acesso em: 29 maio 2015.
http://mulheresrebeldes.blogspot.com/200...
). Isso explica por que, mesmo entre as mulheres negras, não haveria uma unidade e um consenso perenes, uma vez que a condição de especificidade não é dada a priori, e sim construída e legitimada na luta política. As mulheres negras devem ser compreendidas em sua diversidade, embora as desigualdades que as marquem tenham origem comum na inferiorização e na exploração (WERNECK, 2008WERNECK, Jurema. De Ialodês e feministas: reflexões sobre a ação política das mulheres negras na América Latina e Caribe. 2008. Disponível em: Disponível em: http://mulheresrebeldes.blogspot.com/2008/10/de-ialods-e-feministas.html . Acesso em: 29 maio 2015.
http://mulheresrebeldes.blogspot.com/200...
).

A III Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância (III CMR), realizada de 31 de agosto a 8 de setembro de 2001, em Durban, África do Sul, constituiu outro marco fundamental. Isso se deve tanto por seus desdobramentos para o contexto nacional quanto por ser a ocasião na qual se materializou a estratégia das ativistas negras brasileiras de incidir politicamente em instituições formais do Estado e na elaboração de políticas públicas. A luta por políticas de ação afirmativa foi ganhando corpo dentro das organizações negras ao longo da década de 1990, fazendo-se central a partir da III CMR, em que as mais diversas organizações se aglutinaram em torno de tais reivindicações, tornando o diálogo com o Estado cada vez mais intenso.

Os eventos preparatórios para Durban acentuaram o protagonismo das feministas negras, que haviam participado de outros eventos internacionais nos anos 1990 e criado importantes ONGs em diferentes regiões do país, adquirindo, assim, bastante experiência de atuação em conferências internacionais promovidas pela ONU. Na série de Conferências Preparatórias (PrepCom) para a III CMR, demonstraram maior capacidade organizativa e conhecimento dos mecanismos para influenciar as negociações. Em decorrência disso, a delegação brasileira foi a maior entre todas as presentes em Durban, contando com aproximadamente 600 integrantes; e a função de Relatoria Geral, a segunda na hierarquia da III CMR, foi ocupada por Edna Roland, que à época presidia a ONG Fala Preta!. Ademais, a negociação para que a utilização do termo “afrodescendente” para definir os descendentes de africanos negros escravizados fora da África e a proposição de políticas de ação afirmativa para afrodescendentes foram conseguidas graças ao empenho de ativistas negras brasileiras, conforme explica Roland (em entrevista concedida a Rodrigues, em 07/01/2006RODRIGUES, Cristiano. As fronteiras entre raça e gênero na cena pública brasileira: um estudo da construção da identidade coletiva do movimento de mulheres negras. 2006. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006.):

A partir da experiência que eu tinha tido anteriormente no Cairo, eu sabia que a coisa fundamental era passar informação para que o embaixador brasileiro defendesse as posições que nos interessassem. E, com isso, ele chegou ao ponto de solicitar que eu, em alguns momentos, falasse pelo Brasil, e me enviou também para negociar textos que estão na Declaração de Santiago. Por exemplo, o conceito de afrodescendente foi negociado lá em Santiago do Chile, porque, em outros países da América Latina, o termo negro é considerado pejorativo, e nós tínhamos que considerar uma palavra que fosse consensual, que todos os países aceitassem. É daí que, a partir de Santiago, nós passamos a ser denominados, internacionalmente, como afrodescendentes. Mas, exatamente com o sentido de negro. Não é outra coisa, não é outra população. (ROLAND, 2006ROLAND, Edna. Entrevista concedida a Cristiano Rodrigues. 7 jan. 2006., s. p.).

A aprovação da Declaração e do Programa de Ação de Durban, nos quais a maioria das reivindicações elaboradas na Conferência Preparatória Regional das Américas, ocorrida em Santiago do Chile, foi incorporada, representa de maneira inequívoca o protagonismo das mulheres negras brasileiras, já que foram elas as principais responsáveis por influenciar para que a Declaração de Santiago contivesse a exigência de ações afirmativas. A III CMR também reconheceu os problemas específicos das mulheres negras e as múltiplas formas de discriminação a que estão submetidas.

O pós-Durban teve dois resultados imediatos: um, no campo das formulações teóricas, e outro, no padrão de interação política entre feministas negras e a burocracia estatal. Ana Claudia Pereira (2016)PEREIRA, Ana Claudia Jaquetto. Pensamento social e político do movimento de mulheres negras: o lugar de ialodês, orixás e empregadas domésticas em projetos de justiça social. 2016. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2016. afirma que a incorporação do termo interseccionalidade à literatura acadêmica brasileira foi impulsionada por um contexto em que as redes de articulação de feministas negras ganhavam expressividade, graças ao protagonismo que desempenharam na Conferência de Durban. Para a autora, os primeiros textos a trazer o conceito de interseccionalidade em um periódico brasileiro foram publicados um ano após a realização da conferência. Luiza Bairros editou a seção “Dossiê” da Revista Estudos Feministas, sobre a conferência, em que foram publicados um texto de Kimberlé Crenshaw e outro de Maylei Blackwell e Nadine Naber, lidando com diferentes aspectos do conceito de interseccionalidade. Surgiu daí uma profusão de artigos de feministas brasileiras incorporando o conceito de interseccionalidade a suas análises.

Compreendemos o termo “interseccionalidade” do mesmo modo que o fazem Rios, Perez e Ricoldi (2018, p. 49)RIOS; Flavia; PEREZ; Olívia; RICOLDI; Arlene. Interseccionalidade nas mobilizações do Brasil contemporâneo. Lutas Sociais, São Paulo, v. 22, n. 40, p. 36-51, 2018.: como “um novo paradigma interpretativo do social e da política”, cujo objetivo é superar “antigos antagonismos identitários”, ao mesmo tempo em que favorece “novas bases dialógicas para o enfrentamento das múltiplas dimensões” das desigualdades sociais. Em complementação, ao abordar “interseccionalidade”, também estamos considerando as noções de experiência, em meio a processos de “cidadanização” dos sujeitos políticos dos movimentos e de sua participação socioestatal (FACCHINI; CARMO; LIMA, 2020FACCHINI, Regina; CARMO, Íris Nery do; LIMA, Stephanie Pereira. Movimentos feministas, negro, LGBTI no Brasil: sujeitos, teias e enquadramentos. Educação & Sociedade, Campinas, v. 41, p. 1-22, 2020.).

Marlise Matos e Solange Simões (2018)MATOS, Marlise; SIMÕES, Solange. Emergence of intersectional activist feminism in Brazil: the interplay of local and global contexts. In: BONIFACIO, Glenda Tibe (ed.). Global currents in gender and feminisms: Canadian and international perspectives. Bingley: Emerald Publishing Limited, 2018. p. 35-47. destacam que a quarta onda do feminismo, que engloba os anos 2000 em diante, tem a interseccionalidade como um de seus destaques na compreensão dos sujeitos e de repertório discursivos desse momento. Segundo as autoras, também são características da quarta onda: (i) institucionalização de demandas de mulheres e feministas e monitoramento de políticas públicas; (ii) criação de novos mecanismos para tais políticas em nível nacional, estadual e local; (iii) criação e implementação de ONGs e redes feministas, especialmente sob influência transnacional; (iv) criação de novos espaços e novos repertórios de ação correlatos à perspectiva transnacional, como ativismo on-line e atuação de feministas jovens e movimentos autonomistas, via plataformas digitais, como Facebook e Twitter. Também, de acordo com as autoras, pela primeira vez, há um reconhecimento de “outros feminismos”, profundamente entrelaçados e, por vezes, controversos no que tange a lutas locais, nacionais e mundiais por justiça social, sexual, geracional, comunitária e racial. Em outras palavras, trata-se do momento de expansão de fluxos horizontais e interseccionais dos feminismos (MATOS; SIMÕES, 2018MATOS, Marlise; SIMÕES, Solange. Emergence of intersectional activist feminism in Brazil: the interplay of local and global contexts. In: BONIFACIO, Glenda Tibe (ed.). Global currents in gender and feminisms: Canadian and international perspectives. Bingley: Emerald Publishing Limited, 2018. p. 35-47.).

A partir do impacto de Durban, a Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB) produziu um dossiê e um plano de ação estratégica com propostas a serem entregues aos ministérios que consideravam os mais importantes - Previdência, Trabalho, Saúde e Educação -, a fim de ampliar os espaços de interlocução com agentes governamentais. Feministas negras consideravam, então, que, para além de exigirem medidas específicas, seria fundamental ter condições de interferir transversalmente na agenda governamental, para que ações voltadas a mitigar desigualdades raciais e de gênero fossem conduzidas em todas as esferas.

Entre 2003 e 2010, durante a administração de Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), houve uma série de medidas institucionais, programas e políticas públicas dirigidas à promoção da igualdade racial e de gênero. Ainda que o Movimento Negro e o Movimento de Mulheres Negras já viessem construindo um acúmulo de discussões em torno dos efeitos perversos do racismo e do sexismo sobre a população negra, deu-se de maneira mais contínua a partir da chegada do PT ao poder central a passagem do campo das discussões para o das proposições e implementações de políticas públicas específicas para afrodescendentes.

As organizações de mulheres negras, que, desde a década de 1990, vinham passando por processos de especialização funcional (voltados para a criação de subáreas de atuação dentro do movimento) e de profissionalização (relacionados à integração de profissionais temporários e ao treinamento de ativistas em temas estratégicos), passaram a exercer maior influência junto às instituições estatais, procurando traduzir os discursos e estratégias ativistas para uma linguagem estatal, especialmente a partir de 2003. Concomitantemente, no âmbito da administração federal, foram criadas a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) e a SEPPIR, ainda no primeiro ano do governo Lula.

Nesse novo cenário político, caracterizado por maior permeabilidade institucional, as ativistas negras passaram a ter um papel mais importante nas interlocuções com o Estado. Entretanto, a intenção vocalizada pela AMNB de interferir transversalmente na agenda governamental não aconteceu da forma esperada. A maioria das políticas adotadas pelo Poder Executivo durante a administração petista ocorreu via SEPPIR e, em menor grau, pela SPM. Conforme demonstra Cristiano Rodrigues (2020)RODRIGUES, Cristiano. Afro-latinos em movimento: protesto negro e ativismo institucional no Brasil e na Colômbia. Curitiba: Appris, 2020., mesmo nessas secretarias, as ações estiveram concentradas em produzir estudos exploratórios que servissem para subsidiar a elaboração de políticas públicas e na contratação de consultorias especializadas. Não por acaso, a SEPPIR foi chefiada, em três ocasiões, por mulheres negras - Matilde Ribeiro (2003-2008), Luiza Bairros (2011-2014) e Nilma Lino Gomes (2015-2016) - que estiveram envolvidas direta ou indiretamente na criação e consolidação de organizações de mulheres negras no país nos anos 1980 e 1990, ao passo que apenas mulheres brancas estiveram à frente da SPM no mesmo período.

A partir do final do segundo mandato do governo Lula, novos contornos políticos acarretaram numa mudança drástica na relação entre Estado e movimentos sociais. O panorama político, até então promissor, tornou-se incerto, quadro que se acentuou no governo Dilma Rousseff. Foi durante as eleições de 2010 e, em especial, nas de 2014, que a pauta de costumes ganhou uma centralidade política e, devido a uma disputa pelo eleitorado médio, os principais partidos brasileiros fizeram uma opção deliberada por mover-se na linha do conservadorismo.

O afastamento da presidenta Dilma Rousseff, via impeachment, em 31 de agosto 2016, intensificou esse cenário de incerteza, acirrando a crise política e institucional, sobretudo para os grupos sociais mais vulneráveis. Não por acaso, uma das primeiras medidas adotadas pelo governo que sucedeu à administração petista foi uma reforma ministerial que extinguiu, entre outras pastas, o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, criado em outubro de 2015, a partir da unificação da SEPPIR, da SPM e da Secretaria Especial de Direitos Humanos. Diante do fechamento do governo federal à agenda do movimento de mulheres negras, perderam centralidade o repertório discursivo forjado a partir dos anos 1990 e as estratégias de advocacy voltadas para as articulações com as burocracias estatais e organismos multilaterais de cooperação.

Terceiro tempo: feminismo interseccional, movendo estruturas, pelo bem viver

Nos anos 1990 e 2000, houve, conforme descrevemos na seção anterior, um processo de “onguização” dos coletivos de mulheres negras (ALVAREZ, 1998ALVAREZ, Sonia. Feminismos latinoamericanos. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 6, n. 2, p. 265-285, 1998.; RODRIGUES; PRADO, 2013RODRIGUES, Cristiano; PRADO, Marco Aurélio. A history of the black women’s movement in Brazil: mobilization, political trajectory and articulations with the state. Social Movement Studies, London n. 12, p.158-177, 2013.). Geledés e Maria Mulher foram as primeiras organizações a se constituírem a partir desse formato, sendo seguidas por várias outras. As ONGs de mulheres negras (e de outros movimentos sociais também) guardam, do ponto de vista das estratégias políticas e de seus repertórios discursivos, quatro aspectos distintivos em relação aos coletivos autônomos.

Primeiro, as integrantes das ONGs têm níveis educacionais e socioeconômicos mais elevados do que aqueles observados entre ativistas negras de grupos autônomos. Segundo, ONGs são compostas por um corpo de profissionais assalariados em vez de voluntários. Terceiro, em decorrência de seu maior grau de burocratização e foco em estratégicas de advocacy, as ONGs de mulheres negras passaram, desde os anos 1990, a produzir documentos voltados a impactar determinados espaços de formulação e implementação de políticas governamentais. Por fim, devido a relações de colaboração/parceria com redes transnacionais, organismos internacionais de regulação e a burocracia estatal, as ONGs afastam-se das estratégias de confronto, convertendo-se, essencialmente, em prestadoras de serviços para seu público.

A partir de meados da década de 2000, as ONGs começaram a perder o seu lugar de centralidade por um conjunto de razões, entre elas, a criação de novas instituições participativas e programas governamentais voltados à diminuição das desigualdades, durante a administração petista, e o reposicionamento do país na economia global, que chegou a ser a sétima maior economia do mundo. Tal reposicionamento fez com que ONGs internacionais e diversas agências da ONU reduzissem o financiamento de projetos sociais ou encerrassem suas atividades no país.

A contínua perda de centralidade das ONGs de mulheres negras ocorre simultaneamente à ascensão de novos formatos de ativismo. O recrudescimento de estratégias de resistência/confronto ao Estado e o fenômeno chamado por algumas intelectuais negras de “ocupação da política”, em que um número crescente de mulheres negras tem optado por concorrer a vagas no Legislativo, ilustram a ascensão desses novos formatos de ativismo. Mala Htun (2014)HTUN, Mala. Political inclusion and representation of afrodescendant women in Latin America. In: ESCOBAR-LEMMON, Maria C.; TAYLOR-ROBINSON, Michelle M. (orgs). Representation: the case of women. Oxford: Oxford University Press, 2014. p.118-134. , em um estudo comparativo sobre representação política de mulheres afrodescendentes na América Latina, aponta para o fato de que elas atuam como “surrogate representatives” (MANSBRIDGE, 2003MANSBRIDGE, Jane. Rethinking representation. American Political Science Review, Cambridge, v. 97, n. 4, p. 515-528, 2003.), pois a sua mera presença em espaços de poder potencializa a visibilidade de identidades sociais e experiências comuns a outros grupos subalternizados, os quais são constantemente suprimidos da esfera pública em decorrência do racismo, do sexismo e de outras formas de opressão.

Marcha das mulheres negras contra o racismo, a violência e pelo bem viver

De acordo com Rosália Lemos (2016)LEMOS, Rosalia de Oliveira. Do Estatuto da Igualdade Racial à Marcha das Mulheres Negras, 2015: uma análise das feministas negras brasileiras sobre políticas públicas. 2016. Tese (Doutorado em Política Social) - Escola de Serviço Social, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016. , a mobilização em torno da realização da Marcha das Mulheres Negras pode ser creditada ao fortalecimento das organizações de mulheres negras, à participação de novas jovens lideranças e à rearticulação de organizações que estavam inativas. A autora destaca, ainda, que a ideia de construção de uma Marcha de Mulheres Negras surgiu em 1992, durante o I Encontro de Mulheres Afro Latino-Americanas e do Caribe, em San Domingo, na República Dominicana, ocasião em que se instituiu o dia 25 de julho como o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. Mas a iniciativa ganhou mais força duas décadas depois, em 2011, durante o encontro paralelo da sociedade civil para o Afro XXI: Encontro Ibero-Americano do Ano dos Afrodescendentes. Em 2013, durante a 3ª Conferência Nacional de Promoção de Igualdade Racial, o formato da Marcha e a sua data de realização foram oficialmente estabelecidos.

Em 2014, o Comitê Impulsor Nacional da Marcha lançou um manifesto, no qual apresentou suas propostas e reivindicações, entre elas: fim do feminicídio de mulheres negras, fim do racismo e do sexismo nos meios de comunicação, garantia de acesso à saúde de qualidade às mulheres negras, titulação das terras quilombolas e fim da intolerância religiosa (MANIFESTO..., 2014MANIFESTO da Marcha das Mulheres Negras 2015 contra o Racismo e a Violência e pelo Bem Viver. Portal Geledés, [On-line], 2014. Mulher Negra. Disponível em: Disponível em: https://www.geledes.org.br/manifesto-da-marcha-das-mulheres-negras-2015-contra-o-racismo-e-violencia-e-pelo-bem-viver/ . Acesso em: 4 out. 2020.
https://www.geledes.org.br/manifesto-da-...
). Lemos (2016)LEMOS, Rosalia de Oliveira. Do Estatuto da Igualdade Racial à Marcha das Mulheres Negras, 2015: uma análise das feministas negras brasileiras sobre políticas públicas. 2016. Tese (Doutorado em Política Social) - Escola de Serviço Social, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016. chama atenção para o fato de que, em nenhum momento, o Manifesto se reporta ao feminismo negro. Para a autora, a incorporação posterior do feminismo negro ao longo do processo de organização da Marcha indica, por um lado, que, até aquele momento, ainda não havia acúmulo suficiente de debate para que o tema fosse incorporado pelas ativistas negras que propuseram e lideraram a manifestação. Por outro lado, a introdução do tema nas etapas de organização e mobilização da Marcha também sugere o amadurecimento e a influência cada vez maior do feminismo negro brasileiro.

A Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo, a Violência e pelo Bem Viver ocorreu em 18 de novembro de 2015, em Brasília, com a participação de aproximadamente 30 mil pessoas. Segundo Nadine Nascimento (2016)NASCIMENTO, Nadine. Marcha das Mulheres Negras comemora um ano com programação online de 12 horas. Brasil de Fato, São Paulo, 2016. Disponível em: Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2016/11/17/marcha-de-mulheres-negras-comemora-um-ano-com-programacao-online-de-12-horas . Acesso em: 1 set. 2020.
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, a mobilização assumiu um significado múltiplo: (i) denúncia do racismo e do genocídio da população negra; (ii) ruptura de estereótipos de não ser padrão de beleza; (iii) denúncia da exclusão, da pobreza, do feminicídio, da violência; (iv) ruptura das memórias da escravidão, ainda tão presentes no cotidiano das mulheres negras, independentemente da posição social que ocupem na sociedade brasileira. Ao falar sobre violência e racismo, as idealizadoras pretendiam dar visibilidade ao genocídio da população negra, que afeta desproporcionalmente jovens negros de periferia, vítimas da violência policial, e ao aumento dos índices de violência de gênero contra mulheres negras. Já o bem viver, conceito oriundo dos povos originários dos Andes, reflete tanto a permanência do pacto de irmandade celebrado entre mulheres negras e indígenas, quando da realização da 1ª Conferência de Políticas para as Mulheres, quanto a necessidade da constituição de um novo pacto civilizatório (NASCIMENTO, 2016NASCIMENTO, Nadine. Marcha das Mulheres Negras comemora um ano com programação online de 12 horas. Brasil de Fato, São Paulo, 2016. Disponível em: Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2016/11/17/marcha-de-mulheres-negras-comemora-um-ano-com-programacao-online-de-12-horas . Acesso em: 1 set. 2020.
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).

A Carta das Mulheres Negras (2015)CARTA das Mulheres Negras. Portal Geledés, [On-line], 2015. Disponível em: Disponível em: https://www.geledes.org.br/carta-das-mulheres-negras-2015/ . Acesso em: 27 mar. 2020.
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, entregue à presidenta Dilma Rousseff logo após a realização da Marcha, propõe a construção coletiva de “outra dinâmica de vida e ação política, que só é possível por meio da superação do racismo, do sexismo e de todas as formas de discriminação, responsáveis pela negação da humanidade de mulheres e homens negros”. Entre as reivindicações da carta, estão: (i) direito à vida e à liberdade; (ii) promoção da igualdade racial; (iii) direito ao trabalho, ao emprego e à proteção das trabalhadoras negras em todas as atividades; (iv) direito à terra, ao território e à moradia/direito à cidade; (v) justiça ambiental, defesa dos bens comuns e a não-mercantilização da vida.

A Marcha não apenas sintetiza as principais reivindicações encabeçadas por ativistas negras brasileiras desde os anos 1980 como também incorpora novos sujeitos à sua luta política pelo fim de opressões entrecruzadas. Evidencia como o racismo, o sexismo, o classismo e outras formas de hierarquização social impossibilitam que mulheres negras sejam reconhecidas enquanto iguais em termos de direitos de cidadania - também incluído aqui o acesso a recursos materiais e simbólicos - e, por isso, reivindicam a construção coletiva de outro pacto civilizatório.

Do feminismo negro ao feminismo interseccional?

Em sua análise sobre o feminismo negro brasileiro, Flavia Rios e Regimeire Maciel (2018)RIOS, Flavia; MACIEL, Regimeire. Feminismo negro em três tempos: mulheres negras, negras jovens ativistas e feministas interseccionais. Labrys, Brasília, n. 1, p. 120-140, 2018. afirmam que a realização do I Encontro de Negras Jovens Feministas, em 2009, na cidade de Salvador (BA), revela o quanto a estrutura de oportunidades políticas abertas pelo Estado durante a administração petista, com a criação de novas institucionalidades, entre elas, a SEPPIR, a SPM e o Conselho Nacional da Juventude (CONJUVE), também contribuiu para a constituição de outros formatos de ativismo. As autoras demonstram, ainda, como a articulação de negras jovens feministas representa uma ruptura com formatos de ativismo e repertórios discursivos anteriores. De maneira complementar, Cristiano Rodrigues e Mariana Assis (2018)RODRIGUES, Cristiano; ASSIS, Mariana Prandini. Academic feminism and exclusion in Brazil: bringing back some of the missing voices. In: KAHLERT, Heike (ed.). Gender studies and the new academic governance. Berlin: VS, 2018. p. 153-178. afirmam que a ascensão das jovens feministas negras e de pautas interseccionais pode ser creditada aos seguintes fatores: (i) crescente popularização do paradigma interseccional; (ii) políticas de ação afirmativa que permitiram maior inclusão de mulheres negras nas universidades públicas; e (iii) alteração no modelo interpretativo sobre opressão, com o deslocamento do eixo analítico de gênero/classe para a tríade racismo-sexismo-homo/lesbo/transfobia.

É o momento em que Regina Facchini, Íris Carmo e Stephanie Lima (2020, p. 13)FACCHINI, Regina; CARMO, Íris Nery do; LIMA, Stephanie Pereira. Movimentos feministas, negro, LGBTI no Brasil: sujeitos, teias e enquadramentos. Educação & Sociedade, Campinas, v. 41, p. 1-22, 2020., com base em Gomes (2018)GOMES, Carla de Castro. Corpo, emoção e identidade no campo feminista contemporâneo brasileiro: A Marcha das Vadias do Rio de Janeiro. 2018. Tese (Doutorado em Sociologia e Antropologia) - Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018, localizam o repertório discursivo de “corpos-bandeira”, no sentido de pensar e agir a partir de “coreografias transgressoras”, com ênfase nas identidades, nas experiências e no essencialismo estratégico. Além disso, de acordo com pesquisa realizada em meados da década de 2010, as/os jovens ativistas feministas e/ou LGBTQ+, que têm na internet um grande aliado para a difusão de discursos, recusam o uso da categoria “movimento social” atrelado à sua ação política. Há, ainda, uma descrença quanto à relação entre Estado e organizações da sociedade civil, seja devido à institucionalização dos movimentos sociais, seja à representação política, uma vez que não se acredita na obtenção de direitos via diálogo com instâncias governamentais. Reconhecendo as limitações da categoria “movimentos sociais” e dos sentidos e conceitualizações a ela pertinentes, as autoras apontam que a expressão “rolê feminista”, cunhada por Carmo (2018)CARMO, Íris Nere do. O rolê feminista: Autonomia, horizontalidade e produção de sujeito no campo feminista contemporâneo. 2018. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2018., seja analiticamente mais adequada para expressar os “processos de formação via vivência, que se dão por meio de situações compartilhadas no cotidiano”, sem hierarquização, orientados pela autonomia e o “faça você mesma” como pedagogia política (FACCHINI; CARMO; LIMA, 2020FACCHINI, Regina; CARMO, Íris Nery do; LIMA, Stephanie Pereira. Movimentos feministas, negro, LGBTI no Brasil: sujeitos, teias e enquadramentos. Educação & Sociedade, Campinas, v. 41, p. 1-22, 2020., p. 10). A estratégia do rolê estaria centrada na ocupação da rua, das redes e do corpo, com experimentações coletivas que desafiam a fronteira sempre tênue do público-privado e a relação tempo-espaço (FACCHINI; CARMO; LIMA, 2020FACCHINI, Regina; CARMO, Íris Nery do; LIMA, Stephanie Pereira. Movimentos feministas, negro, LGBTI no Brasil: sujeitos, teias e enquadramentos. Educação & Sociedade, Campinas, v. 41, p. 1-22, 2020.).

Foi nesse cenário de emergência dos “corpos-bandeira” que ocorreu a criação do coletivo Blogueiras Feministas (BF)11 11 Disponível em: https://blogueirasfeministas.com/about/nossa-memoria/. Acesso em: 27 mar. 2020. , no segundo semestre de 2010. Embora não seja o primeiro projeto de feministas brasileiras a se utilizar das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) para ampliar o seu campo de intervenção, a emergência do BF ilustra bem a mudança intergeracional e a alteração nas estratégias políticas e repertórios discursivos do campo feminista em geral. O BF se insere em uma das vertentes dos feminismos de quarta onda, conforme definição proposta por Matos e Simões (2018)MATOS, Marlise; SIMÕES, Solange. Emergence of intersectional activist feminism in Brazil: the interplay of local and global contexts. In: BONIFACIO, Glenda Tibe (ed.). Global currents in gender and feminisms: Canadian and international perspectives. Bingley: Emerald Publishing Limited, 2018. p. 35-47., detalhada na seção anterior, pois envolve a emergência de novos repertórios de ação e lócus de intervenção política, em fluxos horizontais, com destacada atuação de feministas jovens e movimentos autonomistas, via plataformas digitais. Desde a sua criação, centenas de mulheres já publicaram textos no blog, abrangendo uma pletora de temas que intersectam esferas pessoais, sociais e políticas. Seu caráter inovador reside em duas estratégias discursivas amplamente utilizadas pelas jovens feministas. Primeiro, a adequação linguística e estética de seus posts a diferentes redes sociais. Blogs, Twitter, Facebook, Youtube e Instagram são os espaços de intervenção privilegiados por essas ativistas. Como cada uma dessas plataformas atinge públicos diversos, ainda que com elevado grau de justaposição, é fundamental o domínio de diferentes linguagens. Jovens feministas estão mais bem qualificadas e adaptam mais facilmente os seus repertórios discursivos para incidir sobre esses espaços. O uso de hashtags (alguns exemplos que se tornaram virais nos últimos anos: #primeiroassedio, #meuamigosecreto, #seraqueéracismo), tuitaços e blogagens coletivas também se constituem em estratégias inovadoras.

O BF serviu de incubadora para a criação de vários outros coletivos nas redes. Inicialmente, algumas jovens feministas negras contribuíram para o blog. Porém, em um fenômeno que Cathy Cohen (1999)COHEN, Cathy J. The boundaries of blackness: AIDS and the breakdown of black politics. Chicago: University of Chicago Press, 1999. chama de marginalização secundária - ou seja, quando as diferenças internas entre integrantes de grupos subalternizados acabam se convertendo em hierarquias e na reprodução da marginalização exterior -, feministas negras começaram a alertar para as suas invisibilizações no BF. Em 2011, Luana Tolentino, que, naquele momento, era uma das articulistas do blog, escreveu um post afirmando que, entre os 282 textos ali publicados até aquele dia (25/08/2011), apenas três discutiam o binômio gênero e raça, sendo que dois eram de sua autoria12 12 Disponível em: https://blogueirasfeministas.com/2011/08/25/mulheres-negras-cade/ Acesso em: 27 mar. 2020 .

A criação do Blogueiras Negras (BN)13 13 Disponível em: http://blogueirasnegras.org/quem-somos/ Acesso em: 27 mar. 2020 , em 2012, a partir da Blogagem Coletiva da Mulher Negra, também trouxe algumas inovações discursivas. À semelhança do que ocorreu nos anos 1980, a busca das feministas negras por construir plataformas específicas para vocalizar suas questões surgiu em reação a práticas de subalternização dentro do movimento feminista. O que distingue o BN de outros grupos que o seguiram é o formato e o conteúdo de suas reivindicações, já que as pautas são menos institucionais, caracterizadas pelo surgimento de coletivos que não priorizam como estratégia manter um diálogo cooperativo com o Estado e cujos repertórios discursivos são forjados em blogs, mas também em páginas (individuais e coletivas) no Facebook e, em menor grau, em perfis no Twitter, Instagram e Youtube, além de outras redes sociais.

O vocabulário e a prática desses grupos diferem bastante do padrão de ativismo institucional empregado por ativistas negras das décadas anteriores. A influência de jovens feministas negras vai além da militância via redes sociais. O recrudescimento de repertórios discursivos voltados para as “organizações de base”, como eram chamados os grupos de conscientização e formação política que foram o alicerce de vários movimentos sociais nas décadas de 1970 e 1980, é fruto do esforço de jovens negras de diferentes regiões do país.

O processo de reivindicação e afirmação feminista negra no interior da cultura hip hop tem sido responsável, segundo Sílvia Castro (2016)CASTRO, Silvia Lorenso. Elizandra Souza: escrita periférica em diálogo transatlântico. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 49, p. 51-77, 2016., por inovar o universo da produção cultural e literária das periferias brasileiras. Alguns grupos de rap liderados por mulheres, como o Coletivo Hip Hop Chama e o Negras Ativas, ambos de Belo Horizonte, desenvolveram desde a sua criação importantes campanhas contra o machismo e a favor do empoderamento de mulheres. Além disso, serviram de plataforma inicial para que algumas jovens feministas negras vislumbrassem carreiras políticas em espaços formais de participação. Áurea Carolina, uma das fundadoras do Coletivo Hip Hop Chama, foi convidada a participar do Conselho Municipal da Juventude em 2005 e, desde então, vem construindo uma trajetória na política institucional, culminando com a sua eleição para deputada federal em 2018. Larissa Amorim Borges, que integrava o grupo Negras Ativas, tem conciliado o ativismo em espaços informais com a ocupação de cargos no Executivo - como se verá, uma constante também para outras ativistas. Borges participou da equipe de Coordenação do Plano Juventude Viva, na Secretaria Nacional de Juventude/Presidência da República (2012-2015) e foi subsecretária estadual de Direitos para as Mulheres, durante o mandato do governador Fernando Pimentel (PT), em Minas Gerais (2015-2018).

É nos saraus da periferia que a afirmação feminista negra tem encontrado o seu principal espaço de ressonância para um público mais amplo. Os saraus podem ser definidos como reuniões em locais públicos de bairros periféricos das cidades (bares, restaurantes, centros comunitários etc.), em que participantes declamam ou leem textos próprios ou de outros, diante de um microfone. O Slam das Minas14 14 Disponível em: https://slamdasminas.wordpress.com/. Acesso em: 27 mar. 2020. , competição de poesia falada fundada em Brasília e que se expandiu pelo país, foi um dos espaços constituídos especificamente para mulheres, em sua maioria negras, poderem apresentar as próprias poesias, ao constatarem que tinham pouca visibilidade nos slams já existentes. Castro (2016)CASTRO, Silvia Lorenso. Elizandra Souza: escrita periférica em diálogo transatlântico. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 49, p. 51-77, 2016. afirma que, para entender o impacto da obra produzida por essas mulheres, é necessário considerar uma multiplicidade de elementos: os mecanismos alternativos de comunicação comunitária, a cultura hip hop e os saraus.

A Aparelha Luzia15 15 Disponível em: https://www.facebook.com/aparelhaluzia/. Acesso em: 27 mar. 2020. , centro cultural e quilombo urbano de São Paulo, criada em 2016 pela artista plástica e educadora Erica Malunguinho, segue esse padrão de feminismo interseccional voltado à ampliação do debate sobre raça e gênero, para além da academia ou de espaços típicos de classe média. A própria região em que a Aparelha se localiza - bairro Campos Elíseos, região central da capital paulista - é reivindicada pela educadora como a retomada de um patrimônio histórico, que considera como uma reintegração de posse. O nome do local e a sua proposta de se tornar um quilombo urbano demonstram a continuidade de um traço fundamental das organizações negras brasileiras: a indissociabilidade das dimensões culturais e políticas no ativismo antirracista. Aparelha é a versão feminina dos aparelhos, células de resistência contra a ditadura militar, e Luzia, por sua vez, remete ao fóssil mais antigo já encontrado nas Américas. De acordo com a sua idealizadora, o espaço é um lugar para se propalar da política do cotidiano para atingir lugares institucionais, bem como para que negras e negros possam escrever suas próprias narrativas".

O Festival Latinidades, idealizado pela jornalista, estilista e produtora cultural Jaqueline Fernandes e sediado em Brasília de 2008 a 2017, consolidou-se como mais um significativo espaço de diálogo interseccional. Em 2019, a 12ª edição, realizada em São Paulo, teve como tema a “Reintegração de Posse”, em referência à necessidade de a população negra não apenas conquistar espaços, mas de reintegrar dimensões que são e que não são reconhecidas como suas características, como o pensamento. Essa foi uma das bandeiras da historiadora e ativista negra Beatriz Nascimento, homenageada da edição. O Latinidades foi criado para dar visibilidade ao Dia da Mulher Afro Latino-Americana e Caribenha. Jaqueline Fernandes também foi subsecretária de Cidadania e Diversidade Cultural, da Secretaria de Cultura do Distrito Federal, durante o mandato do governador Rodrigo Rollemberg (PSB-DF), de 2015 a 2018.

O festival desenvolve atividades de cunho intelectual, cultural e artístico, além de promover formação e capacitação em empreendedorismo, economia criativa e comunicação. Até 2017, realizou-se anualmente, passando a ser bienal na edição seguinte (2019) e voltando a ser promovido em 2020, com o tema “Utopias Negras”, totalmente on-line, devido à pandemia da Covid-19. O auge de sua popularidade e internacionalização ocorreu em 2014, quando aproximadamente 1 mil pessoas participaram durante os sete dias de realização do encontro, com o tema “Griôs da Diáspora Negra”. Aquela edição contou com algumas das mais influentes intelectuais negras do mundo, como Patricia Hill Collins, Angela Davis, Conceição Evaristo, Shirley Campbell e Paulina Chiziane. Tais presenças podem ser entendidas como um desdobramento da atuação das ativistas negras em instâncias internacionais, no sentido de enraizamento e operacionalização da ideia da diáspora africana. É possível compreender o Latinidades como um ponto de articulação entre as gerações mais antigas e as mais novas, uma vez que, além dos grandes nomes internacionais que participaram em 2014, as principais referências do feminismo negro brasileiro sempre estiveram no evento, a exemplo de Lúcia Xavier e Jurema Werneck, ambas então representantes da ONG Criola.

Em 2016, dois anos após participar do Latinidades, Patricia Hill Collins e Sirma Bilge publicaram o livro Intersecctionality. As autoras iniciam o livro usando o festival para ilustrar a aplicação do marco teórico desenvolvido por Collins em contextos diversos (COLLINS; BILGE, 2016COLLINS, Patricia Hill; BILGE, Sirma. Intersectionality. Malden: Polity Press, 2016.). Afirmam que a dimensão interseccional do evento é depreendida a partir dos seguintes aspectos: (i) idealizadoras e participantes do festival desafiam noções arraigadas no tecido social de que há uma democracia racial no país e, ao fazer isso, demonstram como a reificação dessa ideia opera no sentido de apagar da história as mulheres negras; (ii) utilização da interseccionalidade como ferramenta analítica permite às participantes compreender o lugar ocupado pelas mulheres negras brasileiras nas narrativas historicamente perpetuadas que construíram a identidade nacional do país; (iii) experiência do Latinidades lança luz sobre a construção de uma identidade política feminista que intersecta racismo, sexismo, identidade nacional e sexualidade.

A complexidade dos processos de articulação, justaposição e confronto entre experiências de ativismo nas ruas, nas redes e na busca por ocupar espaços de representatividade social e de representação política, permite-nos, dessa forma, observar o profundo impacto que jovens negras feministas têm tido na cultura política brasileira, seja quanto às temáticas abordadas, seja quanto ao modo de fazer política.

Movendo estruturas por via da representação política

Feministas negras têm questionado a sub-representação de afrodescendentes na política institucional e reivindicado maior cooperação entre acadêmicos e ativistas. O propósito é consolidar um conjunto amplo de pesquisas sobre as causas dessa sub-representação e contribuir para a formulação de medidas para aumentar a participação de representantes de grupos subalternizados no Legislativo. Porém, um dos impasses para a elaboração de diagnósticos mais acurados acerca da sub-representação de afrodescendentes na política institucional está na ausência ou na baixa qualidade dos dados disponíveis. Apenas em 2014, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) passou a determinar a inclusão de informações sobre cor/raça nas fichas de candidaturas. Até então, os trabalhos que usavam cor/raça como uma de suas categorias recorriam a fotografias disponibilizadas pelos sites do Congresso, das assembleias estaduais ou se baseavam na autodeclaração dos políticos para construir o banco de dados.

Outro aspecto a ser considerado diz respeito à ausência de uma produção acadêmica sistemática com perspectiva interseccional, que trabalhe simultaneamente com raça e gênero. Um dado constantemente revelado nas pesquisas sobre dinâmica eleitoral demonstra que a raça do candidato tem efeito negativo menor do que gênero. Mulheres brancas recebem votações menores do que homens não brancos, e mulheres não brancas se encontram em posição mais desvantajosa ainda. Por essa razão, as principais prejudicadas pelas desigualdades raciais nas eleições são as mulheres negras e indígenas, que se encontram praticamente ausentes da representação política em todos os níveis. Daí a necessidade de se aumentar o número de pesquisas que mobilizem um enfoque analítico interseccional (HTUN, 2014HTUN, Mala. Political inclusion and representation of afrodescendant women in Latin America. In: ESCOBAR-LEMMON, Maria C.; TAYLOR-ROBINSON, Michelle M. (orgs). Representation: the case of women. Oxford: Oxford University Press, 2014. p.118-134. ; RIOS; PEREIRA; RANGEL, 2017RIOS, Flavia; PEREIRA, Ana Claudia; RANGEL, Patricia. Paradoxos da igualdade: gênero, raça e democracia. Ciência e Cultura, Campinas, v. 69, n. 1, p. 39-44, 2017.).

As três últimas autoras fazem uma categorização do perfil das candidaturas e dos eleitos à 55ª legislatura do Congresso Nacional (2015-2019) por gênero e raça. A partir de dados disponibilizados pelo TSE, afirmam que 108 negros foram eleitos para o Congresso Nacional. Do total de 540 parlamentares (513 deputados e 27 senadores), havia 97 homens negros e 11 mulheres negras. Os dados discutidos no trabalho de Htun (2014)HTUN, Mala. Political inclusion and representation of afrodescendant women in Latin America. In: ESCOBAR-LEMMON, Maria C.; TAYLOR-ROBINSON, Michelle M. (orgs). Representation: the case of women. Oxford: Oxford University Press, 2014. p.118-134. apresentam resultados semelhantes. A autora analisa a inclusão e a representação de mulheres negras latino-americanas em sete países e conclui que mulheres negras estão sub-representadas em todos os países analisados, com exceção do Equador.

Diante de tal diagnóstico, ativistas e coletivos de feministas negras começaram a se articular com outros grupos na tentativa de se fortalecer para levar adiante candidaturas competitivas. Conforme afirma a deputada federal Áurea Carolina (PSOL-MG), é necessário “ocupar a política” por meio de candidaturas e mandatos coletivos, novos formatos de participação política no Legislativo brasileiro, que traduzem a experiência dos “corpos-bandeira” para a política institucional. As Muitas, movimentação política de Belo Horizonte, foi a primeira experiência exitosa de candidaturas coletivas no Brasil que, em 2016, elegeu duas vereadoras para a Câmara Municipal da cidade. Serviu de exemplo para que iniciativas semelhantes fossem conduzidas em outras regiões e dessem início a uma das maiores inovações de estratégias eleitorais no país.

As articulações políticas que convergiram para a emergência das Muitas iniciaram em 2009, a partir do ressurgimento do carnaval de rua, e com maior força, em 2010, quando entrou em vigor o Decreto n. 13.798 (BELO HORIZONTE, 2009BELO HORIZONTE (MG). Decreto n. 13.798, de 9 de dezembro de 2009. Proíbe realização de eventos de qualquer natureza na Praça da Estação, nesta capital. Belo Horizonte: Prefeitura de Belo Horizonte, 2009. Disponível em: Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a/mg/b/belo-horizonte/decreto/2009/1380/13798/decreto-n-13798-2009-proibe-relizacao-de-eventos-de-qualquer-natureza-na-praca-da-estacao-nesta-capital . Acesso em: 28 mar. 2019.
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), assinado pelo então prefeito Márcio Lacerda (PSB-MG), que proibia a realização de eventos de qualquer natureza na Praça da Estação. Jovens de diferentes coletivos criaram, então, a Praia da Estação, evento político-cultural e de lazer, com o intuito de reocupar os espaços públicos da cidade. No ano seguinte, alguns dos idealizadores do carnaval e da Praia da Estação se uniram a ativistas de outros coletivos e lançaram o Movimento Fora Lacerda, com o objetivo de denunciar as irregularidades da administração Lacerda quanto ao fechamento dos canais de participação popular e pelo favorecimento a grandes corporações em detrimento dos interesses da população.

Houve uma confluência de coletivos autônomos, com pautas distintas, em torno de um inimigo comum: a Prefeitura de Belo Horizonte. Essa efervescência política vinda das ruas e praças da cidade mostrou-se essencial para a construção das Muitas, visando ocupar a política institucional a partir de 2015. Nesse contexto, o processo de organização das Muitas para construir candidaturas competitivas para as eleições municipais começou em um encontro chamado “Uma tarde de sábado”:

O entendimento daquele grupo de pessoas que se reuniu no Parque Municipal, em março de 2015, é que toda essa efervescência precisava ocupar as instituições, para transformá-las também por dentro. Ali, a caminhada começou. De lá para cá, foram dezenas de encontros abertos, em praças, parques (existentes e por fazer), ocupações urbanas, universidades, escolas, pomares. Houve momentos explosivos, felizes, mas também difíceis. Fazer algo que não está dado não é simples, e não faltarão aqueles para dizer que não vai dar certo. Mas é preciso seguir. É preciso seguir em respeito aos que vieram antes de nós, que tanto se dedicaram para que tivéssemos uma vida melhor. E mais ainda pelos que virão. Porque a cidade PRECISA ser outra, com menos violência e desigualdade, mais afeto e possibilidades de vida (MUITAS, 2016MUITAS. Cidade que queremos. A história por trás das MUITAS pela cidade que queremos. 2016., s.p.)

Mesmo diante desse histórico de colaboração entre as lutas em prol do objetivo de ocupar a política, Áurea Carolina relata que a perspectiva interseccional não foi incorporada de maneira automática às Muitas. Segundo ela, em entrevista a Cristiano Rodrigues, em 8 de dezembro de 2018RODRIGUES, Cristiano; ASSIS, Mariana Prandini. Academic feminism and exclusion in Brazil: bringing back some of the missing voices. In: KAHLERT, Heike (ed.). Gender studies and the new academic governance. Berlin: VS, 2018. p. 153-178.:

Interseccionalidade é uma agenda que eu trazia muito nesse momento. Lembro que a gente teve que fazer uma defesa que representatividade importa. Na hora de discutir as candidaturas das Muitas, o pessoal ficava assim: “Que negócio é esse de representatividade? Gênero, raça, essas coisas? Isso não é importante, o que importa são as coisas que nós defendemos. Quem é que vai representar, isso não importa muito”. E eu falava: “Não, gente. O que a gente defende com os corpos é ó...”. Eu ainda falava: “Política de ideias e política de presença”. Eu lembro que eu mandei um e-mail para a galera, eu peguei umas imagens “representatividade importa” de vários tipos, LGBT, negra, de gênero e mandei pro grupo. “Então, gente, é disso que eu estou falando. Vejam, vejam!” E isso foi importante para ajudar a dar esse fundamento da diversidade dos corpos, não só da agenda política. Porque uma coisa não pode existir sem a outra (ÁUREA CAROLINA, 2018ÁUREA CAROLINA. Entrevista concedida a Cristiano Rodrigues. 8 dez. 2018., s. p.).

A passagem da movimentação para a institucionalidade se deu ao longo do processo de escolha e legitimação das candidaturas, que buscava garantir a representatividade de diversos corpos e lutas da cidade. A dimensão interseccional das candidaturas estava presente na incorporação coletiva das lutas feministas, antirracistas, das causas indígenas, da cidadania LGBTQ+, do foco na periferia, na juventude, no bem viver e expressa nos slogans de campanha #somosmuitas: “Outra política é possível. Vamos começar?” e “votou em uma, votou em todas”, que remete ao lema “uma sobe e puxa a outra”, utilizado na Marcha das Mulheres Negras, conforme apresentamos nas Figuras 1 e 2.

Figura 1.
Candidatas das Muitas à Câmara Municipal de Belo Horizonte (2016)

Figura 2.
Doze candidatas das Muitas à Câmara Municipal de Belo Horizonte (2016)

As Muitas lançaram 12 candidatas para a Câmara Municipal de Belo Horizonte em 2016, contemplando integrantes com ampla diversidade racial, de gênero, orientação sexual, distribuição geográfica e pautas (cf. Quadro 1). O vídeo da campanha coletiva16 16 O vídeo da campanha de 2016 das Muitas pode ser acessado aqui: https://drive.google.com/file/d/17WLjr60rBtlHQsh8MWbB5qgsuTENzPnT/view lançava mão de uma estratégia inusitada: a candidata se apresentava e pedia votos para a candidata seguinte, informando que as propostas de sua aparente competidora eram tão boas quanto as suas. O vídeo terminava com a seguinte consideração: “Uma candidata pedindo voto para outra? Isso você nunca viu. Nós somos Muitas. Nós acreditamos que política deve ser feita no coletivo”, enquanto mostrava imagens das candidatas confraternizando e realizando atividades de lazer conjuntamente.

Quadro 1.
Perfil das candidatas das Muitas à Câmara Municipal de Belo Horizonte (2016)

A construção da campanha coletiva das Muitas e seu enfoque interseccional acabaram surtindo efeito. Nas eleições municipais de 2016, Áurea Carolina foi eleita com 17.420 votos, sendo a mulher mais votada para vereadora da história das eleições em Belo Horizonte, até então. A candidatura coletiva obteve um total de 35.615 votos, suficiente para eleger ainda Cida Falabella. Após tomarem posse, Áurea Carolina e Cida Falabella construíram um novo modelo de institucionalidade: a Gabinetona, trabalhando em covereança com Bella Gonçalves (primeira suplente, que assumiu o cargo quando Áurea se elegeu deputada federal, em 2018) e incorporando os candidatos derrotados como assessores, em um gabinete compartilhado, em um mandato coletivo, aberto e popular17 17 A Gabinetona teve início em 2016. Dois anos depois, Andréia de Jesus foi eleita para Assembleia Legislativa de Minas Gerais, ampliando a experiência para as três esferas legislativas. Os “quatro mandatos parlamentares [configuram-se] em um mandato coletivo com ações e estratégias compartilhadas” (GABINETONA, [2019] ., s.p). Segundo informações do site da Gabinetona, participam dos trabalhos “mais de 90 ativistas, trabalhadoras e pesquisadoras em estreito diálogo e cooperação com cidadãs e movimentos, e em sintonia com as lutas populares” (GABINETONA, [2019], s.p.). , que se tornou referência no país e no mundo. No total, 32 mulheres negras foram eleitas em capitais brasileiras em 2016, sendo que os resultados obtidos por Áurea Carolina e Marielle Franco (PSOL-RJ), cuja ação política também teve início em movimentos populares, eleita com 46.502 votos no Rio de Janeiro, foram os mais noticiados.

Em 2017, integrantes da Gabinetona promoveram a primeira edição do Ocupa Política, um encontro nacional que reúne organizações, coletivos e mandatos com o objetivo de potencializar candidaturas ativistas. Atualmente, o Ocupa Política18 18 Disponível em: http://www.ocupapolitica.org/. Acesso em 3 out. 2020. é composto por 17 mandatos-ativistas, dos quais oito são liderados por mulheres negras. Além de compartilharem um compromisso de transformação institucional, esse novo formato de participação política no Legislativo brasileiro vem introduzindo novas terminologias na política institucional, como: covereança, codeputada, mandata (em vez de mandato), coletividade, ativismo, pluripartidarismo, antirracismo, anticapitalismo, antifascismo, diversidade, horizontalidade, feminismo interseccional, transvestigênere (termo que contempla diferentes identidades do universo trans). As proponentes acreditam que a mudança política passa, necessariamente, pela inclusão de pessoas negras, indígenas, transvestigêneres, gays, lésbicas, não binárias, anarquistas, socialistas, entre outros, nos espaços de poder, para fazer frente ao que chamam de “parlamento heteronormativo branco de direita liberal, arcaico e truculento” (FELINTO, 2020FELINTO, Marilene. Mandatos coletivos pelo país afrontam machismo e racismo no Parlamento. Folha de São Paulo, [On-line], 2020. Opinião. Disponível em: Disponível em: https://folha.com/uv5rxyn4 . Acesso em: 4 out. 2020.
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, s.p.).

Entretanto, o potencial transformador que a presença desses “corpos-bandeira” traz para a política institucional pode esbarrar na recusa dos “donos do poder” em dividir o espaço. O temor de que a presença de representantes de grupos subalternizados em espaços de poder venha confrontar diretamente o status quo e “mover as estruturas” é uma das prováveis razões que levaram ao assassinato da vereadora carioca Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, por milicianos em março de 2018, segundo apontam as investigações.

O assassinato de Marielle Franco trouxe maior visibilidade às reivindicações de feministas negras por participação na política institucional, que se resume na expressão “eu sou porque nós somos”, repetida inúmeras vezes por ativistas. Renata Souza, Dani Monteiro e Mônica Francisco, “as sementes de Marielle”, foram eleitas para a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro pelo PSOL, em outubro de 2018. O modelo de candidaturas coletivas, experimentado pelas Muitas em Belo Horizonte, foi replicado em outras capitais do país, como na Bancada Ativista, de São Paulo, no Vamos, de Salvador, e no Juntas, de Recife. No mesmo pleito, Áurea Carolina foi eleita deputada federal por Minas Gerais com 162.740 votos, a quinta candidata mais votada do estado. Talíria Petrone (PSOL-RJ), pertencente ao mesmo grupo político de Marielle Franco, elegeu-se deputada federal pelo Rio de Janeiro, com 107.317 votos. Erica Malunguinho (PSOL-SP), idealizadora da Aparelha Luzia, tornou-se a primeira mulher negra trans a ocupar uma cadeira na Assembleia Legislativa de São Paulo, com 55.223 votos. Também Olivia Santana (PCdoB-BA) se elegeu como a primeira deputada estadual negra na Bahia, com 57.755 votos. O número de mulheres autodeclaradas “pretas” dobrou nas Assembleias Legislativas, passando de sete, em 2014, para 15, em 2018. As autodeclaradas “pardas” saltaram de 29 para 36. No Congresso, o número de mulheres negras também aumentou, porém, menos significativamente - de 10 para 13 -, na Câmara dos Deputados, e duas mulheres autodeclaradas “pardas”, no Senado Federal19 19 Resultados das Eleições 2018. Disponível em: http://divulga.tse.jus.br/oficial/index.html. Acesso em: 27 mar. 2020. .

No total, a representação de negros na Câmara dos Deputados foi ampliada em quase 5% na eleição de 2018, em comparação com 2014. Dos 513 deputados eleitos em 2018, 385 se autodeclaram brancos (75%); 104 afirmaram ser pardos (20,27%); 21 pretos (4,09%); 2 amarelos (0,39%); e 1 indígena (0,19%). Joênia Wapichana (Rede-RR) se tornou a primeira mulher indígena a ser eleita deputada federal. A primeira vez que um indígena chegou ao posto foi em 1982, com a eleição do cacique xavante Mario Juruna, pelo PDT-RJ. O resultado eleitoral dessas candidaturas de mulheres e homens negros, em conjunto com o crescimento no contingente de parlamentares mulheres eleitas (de 51, na 55ª legislatura, para 77, na 56ª) lança luz sobre os desafios políticos do Brasil atual. O desejo por mudança, visibilidade e representatividade vem garantindo vitórias parciais a membros de grupos historicamente discriminados.

Conforme discutimos no decorrer desta seção, o ativismo feminista negro da última década promove a ampliação dos repertórios discursivos e das estratégias de incidência política empregados por gerações anteriores de ativistas negras, ao mesmo tempo em que participa ativamente da criação de novos espaços e repertórios de ação, marcados pela transnacionalização acelerada das temáticas, o ativismo on-line e as redes feministas autonomistas (MATOS; SIMÕES, 2018MATOS, Marlise; SIMÕES, Solange. Emergence of intersectional activist feminism in Brazil: the interplay of local and global contexts. In: BONIFACIO, Glenda Tibe (ed.). Global currents in gender and feminisms: Canadian and international perspectives. Bingley: Emerald Publishing Limited, 2018. p. 35-47.). Ademais, de acordo com Matos e Simões (2018, p. 43)MATOS, Marlise; SIMÕES, Solange. Emergence of intersectional activist feminism in Brazil: the interplay of local and global contexts. In: BONIFACIO, Glenda Tibe (ed.). Global currents in gender and feminisms: Canadian and international perspectives. Bingley: Emerald Publishing Limited, 2018. p. 35-47., tais perspectivas conformam uma “quarta onda” do feminismo, pois destacam “a continuidade da discriminação de gênero, mas vão além, para valorizar igualmente o princípio da não discriminação com base em raça, etnicidade, geração, nacionalidade, classe ou religião, entre outros, enfatizando a interseccionalidade”.

Importante ressaltar, ainda, que o ativismo de mulheres negras, como demonstramos ao longo deste artigo, esteve sempre marcado pela interseccionalidade, mesmo antes do termo ter sido cunhado em 1989, por Crenshaw. A novidade que observamos, em particular nas experiências das candidaturas e mandatos coletivos, é a difusão do paradigma interseccional, originalmente circunscrito ao pensamento feminista negro, para um circuito amplo, chamado, por Matos e Simões (2018)MATOS, Marlise; SIMÕES, Solange. Emergence of intersectional activist feminism in Brazil: the interplay of local and global contexts. In: BONIFACIO, Glenda Tibe (ed.). Global currents in gender and feminisms: Canadian and international perspectives. Bingley: Emerald Publishing Limited, 2018. p. 35-47., de fluxos horizontais dos feminismos, nos quais, pela primeira vez, a percepção de que há uma continuidade e interconexão entre todas as formas de discriminação ocupa uma posição central.

Considerações finais

Desde a organização do Movimento de Mulheres Negras, nos anos 1980, até o presente, feministas negras têm utilizado uma miríade de repertórios discursivos e estratégias de confronto, os quais se alinham ao contexto histórico e social em que atuam com os objetivos de: (i) alterar os estereótipos negativos acerca das mulheres negras; (ii) impactar e influenciar positivamente instituições formais para a construção e implementação de políticas sensíveis à promoção contínua de igualdade de gênero e raça; e (iii) promover o empoderamento de mulheres negras. Inicialmente, essas estratégias estiveram voltadas para a consolidação de sua autonomia organizativa frente aos movimentos negros e feministas, seguida pelas tentativas de estabelecer uma identidade como sujeito político “mulheres negras”, perpassada por uma “diversidade incomensurável” (WERNECK, 2008WERNECK, Jurema. De Ialodês e feministas: reflexões sobre a ação política das mulheres negras na América Latina e Caribe. 2008. Disponível em: Disponível em: http://mulheresrebeldes.blogspot.com/2008/10/de-ialods-e-feministas.html . Acesso em: 29 maio 2015.
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, p. 2). Nas décadas subsequentes, houve a consolidação efetiva de formatos de ativismos feministas negros especificamente brasileiros, marcada por sua alta capacidade de incidência política nacional e na América Latina. Na década corrente, assistimos a um movimento de continuidade e ruptura em relação aos formatos de ativismo consolidados anteriormente. A ascensão de jovens feministas negras com suas maneiras inovadoras de fazer política, o recrudescimento das organizações de base voluntária e as estratégias de “ocupação da política” representam a quintessência do feminismo negro brasileiro da década de 2010.

Ao “mover as estruturas”, as feministas negras também sofrem com ataques, rechaços e forte backlash contra sua ação política. Desde tentativas contínuas de deslegitimação de sua produção teórica e epistêmica, considerada por seus críticos como “liberal”, “pouco acadêmica”, “excessivamente militante”, “pós-moderna”, “identitarista” (em oposição a movimentos que se pretendem universais), passando pelo escárnio e pelo descrédito em relação ao caráter transformador de seus repertórios discursivos, até o extermínio de seus corpos políticos, como ocorreu com Marielle Franco.

Além disso, a eleição presidencial de 2018 reabriu a caixa de pandora do ódio racial e de gênero. Jair Bolsonaro, então candidato de extrema direita que baseou sua campanha no proferimento de discursos considerados racistas, lgbtfóbicos e sexistas, propagando fake news via redes sociais e evitando participar de qualquer debate público sobre suas propostas políticas, sagrou-se vencedor. Antes mesmo de encerrar o terceiro mês de seu governo - cujo gabinete é composto por 23 ministérios, dos quais 21 são liderados por homens brancos e dois por mulheres brancas -, revelou-se contrário às políticas pró-igualdade racial e de gênero. Vislumbra-se, assim, uma mudança radical na agenda governamental sobre temáticas de interesses da população afrodescendente de maneira geral e, especialmente, das mulheres negras.

Os movimentos de resistência ao fechamento dos canais institucionais transformaram Marielle Franco em símbolo de luta. As mesmas eleições que permitiram a ascensão de políticos de extrema direita garantiram vitórias importantes a mulheres negras do campo progressista. Apesar das barreiras institucionais que dificultam sua participação política e o peso de décadas de perpetuação de estereótipos negativos, as mulheres negras estão conseguindo ocupar a política, em seu sentido amplo, para exercer papéis e funções fora dos estereótipos negativos comumente associados a elas.

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  • ZAMBRANO, Catalina Gonzalez. Mulheres negras em movimento: ativismo transnacional na América Latina (1980-1995). 2017. Tese (Doutorado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.
  • 3
    Adotamos a grafia do título do periódico e do nome do coletivo conforme utilizada pelo próprio jornal e coletivo: http://www.cpvsp.org.br/upload/periodicos/pdf/PNZINRJ071988004.pdf.
  • 4
    Parte das reflexões da seção 1 integram a tese de doutorado de Freitas (2017)FREITAS, Viviane Gonçalves. De qual feminismo estamos falando? Desconstruções e reconstruções das mulheres, via imprensa feminista brasileira, nas décadas de 1970 a 2010. 2017. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Instituto de Ciência Política, Universidade de Brasília, Brasília, 2017., intitulada “De qual feminismos estamos falando: desconstruções e reconstruções das mulheres, via imprensa feminista brasileira, nas décadas de 1970 a 2010”, realizada com bolsa Demanda Social - CAPES, de abril/2013 a março/2017, sob orientação de Flávia Biroli, no Instituto de Ciência Política, da Universidade de Brasília. Em 2018, a pesquisa foi publicada em forma de livro - Feminismos na imprensa alternativa brasileira: quatro décadas de lutas por direitos -, pela Paco Editorial.
  • 5
    Aqualtune foi uma princesa africana do Congo, que, como guerreira e estrategista, liderou um exército de 10 mil homens para defender o seu reino contra a invasão portuguesa, em 1695. Após a derrota no conflito, foi escravizada e vendida no Brasil como escrava reprodutora. Grávida, organizou uma fuga para o Quilombo dos Palmares, o maior da América Latina. Seus filhos, Ganga Zumba e Gana, foram importantes chefes de Palmares. Seu neto Zumbi era descendente de Sabina, sua terceira filha (ARRAES, 2020ARRAES, Jarid. Aqualtune. In: ARRAES, Jarid. Heroínas negras brasileiras: em 15 cordéis. São Paulo: Seguinte, 2020. p. 27-36.).
  • 6
    Nzinga foi uma rainha africana que, por enfrentar o colonialismo português em Angola, transformou-se, ao longo dos séculos, em símbolo de luta, como guerreira e estrategista. Após 35 anos de conflitos, foi morta em 1663, em pleno campo de batalha. Sem a sua comandante, os guerreiros se renderam e muitos foram aprisionados e trazidos ao Brasil (MULHERES..., 1985MULHERES negras e guerreiras: Nzinga (1582-1663). Nzinga Informativo, Rio de Janeiro, n. 1, p. 2-3, jun. 1985., p. 2-3).
  • 7
    Mãe Andresa, ou Andresa Maria de Souza Ramos (1854-1954), foi uma das mais importantes mães de santo do estado do Maranhão. Assumiu a chefia da Casa de Mina Jeje quando tinha 60 anos e exerceu essa atividade durante quatro décadas. Era considerada uma pessoa generosa e se tornou respeitada e conhecida também em outros estados (LEMOS, 2016LEMOS, Rosalia de Oliveira. Do Estatuto da Igualdade Racial à Marcha das Mulheres Negras, 2015: uma análise das feministas negras brasileiras sobre políticas públicas. 2016. Tese (Doutorado em Política Social) - Escola de Serviço Social, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016. ).
  • 8
    O termo Geledè, na tradição africana, remete a uma forma de sociedade secreta feminina de caráter religioso das sociedades tradicionais iorubás - consideradas, hoje, patrimônio da humanidade. Expressa o culto ao poder feminino sobre a fertilidade da terra, a procriação e o bem-estar da comunidade. Também se vincula à reapropriação das tradições culturais negras, reafirmando, diante do feminismo de ideário judaico-cristão, o patrimônio cultural e simbólico próprio das mulheres negras (BORGES, 2009BORGES, Rosane da Silva. Sueli Carneiro. São Paulo: Selo Negro, 2009.; CARNEIRO, 2018CARNEIRO, Sueli. Gênero e raça na sociedade brasileira. In: CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma vida. Belo Horizonte: Letramento, 2018. p. 153-185.).
  • 9
    A estética afropop é uma identidade artística e de comportamento que representa a união entre os ritmos afro-brasileiros e o comportamento do rock e da sonoridade das guitarras, teclados e timbres da música pop mundial. A cantora baiana Margareth Menezes é uma das principais representantes desse estilo na atualidade.
  • 10
    Os dados empíricos e reflexões apresentados na segunda e terceira seções deste artigo foram coletados no âmbito do Projeto “Mulheres Negras em Movimento(s): trajetórias, intersecções e novos cenários para a teoria e práxis feminista negra no Brasil”, financiado pelo CNPq (Processo 432980/2016-4).
  • 11
    Disponível em: https://blogueirasfeministas.com/about/nossa-memoria/. Acesso em: 27 mar. 2020.
  • 12
  • 13
    Disponível em: http://blogueirasnegras.org/quem-somos/ Acesso em: 27 mar. 2020
  • 14
    Disponível em: https://slamdasminas.wordpress.com/. Acesso em: 27 mar. 2020.
  • 15
    Disponível em: https://www.facebook.com/aparelhaluzia/. Acesso em: 27 mar. 2020.
  • 16
    O vídeo da campanha de 2016 das Muitas pode ser acessado aqui: https://drive.google.com/file/d/17WLjr60rBtlHQsh8MWbB5qgsuTENzPnT/view
  • 17
    A Gabinetona teve início em 2016. Dois anos depois, Andréia de Jesus foi eleita para Assembleia Legislativa de Minas Gerais, ampliando a experiência para as três esferas legislativas. Os “quatro mandatos parlamentares [configuram-se] em um mandato coletivo com ações e estratégias compartilhadas” (GABINETONA, [2019] .GABINETONA. Como chegamos aqui. Sítio eletrônico. [2019]. Disponível em: Disponível em: https://gabinetona.org/site/ . Acesso em: 1 set. 2020.
    https://gabinetona.org/site/...
    , s.p). Segundo informações do site da Gabinetona, participam dos trabalhos “mais de 90 ativistas, trabalhadoras e pesquisadoras em estreito diálogo e cooperação com cidadãs e movimentos, e em sintonia com as lutas populares” (GABINETONA, [2019]GABINETONA. Como chegamos aqui. Sítio eletrônico. [2019]. Disponível em: Disponível em: https://gabinetona.org/site/ . Acesso em: 1 set. 2020.
    https://gabinetona.org/site/...
    , s.p.).
  • 18
    Disponível em: http://www.ocupapolitica.org/. Acesso em 3 out. 2020.
  • 19
    Resultados das Eleições 2018. Disponível em: http://divulga.tse.jus.br/oficial/index.html. Acesso em: 27 mar. 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    01 Jun 2020
  • Aceito
    03 Dez 2020
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