Resumo:
Dada a importância do tema da representação política para a democracia brasileira, assim como da indissociável relação entre a atuação parlamentar e o policy making, este trabalho apresenta os resultados de pesquisa que realizou a avaliação do mandato de uma deputada estadual, negra, brasileira. Partimos de uma revisão das metodologias correntes sobre avaliação parlamentar, feita a partir dos gender policy studies, que se debruça sobre o tema da representação política de gênero. Realizou-se a avaliação do mandato, buscando considerar sua efetividade, ou seja, sua capacidade de representar materialmente os interesses ou as perspectivas das mulheres e dos grupos que pretendeu representar. Mobilizando os debates sobre a relação entre a representação descritiva, substantiva e simbólica exercida por mulheres em posições políticas, avaliamos dimensões como: a contribuição do mandato para o fortalecimento democrático, a gestão do gabinete e os resultados da atuação parlamentar.
Palavras-chave:
política; representação; mulheres negras; avaliação parlamentar; gênero; raça
Abstract:
Given the importance of political representation for Brazilian democracy, as well as the inseparable relationship between parliamentary action and policy making, this article presents the results of a study that evaluated the mandate of a Black Brazilian state representative. On the one hand, research in public administration tends to focus on the executive branch; studies about other powers are less common, especially regarding the legislative branch. On the other hand, there is a long history of studies in this area in political science, both in legislative studies and especially in studies on the political representation of women in parliaments. The mandate was evaluated for effectiveness, that is, its ability to materially represent the interests of women and the groups it intended to represent. Mobilizing literature on the relationship between descriptive, substantive, and symbolic representation exercised by women in political positions, we evaluated the mandate’s contribution to dimensions such as: democratic strengthening, political administration, and results of parliamentary action.
Keywords:
politics; representation; black women; parliamentary evaluation; gender; race
Introdução
A importância do tema da representação política para a democracia brasileira é indiscutível, assim como a relação inseparável entre a ação parlamentar e a formulação de políticas públicas. Por um lado, o trabalho e a pesquisa na área de Gestão Pública tendem a se concentrar na esfera do Executivo; estudos dedicados a entender questões no âmbito dos outros poderes são mais escassos, especialmente sobre o poder legislativo. Por outro lado, há uma longa história de estudos nessa área na Ciência Política, tanto nos estudos legislativos quanto, especialmente, nos estudos sobre a representação política das mulheres nos parlamentos.
Os debates sobre o exercício da representação política tendem a ocorrer de forma crítica. As instituições democráticas, cada vez mais complexas, passam a ser cada vez mais cobradas pelo conjunto da cidadania, não apenas em virtude de um desejado aprofundamento democrático (accountability), mas também pelo seu contrário, a desconfiança ou o descrédito na atuação do Parlamento. No caso brasileiro, isso se aprofunda pelo fato de que a informação que a população obtém a respeito do que fazem vereadores, deputados e senadores é opaca e está aquém da importância que a densidade de um sistema democrático requer. Diante da impressão de um Executivo excessivamente fortalecido, uma imagem comumente difundida é a de um Legislativo clientelista, que impede aquele de executar e implementar políticas públicas. No intuito de desconstruir a percepção de irrelevância ou inoperância, emergem estudos de avaliação de mandatos parlamentares.
Neste contexto, o presente trabalho apresenta os resultados de pesquisa que realizou a avaliação do mandato de uma deputada estadual brasileira. O período de avaliação cobriu os anos de 2019 a 2022, desde que a deputada foi eleita até o final do primeiro semestre do último ano de mandato.
Para realizar a avaliação, contamos não apenas com uma revisão das metodologias correntes sobre avaliação parlamentar, mas com uma literatura oriunda dos gender policy studies, que se debruça sobre o tema da representação política de gênero. Essa busca examinar os amplos desafios estruturais e institucionais para a representação política exercida por mulheres parlamentares. Trata-se de perguntar pela efetividade dos mandatos femininos, ou seja, sua capacidade de representar materialmente os interesses ou as perspectivas das mulheres, e os diversos obstáculos para seu alcance. Ou seja: o que acontece à medida que as mulheres acessam o Parlamento? As representantes que dizem agir em prol de mulheres o fazem de fato? Como atuam e o que conseguem produzir como resultado de sua atuação política? Parte-se da ideia de que representação substantiva é efetivada quando as representantes agem rotineiramente em defesa das mulheres e trazem suas perspectivas para o debate político e para as políticas públicas. Assim, mobilizamos os debates sobre a relação entre a representação descritiva, substantiva e simbólica exercida por mulheres em posições políticas, focando na efetividade de seus mandatos (Childs; Lovenduski, 2013).
Assim, a pesquisa buscou avaliar a efetividade e o potencial democrático do mandato da deputada Andreia de Jesus (PSOL - PT). Andréia de Jesus é uma mulher negra natural de Belo Horizonte e moradora de Ribeirão das Neves, município da região metropolitana. Morando na periferia, Andreia se casou cedo e foi mãe aos 19 anos. Aos 12, iniciou sua vida profissional como empregada doméstica e deixou essa atividade em 2008, quando foi nomeada educadora infantil pela Prefeitura de Ribeirão das Neves. Aos 35 anos, ingressou no curso de Direito com uma bolsa integral do Programa Universidade Para Todos (ProUni), o que permitiu sua atuação como advogada popular. Na faculdade, conheceu as Brigadas Populares, organização de que fez parte, e teve contato também com a luta fundiária, dos sem-teto, dos sem terras e da Associação de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade. Integrou a equipe das vereadoras eleitas em Belo Horizonte, Cida Falabella e Áurea Carolina. Em 2018, Andréia foi eleita deputada em Minas Gerais para o seu primeiro mandato, pelo Psol, e, em 2022, foi reeleita para o mesmo cargo, pelo PT. A decisão de estudar este caso deve-se, por um lado, à existência de um amplo conjunto de dados públicos sobre os mandatos dos parlamentares da Assembleia Legislativa de Minas Gerais - ALMG; bem como à acessibilidade ao caso específico e suas características. Assim, o caso mostrou-se particularmente adequado para o tipo de análise pretendida.
O trabalhou dialogou com o conjunto de preocupações anteriormente indicadas, permitindo avançar, a partir deste estudo de caso, na compreensão sobre o que acontece quando uma mulher negra se faz presente na política. E também fazer outras perguntas relacionadas, tais como: grupos com presença reduzida no Parlamento - ou seja, uma única ou poucas mulheres negras no contexto de uma legislatura estadual - conseguem influenciar os diferentes componentes do processo legislativo, segundo sugere Philips (1995), Mansbridge (1999) ou Mateo Diaz (2005), entre outras autoras? Dito de outra forma, conseguem impactar os diferentes processos e recursos intangíveis, mas necessários para a execução do trabalho parlamentar: as instituições pré-existentes (regras, processos, procedimentos, cultura organizacional), os recursos institucionais e o acesso a eles, e o trabalho dentro do gabinete. Assim como as relações com os diferentes atores do parlamento - parlamentares, bancadas, comissões, líderes partidários, entre outros. Buscamos incluir tais dimensões na análise.
Referencial teórico-empírico
De acordo com a Inter-Parliamentary Union - IPU, em 2024, o Brasil ocupava a posição 133 entre 190 países no quesito “representação feminina nos parlamentos nacionais”. Nesse mesmo ano, apenas 17,5% da Câmara dos Deputados e 17,3% do Senado eram ocupados por mulheres, taxas inferiores à média global (IPU, 2024).
Nas eleições municipais de 2016, mais da metade do eleitorado era composto por mulheres e boa parte delas se declararam negras (52,5% e 28,2% respectivamente). Do total de candidaturas para as Câmaras de Vereadoras/es, a candidatura de mulheres alcançou um terço do total, mas essa participação caiu para 15,4% no caso das mulheres negras. Ao analisarmos o resultado das eleições, a participação feminina e negra decresce ainda mais, com somente 5% das vagas do legislativo municipal ocupadas por mulheres negras. Nas eleições de 2020, a eleição feminina permaneceu abaixo da proporção de eleitores, com apenas 12,1% de mulheres eleitas para as prefeituras do país, das quais 3,8% eram mulheres negras (Péret; Braga; Saraiva, 2021).
Nas demais esferas de poder, a situação das mulheres permanece no nível de sub-representação. Com o pleito de 2018, do total de eleitos a deputadas/os estaduais e federais, um pouco mais de 15% eram mulheres, sendo que, para o senado, essa proporção foi de apenas 11,5% de representantes eleitas. Passando para o nível estadual, o contexto da representação feminina torna-se ainda mais deficiente, tendo em vista que, do total de governadores eleitos, apenas uma é mulher. Nas eleições de 2022, o percentual de representações femininas eleitas entre deputadas/os aumentou para 18%, sendo que mulheres negras representam 21% entre as deputadas estaduais e 20% entre as deputadas federais. No senado, houve um aumento para 15% de mulheres eleitas; porém, não há mulheres autodeclaradas negras entre as senadoras eleitas. Já na esfera executiva, apenas 2 governadoras foram eleitas. Com isso, o Brasil passou a ocupar a posição 129º no ranking de percentual de mulheres em parlamentos nacionais (TSE, 2022).
Esses dados tornam-se ainda mais relevantes quando consideramos que as mulheres negras são o maior grupo étnico da população brasileira, representando 28%, e a maior força de trabalho. Elas têm uma taxa de participação mais baixa na população economicamente ativa e uma taxa de desemprego mais alta. Ocupam as posições menos prestigiadas e remuneradas: são a maioria entre as trabalhadoras domésticas - quase 60% de todas as trabalhadoras nessa função. Elas também são a maioria no trabalho de cuidado em geral, incluindo funções domésticas, de saúde e educação. Essas são posições que reforçam a herança do período colonial e os papéis das mulheres negras como “serviçais”.
Os rendimentos no serviço público reproduzem essa hierarquia social. Entre os profissionais com ensino superior, as mulheres negras ganham, em média, menos da metade do que um profissional branco (40%). Essa desigualdade é explicada não apenas pela discriminação de gênero e raça, mas também pela forma como elas estão inseridas na ocupação. As mulheres negras estão sub-representadas entre os servidores públicos nas atividades e posições mais prestigiadas. Cerca de 65% das mulheres negras empregadas no serviço público estão na esfera municipal, que possui os piores rendimentos médios.
A baixa representação das mulheres em posições políticas é amplamente explorada pelos gender policy studies. Sua menor presença no parlamento é explicada pela literatura a partir de vários fatores, incluindo fatores culturais, socioeconômicos e políticos (Childs; Lovenduski, 2013). A literatura também indica que o número de mulheres selecionadas como candidatas para a corrida política varia de acordo com a organização partidária, as regras do jogo e a ideologia do partido (Norris; Lovenduski, 1995). Os estudos convergem na defesa de que os recursos que as mulheres têm para participar do jogo eleitoral são mais escassos e diferentes dos recursos dos homens.
Por sua vez, Clara Araújo, Ana Calasanti e Mala Htun (2018), explorando os obstáculos à representação política feminina no Brasil, especificamente, concluem que as razões para o baixo número de mulheres em cargos eleitos aqui derivam das características das instituições políticas do país, que incluem: regras eleitorais centradas nos candidatos, a fragmentação do sistema partidário e procedimentos de seleção descentralizados nos partidos políticos. O alto custo das campanhas políticas, a interação da incumbência e o acesso ao tempo de televisão para os candidatos também aumentam as barreiras existentes.
Nesse sentido, vale citar a defesa da política da presença (Philips, 1995), ou seja, da importância dos corpos que ocupam a política e como a performam (Htun, 2018), entre outros debates fundamentais para se avaliar o caráter da democracia, dos espaços democráticos e das sujeitas, sujeites e sujeitos que a conformam. A literatura que se dispôs a enfrentar essas questões revela a importância da abordagem focada na representação descritiva (“presença”), porque, entre outros motivos, ela tende a aumentar a chamada representação substantiva, ou seja, a produção de políticas e outras iniciativas que atendem aos interesses dos grupos sub-representados, melhorando, portanto, a qualidade da deliberação e a produção de benefícios que se estendem para todo o sistema político (Mansbridge, 1999).
Via de regra, a literatura que se dedicou a avaliar a efetividade da representação de parlamentares mulheres enfoca as atitudes, prioridades políticas e iniciativas levadas a cabo por elas. Os resultados desses estudos evidenciam que, de fato, elas tendem mais a agir em favor das mulheres (em comparação com parlamentares homens). No entanto, mostram também que as mulheres parlamentares enfrentam desafios extras e variados, e isso ocorre porque “os parlamentos têm uma capacidade de autorregulação forte, sua própria lógica, uma forte inércia, muito pouco espaço para inovação e muitas formas de socializar ou assimilar “dissidentes” (Mateo Diaz, 2005, p. 225). Assim, o parlamento tende a reproduzir a divisão sexual e racista do trabalho, posicionando as mulheres parlamentares em áreas específicas da política pública (consideradas soft areas). Em geral, essas áreas têm menor peso político, o que inclui, em muitos parlamentos, as comissões em que são discutidos os temas relacionados às mulheres.
Nesse mesmo sentido, o trabalho de Heath, Schwindt-Bayer e Taylor-Robison (2005) explora como as mulheres são marginalizadas depois de ganharem representação no legislativo. Argumentam que fatores institucionais e políticos afetam a forma com que líderes políticos masculinos, tradicionalmente dominantes, distribuem recursos políticos escassos - sobretudo atribuições de comissões - para as mulheres recém-chegadas ao parlamento. Além de tenderem a agir de modo paternalista e indelicado, criando um ambiente hostil para as mulheres, criam artifícios para as excluírem das posições de liderança. Seus resultados indicam que as mulheres tendem a ser isoladas em comissões que discutem as questões femininas ou comissões dedicadas às questões sociais; e as mantêm fora das comissões que possuem muito poder: “Assim, para conseguir a incorporação plena na arena legislativa, as recém-chegadas devem fazer mais do que apenas ganhar assentos. Elas devem mudar as instituições que permitem ao grupo tradicionalmente dominante acumular escassos recursos políticos” (Heath; Schwindt-Bayer; Taylor-Robison, 2005). Em sua pesquisa sobre legislaturas femininas na América Latina, Schwindt-Bayer e Alles (2018) também evidenciam que as mulheres parlamentares não têm acesso a diversos cargos de liderança de comissões ou alcançam cargos de liderança superior na mesma medida que os homens.
O conceito de “massa crítica” também ajuda a entender as limitações no desempenho das parlamentares e é frequentemente usado “para explicar por que as mulheres nem sempre parecem representar as mulheres uma vez que estão no cargo político” (Childs; Krook, 2008, p. 725). De acordo com essa linha de argumentação, isso se deve ao número relativamente baixo de mulheres eleitas; apenas quando as mulheres puderem formar um grupo maior de legisladoras, elas serão capazes de trazer as preocupações das mulheres para dentro da política e influenciar seus colegas homens a apoiarem tais legislações.
A ideia vem do trabalho pioneiro de Kanter (1977), que observou o status das mulheres em uma grande corporação nos Estados Unidos e que concluiu que, dado que elas não eram numericamente suficientes para implementar mudanças significativas, elas tiveram que aceitar a cultura do grupo dominante. A investigação de Dahlerup (1988), por sua vez, é responsável pela aplicação do trabalho de Kanter na análise política e pelo uso do termo “massa crítica” para discutir as limitações do poder de ação das parlamentares. Os críticos da “teoria da massa crítica” apontam que aumentar o número de mulheres em cargos públicos não é necessariamente suficiente para alcançarmos legislações mais favoráveis às mulheres. De qualquer forma, essas contribuições iniciais foram fundamentais para a pesquisa sobre a representação substantiva das mulheres (Childs; Krook, 2008).
A preocupação com a presença das mulheres nos espaços políticos torna-se ainda mais relevante quando enfocamos o caso das mulheres negras e considerando contextos de sociedades pós-coloniais como a brasileira. Herdamos um modelo de democracia liberal que não foi interpelado criticamente em face das questões estruturais de nossa sociedade, como o racismo e o sexismo sobre a qual se funda, e que produz consequências expressivas para as mulheres negras. Grupo social mais expressivo em termos populacionais, elas ocupam, ao mesmo tempo, o lugar mais subalterno nesta sociedade, experimentando o maior número de situações e condições de exclusão. É, neste sentido, o grupo que enfrenta as maiores interdições para acessar posições de prestígio e poder nesta sociedade, como o Parlamento e outros espaços institucionalizados da política. E que, ao afrontar essa estrutura, ocupando tais espaços, enfrenta sistematicamente as reações mais violentas.
Por essa razão, uma abordagem interseccional é fundamental para este tipo de investigação. A abordagem interseccional nasce dos movimentos feministas negros, que fizeram duras críticas aos movimentos feministas que haviam surgido até então, liderados por mulheres brancas de classe média que, deliberadamente ou não, negligenciaram questões raciais e de classe na busca pela igualdade de gênero. Defende a ideia de que a compreensão das mulheres como uma categoria homogênea e estática deve ser extrapolada e chama a atenção para a necessidade de abordar as demandas distintas das minorias políticas entre as próprias mulheres.
A interseção de múltiplos sistemas de opressão, operando nos mais diversos organismos sociais, define o termo interseccionalidade. As autoras buscam abordar os diferentes sistemas de opressão que surgiriam da combinação de contextos únicos de discriminação e que criam relações de poder distintas e diferentes realidades (Collins; Chepp, 2013). A abordagem interseccional é importante, portanto, para entender o papel específico das mulheres negras no parlamento, bem como as barreiras específicas enfrentadas por elas nos espaços políticos.
A investigação de Htun (2014) sobre mandatos de mulheres negras que ocupam o Poder Legislativo na América Latina adota tal abordagem e argumenta que a representação política exercida por essas parlamentares tende a ser holística, ou seja, alcança interesses e demandas mais amplos do que os tradicionalmente enfocados pelo feminino “tradicional” (ou branco e eurocentrado). Mas, para alcançar esses resultados, há que cruzar uma diversidade de barreiras.
Essas barreiras variam desde dificuldades específicas no acesso à política, como formação educacional ou profissional, até o enfrentamento de níveis mais intensos de violência política. O tema da violência contra mulheres no poder, ou da violência política de gênero, tem recebido crescente atenção e análise na literatura recente. Trata-se de um fenômeno que tem sido destacado globalmente, mas especialmente na América Latina (Krook; Sanín, 2016), uma região pioneira nas legislações sobre o tema. Esse tipo de violência refere-se a um fenômeno social que engloba ataques, difamação e assédio direcionados especificamente a atrizes políticas por sua identidade de gênero - como mulheres ou como negras, indígenas ou membros da comunidade LGBTQIA+. Comparativamente, tais grupos enfrentam níveis mais severos de violência, mesmo não estando diretamente envolvidos na política institucional. Tal violência cria uma barreira significativa e adicional para a participação de grupos tradicionalmente excluídos da política, corroborando a predominância do status quo nos lugares de poder (Sen; Vallejo; Walsh, 2019; Bardall; Bjarnegård; Piscopo, 2019).
Matos (2021) e Kuperberg (2018) propõem uma abordagem interseccional para o problema da violência política de gênero. Apesar dessa violência ser direcionada a mulheres em posições políticas, argumentam que esse grupo não é homogêneo e, portanto, é necessário analisar suas experiências na política de maneira que se contemplem as múltiplas facetas de suas identidades, como raça, religião, etnia, orientação sexual, identidade de gênero, deficiência e identificação ideológica. A investigação do Instituto Marielle Franco (2021) converge nessa perspectiva ao analisar os mandatos de onze parlamentares brasileiras, indicando que a especificidade da violência política de gênero tem um impacto maior sobre as mulheres negras e transexuais.
Buscando avaliar os resultados do mandato parlamentar de uma deputada estadual negra, bem como as dificuldades institucionais enfrentadas nesta esfera, nosso estudo buscou considerar o conjunto de questões anteriormente apresentadas de forma resumida àquela já tradicional metodologia de avaliação de mandatos parlamentares. Na sequência, explicitamos o modelo por nós desenvolvido e utilizado.
Metodologia
Métodos de coleta e análise de dados
O trabalho utilizou diferentes formas de coleta de dados, cuja disponibilidade mostrou-se essencial ao seu desenvolvimento. Assim, a triangulação de informações foi importante para enfrentar a insuficiência parcial das fontes disponíveis, assim como o trabalho de sistematização de dados que se encontravam dispersos.
A revisão bibliográfica contou com a revisão de onze documentos relacionados ao tema da avaliação parlamentar; além disso, com a análise de dezenas de artigos e publicações relacionadas à temática da representação política de mulheres, e incluiu trabalhos acadêmicos que faziam referência direta a iniciativas das quais a deputada participou. Esta etapa foi importante sobretudo para refinar hipóteses e construir a metodologia de análise, além de contextualizar histórica e socialmente o mandato em análise.
A pesquisa documental, por sua vez, abrangeu e analisou dezenas de documentos relativos à produção legislativa (projetos de lei, entre outros), registros de reuniões, requerimentos realizados pela deputada no decorrer do mandato e outros componentes do processo legislativo. Utilizaram-se dados secundários oriundos de bases de dados de ampla publicidade da ALMG e dados informados por meio de requerimento. Também foram analisados dados dos sítios do mandato na internet e suas redes sociais.
Dados primários foram coletados em nove entrevistas individuais e coletivas com a equipe do mandato; com grupos focais realizados com lideranças comunitárias de organizações não-governamentais; e pela aplicação de survey para coleta da percepção da população sobre o mandato.
Fundamentos metodológicos do modelo de avaliação do mandato parlamentar
O modelo de avaliação proposto pressupôs a conjugação de variáveis quantitativas e qualitativas, assim como o uso de análises quantitativas e qualitativas. Isso porque, quando usadas em conjunto, mostraram-se capazes de trazer informações mais completas e complexas, tornando a análise mais abrangente, densa e com maior potencial explicativo.
A grande parte dos modelos de avaliação existentes foca-se na comparação entre mandatos. Na utilização do modelo proposto, a comparabilidade é possível, já que ele pode ser aplicado para qualquer mandato parlamentar; mas, no caso em questão, buscamos avaliar a evolução da atuação da deputada ao longo do próprio mandato. Assim, nosso modelo avaliativo não pretendeu promover a comparação entre parlamentares e, especialmente, não pretendeu ser classificatório. Esta escolha decorre dos limites da classificação e de seus efeitos, nem sempre positivos sobre a atividade parlamentar, dado que estimula uma competição que nem sempre é profícua. Além disso, não há como comparar, com indicadores apenas quantitativos, candidatos que fazem parte da maioria ou da minoria de uma casa legislativa; ou que façam parte de segmentos mais ou menos privilegiados da população. As demandas por equidade na representação política são uma evidência presente em campos de estudo das ciências sociais aplicadas que não podem ser desconsideradas na tarefa de avaliação de um mandato parlamentar.
Outro fundamento diz respeito à utilidade empírica da avaliação construída para o próprio mandato avaliado. Para a pesquisa, era importante que ela também trouxesse como contribuição interpretar seu desempenho sob uma perspectiva democrática e não produtivista. Neste sentido, privilegiamos aspectos da atividade da parlamentar que contribuíssem, afinal, para o fortalecimento da democracia.
A escolha das variáveis do modelo partiu tanto da revisão teórico-empírica quanto da disponibilidade das informações (ou passíveis de serem coletadas em tempo compatível com o cronograma da pesquisa). Em suma, o modelo que propomos resultou da aplicação do conjunto de fundamentos que o antecedem, dando credibilidade à proposta; ao mesmo tempo que se pauta em teorias e práticas nacionais e internacionais que trouxeram uma abrangência não contemplada por outros modelos. A análise do mandato foi guiada por quatro dimensões avaliativas, visualizadas no Quadro 1, a seguir:
Análise dos resultados
Representatividade descritiva e simbólica
Para avaliar a representatividade descritiva do mandato foi necessário conhecer a representação social da Assembleia Legislativa de Minas Gerais na legislatura 2019-2022. Os dados coletados evidenciaram que foi uma legislatura majoritariamente masculina (87,0%) e branca (79,8%), o que destaca a lacuna de representação de alguns grupos da sociedade, ou seja, que a composição da ALMG não espelha a composição do eleitorado. A tabela 1 abaixo mostra que mulheres, pretos e jovens estão sub-representados nesta legislatura.
Mulheres e não brancos são maiorias sub-representadas na política brasileira em geral. Pode-se afirmar que estes constituem o lugar de origem da deputada - mulher, negra, com 40 anos ao tomar posse. Em documento escrito durante sua pré-candidatura, De Jesus afirma: “ocupar a política é afirmar o poder popular nas instituições, inserir no seu cotidiano as nossas lutas por direito, a nossa representatividade e a nossa memória ancestral de resistência” (De Jesus, 2018). Esta fala aponta que, ao candidatar-se, a deputada tinha consciência da importância do aprimoramento da dimensão da representação descritiva no processo de promoção da democracia.
Os dados apontados evidenciam que sua presença na ALMG contribuiu para a redução do deficit democrático relacionado à representatividade descritiva. Esta evidência estatística é reforçada pelas respostas da grande maioria das pessoas que participaram do survey e dos grupos focais. Andréia de Jesus, mesmo para quem esperava mais de seu mandato, é vista como uma representante mulher, negra, periférica, que “representa” as entrevistadas, entrevistados e entrevistades.
É interessante observar também que todas as mulheres eleitas para a legislatura 2019-2022 da ALMG têm curso superior completo, como mostra a Tabela 2. É quase uma exigência para que elas cheguem a esse lugar, requisito que nem sempre é atendido pelos representantes homens.
A descrição dos principais fatos de sua vida profissional e política, no material de campanha, na sua bibliografia constante do site da ALMG (ALMG, 2022a) e em seu próprio site na internet (De Jesus, 2022), evidencia que, durante a companha e após eleita, a deputada Andréia de Jesus procurou ocupar o lugar da mulher negra periférica na política. Além disso, ela também ocupa espaços simbólicos, como o de mãe solo, ex-trabalhadora doméstica, advogada e servidora pública municipal. Esse conjunto de características a aproxima de uma parte importante da população brasileira e mineira, mas também a distingue dos símbolos associados a esse espaço de poder. Silva Júnior e Araújo (2019) ao analisar, em específico, o vídeo de campanha de Andréia de Jesus¸ apontam que ele centraliza as questões de raça e gênero, com destaque para a autossuficiência das pessoas negras retratadas na produção. Em sua interpretação, o protagonismo e narração da própria candidata trouxe à campanha “um elemento de empoderamento feminino, tendo em vista a imagem de uma mulher negra retinta, sorridente e ativa, podendo ser considerado uma reviravolta aos modelos tradicionais de atores políticos” (Silva Júnior; Araújo, 2019, p. 11). Assim:
É nesta peça publicitária que podemos ver a inversão da tradicional figura política sendo feita, trata-se da realocação do estereótipo de mulher negra e guerreira, para o espaço, que até então lhe era renegado, o da política, sugerindo-a como uma pessoa capaz de oferecer transformação, já que se trata de uma voz negra, não predominante neste espaço de poder (Silva Júnior; Araújo, 2019, p. 11).
Além disso, sua escolaridade, elevada para os padrões nacionais, e sua trajetória profissional fazem com que ela se distinga de seu grupo social de origem, sendo assim um exemplo ou referência de superação. Dessa forma, ilustra também o “efeito modelo” das mulheres na política (Childs; Lovenduski, 2013).
Durante sua campanha, Andréia de Jesus formalizou seu compromisso com as pautas destes três grupos não hegemônicos: mulheres, negros e jovens, e suas interseccionalidades. Em seu material de campanha, posicionou-se enfaticamente sobre o combate ao racismo e à discriminação, principalmente contra os jovens negros, especialmente por parte da polícia e agentes de segurança e da promoção da cultura, em relação ao do povo negro, ribeirinho e periférico urbano. Uma vez eleita, reiterou o compromisso com a juventude negra e ampliou a relevância da pauta do combate à violência contra as mulheres, ambos evidenciados em sua biografia, tanto no site da ALMG, como em seu próprio site.
Nesse, sua eleição em outubro de 2018 é apontada como um marco histórico dos nove anos de Brigadas Populares. A relação com as Brigadas Populares foi mantida ao longo do mandato, como é evidenciado pela publicação periódica de notícias sobre seu mandato no sítio do movimento. Esta relação evidencia a legitimação social de sua campanha e de seu mandato por um movimento social voltado também para a ocupação de espaços públicos de representação e poder.
No material de campanha, ficam evidentes a identificação da coligação partidária pela qual Andréia de Jesus candidatou-se - Frente Minas Socialista, com o Partido Socialista e Liberdade (PSOL) e o Partido Comunista Brasileiro (PCB); e aparece também a identificação do coletivo Muitas. O coletivo “Muitas pela Cidade que Queremos” nasceu em 2015, propondo uma ação coletiva na contramão da política hegemônica ao buscar horizontalidade e participação ativa e popular em direção à “cidadania insurgente” (Fonseca; Gonçalves, 2018, p. 4).
Na campanha de 2018, o Muitas apresentou sete candidaturas a deputadas estaduais e cinco a deputadas federais em Minas Gerais, todas da Frente Minas Socialista, coligação Psol e PCB, sendo que Andréia foi eleita como deputada estadual e Áurea Carolina como deputada federal. Bárbara Lopes Campos (2021) classifica o Muitas como uma “experiência de candidatura coletiva, que pode ser classificada como uma ‘tecnologia sócio-política inovadora’, pois provocaram mudanças no campo político brasileiro ao diversificar os quadros de parlamentares eleitas/os, desafiar o personalismo e o individualismo das candidaturas, potencializar a legitimidade eleitoral, ‘hackear’ a institucionalidade política e, por fim, promover dimensões não menos significativas de reencantamento político num país onde sagra o ‘ódio à política’” (Campos, 2021).
É importante destacar também que o Muitas foi um dos coletivos que construíram o Ocupa Política. O Ocupa Política denomina “uma confluência de organizações, coletivos da sociedade civil e (atualmente) 17 Mandatos-Ativistas [...] juntas para ocupar a política institucional, potencializar candidaturas ativistas e articular uma política suprapartidária de renovação progressista nacional!” (OCUPA POLÍTICA, 2022). Dentre os princípios elencados destacam-se quatro deles que se referem diretamente ao funcionamento e à qualidade da democracia: construção a partir das bases sociais e compromisso com lutas; abertura do sistema político e reforma popular que permita à sociedade incidir nas instituições; educação popular e cidadania como práticas transformadoras; e radicalização democrática, transparência e acessibilidade. Eles evidenciam um esforço coletivo para viabilizar que pessoas com um perfil diverso e mais próximo à realidade do país ocupem o lugar de representantes e a preocupação com a participação e integração política dos cidadãos. Pode-se argumentar, que a exemplo do que afirmam Fonseca e Gonçalves (2018) acerca dos mandatos abertos, esta iniciativa consiste também em uma prática que aponta para um caminho alternativo ao individualismo e a competitividade nos ambientes formais e institucionalizados, criando incentivos à inovação. A distinção entre mandato aberto e coletivo é algo que aparece na literatura a respeito das tecnologias sócio-políticas inovadoras, que serão aprofundadas mais adiante.
A partir do exposto, podemos afirmar que Andréia de Jesus candidatou-se por meio de partido, via necessária na legislação eleitoral brasileira, mas sua candidatura emerge da erupção de diversos movimentos sociais que vêm buscando uma representação política que extrapola os limites partidários.
Os sentimentos e atitudes evocadas pela eleição da deputada e por seu comportamento ou estratégias de campanha ou do mandato foram explorados na realização de grupos focais e no survey. Seus resultados mostram que as práticas do mandato e atitudes da deputada são vistas pela população como fatores que fortalecem a representatividade e geram expectativa de melhora no processo legislativo.
Atividade parlamentar
A proposição de leis, juntamente com a fiscalização do Poder Executivo, compõe o quadro de funções de uma parlamentar. Dados disponíveis no site da ALMG, apresentados na Tabela 3, evidenciam que, na legislatura 2019-2022, as Leis Ordinárias foram as modalidades mais propostas, seguidas pelas Emendas Constitucionais, Resoluções e Leis Complementares, respectivamente.
A atuação da Deputada Andréia de Jesus focou a autoria de PECs (Emendas Constitucionais), PLs (Leis Ordinárias) e PLCs (Leis Complementares), nesta ordem. É interessante observar que o número de PECs em que ela figura como autora está no quarto quartil, ou seja, ela figura entre os 25% dos deputados mais ativos neste caso. As PECs são projetos propostos de maior importância e complexidade, portanto, contam com vários autores. Em nenhuma das PECs a deputada é a principal autora.
Quanto à autoria de PLs, ela posiciona-se no terceiro quartil, o que significa que está entre os 50% dos parlamentares mais propositivos e a primeira dentre as mulheres (em PLs propostos e aprovados). Dentre os projetos em que figura como autora (49), foi possível identificar os detalhes sobre a tramitação de 47 deles. Andréia de Jesus é a principal autora de 30 deles, dentre os quais, 24 assina sozinha. Dentre os PLs que têm como autores principais outros parlamentares, destaca-se a atuação conjunta com o PT, em especial com as deputadas Leninha e Beatriz Cerqueira, também destacada nas entrevistas realizadas com membros da equipe do gabinete.
O processo legislativo é complexo e longo. Entre cada proposição e sua transformação em lei há um percurso próprio, determinado pelo regimento interno da ALMG. Dados sobre a tramitação dos projetos em que a deputada figura como autora evidenciam que dentre os 38 PEC, 27 ainda estão tramitando, seis foram anexados e cinco aprovados. O único Projeto de Lei Complementar que assinou ainda estava em tramitação no momento da finalização da pesquisa. Quanto aos 47 Projetos de Lei, para os quais se dispunha de dados sobre sua tramitação, sete foram aprovados, 11 foram anexados, um foi arquivado e 29 ainda se encontravam em tramitação quando os dados foram extraídos do sítio da ALMG. Até o momento de coleta dos dados, a taxa de sucesso em ambos os casos ficou em torno de 13%.8
Além disso, em um espaço de poder como a ALMG, a ocupação de cargos de liderança tem grande impacto sobre a atuação legislativa, afetando as possibilidades de sucesso do parlamentar. Durante as entrevistas verificamos que a deputada atuou como vice-líder do Bloco de Minoria. A avaliação do sítio das Brigadas Populares evidenciou sua atuação como presidente da mesa em uma ocasião. E os dados disponibilizados no sítio da ALMG evidenciam sua atuação como membro de várias comissões. Sua atuação em comissões pode ser apurada em dados da ALMG, como se pode visualizar no Quadro 2, merecendo destaque sua atuação como Presidente da Comissão de Direitos Humanos. Esta comissão, normalmente pouco valorizada nos estudos de avaliação parlamentar nacionais, é considerada por organismos internacionais como de extrema importância para a preservação e promoção da democracia.
O mandato parlamentar pode ser constrangido por vários fatores comprometedores da atividade legislativa. O primeiro tipo de constrangimento que destacamos é o gerado pela inexperiência na atividade parlamentar. Parlamentares que estão no primeiro mandato e que não tenham tido experiência anterior ao mandato em atividade legislativa terão um custo de aprendizagem. Ou seja, precisam de tempo para aprender a dinâmica do processo legislativo, do processo político e do processo administrativo da ALMG. Isto pode impactar na sua produção e no seu êxito (ou efetividade). O segundo tipo de constrangimento analisado é a discriminação. No caso da deputada, o sexismo e o racismo foram as duas formas de discriminação sofridas. Elas foram efetuadas por outros parlamentares, por servidores e por cidadãos.
O terceiro e último são as ameaças à vida da parlamentar. Ameaças desta natureza tiveram um impacto na operação do mandato e na saúde física e mental de todas nele envolvidas, além de incorrer em custos políticos e financeiros. No que se refere à operação do mandato, destaca-se a que as ameaças impossibilitaram a divulgação da agenda da candidata restringindo a comunicação com a população. A mudança não se restringiu à comunicação. Ela afetou o planejamento e a realização de todo deslocamento da deputada, que passou a ser acompanhada por seguranças e precisou usar estratégias para proteger sua vida, como o uso de carros blindados. As entrevistas com a deputada e sua equipe evidenciaram também o degaste psicológico gerado.
Gestão do mandato
As competências operacionais de um gabinete são função da experiência do parlamentar e de sua equipe, da oferta de processos de desenvolvimento de competências pela casa legislativa e dos esforços de inovação (neste caso) da parlamentar para a promoção de novas práticas na gestão desse espaço.
A falta de apoio técnico da casa legislativa torna o processo de aprendizado dependente da iniciativa pessoal da equipe e da rede de contatos que ela e os indivíduos conseguem estabelecer com os técnicos da casa e com os profissionais de outros gabinetes. Sendo a única representante do partido pelo qual foi eleita na ALMG, o PSOL, e a primeira candidata do partido a ocupar uma vaga na ALMG, a deputada também não pôde contar com o suporte do partido no processo de transferência de conhecimento e apoio. Esta situação é muito distinta de outros primeiros mandatos, em que o partido tem uma bancada e já teve diversos representantes naquele espaço representativo, como é o caso do PT, partido para o qual a deputada migrou recentemente. Este cenário tornou-se mais desafiador no contexto da pandemia de COVID- 19, que impôs o trabalho à distância em diversos momentos.
Do ponto de vista interno, observamos uma dificuldade relativa na coordenação das atividades, especialmente devido à carga de trabalho, à falta de um planejamento mais eficaz e à prevalência de uma “atitude mais reativa às demandas”. Isso é agravado pelo alto índice de rotatividade da equipe, o que, por sua vez, impactou a capacidade de registrar a trajetória do mandato - tornando-se dependente de estratégias individuais - e gerando falta de continuidade em alguns instrumentos de informação e responsabilização.
No que se refere ao terceiro elemento - esforços de inovação do parlamentar para promover novas práticas na gestão desse espaço - destacamos aqui a Gabinetona. A iniciativa qualifica-se como uma experiência de ocupação cidadã da política institucional. Ela teve início quando o Muitas saiu vitorioso em 2016 com a eleição de Áurea Carolina, mulher negra e atuante em movimentos da juventude e de gênero, e de Cida Falabella, diretora e atriz de teatro. Elas decidiram compartilhar suas equipes e atuar conjuntamente, promovendo a participação social e representatividade, dando origem à Gabinetona (Lima; Silva, 2019, p. 52-53). Conforme documenta Fonseca e Gonçalves (2018), o espaço físico e político ocupado pelas duas vereadoras foi nomeado Gabinetona em referência a posicionamento feminista do mandato e a valorização da mulher nas lutas urbanas. Além das vereadoras eleitas, a Gabinetona contava com mulheres, negros, indígenas, pessoas da comunidade LGBTQIA+, membros de movimentos sociais e culturais que consolidam a representatividade em torno dos corpos da cidade. A deputada Andréia fez parte Gabinetona pela primeira vez como assessora parlamentar.
Em 2018, a Gabinetona ampliou-se para as três esferas do Legislativo, contando com Cida Falabella e Bella Gonçalves como representantes municipais eleitas; com Andréia de Jesus, eleita para a Assembleia Legislativa Mineira; e para a Câmara Federal dos Deputados, Áurea Carolina. Diferentemente da experiência anterior, em que a situação de compartilhamento dava-se em único nível federativo, apresentando um formato horizontal, essa nova experiência envolvia parlamentares nos três níveis federativos. Esta nova configuração, vertical, mostrou-se mais desafiadora, dada a própria diferença entre as casas legislativas, culminando com o fim da Gabinetona, em 2020. A despeito das dificuldades inerentes à dimensão da gestão, a experiência possibilitou o desenvolvimento e consolidação de várias tecnologias sociais que serão tratadas em seção específica.
Pode-se dizer que o mandato de Andréia de Jesus foi construído a partir de princípios compartilhados pela Gabinetona e que esses princípios e as práticas neles inspiradas mantiveram-se mesmo após o fim da iniciativa, como a composição de um gabinete diverso, incluindo mulheres, pessoas negras, pessoas LGBTQIA+, indígenas, entre outros.
Representatividade substantiva
A coerência é um fator importante da representatividade substantiva, pois ela evidencia uma relação positiva entre as expectativas criadas pela representante ao longo da campanha e como elas foram transformadas em ações de interesse das representadas ao longo do mandato. Para tanto, considerar o percurso é importante, pois o ponto em que o parlamentar encontra-se no trajeto afeta suas opções e escolhas, especialmente, se a parlamentar tem expectativas de construir uma trajetória ascendente, de reeleição, ou de eleição para um cargo majoritário ou representatividade mais abrangente.
Sobre a coerência programática, observa-se um processo de espraiamento das pautas propostas na campanha ao longo do mandato. O Quadro 3 ilustra como a atividade como parlamentar possibilitou que a deputada aprofundasse sua atuação e definisse seus nichos temáticos e públicos. Ele foi construído a partir da análise do conteúdo do material de campanha, do sítio da internet e das ementas de suas proposições legislativas. Com exceção do tema “transporte público”, é possível verificar que todas as demais temáticas são objeto de sua ação como parlamentar.
A interação com a população não é só um preceito importante para o adensamento da democracia; ela é também um princípio de trabalho, expresso na campanha, na proposta do Muitas e da Gabinetona. O resultado do survey e dos grupos focais evidenciaram a importância desse compromisso após a eleição, na percepção da qualidade da representação proporcionada.
Nesse sentido é possível afirmar que o gabinete de Andréia de Jesus, além de usar os instrumentos previstos no regimento interno da ALMG para interação com o público - como por exemplo, audiência pública, audiência com convidados, debate público e fórum - novas tecnologias sociais criadas pela Gabinetona foram aplicadas e continuaram a ser mesmo após 2020. São elas:
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Consultas públicas ou Emenda com a Gente / Emenda com a Andreia: instrumento para democratizar o acesso a recursos acessados pelo mandato, especialmente o recurso relativo a emendas impositivas que corresponde a 0,8% do orçamento estadual. A alocação deste recurso foi feita através de editais publicizados e constitui um processo aberto e participativo para destinação das emendas parlamentares individuais acessadas pela deputada estadual. Com essa tecnologia social, busca-se contrapor à lógica eleitoreira que muitas vezes orienta a destinação do dinheiro público;
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GForte ou grupos fortalecedores: espaços de diálogo permanente com a sociedade. Formados por pesquisadoras, ativistas, representantes de associações, instituições, coletivos, fóruns e demais pessoas interessadas em contribuir com a orientação política do mandato. Funcionam como um canal de aprendizado e interlocução. A população participa diretamente da atuação parlamentar e, desta interação, podem resultar ações como debates, audiências públicas, requerimentos de informação e outras intervenções legislativas, além de posicionamentos dos mandatos;
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Mapas de lutas: reúnem informações sobre os grupos importantes de organizações e líderes sociais por tema. É uma forma de organizar o trabalho em diálogo constante com a população, para identificar pautas prioritárias e facilitar o acesso desses grupos aos instrumentos da política institucional;
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LabPops ou Laboratórios Populares de Leis: espaços de troca em que se elaboram as propostas legislativas do mandato. Por meio de rodas de conversa e grupos de trabalho, os projetos de lei são construídos e as estratégias para incidir em propostas apresentadas por outros parlamentares ou pelo Executivo são criadas. Eles são convocados diante de questões de relevância, relacionadas às pautas de atuação. Além das referências do Mapa de Lutas, convidam-se pessoas, movimentos e instituições ligadas ao assunto e que podem auxiliar na construção de novas propostas.
Estas metodologias constituem tecnologias sócio-políticas inovadoras que se propõe a construir mediações entre as maiorias sociais e os espaços de poder (GABINETONA, s.d.). Por outro lado, segundo apurado nas entrevistas, esses espaços ficaram em segundo plano tendo em vista as possibilidades de debates ampliados oferecidas pelos próprios instrumentos da ALMG, como as Audiências Públicas. No início do mandato, promoviam-se de uma a duas ao mês. Durante a pandemia, com o uso das ferramentas online, apesar de possibilitar a participação de pessoas de várias regiões do estado, tais espaços não tiveram a mesma potência. Com o retorno aos trabalhos presenciais, o mandato organizou de três a quatro audiências por mês. As audiências promovidas pelo gabinete buscaram debater temas “quentes” da conjuntura (mineração, violência política, “despejo zero”, ameaças sobre comunidade quilombolas), além das pautas prioritárias do mandato.
A análise dos temas de algumas das leis aprovadas propostas pelo mandato da deputada também constitui evidência de representação substantiva e ajuda a destacar a relação entre representação substantiva e efetividade.
Quatro das leis aprovadas previam medidas de combate à pandemia de Covid-19. Do ponto de vista da deputada, essas leis representaram um esforço relevante de articulação legislativa para construir legislação abrangente e inclusiva em um contexto adverso. Especificamente, destacamos duas delas: a Lei 23.645/2020 (PL 1820/2020), que previa a adoção de medidas relacionadas à proteção social e ao combate à violência contra as mulheres no contexto da pandemia de covid-19. Essa lei foi de importância destacada no contexto da pandemia, devido ao aumento significativo da violência doméstica contra mulheres. Já a Lei 23.663/2020 (PL 1972/2020) estabeleceu a necessidade de uma perspectiva racial no cuidado da população com Covid, uma medida exemplar para que um segmento significativo da população tenha suas demandas atendidas pelo Estado com as devidas especificidades.
Também é importante mencionar a Lei 23.758/2021 (PL 2180/2020), que autorizou o Poder Executivo a doar à União um imóvel localizado no município de Caldas em nome de povos indígenas tradicionais. E a Lei 24.099/2022 (PL 1544/2020) promoveu alterações legais voltadas para pessoas em situação de baixa renda no contexto de calamidade pública; incluiu uma determinação específica voltada para mulheres em situações de violência, que passam a poder serem beneficiárias de programas habitacionais desenvolvidos por meio do Fundo Estadual de Habitação. Tais leis claramente atendem às demandas provenientes da base política da deputada e à visão programática do mandato.
A percepção social sobre o mandato
A técnica de survey consistiu na primeira estratégia para apurar a percepção de atores externos sobre o mandato. A pesquisa de survey é um método de investigação quantitativo usado para coletar dados e informações a partir de características e opiniões de grupos de indivíduos.
O questionário utilizado foi aplicado de duas formas: por meio de ligações telefônicas para os contatos do banco de dados que compõe a mala direta do mandato e por meio de suas redes sociais. Foram assim constituídas duas amostras de conveniência, não aleatórias, com viés intencional. Ponderamos que o uso de uma amostra aleatória não seria conveniente, por supor um conhecimento muito específico, da deputada. Foi realizado o pré-teste do questionário, o que permitiu seu ajuste, tendo sido validado após o segundo pré-teste.
A aplicação do questionário para a primeira amostra de respondentes (por ligações telefônicas), ocorreu entre os dias 3 de junho e 27 de junho de 2022. Tentou-se contactar 663 números telefônicos, sendo que, desses, 73 pessoas aceitaram participar da pesquisa. Já a divulgação do questionário para a segunda amostra de respondentes foi feita por meio das redes sociais do mandato e por mensagens de WhatsApp. Tratou-se do mesmo questionário, neste caso, auto aplicado. Ocorreu entre os dias 27 a 30 de junho 2022, período em que ficou aberto para o recebimento de respostas. Foram obtidas 138 respostas.
Pelos limites desta publicação, o perfil da amostra será apresentado de forma agregada. Do conjunto total de entrevistadas/os/es, 56% identificaram-se como do sexo feminino, seguido de 42,8% do sexo masculino. Ao abordar sua cor/raça, a maior parte (35%) identificou-se como branca, seguida de negras (33%) e pardas (32%). A maior parte da amostra possuía alto grau de escolarização: cerca de 80% possuíam ensino superior.
Antes de avaliarem especificamente o mandato da deputada Andreia de Jesus, as/os respondentes foram interpeladas/os/es sobre a importância da representação política de mulheres negras: 95,2% dos entrevistados disseram concordar com a afirmação de que a eleição de mulheres negras é importante em termos de justiça social; 91% acreditam que faz avançar as pautas das mulheres e da população negra; 88,7% dos entrevistados concordam que ela muda a forma como a política é feita; 79,6% dos entrevistados concordam que mulheres negras têm uma abordagem e um estilo diferente de atuação política.
Perguntadas/os/es sobre os fatores que respondem por uma boa representação política (de uma candidata), a maioria dos respondentes (84,6%) acredita que o histórico de ativismo em movimentos e organizações sociais é o aspecto mais importante, seguido dos valores e princípios que a candidata defende (68,2%).
Perguntamos se as/os respondentes acompanham o mandato da deputada Andreia de Jesus, o que foi confirmado por (73,4%). Apenas essas responderam às questões que se seguem. Ao serem perguntadas/os/es sobre os aspectos positivos do mandato da deputada, de forma espontânea, são destacados mais frequentemente, elementos da dimensão descritiva e simbólica: “o fato de ser mulher e sua trajetória são muito importantes”; “sua representatividade, ser mulher negra na ALMG”, “mulher preta que representa as minorias”; “por ter trabalhado como empregada doméstica”; “já que a mulher preta tem uma forma mais humanizada de fazer política”. Mencionam também elementos da dimensão substantiva: seu engajamento na “defesa de povos quilombolas, com ocupações urbanas, comunidades indígenas, movimentos feministas”; “o enfrentamento ao racismo, machismo e preconceito religioso na ALMG”; o fato de ocupar a presidência da Comissão dos Direitos Humanos; e a fiscalização do Executivo “nas pautas prisionais e da discriminação racial”. Por fim, são lembradas sua resistência ao sofrer ameaças de morte e sua “disposição para ouvir a população tentando atuar com um mandato participativo”.
Os respondentes foram convidados a manifestar seu grau de concordância quanto a outros aspectos ou inovações desenvolvidas no mandato da deputada Andreia de Jesus. A maior concordância observada foi com relação à afirmativa de que esse mandato impulsiona a participação de grupos tradicionalmente desconsiderados na política (73,5%). Grande parte dos respondentes concorda que consultar a população sobre a destinação dos recursos de emenda parlamentar possibilita uma importante forma de participação nas decisões (71,8%). Além disso, 68,1% concordam que audiências públicas potencializam a discussão de temas tradicionalmente desconsiderados da política. Por outro lado, a afirmativa que obteve o maior número de discordâncias foi a de que o mandato da deputada Andreia de Jesus inaugura a representatividade das pessoas negras no parlamento estadual de Minas Gerais (36%).
Dado que as técnicas quantitativas, como a pesquisa de survey, não se mostram adequadas para compreender as causas por detrás das respostas captadas ou entender a complexidade das dinâmicas sociais, a pesquisa fez uso de uma técnica complementar, os grupos focais, para obter e qualificar a percepção da população acerca do mandato.
Foram realizados quatro grupos focais ao longo do mês de junho de 2022, cada um deles contendo 4 indivíduos. Utilizou-se a técnica de saturação para avaliar o quantitativo de grupos focais realizados. Cada grupo foi conduzido por uma moderadora, duas observadoras e um relator. Para a seleção dos participantes, contou-se com o envio, pelo mandato, de informações sobre os grupos e seus representantes; complementarmente, foram mobilizados contatos das próprias pesquisadoras. Cerca de metade dos participantes vive em áreas rurais; o restante, na capital estadual e na região metropolitana.
Toda/o/es participantes, em todas as sessões, utilizaram para tanto qualidades e atributos positivos sobre a deputada, fazendo-se bastante presente a associação a uma personalidade guerreira: “mulher de fibra”, “determinada”, “batalhadora”, “guerreira”, “mulher de luta”, “de coragem”, “de persistência”, “de muita garra e boa vontade”. Demarcaram Andreia de Jesus a partir de atributos pessoais relacionados à dimensão da representação descritiva e atributos simbólicos: “mulher preta e periférica”; “mãe solo”; “ex-doméstica”; “diplomada - mesmo diante de tantos empecilhos”; “a primeira deputada negra a ocupar a casa Assembleia Legislativa de Minas Gerais”, “uma pessoa que representa a história dos quilombolas”, “lutadora contra as oligarquias”, “atuante na pauta dos direitos humanos”, “mulher negra que enfrenta lutas muito caras, principalmente para parlamentares que levantam bandeiras dos povos originários, dos afetados pela mineração e dos privados de liberdade”; “apresentar Andréia seria o mesmo que falar de si próprio”. Esse resultado reforça, de certa maneira, os achados da pesquisa de survey. Alguns participantes também pontuaram a dificuldade no exercício de um mandato como o dela, que se propôs a “abrir caminhos”.
Com exceção de uma participante, todas/os as/os demais afirmam que votariam nela nas próximas eleições. Neste caso, os motivos elencados relacionam-se às três dimensões da representatividade: eles explicam que o perfil da deputada as/os representa, quanto mobilizam suas propostas de trabalho e os resultados entregues como justificativa. Destacamos a seguir os principais pontos de avanço e limites apresentados pelos participantes, segundo o público-alvo do mandato.
Para as lideranças indígenas, a avaliação é muito positiva, destacando que “Andréia representou e contemplou as necessidades das comunidades”. Por outro lado, a representante da juventude negra avaliou que, pelo fato de representar tantas pautas, o mandato enfrenta dificuldades para contemplar a todas. No entanto, avaliou como positivo trazê-las à discussão no espaço da Assembleia Legislativa. Tem consciência, também, das dificuldades de um mandato que atua de forma solitária e reforça que como presidente da Comissão de Direitos Humanos, Andréia de Jesus tem contribuído para a luta da juventude negra e para a defesa da vida.
Para os representantes quilombolas, a percepção é majoritariamente positiva; o mandato vem se empenhando na luta pelos povos tradicionais e produzindo ações que impactam as comunidades. Uma das representantes pontuou que a comunidade a qual pertence, “em toda a sua história, nunca se sentiu tão bem representada quanto no mandato da deputada Andréia de Jesus”.
A percepção dos representantes das organizações de matriz africana também foi em geral positiva, mas pontos de atenção foram trazidos para o debate. Um dos representantes afirma: “Nunca vi nenhum deputado fazer o que Andréia tem feito, que é atuar de forma presente e em defesa das bandeiras, mesmo diante dos riscos da sua integridade física e moral. É muito fácil apresentá-la, o que é preciso é divulgar os trabalhos que Andréia tem feito”. Por outro lado, um dos participantes, ainda que se afirme satisfeito com a atuação do mandato, “não se sente plenamente realizado pelos anos em que sua comunidade foi negligenciada”.
As representantes das organizações feministas destacaram haver pouca interlocução direta com o mandato e avaliaram que “as pautas das mulheres” foram menos abordadas do que outras:
Questões relacionadas ao enfrentamento da violência contra a mulher, questões concernentes às crianças enquanto vítimas de violência. São muitas as bandeiras, por isso verificamos poucas ações. Com a Gabinetona, havia uma expectativa, pois havia representatividade nos três entes: município, estado e congresso federal, então havia uma aposta desse trabalho conjunto, mas ficou só na seara dos desejos.
Considerações finais
Considerando os resultados encontrados pela pesquisa, ficam evidentes os pontos fortes do mandato da deputada Andreia de Jesus. Para além de sua clara contribuição à representatividade descritiva enquanto mulher negra, periférica, mãe-solo e ex-empregada doméstica; trata-se de seu primeiro mandato e única representante de seu partido na legislatura. A despeito dessas dificuldades estruturais e institucionais, Andreia mostrou grande capacidade de articulação política, conseguiu estabelecer um conjunto de parceiros viabilizando uma ação parlamentar acima da média e conseguiu ocupar espaços relevantes, como a Presidência da Comissão de Direitos Humanos - uma comissão história e de grande prestígio no contexto da Assembleia Legislativa de Minas Gerais.
Do ponto de vista da representação simbólica, os valores, sentimentos e atitudes evocadas pela eleição de Andreia de Jesus, assim como o comportamento e práticas do mandato foram vistos pela população como fatores que fortalecem a representatividade e geram expectativa de melhora no processo legislativo.
Além de ter uma taxa de aprovação de projetos de lei bastante significativa, a análise da produção legislativa evidenciou sua relevância e seu grande potencial em termos de impacto social. Para fazer avançar as pautas que se propôs a defender (representatividade substantiva), vale enfatizar a coerência programática do mandato e a forma como sua pauta ampliou-se e consolidou ao longo da trajetória, estabelecendo de forma mais explícita seu lugar. A pesquisa mostrou como a parlamentar foi capaz de enquadrar o debate (Lombardo; Meier; Verloo, 2013) a partir de uma pauta ampliada: das mulheres, da população negra, dos povos tradicionais, dos afetados pela mineração, das vítimas de violações de direitos. Esses aspectos desafiam a simples expectativa de que “mulheres buscam articular interesses de mulheres”. No caso aqui avaliado, à medida que seu acesso a posições aumentou, uma maior gama de pautas foi articulada pela deputada.
Também é importante mencionar a grande atenção dedicada pelo mandato à comunicação com suas bases sociais e à questão do accountability. A perspectiva adotada pelo mandato não se limitou à prestação de contas e ao relato das conquistas, mas incluiu o próprio desenho e planejamento das atividades do mandato por meio de metodologias e instrumentos inovadores.
A avaliação também trouxe à tona os desafios que se impuseram a esse mandato. As principais debilidades observadas estão relacionadas, em primeiro lugar, ao âmbito da gestão do gabinete - não apenas, mas principalmente, relacionada à falta de apoio da equipe técnica do parlamento, assim como do próprio partido. Isso se relaciona com a comunicação, que também é um ponto de atenção do mandato, mais voltada para o debate das pautas, e menos para formas de envolver ou divulgar à população o enorme conjunto de ações do mandato. A pesquisa mostrou que mesmo apoiadores e/ou pessoas que acompanham mais ou menos sistematicamente o mandato têm pouco conhecimento suas realizações.
Por fim, é importante reforçar o desafio relacionado à violência política. Os achados corroboram a hipótese de que os mandatos parlamentares de mulheres negras em países como o Brasil sofrem níveis muito mais intensos de ataques. Além dos impactos multidimensionais desse tipo de violência, que afetam não apenas pessoalmente e profissionalmente, é necessário destacar o risco que ela representa para o avanço democrático. A violência política pode criar obstáculos tão significativos para a trajetória parlamentar a ponto de causar sua interrupção. Este é um tema que exige atenção urgente da academia e do campo político em geral.
Os resultados da pesquisa reforçam também a necessidade de repensar os modelos e pressupostos da avaliação parlamentar. A partir de aprendizados e orientações de organismos internacionais e partindo de pressupostos teóricos presentes sobretudo nos estudos de gênero, propusemos um modelo que consideramos mais adequado para apreender a contribuição democrática do mandato parlamentar.
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1
Para replicação dos dados: https://doi.org/10.7910/DVN/5VEHO2
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6
Embora na literatura sobre representação política a representação descritiva e simbólica sejam duas dimensões distintas da representação, optamos por analisá-las juntas por duas razões principais. Primeiro, o fato de que, enquanto a literatura empírica sobre representação descritiva avançou bastante, a literatura sobre representação simbólica ainda é incipiente. Segundo, algumas estudiosas feministas apontam que a participação das mulheres na política é em si uma forma de representação simbólica, pois neste espaço elas configuram modelos distintos de representação (Lombardo; Meier, 2018, p. 328). Elas são corpos que estavam ausentes no espaço público e, portanto, sua presença quebra a ideia estabelecida de quem deveria ser incluído na representação de uma nação.
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7
O debate racial brasileiro costuma incluir na categoria “negros” o que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística considera pretos e pardos. A orientação baseia-se na ideia de que o racismo no Brasil opera com base no fenótipo, além do fato de a população “parda” brasileira possuir ancestrais africanos ou ser originária da população indígena. Isso se deve a uma reivindicação histórica do movimento negro, especialmente a partir da década de 1970, quando o movimento passou a adotar e reafirmar o significado do termo “negro” na construção da consciência racial. Também se deve à demanda do movimento de que o método de coleta de informações sobre raça deva se basear na autodeclaração do entrevistado.
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8
Limitou-se a verificar a taxa de aprovação das propostas apresentadas pela própria parlamentar; a comparação com outros mandatos estava além do escopo dessa análise.
Editado por
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Debora Rezende de Almeida
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Rebecca Neaera Abers
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
31 Jan 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
07 Ago 2023 -
Aceito
06 Jun 2024