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A phrônesis, o herói e a pólis: os paradoxos de Hannah Arendt como leitora dos Antigos

The phronesis, the hero and the polis: paradoxes of Hannah Arendt as a reader of the Ancient

Resumos

Este artigo analisa as leituras de Homero e de Aristóteles feitas por Hannah Arendt. Partindo das reinterpretações do conceito de coragem, phrônesis e política feitas pela filósofa, apontamos naquelas leituras indícios das definições arendtianas do ethos do homem político e do surgimento do espaço público. O artigo também discute dois paradoxos no pensamento de Arendt: o paralelo entre a coragem guerreira do herói homérico e a virtude sagaz da phrônesis aristotélica, por um lado, e, por outro, a ação política enquanto reveladora do agente no espaço público e atividade coletiva voltada para a criação e manutenção de instituições. Sustentamos, como conclusão, que a releitura de Homero e Aristóteles, por mais paradoxal que seja, constitui a fonte teórica para a separação radical entre violência e política, realizada por Arendt.

phrônesis; coragem; pólis; instituições; Hannah Arendt


This article analyses the readings of Homer and Aristotle by Hannah Arendt. Starting from her reinterpretation of the concepts of courage, phronesis and politics, we point out in those readings elements of her definition of the ethos of the political man as well as the rise of the public space. The article further discusses two paradoxes in Arendt's thought: on the one hand, the parallel between the warrior courage of the Homeric hero and the virtue of the Aristotelic phronesis and, on the other hand, political action as a tool to reveal the agent in the public space and as a collective activity aiming at the creation of institutions. As a conclusion, the article points out that Arendt's readings of Homer and Aristotle, paradoxical as they can be, form the theoretical basis for the radical separation between politics and violence that she sustains.

phronesis; courage; polis; institutions; Hannah Arendt


Dar razão aos antigos não pode significar um retorno a eles nem sua imitação.

Hans-Georg Gadamer

Hannah Arendt procura resgatar uma particularidade da política - uma certa dignidade - que não somente parece ter escapado de nosso entendimento e de nossas práticas como, de algum modo, parece ter sido mais do que esgarçada ao longo dos séculos, chegando a ser eclipsada desde o início de sua fundação. Para compreender o pensamento da autora, o primeiro passo deve ser o de resgatar o sentido original da política. Não é porque careça de algum sentido que nos indagamos sobre o sentido da política, mas porque parece não haver mais nenhum sentido para acreditarmos no sentido original da política, o qual, para Hannah Arendt, é a liberdade.

Para fundamentar sua teoria política, Arendt faz uma articulação entre aspectos filosóficos, literários e históricos da tradição iniciada por Homero e Aristóteles. Dessa forma, para compreender essa abordagem, é necessário verificar quais são as implicações dessas leituras sobre suas definições do ethos e do logosdo homem político e sobre suas ideias de restauração do espaço político a partir das divergentes configurações da pólis grega.

Assim, para dizê-lo de modo mais específico, este artigo surge da perplexidade dos autores ao tentarem articular a constelação formada por duas ideias estudadas por Hannah Arendt, sob o pano de fundo que separa radicalmente a violência do poder político: (i) a relação da phrônesis aristotélica com a exaltação da coragem como virtude política e sua exemplificação por meio da figura de Aquiles, de Homero; e (ii) as configurações agonísticas da pólis grega em relação à estabilidade política alcançada com as instituições políticas romanas. Dessas ideias surgem dois paradoxos1 1 Querendo afirmar que algumas das ideias apresentadas por Hannah Arendt são paradoxais, temos de reafirmar que, no entanto, elas não são necessariamente ideias contrárias à opinião comum - como sugere a etimologia da associação entre o prefixo para ("contrário a", "alterado" ou "oposto de") e o sufixo doxa ("opinião" ou "fama") na palavra paradoxo. Isto é, as ideias que iremos investigar nos levam a possibilidades aparentemente divergentes, embora consigam sustentar seu sentido no contexto da obra da autora e, até mesmo, apoiado nas leituras de Hannah Arendt que podem ter dado origem a tais ideias. Em outras palavras, estamos sugerindo que as ideias que vamos abordar não deveriam ser facilmente descartadas como meras contradições - quando se diz o contrário do que se havia sido dito anteriormente, procurando sustentar duas afirmações opostas em valor e em sentido. . O primeiro paradoxo trata da vinculação do ethos do herói homérico, caracterizado pela coragem, à virtude política aristotélica da phrônesis. Portanto, diz respeito à necessidade de Hannah Arendt articular seu entendimento histórico-literário de Homero com sua leitura filosófica de Aristóteles. Já o segundo paradoxo aparece na descrição do espaço público como locus de revelação do agente por meio da ação e do discurso, ao mesmo tempo que é fonte do surgimento de instituições e locus de discussões sobre elas. Apresenta-se, assim, a tensão entre a imagem de fundação da pólis advinda de um acampamento militar permanente e a imagem de organização da pólis enquanto criação e manutenção de instituições civis e políticas. Para isso, abordaremos também os aspectos históricos relacionados aos desenvolvimentos filosóficos propostos pela autora2 2 No entanto, Arendt frisa que essa parte de seu argumento é teórico e metafórico, não histórico. .

Mais além da imediata aparência de uma recapitulação nostálgica ou de uma comparação anacrônica, o que se vê é a autora alemã debruçando-se, por um lado, sobre a difícil relação entre política e violência, entre a palavra e a força, entre a persuasão e a coação; e, por outro, sobre a complicada hierarquização ética entre pensamento e prática, quando situada ao lado da equivalência política entre discurso e ação.

O paradoxo da autonomia heroica: o herói entre a imprudência da coragem e o exercício da phrônesis

O pensamento político de Hannah Arendt situa-se entre a visão que a autora tem do herói homérico - que enfatiza a política como instância de revelação do agente no (e por meio do) discurso e ação, na pluralidade do espaço público - e outra que se preocupa com a política enquanto atividade coletiva voltada para a criação de instituições, cujas funções seriam a de mediar as relações entre classes e as contradições entre Estado e economia, bem como a de assegurar a universalidade dos direitos dos cidadãos e as possibilidades concretas da atividade política.

Nossa primeira tarefa será compreender que a visão "homérica" da política arendtiana, que ressalta a glória dos grandes feitos e dos grandes discursos dos heróis (cf. Arendt, 2001________ (2001). A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 210-11)3 3 (Arendt 2001, p. 34) vai dizer que "a estatura do Aquiles homérico só pode ser compreendida quando se o vê como 'autor de grandes feitos e pronunciador de grandes palavras'". , apresenta-se como a marca da ruptura provocada pela ação - em seu início, como um acontecimento inédito, carregado de possibilidades e gerador de milagres - e da novidade alcançada com a pluralidade - na continuidade da ação. A pluralidade, segundo Arendt, é a condição pela qual se sustenta a política e, consequentemente, a liberdade. Vale a ressalva, portanto, de que a palavra herói, ela mesma guarda em sua significação somente a ideia de "homem livre"4 4 "O herói revelado pela história não precisa ter qualidades heroicas; originalmente, isto é, em Homero, a palavra herói era apenas um modo de designar qualquer homem livre que houvesse participado da aventura troiana e do qual se podia contar uma história" (Arendt, 2001, p. 199). e, embora implicasse originalmente certa distinção, essa distinção estava ao alcance de quaisquer desses homens (cf. Arendt, 2001________ (2001). A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 199, nota 10) que ousassem conviver e agir em conjunto com outros homens - e que tivessem condições para tanto.

Para Arendt não importará, contudo, o objetivo nem o conteúdo dessa ação política, se comparada à usual categoria de meios-fins, que precisa tanto de um conteúdo quanto de uma finalidade para fundamentar e dar seguimento à ação. O foco na revelação de si e do acontecimento, que a ação permite, nos obriga a aceitar que o importante é a atuação e a concertação, é o lançar-se ao espaço em que a ação possa ser iniciada e então continuada por outros, e não que o ator tenha conseguido ou venha a conseguir, com sua ação individual, aquele objetivo prévia e intimamente determinado.

Para compreendermos melhor a proposta de ação política arendtiana, precisamos igualmente nos aproximar da ideia de phrônesis, tal como concebida por Aristóteles. Não é difícil ver que no cerne do pensamento moral aristotélico, exposto em sua Ética a Nicômaco, está a importância de se viver plenamente uma vida para que sejamos felizes. Essa plenitude, que julgamos, em princípio, como um modo extremado de se viver uma vida, porquanto elevaria sua potência ao máximo, é paradoxalmente o termo médio que deverá balizar nosso entendimento sobre a phrônesis. O que Aristóteles busca é a harmonização entre a boa ação (eupraxia) e o desejável de ser feito em cada situação. A partir disso, vemos que, se, para Aristóteles, a phrônesis é a virtude política por excelência, em Homero, a coragem é o que promove a distinção do guerreiro.

Hannah Arendt, por sua vez, vincula a política ao ethos homérico em diversas obras, e explicitamente na coletânea O que é política?. O herói homérico e o homem político parecem confundir-se na busca por glória e imortalidade. Ambos circulam por espaços não privados, em convivência com pares, que são seus iguais em liberdade. A coragem, atributo exemplar do herói homérico, é para a pensadora alemã a maior das virtudes (aretai) políticas (cf. Arendt, 1999________ (1999). O que é política? 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil., p. 53; Arendt, 2001________ (2001). A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 45-6). Assim, podemos argumentar que, para a autora, a phrônesis deveria estar articulada à coragem. No entanto, é preciso antes saber se a phrônesis segue a ideia de moderação, como expresso em prudentia, ou o seu contrário, no exercício ativo (energeia) da excelência (areté), que é um tipo de imoderação. A tradição escolástica, ao traduzir o termo grego para o latim, optou por associar a phrônesis à ideia de prudentia. Em nosso argumento, no entanto, destacamos o fato de que Arendt caminha na direção contrária ao exaltar a coragem como virtude política, pretendendo resgatar o sentido original aristotélico e compatibilizá-lo com o de Homero. Neste ponto, portanto, devemos buscar a interpretação arendtiana do Aristóteles da Ética a Nicômaco, para confrontá-la à leitura que a autora faz do herói homérico, de onde ela extrai as características que lhe servem de analogia à política. Ao percorrermos esse caminho, pretendemos buscar respostas à seguinte questão: se a política enquanto forma de embate discursivo (agón) não significa um apelo à violência, o paradoxo entre a ênfase arendtiana na não violência da ação política e o caráter trágico e agonista daqueles que agem na pólis desapareceria?

De início, poderíamos adotar, como recomendam vários comentadores, a tradução de phrônesis por "sabedoria", "inteligência" ou por "discernimento"5 5 Assim fazem René Antoine Gauthier e Jean Yves Jolif, tradutores e comentadores para a língua francesa da Ética a Nicômaco; William David Ross, tradutor para o inglês; além de Julia Annas (em The morality of happiness), que segue o tradutor inglês Terence Irwin. Comentadores como Carlo Natali (em The wisdom of Aristotle) e John Burnet (em The ethics of Aristotle) utilizam-se da palavra em grego ou transliterada. Ver outros aspectos sobre essa questão em (Spinelli 2005, p. 6). . No entanto, um aspecto importante dessa virtude - sua conexão intrínseca à ação e à práxis - ainda permaneceria oculto nessas definições6 6 E isso porque, como relembra (Spinelli 2005, p. 6, nota 3; grifo da autora), que escreveu sua dissertação sobre a phrônesis na Ética a Nicômaco, "a phrônesis é uma virtude do intelecto prático, isto é, que não se limita apenas a julgar ou discernir, mas está intrinsecamente relacionada à ação". . Assim, preferimos traduzir por "sagacidade", para podermos evidenciar que a base da noção de phrônesis não é um tipo moderado de atitude ou uma vida cautelosa e comedida, mas sim a capacidade de ter atitudes sagazes, realizando escolhas sábias, diante dos desafios apresentados pelo cotidiano - sempre com vistas à eudaimonia, ou seja, à "vida plena"7 7 Ver comentários de (Arendt 2001, p. 205-06) sobre sua utilização da noção grega de eudaimonia. . Isso pode exigir por vezes atitudes imoderadas (hýbris), quando um problema profundo pede uma solução radical como a melhor alternativa.

Se vemos que a phrônesis não pode estar desligada de uma prática cotidiana e singular, como um exercício ativo (energeia) e não como mera repetição (kinesis), devemos agora tentar compreender os motivos que levam Arendt a exaltar a coragem como a virtude política por excelência8 8 A menção à coragem está espalhada em diversos pontos da obra arendtiana. Mas se pode ver explicitamente essa exaltação em (Arendt 1999, p. 53; Arendt 2001, p. 45-6 e 199). Em Sobre a violência, por exemplo, existe uma síntese do que seria a virtude da coragem em movimentos políticos atualmente: "essa geração parece caracterizar-se em qualquer lugar pela pura coragem, por uma surpreendente disposição para a ação e por uma confiança não menos surpreendente na possibilidade de mudança" (Arendt, 2009, p. 31). A coragem é descrita por Aristóteles na Ética a Nicômaco no capítulo 6 do livro III (cf. Aristóteles, 2001, p. 60-5, 1115 a6-1117b 29). Ele também adverte que há cinco outras espécies da mesma disposição moral que não devem ser confundidas com a coragem, a saber: a coragem do cidadão-soldado; a coragem como experiência prévia e conhecimento; o arrebatamento; a confiança que gera ousadia; e a ignorância do perigo (cf. Aristóteles, 2001, p. 62-5, 1116 a8-1117 b8). .

Não nos parece que haja, por parte da autora alemã, escolha da coragem em detrimento da phrônesis, ou ainda de outras virtudes morais, mas a simples percepção de que a coragem é aquela disposição do caráter que está íntima e diretamente ligada à iniciativa e à novidade. E tal ligação, no contexto arendtiano, visa à recuperação da importância da ação enquanto possibilidade de mudança e enquanto atividade na qual, e por meio da qual, se revela o quem do agente, não somente o que ele é ou faz.

A coragem, portanto, parece ser o "elemento ausente" nas condições políticas atuais para que se possa, efetivamente, retomar a phrônesis como virtude política. Isto é, parece ser o melhor exercício para estimular a ação coletiva e concertada dos indivíduos e para restaurar a conexão entre governar (archein) e realizar (prattein)9 9 Tanto no Fragmento 3a de O que é política?, como em A condição humana, (Arendt 1999, p. 44; Arendt 2001, p. 202) relembra que as palavras gregas e latinas para designar o início de uma ação, o começo de um processo, eram respectivamente archein e agere. Essas palavras têm especial importância, pois registram o fato de que é parte da experiência humana, desde tempos antigos, a possibilidade - mesmo que individual, em princípio - de "desencadear um processo" (Arendt, 1999, p. 44.). Mas no livro de 1958, A condição humana, ela apresenta ainda outros dois verbos, um grego e um latino - prattein e gerere, respectivamente, para indicar o duplo aspecto de toda ação: o começo (archein/agere) e a realização (prattein/gerere). E ressalta que, em ambos os idiomas, as palavras que originalmente designavam apenas a segunda parte da ação, ou seja, sua realização, passaram a ser os termos aceitos para designar a ação em geral, enquanto as palavras que designavam o começo da ação ganharam significado especial, pelo menos na linguagem política: archein passou a significar principalmente "governar", quando empregada de maneira específica, e agere passou a significar "liderar", em vez de "pôr em movimento" (cf. Arendt, 1999, p. 57; Arendt, 2001, p. 202). Essa mudança explicita, sobremaneira, a separação entre o governo que propõe e o agente que executa. ou, em outras palavras, para superarmos o paradigma do que Holloway (2003, p. 43-51) denomina como a fratura instaurada pelo poder-sobre, e realizarmos aquilo caracterizado como poder-para. Em resumo, a coragem pode fazer do poder um poder-fazer.

Diante da ideia de que, retirada a coragem do caráter humano não se pode realizar a política em uma vida plena, poderíamos finalmente concluir que é o discernimento prático e contínuo entre o que é necessário e o que não é necessário para a eudaimonia que parece estar em jogo. Em tempos em que a política converte-se em mera estratégia, a coragem de lançar-se à ação concertada precisa associar-se novamente à sagacidade da phrônesis, para que o poder-fazer não seja distinto do "queremos-e-podemos", do qual fala (Arendt 2009________ (2009). Sobre a violência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., p. 107) na conclusão de seu livro Sobre a violência.

Mesmo com isso posto, talvez ainda seja difícil compreender a escolha arbitrária de Arendt por exaltar a coragem como virtude política, pois uma vez que a coragem esteja associada à imagem de Aquiles, herói homérico épico e guerreiro (Arendt, 2005________ (2002). "O que é autoridade?", em Entre o passado e o futuro. 5. ed. São Paulo: Perspectiva., p. 307), estaremos, paradoxalmente, diante de uma ideia belicista - o que seria aparentemente contrário à noção da política como o oposto da violência10 10 Isto é, se tomarmos a política de que se trata nesse texto como sinônimo de poder (cf. Arendt, 2009, p. 73-4). . Mas ela é crucial para que se chegue à ousada afirmação da correspondência entre ação e pluralidade. Nas palavras de (Arendt 2001________ (2001). A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 15; grifo da autora), "a ação, única atividade que se exerce diretamente entre os homens e sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade", que "é especificamente a condição [...] de toda vida política". Vejamos em que aspectos a coragem é o que permite essa correspondência.

A origem latina da palavra coragem deixa clara a associação entre as palavras coração (que também possuía a conotação de "espírito" [como em inglês mind, soul]) e ação. Fazer do coração - ou do espírito - um verbo, torná-lo aparente no ato de quem o possui: essa talvez fosse a ideia presente nos primeiros que formularam tal conceito; a coragem seria, portanto, a ação do coração, a autêntica e espontânea atitude do espírito ativo.

A prática da coragem, dessa maneira, diz respeito fundamentalmente ao modo como se enfrentam os desafios. O corajoso age, resiste ou desiste por uma finalidade nobilitante; em qualquer dos casos, mantém-se confiante e com uma disposição esperançosa. Ele não sustenta um apego demasiado à vida e não foge do que lhe é aflitivo11 11 Vale recordar que, para Aristóteles, na interpretação de (Arendt 2001, p. 25, nota 15), a imortalidade daqueles que permanecem na história por seus feitos e palavras dependia, também, de algum "desdém em relação às necessidades da vida", e que, como ela reafirma, "o preço da eudaimonia é a própria vida" (Arendt, 2001, p. 206). Não nos parece que tal ideia esteja tão distante da revitalização que (Nietzsche 2009, p. 30) propõe, para quem os espíritos nobres têm uma atitude de "indiferença", demonstrando "seu desprezo por segurança, corpo, vida, bem-estar". . Mas, no exercício ativo de sua excelência, não dispensa a companhia de outras pessoas, de modo que "sua atividade será mais contínua e será mais agradável em si" (Aristóteles, 2001ARISTÓTELES (2001). Ética a Nicômaco. 4. ed. Brasília: Editora UnB., p. 186, 1170 a 23) se realizada com outras pessoas boas. Assim, se não for continuamente reafirmada12 12 (Aristóteles 2001, p. 25, 1098a) diz que "tal exercício ativo [da excelência] deve estender-se por toda a vida". Também é o que se vê descrito nos relatos etnográficos de (Pierre Clastres 2004, p. 299), quando ele diz que "a vida guerreira é um combate perpétuo". e reconhecida in concert, a virtude política da coragem será ainda pré-política, como o é a "liberdade da espontaneidade", enfatiza (Arendt 1999________ (1999). O que é política? 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil., p. 59).

A despeito de toda essa descrição, temos de concordar que, "de fato, o homem corajoso parece temerário em relação ao covarde, e covarde em relação ao temerário" (Aristóteles, 2001ARISTÓTELES (2001). Ética a Nicômaco. 4. ed. Brasília: Editora UnB., p. 45, 1109a). Isso nos indica que "a situação intermediária deve ser louvada em todas as circunstâncias", embora o ponto central do argumento seja notar que "às vezes devemos inclinar-nos no sentido do excesso, e às vezes no sentido da falta, pois assim atingiremos mais facilmente o meio termo que é certo" (Aristóteles, 2001ARISTÓTELES (2001). Ética a Nicômaco. 4. ed. Brasília: Editora UnB., p. 47, 1109b 33). Mais ainda, como afirma (Spinelli 2005SPINELLI, Priscilla T. (2005). A prudência na ética nicomaqueia de Aristóteles. Dissertação (mestrado). Porto Alegre: UFRGS., p. 78) sobre a phrônesis na Ética a Nicômaco, "devemos ter em mente que, embora em si mesma a virtude consista em uma mediania, com relação ao que é bom e à reta razão, ela é um extremo, pois é a única disposição que está de acordo com eles e é capaz de alcançá-los". O exercício da coragem, portanto, é expandido pela razão e limitado pelas circunstâncias, e não o contrário.

Sobre as contradições da pólis e do herói

De todo modo, é preciso compreender essa busca pela glória dos grandes feitos e dos grandes discursos dentro de seu registro histórico. Vale recordar que Aristóteles deixa claro que a eudaimonia é uma conquista reafirmada, ainda que seja feita naturalmente. Com isso, o espaço dessa reafirmação é justamente a causa e a consequência da criação e da manutenção da pólis, como um lugar duradouro e palpável "que possa sobreviver tanto aos feitos memoráveis quantos aos nomes dos memoráveis autores, e possa ser transmitido à posteridade na sequência das gerações" (Arendt, 1999________ (1999). O que é política? 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil., p. 54). Mas a pólis não pode sobreviver como um espaço político de liberdade e pluralidade quando surge um herói que age e fala "por todos". Portanto, parece que são justamente os aspectos trágicos e líricos do herói que mantêm a contradição13 13 Vale mencionar a explicitação que (Rachel Gazolla 2001, p. 62) faz sobre essa contradição presente no herói: "o herói é aquele que tem a força de estar em hýbris, é isso o que lhe dá a estatura do herói. Só a ele cabe a hýbris no sentido trágico. Ao homem comum compete amedrontar-se com tal possibilidade e consequências". que faz viver a pólis - a contradição de ser um espaço de iguais ao mesmo tempo que transforma em virtude a coragem de falar e de agir qua indivíduo, como uma revelação de si e de seu mundo.

No entanto, é notável que um excessivo arrebatamento, possível causador de violência, ajuda os homens corajosos a empreenderem suas ações. E se é possível supor que Aristóteles concordaria com a afirmação, também podemos dizer que Arendt não a negaria14 14 Para (Aristóteles 2001, p. 63, 1117a), "os homens corajosos agem por causa da honra, mas o arrebatamento os ajuda". E (Arendt 2009, p. 85) vai dizer que a violência só tem sentido quando é uma "re-ação" e tem medida, como na defesa própria. Mas "torna-se 'irracional' no momento em que é 'racionalizada'" e se converte em princípio de ação. .

Arendt afirma que a ação (práxis) e o discurso (lexis), além de terem a afinidade de serem da mesma categoria e da mesma espécie e de serem as mais altas de todas as capacidade humanas, também figuram desde os tempos pré-pólis como fundamentais para o surgimento da esfera público-política, a esfera dos negócios humanos. E é assim, como "o autor de grandes feitos e o pronunciador de grandes palavras" (Homero, Ilíada, apud Arendt, 2001________ (2001). A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 34, nota 6) que essa autora apresenta tanto Aquiles, dos tempos épicos de Homero, quanto Antígona, dos tempos trágicos de Sófocles. Com o surgimento e a reconfiguração da pólis, entretanto, "a ação e o discurso separaram-se e tornaram-se atividades cada vez mais independentes. A ênfase passou da ação para o discurso, e para o discurso como meio de persuasão" (Arendt, 2001________ (2001). A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 35). Com isso, se o espaço de ação tivesse se reconfigurado a ser limitado por uma lógica da escassez (Urrutia, 2001URRUTIA, Juan (2001). "Redes de personas, internet y la lógica de la abundancia: un paseo por la nueva economía". Ekonomiaz: Revista Vasca de Economía, n. 46, p. 182-201., p. 185), em que a luta é travada de modo a fazer do vencedor aquele que conseguiu angariar mais recursos para continuar sua ação, então o herói homérico teria de se afastar da política e se reaproximar da guerra - entendida como a guerra da necessidade pelos "recursos escassos", aqueles com os quais ele pode levar suas ações a cabo. A pólis, caracterizada pela palavra, pela publicidade e pela igualdade, como apresentada por (Vernant 2004VERNANT, Jean-Pierre (2004). As origens do pensamento grego. 14. ed. Rio de Janeiro: Difel., p. 53-72), cria essas instituições justamente na tentativa de evitar tal guerra.

Assim, mesmo estando coragem e violência separadas por princípio, os traços marcadamente belicosos e violentos de heróis como Aquiles deixaram de ser relevantes para o que realmente acontecia na ágora conforme a pólis foi se reconfigurando. Ou seja, a violência dos heróis homéricos é ainda uma atitude pré-política. O que era passível de ser observado e vivenciado nos palcos das tragédias e nos tempos da criação da pólis eram as discussões e as conflitivas ações humanas, e não mais os relatos épicos.

Na pólis, não havia mais espaço para as grandiosas ações de guerra nem para as pequenas violências pré-políticas15 15 Em diversas pontos de sua obra, Arendt deixa clara a ideia de que, em seu resgate da política grega da pólis, ela pretende afirmar que a guerra está fora dos limites do político, assim como a violência e a "ordem" (que não visa à persuasão, e se mantém por meio da força ou outro tipo de coerção), que são atitudes pré-políticas ou despóticas (cf. Arendt, 1999, p. 59-61; Arendt, 2001, p. 35-6). . Portanto, se a discussão sobre o destino comum passava a lidar com leis e instituições, a coragem precisava se adaptar a essa nova dimensão: o tipo de coragem que era exercida com a violência épica transformou-se na coragem que só é possível ser exercitada autonomamente no trato com outros e cuja excelência só é experienciada na autolimitação da phrônesis.

Sobre as mudanças na pólis e no herói: da épica à lírica

Já que afirmamos a validade conceitual da phrônesis para compreender a exaltação da coragem por Arendt, é justamente essa "viragem decisiva na história da pólis" (cf. Vernant, 2004VERNANT, Jean-Pierre (2004). As origens do pensamento grego. 14. ed. Rio de Janeiro: Difel., p. 68) - também uma transformação no conceito de coragem, isto é, de sua associação à violência épica para uma aproximação à phrônesis - aquilo que precisa ser considerado para que saibamos porque ainda precisaríamos nos posicionar historicamente entre estes dois momentos: entre a pólis fundada sobre a base aristocrática da eunomia (de Sólon) e a pólisrefundada sobre uma nova base, democrática, da isonomia (de Clístenes).

Assim, nos fins do século VII a.C., com as primeiras configurações da pólis grega, o que vemos é o surgimento da poesia lírica em oposição à épica. Mais tarde, já no século V a.C., veremos que é a tragédia, numa combinação de elementos épicos e líricos, que passa a ser a expressão ético-estética que melhor apresenta a relação conflituosa entre os valores cívicos e pessoais; ou seja, a tragédia "pretende expressar os valores de um conjunto cívico e seus feitos, como o faz a épica; é também pessoal [a palavra pessoa exprime aquele que se sabe diferente entre diferentes] como a lírica" (Gazolla, 2001GAZOLLA, Rachel (2001). Para não ler ingenuamente uma tragédia grega: ensaio sobre aspectos do trágico. São Paulo: Loyola (Coleção Leituras Filosóficas)., p. 36).

No sentido homérico, a política se desvia da ideia de liberdade porque o herói homérico poderia agir sozinho. Um herói homérico, como Hércules, "pode realizar grandes façanhas mesmo sozinho e precisava dos homens apenas para receber a notícia sobre elas" (Arendt, 1999________ (1999). O que é política? 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil., p. 59). E então vemos que, para (Arendt 1999________ (1999). O que é política? 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil., p. 102), "o indivíduo em seu isolamento jamais é livre; só pode sê-lo quando adentra o solo da pólis e age nele". Com isso em mente, a saída para a discussão sobre o tema do herói é sobre qual aspecto iremos abordá-lo - épico ou lírico? -, uma vez que a palavra herói, ela mesma, significava "homem livre", como vimos.

Há, portanto, que se resgatar a simbiose original entre o agir e o falar, reconhecendo-se que é a liberdade do falar, em especial, aquela atividade que "só é possível no trato com outros", como relembra (Arendt 1999________ (1999). O que é política? 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil., p. 59). Para dizê-lo de outro modo, pretendemos que essa liberdade de falar seja como aquela performance que revela o agente no, e através do, ato, fazendo aparecer, com ele, a estrutura do mundo que o constitui - e, portanto, diferente da performance individualizante16 16 Para saber mais sobre a grande diferença entre ato performático e ato performativo, ver (Butler 2003, p. 205). . Então, a opção pela lírica nos abriria alternativas de expor e de explorar a excelência do herói em meio a suas marcantes fragilidades, e a partir das condições particulares do mundo que seu discurso performativo projeta. Portanto, se o campo de escolhas parece estar aberto, devemos confrontar os traços marcantes tanto da épica quanto da lírica, para que possamos, ao final, olhar novamente para a figura do herói e saber qual é o tipo de poesia que se fará dele.

A figura de um herói épico, que encarna em si as paixões de um povo, é uma imagem autocrática que deve estar fora do que se quer entender por política - cujo sentido é a liberdade - e, consequentemente, por democracia. Contrariamente a isso, o herói lírico expressa sua paixão pessoal, em comunhão às paixões que têm os demais - e não em substituição ou por generalização universalizante.

A tragédia convida à partilha das emoções vivenciadas pelo herói, pois expõe os extremos das situações, dos erros, das escolhas. O foco da tragédia não é o ator, o seu personagem, mas a ação e a intriga, o acontecimento. É por isso que a cidade reaparece nas cenas dramatizadas pela tragédia, e que cada cidadão tem a oportunidade de experimentar seus próprios conflitos e os conflitos que ele tem com a coletividade17 17 Como enfatiza (Gazolla 2001, p. 49), o trágico "recua ao épico e ao lírico na medida em que, quanto ao primeiro, além da narração e dos personagens do coro, quer representar os mitos heroicos, e quanto ao segundo, além da musicalidade e dos gestos, deixa as falas atravessadas pelas emoções e pelas dificuldades em vivê-las". . Assim, como no desdobramento da lírica, mas distintamente dela, na tragédia a cidade encontrou uma forma de purificar a hýbris, as desmedidas ou certa imoderação nas palavras e atitudes, que, como vimos, paradoxalmente surgiam e mantinham a cidade em sua dynámeis18 18 Essa dinâmica política é um sinônimo da potência do poder na pólis e revela claramente a relação dos gregos com o poder, com o seu poder: ao mesmo tempo que ele estabelece a dinâmica que move a cidade e que traz consigo as possibilidades de superação para os problemas coletivos, carrega junto o efeito caótico de ter de resolver as injustiças pelas reparações ou restaurações da ordem. Além das referências em (Vernant 2004, p. 115-25; 129-35), (Castoriadis 1987, p. 301-13) e (Arendt 2001, p. 204, 212), ver também (Duarte 2009, p. 144). , em seu movimento de restauração.

A tragédia, portanto, apresenta-se como a primeira experiência política de pluralidade humana porque desenvolve-se: (i) a partir dos conflitos vividos cotidianamente pelos cidadãos da pólis e no choque entre a manutenção do ethos tradicional, que reverencia os heróis antigos e seus feitos memoráveis; e (ii) no questionamento desse mesmo ethos, por conta da descoberta de novas institucionalidades, afirmadoras tanto do singular lírico quanto do coletivo épico, com uma interioridade que não se aparta totalmente do público-político.

O paradoxo apontado na leitura que Hannah Arendt faz do herói homérico e da virtude aristotélica da phrônesis é, dessa forma, atenuado ao reinterpretarmos o significado dos conceitos de coragem e da própria phrônesis como sagacidade. Além disso, as mudanças ocorridas na pólis grega com a passagem da violência épica para a hegemonia da palavra no espaço público - fenômeno este que também se manifesta no surgimento da tragédia -, somente reforçam essa convicção.

Ainda assim, tanto em sua análise do herói homérico que realiza grandes feitos, como em sua interpretação da política realizada através do discurso, Arendt privilegia a revelação do agente no espaço público, dando pouca atenção à ligação entre política e instituições, apesar de ser historicamente observável que as mudanças que levaram à criação da pólis dos séculos V e IV a.C., ao surgimento da tragédia e à expansão da democracia foram todas elas acompanhadas do fortalecimento das leis e das instituições em Atenas - sem contar o ápice do desenvolvimento político romano: a legislação e a fundação (Arendt, 2001________ (2001). A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 208). Como importantes estudiosos da Grécia clássica assinalaram, a política no espaço público passa a ser em larga medida uma discussão sobre instituições19 19 Ver, a esse respeito, os textos de Castoriadis, "A polis grega e a criação da democracia"; e Antropogonia em Ésquilo e autocriação do homem em Sófocles (1987, p. 277-323; 2004, p. 19-46 - respectivamente); e também Vernant (2004). . Estamos aqui, portanto, diante de outro aparente paradoxo no pensamento de Hannah Arendt, o qual trataremos a seguir.

O paradoxo da autolimitação institucional: a revelação do agente e a instância de criação de instituições

Este segundo paradoxo que identificamos no pensamento de Hannah Arendt - entre um herói homérico que se revela na pluralidade do espaço público e a política enquanto atividade coletiva voltada para a criação e manutenção de instituições - envolve ainda outro aspecto da política que é muito caro a Arendt: a imprevisibilidade da ação humana. Isso porque a revelação do agente no espaço público depende da originalidade e da criatividade de sua ação, e as leis e instituições tendem a padronizar o comportamento político. Na obra Sobre a Revolução, ao analisar a contradição entre a estabilidade de uma república e a continuidade do "espírito revolucionário", Arendt mostra visível preocupação com o declínio do agir político que o fortalecimento das leis acarreta20 20 Arendt descreve a perplexidade que tomou conta de Thomas Jefferson quando este sentiu que a Constituição norte-americana estabilizava a República ao preço da castração da ação política e do espírito de rebeldia, que eram então a própria garantia da liberdade. Daí que a autora cite o desabafo de Jefferson: "a árvore da liberdade deve ser regada de tempos em tempos com o sangue dos patriotas e tiranos. É o seu fertilizante natural" (Arendt, 1990, p. 186-87). . Previsível e padronizado, o agir político pode transfigurar-se em uma relação meios-fins semelhante à fabricação (póiesis). Radicalizando essa preocupação, (Arendt 1999________ (1999). O que é política? 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil., p. 60-1; Arendt 2001________ (2001). A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 207-209) chega a relembrar que até mesmo o ato de legislar, para os gregos, era pré-político, já que a feitura de leis assemelhar-se-ia à fabricação e antecederia o espaço público-político. Mais ainda, vai dizer (Arendt 2001________ (2001). A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 207), o trabalho do legislador "devia ser executado e terminado antes que a atividade política pudesse começar".

Para entendermos melhor a visão de Hannah Arendt a respeito da relação entre leis e política, e o paradoxo que estamos analisando, é necessário recapitular alguns pontos centrais do pensamento da autora.

Uma das principais preocupações teóricas de Arendt, como assinalamos no início deste artigo, e como é do conhecimento de qualquer estudioso de sua obra, é a tentativa de resgatar a "dignidade da política", que teria sido perdida, segundo ela, na tradição do pensamento ocidental21 21 A "dignidade da política", aliás, é tema de interessante coletânea de textos de Hannah Arendt (1999), cuja preocupação é justamente resgatar o domínio da política do opróbrio a que foi condenada pela tradição ocidental de pensamento. . A pensadora alemã faz uma crítica da era moderna justamente nesse sentido: as sociedades modernas são o corolário do definhamento da política e de sua substituição pela "administração das coisas" e pelas atividades econômicas. Quando ela usa o conceitual grego para analisar a era moderna, Arendt não está sofrendo de nostalgia helênica, pois sabe que uma volta ao passado é impossível. Apenas está tentando repensar a política no intuito de elevar sua importância, mas sem sugerir caminhos concretos para resgatar a política de seu opróbrio, já que isso depende de ações humanas e não de fórmulas teóricas.

Arendt identifica a perda da dignidade da política já no início do pensamento ocidental, ou seja, na filosofia política de Platão, desenvolvida no contexto da decadência da pólis ateniense, e interpreta a morte de Sócrates como um momento de inflexão que não é meramente simbólico, mas revelador de um processo de rompimento entre filosofia e política. É a partir do estranhamento entre estes dois modos de vida que Platão elabora uma teoria das ideias voltada a subordinar os assuntos humanos aos ditames do pensar filosófico. O que incomodava Platão na atividade política - porque concorria para colocar a vida do filósofo em perigo - era a imprevisibilidade da ação política, provavelmente acentuada pelo caráter agonístico grego e pela contingência inerente aos assuntos humanos22 22 Sobre a empresa da escola socrática em relação à imprevisibilidade da ação, ver (Arendt 2001, p. 208). . Domar a política, submetendo os assuntos humanos a uma ordem baseada seja no poder do rei-filósofo, seja em leis feitas por sábios, caracterizou o esforço teórico de Platão, como os textos de sua velhice indicam23 23 Em três diálogos importantes - A República, O estadista e As leis -, Platão elimina a autonomia da política ao elaborar sua pólis ideal. Embora com importantes variações - em A República, o poder político é consignado ao rei-filósofo, em O estadista, o dirigente ideal varia do pastor humano ao tecelão régio, enquanto em As leis, seu último diálogo, são as próprias leis, sob a égide de um conselho noturno de filósofos, que regem a pólis - as soluções platônicas são sempre autoritárias, não deixando margem para a autonomia política dos cidadãos. A esse respeito, ver interpretação semelhante de (Arendt 2001, p. 239; em especial, nota 69). .

Assim, na tradição do pensamento ocidental inaugurada por Platão, a política passa a ser submetida à filosofia e à teoria, ou, como diríamos mais modernamente, à ideologia. Hannah Arendt viu muito bem que o pensamento de Platão passa a conceber a práxis política como fabricação - isto é, como póiesis, porque assim como a fabricação permite a previsibilidade da atividade do artesão e dá a ela utilidade e valor de troca (o carpinteiro, por exemplo, só tem de seguir a ideia da mesa que está em sua mente para poder fabricá-la, dar-lhe uso e vendê-la), o pensar filosófico, ao indicar regras e normas para a conduta política, eliminaria a imprevisibilidade presente nos assuntos humanos e garantiria ao fabricante ser "senhor de si mesmo e de seus atos" (Arendt, 2001________ (2001). A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 157). Esse rei-filósofo, portanto, quando visto como um político-fabricante, se contraporia ao homem de ação, que "sempre depende de seus semelhantes" (Arendt, 2001________ (2001). A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 157).

Foi o antiplatonismo de Hannah Arendt, e sua luta para valorizar justamente os aspectos que Platão gostaria de eliminar das atividades humanas - como a imprevisibilidade da ação, a autonomia dos cidadãos e a validade da doxa, da opinião comum - que a fez privilegiar o caráter agonístico do ethos político grego. Na interpretação marcadamente homérica de Arendt, a originalidade dos grandes feitos e a revelação do herói no espaço público só podem acontecer se o agir humano estiver livre dos entraves intelectuais platônicos. Contudo, essa crítica a Platão levou Arendt diversas vezes a minimizar o papel das leis e das instituições, já que elas também poderiam dificultar a criatividade da ação política ao reificarem limites e fronteiras24 24 Interessante ponderação sobre isso é o elogio de (Arendt 2001, p. 203, nota 17) ao modo como Montesquieu redefine a noção de leis. .

Como muitos de seus críticos assinalaram, essa concepção arendtiana reduz a política essencialmente a uma forma de estar-no-mundo. Pode-se indagar, como fez Dana (Villa 1996________ (1996). Arendt and Heidegger: the fate of the political. Princeton: Princeton University Press.), sobre a possibilidade de que, quando uma ação política não possui telos (finalidade) e, portanto, não remete a uma relação meios-fins, ela passa a carregar fortes tintas estéticas, reduzindo-se a mera performance25 25 Interessante assinalar que o professor Villa (1992) admite que a teoria da ação política de Hannah Arendt, discutida durante longo tempo por partidários de um modelo dialógico de política (como Habermas), passou recentemente a ser analisada em sua dimensão virtuosa, agonística e "teatral", ou seja, como performance. Em nosso argumento, no entanto, diferenciamos performatividade de performance teatral; esta última como emulação de códigos e comportamentos predeterminados ou roteirizados. ; ou como observou George (Kateb 1983KATEB, George (1983). Hannah Arendt: politics, conscience, Evil. Totowa: Rowman & Allanheld.), poderíamos afirmar que a ação para Arendt parece ser um jogo em que o mais importante é jogar, independentemente do resultado do jogo; ou ainda, como criticou Habermas, ao analisar o conceito de poder em Hannah Arendt, poderíamos mostrar como a autora, ao reinterpretar o conceito aristotélico de práxis, acaba chegando ao paradoxo de conceber uma política despida de preocupações socioeconômicas, que dificilmente ilumina a situação das sociedades modernas26 26 O conceito arendtiano de ação política é analisado em Kateb (1983). Habermas (1980), por sua vez, discute Arendt no artigo "O conceito de poder de Hannah Arendt". .

Mas, se em sua análise da política, Arendt privilegia o aspecto ontológico da ação - o ator revelando-se no espaço público ao agir em concerto -, em obras de cunho mais histórico e sociológico, como Origens do totalitarismo, Da Revolução, e "O que é autoridade" (Arendt, 1989ARENDT, Hannah (1989). Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras., Arendt, 1990________ (1990). Da revolução. 2. ed. Brasília: Editora UnB; São Paulo: Ática., Arendt, 2002________ (2002). "O que é autoridade?", em Entre o passado e o futuro. 5. ed. São Paulo: Perspectiva. - respectivamente), ela desenvolve um sentido diferente do que pode ser a atividade política27 27 Para essas e outras referências, ver (Canovan 1978, p. 8, nota 6). . A autora, nesses momentos, descreve o âmbito da política não tanto como o espaço da revelação do ator, mas como o locus de ação para a criação e discussão de instituições, aproximando-se do Aristóteles da Política, que desenvolve uma engenharia política destinada a elaborar a forma de governo mais estável, que pudesse melhor perseguir e garantir o bem-comum.

Não seria exagero dizer que essa concepção da política que estamos denominando de "institucional" tem recebido relativamente menos atenção pelos estudiosos do pensamento arendtiano do que a que explora sua dimensão ontológica28 28 Isso é visível em alguns importantes estudos sobre política e teoria da ação em Hannah Arendt, tais como: (Villa 1996; Villa 1999); Pirro (2000) e Taminiaux (1997). . Isso se dá não somente pelo fato de Hannah Arendt ter definido a política privilegiando essa dimensão, como já assinalamos, mas também porque a relevância das instituições só aparece nos textos da autora de forma oblíqua, quando ela analisa situações históricas particulares onde a presença ou ausência de instituições e de uma forma de governo baseada em leis fazem toda a diferença para a estabilidade política e para a preservação da liberdade.

No caso de sua análise sobre as revoluções do século XVIII, Arendt argumenta, por exemplo, que a revolução norte-americana, diferentemente da francesa, deveu sua estabilidade em larga medida à constitutio libertatis, ou seja, a instituições como a Constituição norte-americana, que implantou o regime da lei e que garantiu as liberdades democráticas. Certo é que outros fatores são por ela apontados, como a relativa ausência de uma "questão social" nas colônias norte-americanas. Mas é na falha em construir um arcabouço institucional capaz de assegurar as conquistas da revolução que Hannah Arendt detecta os problemas não somente da revolução francesa, como também de diversos movimentos revolucionários do século XX29 29 A falha das revoluções em se institucionalizarem, a burocratização e a perda do espírito revolucionário são alvo de análise no capítulo 6 em Da revolução, intitulado "A tradição revolucionária e seu tesouro perdido" (cf. Arendt, 1990, p. 172-224). Sobre a tensão, na obra arendtiana, entre a ação e institucionalização, vale conferir também Avritzer (2006). . A ênfase aqui não é no caráter imprevisível da ação política, nem em grandes feitos que tornem seus autores imortais, mas em uma estrutura política estável que impeça o definhamento do espaço público.

Esta preocupação, como sabemos, já afligia os próprios gregos. Segundo Hannah Arendt, a desesperada busca de Platão por algum tipo de instância que pudesse gerar obediência dos cidadãos e pudesse manter, ao mesmo tempo, a liberdade do espaço público, terminou em propostas de visível cunho autoritário, pois os gregos, diferentemente dos romanos, desconheciam o conceito e a experiência da autoridade.

A elucidação do conceito de autoridade foi uma das maiores contribuições de Hannah Arendt para a filosofia e a teoria política. Sem a experiência da autoridade - que Theodor Mommsen iria definir como "mais que um conselho, menos que uma ordem" (apud Arendt, 2005________ (2005). Entre o passado e o futuro. 5. ed. São Paulo: Perspectiva., p. 165) -, o corpo político ateniense permaneceu instável. A autoridade, para Arendt, exige somente reconhecimento, de modo que "nem a coerção nem a persuasão são necessárias", uma vez que sua legitimidade, "quando desafiada, ampara-se a si mesma em um apelo ao passado" (Arendt, 2009________ (2009). Sobre a violência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., p. 62, 58 - respectivamente), e confere, pelo resgate da memória do estar-junto-inicial, a condição de possibilidade ao poder constituído. Os romanos desenvolveram a noção de autoridade política encarnada em uma poderosa instituição surgida na Roma antiga - o Senado. É à instituição do Senado, que extraía sua autoridade da própria fundação da cidade eterna, que Hannah Arendt atribuiu uma das causas da longevidade política de Roma. Novamente, a análise de Arendt sobre o que é autoridade enfatiza instituições como o Senado, responsável pelo mesmo ato de legislar que ela em outros momentos negligenciou ao enfatizar a solução grega.

Mas é em seu estudo sobre o colonialismo e a expansão imperialista ocorrida em fins do século XIX, contudo, que Hannah Arendt mais ressalta a importância das instituições para a política. Reconstituindo a gênese do imperialismo, Arendt primeiramente mostra como, na Europa, o Estado-nação e a burguesia desenvolveram-se juntos, e esta última passou paulatinamente a dominar a sociedade, sem ainda impor seu domínio ao nível estatal. O fortalecimento da classe burguesa na sociedade significou igualmente a possibilidade de expansão ilimitada das forças produtivas, colocando a lógica da atividade econômica, que, na Antiguidade, limitava-se à oikia doméstica, aos espaços privados, no centro das aspirações societárias. A crescente complexidade da economia capitalista, contudo, exigiu que a burguesia colocasse também o Estado a serviço da expansão econômica, tornando-se classe dominante não só na sociedade, mas também no aparelho estatal.

No entanto, escreve (Arendt 1999________ (1999). O que é política? 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil., p. 154), foram as próprias instituições nacional-estatais que "resistiram à brutalidade e à megalomania das aspirações imperialistas dos burgueses", de modo que "as tentativas burguesas de usar o Estado e os seus instrumentos de violência para seus próprios fins econômicos tiveram apenas sucesso parcial". E é justamente porque o sucesso em domar o Estado não foi total que Arendt define a expansão burguesa apenas como "pré-totalitária", no sentido de que foi um "espaço preparatório" para a experiência totalitária que viria a seguir na Alemanha nazista e na Rússia estalinista. A análise que Arendt faz do fenômeno totalitário também revela a importância das instituições. Como ela percebeu muito bem, em regimes totalitários como o nazismo ou o estalinismo, as leis positivas são substituídas por leis transcendentais, como a lei do materialismo histórico, no caso do estalinismo, ou da luta entre as raças, no caso do nazismo. As instituições políticas são eliminadas ou esvaziadas de qualquer significado, o que deixa a população à mercê do Estado, do partido oficial e da polícia secreta.

Outras situações contemporâneas indicam igualmente a relevância das instituições para a preservação da democracia. Na América Latina, em países como a Venezuela ou o Equador, lideranças carismáticas alçadas ao poder pelo voto tentam subverter as já débeis instituições democráticas de seus países, de forma a perpetuarem-se no poder. Também no Leste Europeu, o vácuo institucional que se seguiu ao colapso do socialismo naquela região desencadeou uma série de guerras étnicas, incentivadas por líderes que usaram o fervor nacionalista para conseguir apoio popular. Soma-se a isso, como que para confirmar o diagnóstico pessimista com que Hannah Arendt aborda os rumos tomados pela política na era moderna, o crescente desinteresse e desconfiança da política institucionalizada nos países de democracia representativa consolidada, sintoma inegável de uma crise da política.

Conclusão

Seria possível atenuar os dois paradoxos apontados no pensamento de Hannah Arendt, entre o herói homérico que se revela no espaço público através de grandes feitos e a política enquanto geradora de instituições? Apesar de a própria autora sugerir algumas vezes que não, pensamos que seja possível, pelo menos conceitualmente, imaginarmos uma acomodação, já que as instituições democráticas, ao fortalecerem padrões de comportamento político legitimados e democráticos, estabilizam o espaço público e podem assegurar melhores condições para que os cidadãos se destaquem como atores políticos, atuando em associação com seus pares. E a atividade de legislar não é reduzida à póiesis se deliberada em um espaço público institucionalizado que fomente a discussão responsável de propostas de leis.

Não parece então haver razões intrínsecas para que tenhamos de separar ou excluir mutuamente os elementos agonísticos e institucionais da ação política. Ainda que não controle o resultado de suas ações e que tenha de agir diante da imprevisibilidade, ao encontrar-se sob a proteção de instituições, o cidadão tem mais garantias de que não se tornará a eterna vítima trágica de acontecimentos que não controla. E, não menos importante, instituições democráticas podem ao menos restringir a violência, essa indesejável companheira da política.

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  • 1
    Querendo afirmar que algumas das ideias apresentadas por Hannah Arendt são paradoxais, temos de reafirmar que, no entanto, elas não são necessariamente ideias contrárias à opinião comum - como sugere a etimologia da associação entre o prefixo para ("contrário a", "alterado" ou "oposto de") e o sufixo doxa ("opinião" ou "fama") na palavra paradoxo. Isto é, as ideias que iremos investigar nos levam a possibilidades aparentemente divergentes, embora consigam sustentar seu sentido no contexto da obra da autora e, até mesmo, apoiado nas leituras de Hannah Arendt que podem ter dado origem a tais ideias. Em outras palavras, estamos sugerindo que as ideias que vamos abordar não deveriam ser facilmente descartadas como meras contradições - quando se diz o contrário do que se havia sido dito anteriormente, procurando sustentar duas afirmações opostas em valor e em sentido.
  • 2
    No entanto, Arendt frisa que essa parte de seu argumento é teórico e metafórico, não histórico.
  • 3
    (Arendt 2001________ (2001). A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 34) vai dizer que "a estatura do Aquiles homérico só pode ser compreendida quando se o vê como 'autor de grandes feitos e pronunciador de grandes palavras'".
  • 4
    "O herói revelado pela história não precisa ter qualidades heroicas; originalmente, isto é, em Homero, a palavra herói era apenas um modo de designar qualquer homem livre que houvesse participado da aventura troiana e do qual se podia contar uma história" (Arendt, 2001________ (2001). A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 199).
  • 5
    Assim fazem René Antoine Gauthier e Jean Yves Jolif, tradutores e comentadores para a língua francesa da Ética a Nicômaco; William David Ross, tradutor para o inglês; além de Julia Annas (em The morality of happiness), que segue o tradutor inglês Terence Irwin. Comentadores como Carlo Natali (em The wisdom of Aristotle) e John Burnet (em The ethics of Aristotle) utilizam-se da palavra em grego ou transliterada. Ver outros aspectos sobre essa questão em (Spinelli 2005SPINELLI, Priscilla T. (2005). A prudência na ética nicomaqueia de Aristóteles. Dissertação (mestrado). Porto Alegre: UFRGS., p. 6).
  • 6
    E isso porque, como relembra (Spinelli 2005SPINELLI, Priscilla T. (2005). A prudência na ética nicomaqueia de Aristóteles. Dissertação (mestrado). Porto Alegre: UFRGS., p. 6, nota 3; grifo da autora), que escreveu sua dissertação sobre a phrônesis na Ética a Nicômaco, "a phrônesis é uma virtude do intelecto prático, isto é, que não se limita apenas a julgar ou discernir, mas está intrinsecamente relacionada à ação".
  • 7
    Ver comentários de (Arendt 2001________ (2001). A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 205-06) sobre sua utilização da noção grega de eudaimonia.
  • 8
    A menção à coragem está espalhada em diversos pontos da obra arendtiana. Mas se pode ver explicitamente essa exaltação em (Arendt 1999________ (1999). O que é política? 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil., p. 53; Arendt 2001________ (2001). A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 45-6 e 199). Em Sobre a violência, por exemplo, existe uma síntese do que seria a virtude da coragem em movimentos políticos atualmente: "essa geração parece caracterizar-se em qualquer lugar pela pura coragem, por uma surpreendente disposição para a ação e por uma confiança não menos surpreendente na possibilidade de mudança" (Arendt, 2009________ (2009). Sobre a violência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., p. 31). A coragem é descrita por Aristóteles na Ética a Nicômaco no capítulo 6 do livro III (cf. Aristóteles, 2001ARISTÓTELES (2001). Ética a Nicômaco. 4. ed. Brasília: Editora UnB., p. 60-5, 1115 a6-1117b 29). Ele também adverte que há cinco outras espécies da mesma disposição moral que não devem ser confundidas com a coragem, a saber: a coragem do cidadão-soldado; a coragem como experiência prévia e conhecimento; o arrebatamento; a confiança que gera ousadia; e a ignorância do perigo (cf. Aristóteles, 2001ARISTÓTELES (2001). Ética a Nicômaco. 4. ed. Brasília: Editora UnB., p. 62-5, 1116 a8-1117 b8).
  • 9
    Tanto no Fragmento 3a de O que é política?, como em A condição humana, (Arendt 1999________ (1999). O que é política? 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil., p. 44; Arendt 2001________ (2001). A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 202) relembra que as palavras gregas e latinas para designar o início de uma ação, o começo de um processo, eram respectivamente archein e agere. Essas palavras têm especial importância, pois registram o fato de que é parte da experiência humana, desde tempos antigos, a possibilidade - mesmo que individual, em princípio - de "desencadear um processo" (Arendt, 1999________ (1999). O que é política? 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil., p. 44.). Mas no livro de 1958, A condição humana, ela apresenta ainda outros dois verbos, um grego e um latino - prattein e gerere, respectivamente, para indicar o duplo aspecto de toda ação: o começo (archein/agere) e a realização (prattein/gerere). E ressalta que, em ambos os idiomas, as palavras que originalmente designavam apenas a segunda parte da ação, ou seja, sua realização, passaram a ser os termos aceitos para designar a ação em geral, enquanto as palavras que designavam o começo da ação ganharam significado especial, pelo menos na linguagem política: archein passou a significar principalmente "governar", quando empregada de maneira específica, e agere passou a significar "liderar", em vez de "pôr em movimento" (cf. Arendt, 1999________ (1999). O que é política? 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil., p. 57; Arendt, 2001________ (2001). A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 202). Essa mudança explicita, sobremaneira, a separação entre o governo que propõe e o agente que executa.
  • 10
    Isto é, se tomarmos a política de que se trata nesse texto como sinônimo de poder (cf. Arendt, 2009________ (2009). Sobre a violência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., p. 73-4).
  • 11
    Vale recordar que, para Aristóteles, na interpretação de (Arendt 2001________ (2001). A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 25, nota 15 15 Em diversas pontos de sua obra, Arendt deixa clara a ideia de que, em seu resgate da política grega da pólis, ela pretende afirmar que a guerra está fora dos limites do político, assim como a violência e a "ordem" (que não visa à persuasão, e se mantém por meio da força ou outro tipo de coerção), que são atitudes pré-políticas ou despóticas (cf. Arendt, 1999, p. 59-61; Arendt, 2001, p. 35-6). ), a imortalidade daqueles que permanecem na história por seus feitos e palavras dependia, também, de algum "desdém em relação às necessidades da vida", e que, como ela reafirma, "o preço da eudaimonia é a própria vida" (Arendt, 2001________ (2001). A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 206). Não nos parece que tal ideia esteja tão distante da revitalização que (Nietzsche 2009NIETZSCHE, Friedrich (2009). Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras., p. 30) propõe, para quem os espíritos nobres têm uma atitude de "indiferença", demonstrando "seu desprezo por segurança, corpo, vida, bem-estar".
  • 12
    (Aristóteles 2001ARISTÓTELES (2001). Ética a Nicômaco. 4. ed. Brasília: Editora UnB., p. 25, 1098a) diz que "tal exercício ativo [da excelência] deve estender-se por toda a vida". Também é o que se vê descrito nos relatos etnográficos de (Pierre Clastres 2004CLASTRES, Pierre (2004). Arqueologia da violência: pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac & Naify., p. 299), quando ele diz que "a vida guerreira é um combate perpétuo".
  • 13
    Vale mencionar a explicitação que (Rachel Gazolla 2001GAZOLLA, Rachel (2001). Para não ler ingenuamente uma tragédia grega: ensaio sobre aspectos do trágico. São Paulo: Loyola (Coleção Leituras Filosóficas)., p. 62) faz sobre essa contradição presente no herói: "o herói é aquele que tem a força de estar em hýbris, é isso o que lhe dá a estatura do herói. Só a ele cabe a hýbris no sentido trágico. Ao homem comum compete amedrontar-se com tal possibilidade e consequências".
  • 14
    Para (Aristóteles 2001ARISTÓTELES (2001). Ética a Nicômaco. 4. ed. Brasília: Editora UnB., p. 63, 1117a), "os homens corajosos agem por causa da honra, mas o arrebatamento os ajuda". E (Arendt 2009________ (2009). Sobre a violência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., p. 85) vai dizer que a violência só tem sentido quando é uma "re-ação" e tem medida, como na defesa própria. Mas "torna-se 'irracional' no momento em que é 'racionalizada'" e se converte em princípio de ação.
  • 15
    Em diversas pontos de sua obra, Arendt deixa clara a ideia de que, em seu resgate da política grega da pólis, ela pretende afirmar que a guerra está fora dos limites do político, assim como a violência e a "ordem" (que não visa à persuasão, e se mantém por meio da força ou outro tipo de coerção), que são atitudes pré-políticas ou despóticas (cf. Arendt, 1999________ (1999). O que é política? 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil., p. 59-61; Arendt, 2001ARISTÓTELES (2001). Ética a Nicômaco. 4. ed. Brasília: Editora UnB., p. 35-6).
  • 16
    Para saber mais sobre a grande diferença entre ato performático e ato performativo, ver (Butler 2003BUTLER, Judith (2003). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., p. 205).
  • 17
    Como enfatiza (Gazolla 2001GAZOLLA, Rachel (2001). Para não ler ingenuamente uma tragédia grega: ensaio sobre aspectos do trágico. São Paulo: Loyola (Coleção Leituras Filosóficas)., p. 49), o trágico "recua ao épico e ao lírico na medida em que, quanto ao primeiro, além da narração e dos personagens do coro, quer representar os mitos heroicos, e quanto ao segundo, além da musicalidade e dos gestos, deixa as falas atravessadas pelas emoções e pelas dificuldades em vivê-las".
  • 18
    Essa dinâmica política é um sinônimo da potência do poder na pólis e revela claramente a relação dos gregos com o poder, com o seu poder: ao mesmo tempo que ele estabelece a dinâmica que move a cidade e que traz consigo as possibilidades de superação para os problemas coletivos, carrega junto o efeito caótico de ter de resolver as injustiças pelas reparações ou restaurações da ordem. Além das referências em (Vernant 2004VERNANT, Jean-Pierre (2004). As origens do pensamento grego. 14. ed. Rio de Janeiro: Difel., p. 115-25; 129-35), (Castoriadis 1987CASTORIADIS, Cornelius (1987). As encruzilhadas do labirinto, vol. II: Os domínios do homem. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra., p. 301-13) e (Arendt 2001________ (2001). A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 204, 212), ver também (Duarte 2009DUARTE, André (2009). "Poder e violência no pensamento político de Hannah Arendt: uma reconsideração", em. ARENDT, Hannah Sobre a violência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., p. 144).
  • 19
    Ver, a esse respeito, os textos de Castoriadis, "A polis grega e a criação da democracia"; e Antropogonia em Ésquilo e autocriação do homem em Sófocles (1987, p. 277-323; 2004, p. 19-46 - respectivamente); e também Vernant (2004)VERNANT, Jean-Pierre (2004). As origens do pensamento grego. 14. ed. Rio de Janeiro: Difel..
  • 20
    Arendt descreve a perplexidade que tomou conta de Thomas Jefferson quando este sentiu que a Constituição norte-americana estabilizava a República ao preço da castração da ação política e do espírito de rebeldia, que eram então a própria garantia da liberdade. Daí que a autora cite o desabafo de Jefferson: "a árvore da liberdade deve ser regada de tempos em tempos com o sangue dos patriotas e tiranos. É o seu fertilizante natural" (Arendt, 1990________ (1990). Da revolução. 2. ed. Brasília: Editora UnB; São Paulo: Ática., p. 186-87).
  • 21
    A "dignidade da política", aliás, é tema de interessante coletânea de textos de Hannah Arendt (1999)________ (1999). O que é política? 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil., cuja preocupação é justamente resgatar o domínio da política do opróbrio a que foi condenada pela tradição ocidental de pensamento.
  • 22
    Sobre a empresa da escola socrática em relação à imprevisibilidade da ação, ver (Arendt 2001________ (2001). A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 208).
  • 23
    Em três diálogos importantes - A República, O estadista e As leis -, Platão elimina a autonomia da política ao elaborar sua pólis ideal. Embora com importantes variações - em A República, o poder político é consignado ao rei-filósofo, em O estadista, o dirigente ideal varia do pastor humano ao tecelão régio, enquanto em As leis, seu último diálogo, são as próprias leis, sob a égide de um conselho noturno de filósofos, que regem a pólis - as soluções platônicas são sempre autoritárias, não deixando margem para a autonomia política dos cidadãos. A esse respeito, ver interpretação semelhante de (Arendt 2001________ (2001). A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 239; em especial, nota 69).
  • 24
    Interessante ponderação sobre isso é o elogio de (Arendt 2001________ (2001). A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 203, nota 17) ao modo como Montesquieu redefine a noção de leis.
  • 25
    Interessante assinalar que o professor Villa (1992)VILLA, Dana R. (1992). "Beyond Good and Evil: Arendt, Nietzsche, and the aestheticization of political action". Political Theory, v. 20. n. 2, p. 274-308. admite que a teoria da ação política de Hannah Arendt, discutida durante longo tempo por partidários de um modelo dialógico de política (como Habermas), passou recentemente a ser analisada em sua dimensão virtuosa, agonística e "teatral", ou seja, como performance. Em nosso argumento, no entanto, diferenciamos performatividade de performance teatral; esta última como emulação de códigos e comportamentos predeterminados ou roteirizados.
  • 26
    O conceito arendtiano de ação política é analisado em Kateb (1983)KATEB, George (1983). Hannah Arendt: politics, conscience, Evil. Totowa: Rowman & Allanheld.. Habermas (1980)HABERMAS, Jürgen (1980). "O conceito de poder de Hannah Arendt", em FREITAG, Barbara & ROUANET, Sérgio Paulo (orgs.). Habermas: sociologia. São Paulo: Ática., por sua vez, discute Arendt no artigo "O conceito de poder de Hannah Arendt".
  • 27
    Para essas e outras referências, ver (Canovan 1978CANOVAN, Margaret (1978). "The contradictions of Hannah Arendt's political thought". Political Theory, v. 6, n. 1, p. 5-26., p. 8, nota 6).
  • 28
    Isso é visível em alguns importantes estudos sobre política e teoria da ação em Hannah Arendt, tais como: (Villa 1996________ (1996). Arendt and Heidegger: the fate of the political. Princeton: Princeton University Press.; Villa 1999________ (1999). Politics, philosophy, terror: essays on the thought of Hannah Arendt. Princeton, NJ: Princeton University Press.); Pirro (2000)PIRRO, Robert C. (2000). Hannah Arendt and the politics of tragedy. DeKalb, IL: Northern Illinois University Press. e Taminiaux (1997)TAMINIAUX, Jacques (1997). The Thracian Maid and the professional thinker: Arendt and Heidegger. Albany, NY: State University of New York Press..
  • 29
    A falha das revoluções em se institucionalizarem, a burocratização e a perda do espírito revolucionário são alvo de análise no capítulo 6 em Da revolução, intitulado "A tradição revolucionária e seu tesouro perdido" (cf. Arendt, 1990________ (1990). Da revolução. 2. ed. Brasília: Editora UnB; São Paulo: Ática., p. 172-224). Sobre a tensão, na obra arendtiana, entre a ação e institucionalização, vale conferir também Avritzer (2006)AVRITZER, Leonardo (2006). "Ação, fundação e autoridade em Hannah Arendt". Lua Nova, n. 68, p. 147-167..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2015

Histórico

  • Recebido
    30 Jan 2014
  • Aceito
    29 Ago 2014
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